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Balzac e A obra-prima desconhecida: um realismo impossível

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

Izabel Dal Pont

Balzac e A obra-prima desconhecida: um realismo impossível

Florianópolis 2019

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Izabel Dal Pont

Balzac e A obra-prima desconhecida: um realismo impossível

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de Mestre em Literatura

Orientador: Prof. Dr. Andrea Peterle Figueiredo Santurbano

Florianópolis 2019

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Izabel Dal Pont

Balzac e A obra-prima desconhecida: um realismo impossível

O presente trabalho em nível de mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Prof. Dr. Alain-Philippe Durand The Arizona University Profª Drª. Daniela Queiróz Campos Universidade Federal de Santa Catarina

Profª Drª. Maria Aparecida Barbosa Universidade Federal de Santa Catarina

Prof. Dr. Ronaldo Lima

Universidade Federal de Santa Catarina

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de mestre em Literatura.

____________________________ Prof. Dr. Marcio Markendorf

Coordenador do Programa

____________________________ Prof. Dr. Andrea Peterle Figueiredo Santurbano

Orientador

Florianópolis, 08 de novembro de 2019. Andrea Peterle Figueiredo

Santurbano:23240664836

Assinado de forma digital por Andrea Peterle Figueiredo Santurbano:23240664836 Dados: 2019.12.04 23:37:13 +01'00' Marcio

Markendorf:91573483168

Assinado de forma digital por Marcio Markendorf:91573483168 Dados: 2019.12.04 22:03:22 -03'00'

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Dedico essa dissertação ao meu pai Liberato José Dal Pont (in memoriam) de quem herdei o amor pelos livros e pela literatura e, para minha mãe, Thereza Junkes Dal Pont que sempre apoiou os projetos e os sonhos de seus filhos com sua presença tranquila e inspiradora.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador Prof. Dr. Andrea Peterle Figueiredo Santurbano que firme e serenamente me conduziu pelos labirintos da pesquisa.

Ao Prof. Dr. Alain-Philippe Durand, à Profª Drª. Daniela Queiróz Campos, à Profª Drª. Maria Aparecida Barbosa e ao Prof. Dr. Ronaldo Lima, por terem generosamente aceitado fazer parte da minha banca de avaliação e pelas valiosas contribuições.

Aos meus pais que nos proporcionaram um ambiente familiar no qual o incentivo aos estudos e à leitura sempre esteve presente. Aos meus nove irmãos com os quais sempre pude contar e com quem sempre compartilhei experiências, desafios e muitas alegrias. Aos meus 11 sobrinhos e ao meu sobrinho-neto que me inspiram e me portam sorrisos e esperanças.

Aos meus caros amigos, irmãos de escolha, pelo incentivo, pela torcida, pelas conversas, pelas taças de vinho, pelos brindes, pelas risadas, pelas lágrimas e, sobretudo, pelo apoio e suporte necessários.

À Marilene do Espírito Santo, pela amizade incondicional, pelas repetidas leituras da dissertação, pelas tantas revisões, pelos conselhos, pelo ombro sempre disponível e, principalmente, pelas palavras de serenidade nos momentos de dúvida e angústia.

À Profª Drª Violaine Heyraud, da Universidade Sorbonne Nouvelle. A partir de suas lições mergulhei com mais segurança e propriedade nos meandros da monumental obra de Honoré de Balzac.

Aos amigos e colegas pesquisadores do NECLIT pela generosa acolhida e pelos conhecimentos compartilhados.

Aos servidores e técnicos administrativos da UFSC e aos servidores da Biblioteca Universitária pelos valiosos suportes e orientação.

