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SOBRE O SENTIDO DA POLÍTICA NA EXPERIÊNCIA PRÉ-FILOSÓFICA: O RESGATE DE SUA DIGNIDADE. Francisco Jameli Oliveira Reinaldo*

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Francisco Jameli Oliveira Reinaldo*

RESUMO: o presente texto objetiva avaliar o sentido da política na experiência pré-filosófica com o intuito de perceber a dignidade conferida ao âmbito da política nesse período. A hipótese inicial, à luz do pensamento arendtiano, é que a tradição política teve início com o aviltamento da política pela negação da pluralidade ao submetê-la ao domínio do pensamento, da contemplação. Neste caso, o resgate da concepção pré-filosófica de política equivale a recuperar sua dignidade. Veremos que essa recuperação da política perpassa o conceito grego de imortalidade.

PALAVRAS-CHAVE: Experiência pré-filosófica; Pluralidade; Imortalidade.

ABSTRACT: the present text has as its aim to evaluate the meaning of politics in pre-philosophical experience with the aim of perceive the dignity granted the scope of politic in this period. The initial hypothesis, in the light of Arendt thought, is that the political tradition began with debasement of politics by denial of plurality to submit it to thought domain, contemplation. In this case, the recovery of pre-philosophical conception of politic is equivalent to recovery your dignity. We will see that this recovery of politic runs through greek concept of immortality.

KEY WORDS: Pre-philosophical experience; Plurality; Imortality.

*Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. Membro do Grupo de Estudos em Política, Educação e Ética - GEPED. E-mail: dulitle@hotmail.com

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INTRODUÇÃO

Pensar o sentido da política na experiência pré-filosófica constitui o escopo principal deste texto. Para tanto, assumimos o pressuposto arendtiano de que o início de nossa tradição deu-se quando o filósofo definiu, na famosa alegoria da caverna, o domínio da polis como “trevas, confusão e ilusão, que aqueles que aspirassem ao ser verdadeiro deveriam repudiar e abandonar, caso quisessem descobrir o céu límpido das ideias eternas”. De fato, nessa postura platônica inicial, que segundo Arendt funda nossa tradição de pensamento político, pôde-se perceber um desprezo pela vida na polis, a caótica esfera dos assuntos humanos, em função de um domínio mais estável, o domínio do pensamento, da contemplação.

Nesse sentido, levando em consideração que a nossa tradição teve início com o aviltamento da política por parte da filosofia platônica, convém que identifiquemos o sentido da política recorrendo à experiência pré-filosófica, que neste caso, como veremos, equivale ao resgate da dignidade da política.

Desta feita, nosso texto adota os seguintes passos: num primeiro momento, falaremos da apolitia platônica, do aviltamento da política, isto é, da submissão da política ao campo do pensamento, num segundo momento, recorreremos à experiência pré-filosófica grega, avaliando o conflito entre eternidade e imortalidade, com o intuito de perceber, na figura do guerreiro, o grande paradigma político para, por fim, falarmos da polis como reduto da imortalidade e testemunho da dignidade da política.

Sobre a apolitia platônica

Platão, assevera Arendt, ao iniciar nossa tradição de pensamento político com a afirmação de que a esfera dos assuntos humanos é lugar de ilusão, de trevas, definindo os critérios da política fora da polis e abrigados no reino inteligível das verdades que o filósofo alcança na solidão da contemplação, e pondo a verdade no domínio do pensamento individual em contraposição à opinião que nasce no espaço da polis, submete a política à filosofia, isto é, submete a política ao domínio do pensamento e não o da ação. Diz:

[...] O início – de nossa tradição – deu-se quando, na alegoria da caverna, em

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79 pertence ao convívio de homens em um mundo comum, em termos de trevas, confusão e ilusão, que aqueles que aspirassem ao ser verdadeiro deveriam repudiar e abandonar, caso quisessem descobrir o céu límpido das ideias eternas. [...] (ARENDT, 2001, p. 43).

Nesse caso, no início de nossa tradição de pensamento político, a esfera dos assuntos humanos já é destituída de um autêntico significado. Platão, no mito da caverna, repudia o domínio da polis. O rei-filósofo no pensamento político de Platão surge como uma metáfora da desvalorização desse âmbito. Nele, o filósofo é visto como aquele que se distancia da esfera do convívio humano, da opinião, em busca de um significado além do domínio da polis grega, em busca de uma Verdade que seja luz e se sobreponha às trevas, ao caos da opinião da multidão.