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RESUMO

Investigar de que maneira, em sua obra, o romancista Honoré de Balzac (1799-1850) utiliza a pintura e a descrição narrativa para amparar a representação dos costumes da sociedade do seu tempo é o foco desta pesquisa. Alicerçando-se em A Obra-Prima

Desconhecida (1837), cujo esquema dramático se desenvolve em torno de um objeto de

arte, precisamente uma pintura, inicia-se com um estudo que tem a finalidade de compreender de que maneira a pintura se infiltra na narrativa balzaquiana, e quais efeitos transparecem na criação romanesca. Em seguida analisa-se como, em uma espécie de movimento contínuo e incessante de escritura, o autor busca, de modo aparentemente antagônico, aproximar-se do absoluto em sua arte e ao mesmo tempo captar a essência do comportamento humano e da natureza. Dado que o paradoxo realismo/crise de representação nas artes perpassa toda a pesquisa, dedica-se uma parte da investigação ao tema. Para finalizar, destacam-se as ressonâncias de A Obra-Prima Desconhecida na posteridade. O desenrolar da pesquisa estrutura-se tanto na análise das narrativas que compõem o corpus, quanto no amparo teórico de especialistas e escritores, como Georges Didi-Huberman, Félicien Marceau, Walter Siti, Bernard Vouilloux, entre outros.

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ABSTRAT

The focus of this research is to investigate how, in his work, the novelist Honoré de Balzac (1799-1850) uses painting and narrative description to support the representation of the customs of the society of his time. Based on The Unknown Masterpiece (1837), whose dramatic scheme develops around an art object, specifically, a painting, the present study aims to understand how the painting infiltrates the Balzaquian narrative, and what effects are reflected in the novel. Then, we analyze how, in a sort of continuous and incessant movement of writing, the author seeks, in an apparently antagonistic way, to approach the absolute in his art and at the same time to grasp the essence of human behavior and nature. Given that the paradox realism / crisis of representation in the arts pervades this research, part of the research is devoted to this subject. Finally, the resonances of The

Unknown Masterpiece in posterity are highlighted. The development of the research is

based both on the analysis of the narratives that constitute the corpus, and on the theoretical support of experts and writers, such as Georges Didi-Huberman, Felicien Marceau, Walter Siti, Bernard Vouilloux, among others.

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GALERIA DE IMAGENS 1

Imagem 1 - Paul Cézanne, Peintre tenant sa palette ... 24

Imagem 2 - Pablo Picasso, Le Chef d’œuvre inconnu ... 24

Imagem 3 - Raffaello Sanzio, La Velata ... 28

Imagem 4 - Tiziano Vecellio, Flora ... 29

Imagem 5 - Tiziano Vecellio, Donna allo Specchio ... 41

Imagem 6 - Eugène Delacroix, La Liberté Guidant le peuple ... 43

Imagem 7 - Épreuve corrigée d’Illusions perdues d’Honoré de Balzac (1843) ... 66

Imagem 8 - Épreuve corrigée de La Femme Supérieure d’Honoré de Balzac (1837) ... 66

Imagem 9 - Auguste Rodin, Balzac ... 69

Imagem 10 - William De Kooning, Woman I ... 70

Imagem 11 - Paul Cézanne, La Montagne Sainte-Victoire vue de Bellevue ... 78

Imagem 12 - Paul Cézanne, Madame Cézanne dans un fauteuil rouge ... 78

Imagem 13 - Joseph Mallord William Turner, Snow Storm - Steam-Boat off a Harbour's Mouth ... 86

Imagem 14 - Kazimir Malevitch, Quadrado branco em fundo branco ... 100

Imagem 15 - Picasso, Pablo, Peintre et modèle tricotant ... 103

Imagem 16 - Anselm Kiefer, The Unknown Masterpiece ... 104

Imagem 17 - Daumier, Honoré, Jacques Colin/Vautrin/Herrera ... 110

Imagem 18 - Daumier, Honoré. H.de Balzac (?). (Vers 1845) ... 111

Imagem 19 - Willem de Kooning, Woman VI ... 113

1 As fotos e imagens que fazem parte da Galeria de Imagens, exceto em caso de indicação contrária, são

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 11

1 OS EFEITOS E OS REFLEXOS DA PINTURA NA LITERATURA DE BALZAC .. 25

1.1 Escrever, descrever, reescrever, narrar ... 31

1.2 Balzac escritor-pintor ... 38

2 O ABSOLUTO NAS OBRAS-PRIMAS DO ESCRITOR BALZAC E DO PINTOR FRENHOFER ... 52

2.1 A obra-prima de Balzac ... 54

2.2 A obra-prima de Frenhofer ... 70

3 REALISMO? ... 91

4 RESSONÂNCIAS DE A OBRA-PRIMA DESCONHECIDA ... 103

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 109

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INTRODUÇÃO

No princípio de tudo… uma lembrança remota. Nessa lembrança uma menina, tendo como destino à escola, caminha em meio a uma estrada semideserta cercada por bosques e lavouras. Para aplacar seus medos inventa histórias que, em voz alta, conta para si. Em gavetas e estantes da infância e da juventude essa mesma menina e sua voz interior encontram personagens que habitam livros. Livros e personagens que despertam o amor pela literatura. A esse amor, lenta e progressivamente, se junta o amor pela pintura. Van Gogh, Tarsila do Amaral, Vítor Meireles passam a conviver com Machado de Assis, Dante, Cervantes, Victor Hugo.

Muitos anos mais tarde, dos labirintos da mente brota um tema que martela insistentemente: literatura e pintura/ pintura e literatura. Por que então Balzac? Porque fui desafiada por esse contador de histórias que queria fazer ficção imitando a realidade. Porque fui tocada pela frequência com que reaparecem as comparações e as metáforas picturais utilizadas por esse escritor-pintor que se submete a seus pincéis para pintar, despintar, representar homens, mulheres, tipos, costumes, lugares, enfim, uma “sociedade” inteira. Porque ao considerar a insistência com a qual o autor trata cenas e personagens como se fossem pinturas poéticas, desconfiei que ele atribui às “cores” da mimésis literária funções mais importantes que a da simples especificação dos objetos representados. Porque em breves 51 anos de vida e a partir das ruínas da revolução francesa, Honoré de Balzac edifica e concede vida e movimento a um verdadeiro universo fictício. E, porque depois de ter gestado aproximadamente dois mil e oitocentos personagens, ele próprio vira personagem pelas mãos do escultor Auguste Rodin.

Ao prefaciar os Estudos de Costumes, Balzac sugere que seus romances são telas distribuídas em diferentes galerias2. A pintura, como pode ser facilmente comprovado por

leitura da maioria de suas obras, constitui uma arte onipresente nas cenas que compõem a produção ficcional do autor. A profusão de alusões, de associações de descrições picturais, de sugestões, de menções às artes plásticas, autoriza comparar A Comédia

Humana, metaforicamente, a um “museu” composto por quadros literários. Em sua

produção literária, que inclui prefácios e ensaios, Balzac repete em diferentes contextos

2 “Aux Scènes de la vie parisienne, finissent les peintures de la vie individuelle. Déjà, dans ces trois

galeries de tableaux, chacun s’est revu jeune, homme et vieillard. Après les étourdissants tableaux de cette série [les Scènes de la vie militaire] viendront les peintures pleines de calme de la Vie de campagne. […] Là donc le repos après le mouvement, les paysages après les intérieurs […].” L’introduction aux Études de mœurs (apud SAWADA, 2011, p. 126).

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o termo “pintar”, tanto denotativa quanto conotativamente e estende o emprego do termo, evocando seus sinônimos, sucedâneos e derivados, cada qual com suas nuances semânticas, sempre remetendo e aludindo à noção de “pintura”. Com efeito, poder-se-ia aceitar que o agenciamento sintático de unidades lexicais, que formam frases e períodos, deslocaria o texto escrito para os domínios de outras artes, como a pintura e vice-versa. Nesse sentido, fenecem quaisquer fronteiras estanques tanto em termos de representação autoral, quando de apreensão dos sentidos. Em outros termos, as minuciosas descrições permitem a apreensão do texto e de seus referenciais, amalgamadas por ativadores dos sentidos que culminam em forma de imagens, traduzidas pela narrativa como “pinturas”. A adoção do termo “pintura” não extrapola, de modo algum, as circunscrições do universo d’A Comédia Humana, tampouco constitui licença poética desta pesquisadora. Pelo contrário, a noção de pintura emerge no umbral no qual a margem do texto fricciona-se com seus referenciais, justamente aqueles propostos na complexidade remissiva inerente ao processo narrativo balzaquiano, eminentemente descritivo. Neste limiar de diálogo entre texto escrito e seus referentes, florescem as cenas “pintadas” através da escritura, proporcionando a instauração de um ego, hic et nunc situados diante de um universo verossímil, no qual os personagens circulam, expondo, cada qual, sua presença em um espaço diegético que se confunde com a realidade de um hic et nunc experimentados.