No entendimento arendtiano, essa fuga platônica da polis não é de modo algum arbitrária. Platão pôde constatar a ameaça da polis à vida do filósofo através de um acontecimento marcaria profundamente seu pensamento: a condenação de seu mestre, Sócrates1. É claro que, se, por meio das mais elaboradas argumentações, o filósofo não

conseguiu persuadir os juízes de que não corrompera a juventude nem desacreditara nos deuses da cidade, a conclusão mais imediata que se pode chegar é de que a Justiça não pode ser contemplada pela multidão.

Assim, ao pôr o filósofo como rei2, Platão busca garantir duas condições: a comodidade

do filósofo – o governo do rei-filósofo é o governo que assegura as condições para o filósofo viver o ônus3 do governo em benefício da cidade justa, com a ressalva de que é na solidão da

1 É digno de nota que o que aqui chamamos de aviltamento da polis tem um marco decisivo em Platão, pela

experiência negativa do filósofo com a polis. Em Sócrates ainda é possível coexistirem a preocupação com a polis e com a contemplação. Conforme nota Duarte, “o destino de Sócrates marcaria não apenas o fim da época de ouro da polis ateniense, como também o momento de instauração das oposições hierárquicas entre pensamento e ação, verdade e opinião, transcendente e empírico, essência e aparência, pluralidade e singularidade, infinito e finitude, as quais estruturariam toda a tradição filosófica”. (DUARTE apud PASSOS, 2000, p. 30).

2 “Enquanto não forem os filósofos reis nas cidades, ou os que agora se chamam reis e soberanos filósofos

genuínos e capazes, e se dê essa coalescência do poder político com a filosofia, enquanto as numerosas naturezas que atualmente seguem um destes caminhos com exclusão do outro não forem impelidas forçosamente de o fazer, não haverá tréguas dos males, meu caro Gláucon, para as cidades, nem sequer, julgo eu, para o gênero humano, nem antes disso será jamais possível será jamais possível ver a luz do sol a cidade que há pouco descrevemos. Mas isto é o que eu há muito hesitava em dizer, para ver como seriam paradoxais essas afirmações. Efetivamente, é penoso ver que não há outra felicidade possível, particular ou pública”. (PLATÃO, V 473 d).

3A respeito da compreensão platônica da política como um ônus, vale lembrar a recomendação do filósofo: “É

nossa função, portanto, forçar os habitantes mais bem dotados a voltar-se para a ciência que anteriormente dissemos ser a maior, a ver o bem e compreender aquela ascensão e, uma vez que a tenha realizado e contemplado, suficientemente o bem, não lhes autorizar o que agora é autorizado. – O quê? – Permanecer lá e

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80 contemplação que o filósofo se sente mais acomodado – e, supostamente, a melhor forma de governo para todos. A lógica é simples, porém danosa – visto que a condição política fundamental, segundo Hannah Arendt, é a pluralidade, pluralidade esta que sempre deve levar em consideração a multiplicidade de opiniões –: o filósofo, ao contemplar a Justiça, é o único que pode aplicá-la. Essa foi a conclusão que Platão chegou após o atentado da polis contra a vida do filósofo.

O papel do filósofo no pensamento platônico n’A república é, portanto, paradigmático para o que chamamos de aviltamento da política, à medida que considera o espaço da opinião como um campo a ser desconsiderado, e traz para o espaço da política, reservado à pluralidade de concepções, a Verdade singular do filósofo. Destarte, para pensarmos uma dignidade da política nela mesma, sem recorrer às categorias filosóficas, pois estas aviltam a dignidade da política, ser-nos-á necessário recorrer à experiência pré-filosófica avaliando o conceito de imortalidade como categoria política fundamental.

3. Sobre o resgate da dignidade da política: o conceito de imortalidade

No capítulo 3 de A condição humana, intitulado eternidade versus imortalidade, Arendt trata de definir e esclarecer a importância desta última para o mundo pré-filosófico, contrapondo-o ao domínio filosófico da eternidade. Sobre o conceito de imortalidade, diz ela:

Imortalidade significa continuidade no tempo, vida sem morte nesta Terra e neste mundo, tal como foi dada, segundo o consenso grego, à natureza e aos deuses do Olimpo. Contra esse pano de fundo – da vida perpétua da natureza e das vidas dos deuses, isentas de morte e de velhice – encontravam-se os homens mortais, [...] (ARENDT, 2014, p. 22).