Escrever, riscar, circular, delinear, pintar, repintar, despintar, apagar... palavra, verbo, ação, oração... pintor, pintura, personagem... sujeito, substantivo, adjetivo... arte, encenação, representação... alusão, comparação, imaginação... intriga, inspiração, sugestão, evocação, imitação... descrição, estratificação, reconstrução, desconstrução... metáforas, metonímias, imagens... travestidas, reveladas, desveladas, camufladas... obras conhecidas, reconhecidas, desconhecidas, ignoradas... polissêmicas, plurais, multiculturais! Em sua obra ficcional, bem como em seus paratextos, Balzac insiste no emprego do termo “pintura” e seus sucedâneos, explorando conotações, associações e exemplos, com seus derivados. Portanto, numa reverência explícita ao estilo do autor, nesta dissertação o termo “pintura” será empregado metaforicamente para caracterizar o gesto de escritura do criador de A Comédia Humana.

Ao conceber o projeto de reunir as peças de sua obra em um conjunto, Honoré de Balzac (1799-1850) se autodenomina historiador e pintor de costumes e declara que seu objetivo literário é “reunir fatos e pintá-los tais quais eles são” (BALZAC, 1959a, p. 18). O inventário inclui a cidade, a campanha, a corte, o campo de batalha, o comércio, o

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mundo do dinheiro, a imprensa, a vida em sociedade, as sociedades secretas, o submundo do crime, etc. Monumental, monstruosa, complexa, contraditória, ambígua, povoada por personagens de diferentes extratos sociais, em A Comédia Humana são colocados frente a frente a burguesia em ascensão e a aristocracia em decadência.

Sobrepondo milhares de peças, num movimento ininterrupto, o autor vai transformando em ficção romanesca os costumes e o caráter da sociedade em evolução diante de seus olhos, englobando hipocrisias, idiossincrasias, ambiguidades, contradições, ambições, paixões ocultas, paixões reveladas. Assim, o ambicioso, o sensato, o nobre, o burguês, o mendigo, o artesão, o artista, o otimista, o altruísta, o melancólico, o criminoso, o justo, o virtuoso, o mentiroso, o corrupto, o sensual, o pudico, o indiferente, a dona de casa, o comerciante, a cortesã, o homossexual, o heterossexual, o amante da mulher, o tradicionalista, o fundamentalista, o inovador, o rebelde, o avaro, o pródigo, o esbanjador, o monomaníaco, o generoso, o egoísta, o beato, o ateu, o gênio, o medíocre, o rancoroso, o apaixonado, o crente, o descrente, com todas as possíveis nuances e tons, compõem a diversidade de personagens do universo balzaquiano.

Para estruturar o afresco literário de sua época, Balzac (1959a, p. 9-22) serve-se da história de costumes e dos gestos da sociedade francesa como matéria primeva: “O acaso é o maior romancista do mundo; para ser-se fecundo basta estudá-lo. A sociedade francesa seria o historiador, eu nada mais seria que seu secretário” (BALZAC, 1959a, p. 14). Porém, ele se propõe a ir além dos fatos e a “pintar”3 as razões e as causas que

engendram esses fatos. Eigeldinger (1957, p. 11) diz que “assombrado pelo mito da criação, pintor de uma sociedade dominada pelo desejo de poder e da descoberta, Balzac além de elaborar uma filosofia e uma estética do romance, estudou os fenômenos da invenção e da execução do pintor, do músico e do poeta”4.

Ao decidir reunir seus livros em uma coleção chamada A Comédia Humana, o escritor opta por dividi-la em três grandes partes: Os Estudos de Costumes (compostos por seis livros: Cenas da Vida Privada, Cenas da Vida Provinciana, Cenas da Vida

Parisiense, Cenas da Vida Política, Cenas da Vida Militar e Cenas da Vida Rural)

reúnem “a história geral da sociedade, a coleção de todos os seus fatos e gestos, […]”. Os

3 No Avant-Propos (Prefácio) de A Comédia Humana, produzido em 1842, Balzac utiliza como metáfora

de escritura dezoito vezes o verbo “pintar”, quatro vezes o substantivo “pintura”, quatro vezes o substantivo “quadro” (com o significado de pintura) e uma vez o substantivo “afresco”.

4 “Hanté par le mythe de la création, peindre d’une société dominée par la volonté de puissance et de

découverte, Balzac n’a pas seulement élaboré une philosophie et une esthétique du roman, il a aussi étudié les phénomènes de l’invention et de l’exécution chez le peintre, le musicien et le poète.” – Todas as traduções, exceto em caso de indicação contrária, são de nossa autoria.

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Estudos Filosóficos agrupam relatos “onde todos os efeitos gerados no meio social

encontram-se demonstrados, onde as devastações do pensamento são pintadas, sentimento por sentimento […]”, por sua vez os Estudos Analíticos contemplam explicações teóricas sobre as relações sociais (BALZAC, 1959a, p. 19-20).

A estrutura, entretanto, não obedece qualquer sequência ou cronologia. Uma das características fundamentais da obra de Balzac é justamente sua mobilidade. Cada um dos romances pode ser considerado uma peça, um bloco, ou um fragmento de uma construção monumental ou de um gigantesco mosaico por onde se consegue circular utilizando todo tipo de entrada e escolher o percurso desejado. Pode-se inclusive eleger entradas e caminhos principais. Naturalmente é possível movimentar e/ou deslocar cada parte livremente. No Avant-Propos publicado em 1842, Balzac procura conferir a lógica e a coerência que interligam os blocos, bem como o sentido filosófico, social e histórico desse conjunto organizado de suas obras.

A caracterização detalhada de espaços, o retrato físico, os gestos, as vestimentas e o perfil psicológico e moral de aproximadamente dois mil e oitocentos personagens5,

bem como a tradução de hábitos, de virtudes, de vícios, de complexidades, são procedimentos explorados e expostos ao longo de toda a obra. Explicitando esses propósitos, Balzac (1959a p. 12) declara que “[…] a obra a empreender devia ter uma tríplice forma: os homens, as mulheres e as coisas, isto é, as pessoas e a representação material que elas fazem de seu pensamento, em resumo, o homem e a vida”.

A tarefa titânica de “tornar interessante o drama de três ou quatro mil personagens que a sociedade apresenta […], agradar ao mesmo tempo ao poeta, ao filósofo e às massas que querem a poesia e a filosofia sob imagens empolgantes […]” (BALZAC, 1959a, p. 12) coloca o romancista diante de um paradoxo, dado que a possibilidade de representação da realidade se apresenta de forma elástica e movediça e que o realismo literário se opõe ao mundo ideal de um absoluto almejado. Embora no término do movimento literário que viria a ser conhecido posteriormente como realismo a linguagem como instrumento clássico de expressão humana mostrasse sinais de enfraquecimento, o Professor Enrico Testa (2018, p. 7) afirma que é a partir do início do século XX que se produzem as mais “aberrantes manipulações da palavra e do discurso”.

5 Existem divergências em relação ao número exato dos personagens que povoam A Comédia Humana. A

maioria dos especialistas concorda que são mais de dois mil. Na obra Dictionnaire biographique des personnages fictifs de La Comédie Humaine, Fernand Lotte e Marcel Bouteron estimam que são dois mil quatrocentos e setenta e dois.

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A desconfiança em relação à palavra, que passa a ser utilizada, por exemplo, para manipular ideologicamente as massas, começa a fazer parte das reflexões e das produções de pensadores, escritores e poetas do porte de Maurice Blanchot, Michel Foucault, Joseph Conrad e Giorgio Caproni, entre outros (TESTA, 2018, p. 7-11).

Portanto, os aparentes embaraços que contrapõem uma literatura supostamente realista à subjetividade do romantismo desafiam Balzac e o enredam em um labor de escritura e reescritura incessante, na evidente tentativa de forçar as palavras a expressarem o que elas por princípio se recusam a expressar, ou seja, de expressarem algo além de si mesmas. A trama literária balzaquiana, por conseguinte, antes de seu arremate, comporta em sua urdidura muitos nós, rupturas, desvios, fendas. Analisado de outro modo, as palavras, em princípio inadequadas para representarem o que quer que seja, após serem trabalhadas artisticamente nas circunscrições do espaço ficcional, permitem ao escritor qualificar e expressar as complexas nuances da alma humana e da natureza.