Numa atmosfera onde tudo, exceto os homens, era imortal, a grande preocupação grega consistia em descobrir como herdar esse dom que a natureza e os deuses têm sem nenhum esforço, naturalmente. Sob o pano de fundo dessa imortalidade de tudo que circunda o homem, é que ele busca uma experiência que potencialmente o imortalize, visto que, diferente da natureza, além de existir como espécie — o que por si só já garante a sua imortalidade

não querer descer novamente para junto daqueles prisioneiros nem partilhar dos trabalhos e honrarias que entre eles existem, quer sejam modestos, quer elevados”. (Ibidem, VI 419 d).

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81 como membro do gênero, da natureza humana, por meio da procriação —, o homem também existe como indivíduo. Assim,

[...] A preocupação dos gregos com a imortalidade resultou de sua experiência de uma natureza imortal e de deuses imortais que, juntos, circundavam as vidas individuais de homens mortais. Inserida em um cosmo onde tudo era imortal, a mortalidade tornou-se o emblema da existência humana. Os homens são “os mortais”, as únicas coisas mortais que existem, porque, ao contrário dos animais, não existem apenas como membros de uma espécie cuja vida imortal é garantida pela procriação. [...] (ARENDT, 2014, p. 23).

É essa preocupação com a imortalidade que torna possível compreender o paradigma político pré-filosófico no entendimento arendtiano. Se, de fato, contra o pano de fundo da circularidade biológica, o homem traça uma trajetória retilínea de sua vida individual, – pois é isso a imortalidade: “mover-se ao longo de uma linha reta em um universo em que tudo que se move o faz em um sentido cíclico” (ARENDT, 2014, p. 24) –, é necessário produzir coisas que “poderiam estar e, pelo menos até certo ponto, estão confortáveis na eternidade” (ARENDT, 2014, p. 24).

Um bom testemunho que identificamos dessa ânsia grega de se imortalizar, desse desejo de sempre mostrar sua aristeia, emerge na coragem das figuras heroicas homéricas e sua disposição a abdicar da segurança privada em função da glória pública de seus feitos, advinda da luta guerreira. Nesse sentido, é paradigmática a figura de Aquiles na luta com Heitor, em A

Ilíada. Jaeger destaca, neste sentido,

[...] o heroísmo sobre-humano de um jovem magnífico que prefere, em plena consciência, a dura e breve ascensão de uma vida heroica a uma longa existência sem honra, cercada de prazeres e de tranquilidade, um verdadeiro

megalopsychos que, sem indulgência para com o adversário de igual condição,

só atenta no único fruto de sua luta: a glória pessoal [...]. (JAEGER, 2001, p. 74).

Aqui, mesmo a vida individual não vale o suficiente para ser vivida nela mesma, quer dizer, apenas na sua fruição. Do contrário, as figuras homéricas estão dispostas a abdicar da própria vida para se imortalizarem na memória daqueles que puderam presenciar sua glória pessoal, luzida na grandeza dos próprios feitos.

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82 Para clarificar ainda mais esta definição, convém fazermos referência ao próprio entendimento arendtiano sobre as figuras homéricas. Segundo Young-Bruehl, na sua biografia sobre Hannah Arendt,

Numa discussão sobre a Odisseia de Homero, Arendt comentou que as linhas que a comoveram mais profundamente foram as que contavam como Ulisses, à deriva num mar bravio, agarrando-se à estrutura quebrada do barco que havia feito para escapar da ilha de Calipso, desesperou-se e pensou em desistir e afogar-se. Ele caiu em si quando se lembrou que se o seu corpo fosse perdido

não receberia os ritos fúnebres; ele e seus feitos iriam desvanecer-se da memória humana.

(grifo nosso) [...] (YOUNG-BRUEHL, 1997, p. 224).

Há aqui, na figura de Ulisses, o próprio descaso pela vida nela mesma, a ponto de a morte

ser menos importante que o esquecimento. É claro que o pressuposto homérico é que a alma não

sobrevive ao perecimento do corpo. Por outro lado, como a alma não sobrevive, é preciso buscar uma imortalidade potencial em algo que seja mais palpável do que esse objeto invisível. Neste sentido, pois,

Os gregos primitivos não conheceram a imortalidade da “alma”. O homem morria com a morte do corpo. A psyche homérica significa antes o contrário: a imagem corpórea do próprio Homem, que vagueia no Hades como uma sombra: um puro nada. Mas, se alguém, pela oferta de sua vida, se eleva a um ser mais alto acima da existência comum, a polis concede-lhe a imortalidade do seu eu ideal, isto é, do seu “nome”. Foi a partir daí que a ideia da glória heroica

guardou, para os gregos, esse matiz político.[...] Para os Gregos, e mesmo para toda

a antiguidade, o herói é, pura e simplesmente, a mais alta forma de humanidade. (grifo nosso) [...] (JAEGER, 2001, p. 123).