Para caracterizar o desafio de “narrar o inenarrável”, recorre-se ao escritor e crítico italiano Walter Siti, cuja avaliação é que o realismo é ilusão e transgressão. Segundo ele, o realismo como cópia do real é uma cantilena superada: “Os escultores têm à disposição madeira, mármore, ferro (que são tridimensionais), os pintores podem contar com líquido, tela, pigmentos; os escritores não têm nada além de sons, aliás arbitrários - a linguagem não pode imitar nada a não ser a própria linguagem”6 (SITI, 2013, p. 13).

Assim, mesmo com recursos limitados inerentes à sua arte, o artista consegue estabelecer um outro lugar para o real, no qual recria a vida, expressa a natureza e nomina o inominável.

Então, cotejando com os referencias da vida dita real, as representações literárias de Balzac transitam em espaços de entrelaçamentos múltiplos, espécie de turbilhão ou redemoinho, onde palavras, cores, fragmentos, toques, silêncios, vozes, espaços, metáforas, imagens, sons, ruídos, alusões, ilusões, borrões, timbres mesclam-se, fundem-se, confundem-fundem-se, apartam-fundem-se, sofrem metamorfofundem-se, metamorfoseiam. Esses espaços transitórios, repletos de luzes, sombras, vazios, faltas, saturações, excessos, por vezes tornam diáfano esse mundo fictício, abrem lacunas à interrogação e imprimem em suas

6 “Gli scultori hanno a disposizione legno, marmo, ferro (che almeno sono tridimensionali); i pittori

possono contare su liquidi, tele e pigmenti; gli scrittori non hanno che suoni, per di più arbitrari - il linguaggio non può imitare se non il linguaggio.”

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obras as fixações necessárias, nas quais o desfecho ou arremate não necessariamente acompanha o ponto final.

No fictício e intrincado universo balzaquiano7 encontram-se obras-primas que

não se deixam apreender facilmente e artistas que resistem em revelar suas obras, como parece ser o caso de A obra-prima desconhecida e de seu protagonista Frenhofer. A obra foi publicada pela primeira vez em capítulos e por encomenda na revista L’Artiste8, entre

julho e agosto de 1831. Na ocasião o romance contava com o subtítulo “conte

fantastique”. Essa menção, de acordo com especialistas como Anne-Marie Baron e

Félicien Marceau, marca a influência de E.T.A. Hoffmann (1776-1822), escritor romântico alemão muito apreciado na França da época. Em setembro do mesmo ano, com pequenos retoques, a obra volta a ser publicada, dessa vez em livro, pela editora Gosselin, em uma coleção chamada Romans et contes philosophiques .

Seis anos depois, nos primeiros meses de 1837, Balzac entrega, para nova publicação, uma narrativa enormemente modificada e ampliada. Os acréscimos são devidos em grande parte às discussões teóricas sobre pintura. A edição perde o subtítulo “conte fantastique” e é, desde então, considerada “definitiva”. Também em 1837, A

obra-prima desconhecida, Gambara e Massimilla Doni são reunidos para compor uma trilogia

que trata de questões relacionadas à arte e à criação artística. Naquele ano Balzac escreve à Mme Hanska: “[…] Massimilla Doni e Gambara são a manifestação da música sob a dupla forma de execução e composição, […] isto é, a obra e a execução mortas pelo excesso do princípio criador, o mesmo que me ditou Le Chef-d’œuvre inconnu”9 (apud

EIGELDINGER, 1957, p. 86).

Entre as edições de 1831 e de 1837 percebe-se a influência provocada pela distância que separa dois momentos diferentes da história da literatura: o primeiro, que retrata o auge do romantismo, cujos precursores são escritores alemães; e o segundo, que reflete um clima que reclama uma ficção supostamente mais realista. Nesse sentido, as professoras de literatura Coeuré e Massol (1999, p. 153) relembram que até a segunda

7 As expressões universo balzaquiano, mundo balzaquiano designam, no âmbito dessa dissertação, o

espaço diegético da literatura produzida por Balzac.