Essa afirmação acima citada é de fundamental importância para a nossa investigação sobre o sentido da política na experiência pré-filosófica. Na verdade, ela sintetiza nossa tentativa de identificar, no mundo pré-filosófico, “o matiz político das figuras homéricas”. De fato, é bem verdade que a nossa concepção de alma, com o cristianismo, atingiu um entendimento diametralmente oposto da definição homérica4 de imortalidade. Mas o

4 Sobre a concepção cristã de imortalidade da alma, é interessante consultar o capítulo 36 de A condição humana, A

vida como o bem supremo. Nele Arendt esclarece as implicações políticas dessa inversão da hierarquia tradicional entre mortalidade da alma e imortalidade da natureza. A título de esclarecimento, convém fazermos uma breve referência a essas colocações. Sobre a inversão cristã de imortalidade da natureza e mortalidade da alma, diz Arendt: “a ‘boa nova’ cristã da imortalidade da vida humana individual invertera a antiga relação entre o homem e o mundo, promovendo aquilo que era mais mortal, a vida humana, à posição de imortalidade ocupada até então pelo cosmo”. (ARENDT, 2014, p. 389-390). Sobre a implicação política mais grave, diz Arendt: “A atividade política, que até então retirara sua maior inspiração da aspiração à imortalidade mundana, baixou

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83 vislumbre dessa categoria nos possibilita compreender a forte carga política desse substituto da posterior imortalidade cristã da alma. Assim, é em virtude dessa disposição homérica de abdicar da própria vida em função da imortalidade que, segundo Hannah Arendt e Jaeger, fez de Homero o grande educador da polis.

A propósito, é pela noção de imortalidade potencial do homem através dos feitos que o mundo grego constrói toda uma concepção, não só política, mas também histórica. Convém relembrar a antiga definição de História em Heródoto, “o pai da História Ocidental” (ARENDT, 2001, p. 69), para compreendermos o quanto o mundo grego tratou com seriedade essa noção:

[...] Seu entendimento da tarefa da história – salvar os feitos humanos da fragilidade que provém do olvido – enraizava-se na concepção e experiência gregas de natureza, que compreendia todas as coisas que vêm a existir por si mesmas, sem assistência de homens ou deuses – os deuses olímpicos não pretendiam ter criado o mundo – e que são, pois, imortais. [...] (ARENDT, 2001, p. 70).

A preocupação com a imortalidade humana surge tendo como pano de fundo a concepção de que o homem é o único ser que, por emergir como uma forma de vida singular –

bíos – além da própria vida biológica – dzoé –, necessita garantir sua potencial imortalidade

através de feitos e ações, isto é, salvar seu nome do esquecimento. Por ser mortal, tudo aquilo que advém do homem, quer seja a ação e a fala no espaço político, que nelas mesmas não produzem objeto algum, ou a interferência violenta do homem na natureza, que produz coisas menos perecíveis que a ação e a fala, carrega consigo esse traço de mortalidade de seu autor. É neste sentido que a interferência humana sempre viola a eterna quietude e harmonia das coisas, como nos faz lembrar Arendt:

[...] Sempre que os homens perseguem seus objetivos, lavrando a terra rude, forçando em suas velas o vento que flui livre e cruzando vagas constantemente encapeladas, eles seccionam transversalmente um movimento que é desprovido de objetivo e encerrado dentro de si mesmo. Quando Sófocles (no famoso coro de Antígona) diz que não há nada mais inspirador de temor que o homem, ele prossegue, para exemplificá-lo, evocando as atividades humanas propositadas que violentam a natureza por conturbarem o que, na ausência dos mortais, seria a eterna quietude do agora ao nível de uma atividade sujeita à necessidade, destinada a remediar, de um lado, as consequências da pecaminosidade do homem, e, de outro, a atender às carências e interesses legítimos da vida terrena”. (ARENDT, 2014, p. 390).

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84 para-sempre que descansa ou oscila dentro de si mesmo. (ARENDT, 2001, p. 71).