8 A revista l’Artiste, criada em 1831, trabalha para obter a colaboração de escritores em voga e de

narrativas que tenham relação com seus objetivos: defender a arte e os artistas, ilustrar e propagar uma nova concepção da arte. A revista contribuirá para fazer do termo “artista” uma das palavras de reagrupamento da segunda geração romântica, e a dar a esta noção uma aura mitológica. (COEURÉ; MASSOL, 1999, p. 153). Foi nessa mesma revista que, em 1855, Baudelaire publica pela primeira vez À une passante.

9 “[…] Massimilla Doni et Gambara sont l’apparition de la musique, sous la double forme d’exécution et

de composition, […] c’est-à-dire l’œuvre et l’exécution tuées par la trop grande abondance du principe créateur, ce qui m’a dicté Le Chef-d’œuvre inconnu.”

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metade do século XVIII o artista confundia-se com o artesão. No início do século XIX é justamente com o romantismo que o termo “artista” se especializa e ganha senso estético e o ideal clássico da imitação é superado pelo ideal romântico da criação. Porém, os desencantos oferecidos pela sociedade pós-revolucionária francesa frustram muitas das aspirações românticas e abrem espaço para novas possibilidades de conceber as artes. De qualquer maneira, sempre de acordo com Coeuré e Massol (1999, p. 153), na versão refeita por Balzac em 1837, os ideais do romantismo ainda se encontram presentes e podem ser identificados:

[n]as oposições através das quais o personagem em busca da identidade procura se definir. O artista (o termo designa Frenhofer, sobretudo, e, em uma medida menor, Poussin), se opõe ao “vulgar”, ou ao “tolo” e ao “burguês” […] ele trabalha de acordo com sua livre inspiração, livre, ao menos é o que lhe parece, de qualquer tutela; nisso ele difere do mestre Porbus, pintor da corte que executa encomendas10.

A partir de 1845, A obra-prima desconhecida passa a integrar o tomo primeiro dos Estudos filosóficos. A pele de Onagro, A procura do Absoluto, Jesus Cristo em

Flandres, Melmoth apaziguado, Gambara e Massimilla Doni completam o volume.

Balzac volta a revisitar A obra-prima desconhecida, para pequenos retoques, em 1845 e em 1847.

A ação da narrativa de A obra-prima desconhecida remete à Paris de 161211,

quando um jovem pintor chamado Nicolas Poussin, recém-chegado à cidade com o objetivo de ampliar seu conhecimento artístico, ou seja, em busca de sua própria iniciação na arte da pintura, dirige-se ao atelier de um reconhecido pintor da corte, François Porbus (sic). O acaso coloca-o diante de Frenhofer, um artista genial, inquieto e sedutor. Os dois primeiros são personalidades transformadas em ficção a partir de pintores reais consagrados pela história da arte, Frans Pourbus (1569-1622) e Nicolas Poussin (1594-1665). A escolha por personagens referenciados no mundo externo ao universo romanesco é um procedimento recorrente na literatura do escritor.

10 “[…] les oppositions à travers lesquelles ce personnage en quête d’identité cherche à se définir :

l’artiste (le terme désigne Frenhofer, surtout, et dans une moindre mesure, Poussin) s’y oppose au ‘vulgaire’, au ‘sot’, et au ‘bourgeois’ […]; il travaille au gré de son inspiration, libre, à ce qu’il semble, de toute tutelle; il diffère, en cela, du maître ancien Porbus, peintre de cour qui exécute des commandes.”

11 Nessa obra Balzac retrocede no tempo, quer dizer, toma uma distância temporal, o que vai de encontro

ao seu propósito de retratar a sociedade de seu tempo. Entretanto, produz um anacronismo. Frenhofer, Porbus e Poussin são pintores do século XVII, aos quais são atribuídas ideias e práticas que se aproximam das práticas correntes dos anos 1830.