Assim, em função da “mácula” da mortalidade humana, que afeta tudo aquilo que passa por suas mãos, é necessário uma base que garanta uma durabilidade dos feitos além da própria fragilidade de sua vida individual. A solução grega inicial para essa fragilidade da vida humana individual, segundo Arendt, foram poesia e historiografia. Pois, “a tarefa do poeta e do historiador [...] consiste em fazer alguma coisa perdurar na recordação. E o fazem traduzindo práksis e léksis, ação e fala, nesta espécie de poiésis ou fabricação que por fim se torna a palavra escrita”. (ARENDT, 2001, p. 74). Mas estas palavras em que poeta e historiador tentavam imortalizar exigiam, além disso, um lugar, um reduto da imortalidade. É contra a futilidade dessa existência que a polis emerge como este reduto.

Se mesmo os objetos produzidos pelo artifício humano, que ao mesmo tempo herdam uma parte da imortalidade da natureza e outra parte da mortalidade do homem, perecem, a ação e a fala, que inegavelmente são mais perecíveis que os artefatos produzidos pela intervenção violenta do homem na natureza, são os frutos mais frágeis, os atributos mais

mortais dos homens mortais. Neste sentido, mais uma vez é necessário recordar a solução grega.

“Ela consistia na fama imortal que os poetas podiam conferir à palavra e aos feitos, de modo a fazê-los perdurar não somente além do fútil momento do discurso e da ação, mas até mesmo da vida mortal de seu agente” (ibidem, 2001, p. 75). Essa fama imortal, como foi dito, só foi possível no lócus da imortalidade, a polis grega.

Sobre a dignidade da política: a polis como reduto da imortalidade

Essa inter-relação política-História, explicitada logo acima, cujo articulador é a noção grega de imortalidade, permite-nos compreender, de modo implícito, as categorias políticas fundamentais do pensamento político arendtiano: a pluralidade, a noção de espaço público, a dignidade da ação e da fala, a individualidade e a coragem como virtude cardeal da política.

Como dissemos, a filosofia política ocidental teve seu início quando o filósofo buscou fugir da insegurança da polis para seguro domínio da contemplação. De fato, a fuga da polis por parte do filósofo nos oferece um forte indício de que o domínio político deve ser ocupado por quem tem coragem suficiente para sair da privatividade do lar e arriscar a vida para produzir

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85 feitos memoráveis que, pela glória que os irradia, merecem ser lembrados pela posteridade. Assim, essa disposição para abdicar da segurança pessoal em função da produção de feitos memoráveis, põe em evidência a importância da coragem, o grande atributo do guerreiro, como virtude cardeal da política. A despeito das mudanças ocorridas no que diz respeito a essa concepção, segundo Hannah Arendt, ainda hoje a coragem é uma das virtudes decisivas da política.

O argumento acima parece fazer sentido se compararmos outra distinção implícita nas figuras homéricas: a distinção entre os domínios público e privado. Embora hoje estar disposto a ocupar a cena pública não signifique, como nas figuras homéricas, estar disposto a abdicar da própria vida, não se pode negar que a privatividade do lar é infinitamente mais segura que a hostilidade da cena pública. Assim, segundo Arendt, predomina na vida privada a preocupação com a segurança, com as necessidades da vida. No mundo público, por outro lado, é necessário ter coragem, não mais para abdicar da própria vida para eternizar atos e palavras na memória por meio da poesia e historiografia, mas para defender seu ponto de vista, sua opinião, em contraposição a uma infinidade de opositores, para ter o direito de falar e agir na cena pública. A privatividade do lar, nesse caso, não obstante oferecer as vantagens da segurança, da satisfação das necessidades físicas, tem a desvantagem de nos privar da glória do domínio público. Pois “viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, estar privado de coisas essenciais a uma vida verdadeiramente humana: estar privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, [...]” (ARENDT, 2014, p. 72). Daí o caráter

privativo da privatividade.

Outra característica central da psicologia das figuras homéricas é o esforço para, por meio de feitos, ser lembrado em sua singularidade. Já foi dito que, como pertencente ao gênero humano, o homem é, por natureza, imortal. Mas, se quiser ser lembrado pelo seu próprio nome, o homem deve se esforçar para ser único, para se distinguir da pluralidade de todos os outros membros de seu gênero. É a fama imortal dos feitos memoráveis, que associa o ato ao ator, que garante a imortalidade do nome do último.

Por fim, outra característica que, no nosso entender, articula todas as outras é a pluralidade. O homem que busca fama imortal pressupõe-se único e, ao mesmo tempo, pertencente a uma pluralidade de indivíduos potencialmente únicos. Falamos de indivíduos potencialmente no seguinte sentido: se os homens não se esforçarem para apresentarem sua singularidade em meio à massa de homens comuns, eles serão, paradoxalmente, imortalizados

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86 como membros da espécie humana e esquecidos após sua morte por não terem produzido nenhum feito que associe o ato ao ator.

Para serem singulares em meio à pluralidade dos homens comuns, eles também necessitam dessa pluralidade que testemunhe seus feitos. A mesma pluralidade que testemunha os feitos é a que garante que eles não serão esquecidos nas gerações vindouras. Semelhante ao que ocorre com o ator, o herói também precisa de um palco, pois é esse palco que garante que seus atos estão sendo testemunhados pelo público. É também o palco que espelha a glória dos feitos: é a reação da plateia, a aprovação ou desaprovação, os aplausos ou as vaias, que definem se os feitos são dignos de louvor ou se devem ser esquecidos, devorados pelo desenrolar histórico. A diferença entre o ator e o herói é que o palco do último é o mundo politicamente constituído e o que está em jogo é bem mais que a excelência na execução de um papel, o que realmente interessa, tanto para o herói quanto para o político, é a felicidade

pública.

De fato, ser visto – num espaço público – equivale a ser potencialmente lembrado. Ser visto é também estar disposto a ser aplaudido ou vaiado pelo público. A decisão de aparecer na sena pública implica ter coragem para esperar o imprevisível da plateia.

Parece-nos que as figuras homéricas articulam muito bem todas essas categorias políticas arendtianas: coragem, diferença entre público e privado, pluralidade, singularidade... todas elas, enfim, testemunham a dignidade da política no mundo grego pré-filosófico, dignidade própria da aparência, do ser visto pelo público que testemunha seus feitos e garante aquela realidade que só a luz da publicidade pode garantir, pois é só através dela que os feitos podem ser imortalizados nas figuras do poeta e do historiador.

Essa realidade das figuras homéricas é bem percebida por Jaeger. Vale lembrar, por fim, que Homero

Nunca considera os homens em abstrato e apenas em sua intimidade. Tudo se passa no quadro da existência concreta. As figuras não são meros esquemas que ocasionalmente despertam para a expressão dramática e se levantam a extremos prodigiosos para logo caírem na inação. Os homens de Homero são tão reais, que poderíamos vê-los e tocá-los com as mãos. (JAEGER, 2001, p. 83).

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87 Esses homens reais são os que se movimentam na polis. A dignidade da política advém do fato de que o espaço da polis é, por excelência, o reduto da imortalidade. Sem a aparência na

polis, nem poesia nem historiografia fariam sentido. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa tentativa de investigar, à luz do pensamento arendtiano, o sentido da política na experiência pré-filosófica, trouxe luz para o que, para ela, constituiu o aviltamento da polis por parte da filosofia: a tentativa de controle das contingências da ação via pensamento. O primeiro testemunho filosófico desse evento funda o modus operandi da filosofia. O vigor da influência platônica sobre a tradição de pensamento Ocidental é testemunhado na maneira como os filósofo posteriores tentaram superar esse incômodo da imprevisibilidade da ação; no geral, para Arendt, com raras exceções, o remédio era muito semelhante.

A despeito da turva visão política dos filósofos, que, no dizer da autora, erigem grandes “torres de marfim”, o pensamento, por seu caráter não imediatamente ativo, não é tão devastador quanto às incômodas imprevisibilidade e irreversibilidade da ação. Quando no campo efetivamente político essa tentativa de controlar a ação ocorreu, com o totalitarismo e sua esperança de criar de homens sem individualidade, tendo o campo de concentração como protótipo, mesmo essa tradição filosófico-política de aviltamento da polis perdera seu grau de gravidade.

A tradição não oferece respostas em face da perplexidade do totalitarismo. Foi no enfrentamento desse fenômeno que Hannah Arendt vasculhou, no horizonte da grande tradição, esquecida ou negligenciada pelos filósofos, o real sentido da política. Se o resgate se fazia urgente à época de nossa autora, podemos dizer que, em grau menor, é verdade, também se faz urgente, para nós. Os recentes eventos políticos de nosso país, longe de espelharem o orgulho da polis na sua fase áurea, estão mais próximos da vergonha. Nada mais indicativo do caráter aviltante da situação política contemporânea. Contra esse pano de fundo é preciso retornar aos gregos e ter coragem para acreditar nas potencialidades da ação como edificadoras de mundo.

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