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Cronologicamente alguns fatos coincidem. Em 1612, Nicolas Poussin é de fato um jovem de origem humilde que deixa a Normandia para viver na capital da França. Ele quer ser pintor e procura um mestre que lhe transmita os segredos da arte. Na primeira metade do século XIX, quando Balzac escreve o romance, época de certa forma dominada pelo romantismo, o pintor Poussin é considerado expoente e herdeiro do classicismo francês12. Por sua vez, Frans Pourbus, que na juventude estudara pintura na Itália, em

1612 está com 42 anos e possui uma carreira consolidada, tendo pintado, entre outros, retratos do rei Henry IV. Por ter rompido com a escola de Fontainebleau, referência das artes plásticas francesas de então, Pourbus é considerado, na época, um inovador. Entretanto, apesar da existência de traços biográficos coincidentes, os dois pintores no contexto do romance serão sempre o que Balzac diz a respeito deles e aquilo que se pode deduzir e dizer a partir daí. Ao compartilhar com seus personagens traços biográficos de pessoas que existem ou, ao misturar sua própria história com a história de personagens, Balzac continua fazendo ficção.

Esses dois personagens ancorados em personalidades da história da pintura vão se juntar, como anteriormente mencionado, a um terceiro personagem, igualmente pintor, inventado por Balzac em todos os seus pormenores. Frenhofer, também chamado por seus pares, de mestre, velho pintor ou velho mestre, procura atingir o absoluto na arte do retrato, entendido como expressão das características da mulher representada numa versão sublime e idealizada. Com esse objetivo, ele trabalha nos últimos dez anos na execução do retrato de sua amada sem permitir que a vejam, ou seja, tanto a mulher como a obra de arte permanecem ocultas para os expectadores. O resultado desse empenho é para o velho mestre não uma tela, mas uma criatura que com ele ri, chora, troca confidências. Ao ser provocado a mostrá-la, contesta: “Eis já dez anos que vivo com essa mulher. Ela é minha, somente minha. Ama-me. Não me sorriu a cada pincelada que lhe dei? Ela possui uma alma, a alma com que a dotei. Ela enrubesceria se outros olhos que não os meus se detivessem sobre ela” (BALZAC, 2012, p.170).

Além dos três pintores, a obra coloca em cena três mulheres: Gillette, Marie égyptienne13 e Catherine Lescault. A primeira é a namorada de Poussin; a segunda é uma

12 Autor de obras-primas, tais como L'Inspiration du poète (1629-1630, Musée du Louvre, Paris), La

Fuite en Égypte (1657-1658, Musée des Beaux-arts, Lyon) e Le Massacre des Innocents (1625-1632, Musée Condé, Chantilly).

13 Penitente cristã (Egito ~ 345, Palestina ~ 422). Prostituta que após uma visão da virgem Maria se

arrepende e vive o resto dos seus dias em penitência no deserto. Porém, para chegar ao local da penitência, precisa prostituir-se ainda uma vez para pagar a necessária travessia de barco. O quadro

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pintura fictícia e, portanto, desconhecida, ao menos da história da arte, pintada por Porbus; a terceira é um quadro que se torna personagem narrativo, um retrato descrito, porém furtado à apreciação, que Frenhofer está pintando. Com Gillette e Catherine Lescault são introduzidos, entre outros, os temas do amor e do antagonismo entre o amor e a arte. Pode-se então considerar que essas duas mulheres formam um díptico em que estão expostos lado a lado o amor por uma mulher e o amor pela arte. Amores, então, que perpassam a narrativa e se colocam como escolha para pelo menos dois dos pintores da trama. Poussin “emprestará” Gillette para contemplar Catherine Lescault e Frenhofer aceitará exibir Catherine Lescault para dispor de Gillette como modelo.

Nessa constelação, que trapaceia o jogo dos contornos rígidos entre gêneros narrativos, objetiva-se, portanto, investigar os procedimentos de escritura de Balzac através das inter-relações e das correspondências com uma arte supostamente “representativa”, a pintura. Ao que tudo indica, o objeto justamente denuncia a pretensão de representação realista nas artes. Questiona-se, então, como a arte da pintura, evocada frequentemente, infiltra-se, funde-se e confunde-se com a obra balzaquiana e como se reflete no ato literário e no ato de representação?

Para constituir a espinha dorsal e dar suporte ao objetivo da pesquisa recorre-se principalmente à A obra-prima desconhecida, edição revisada e aumentada por Balzac, a partir da edição de 1831, publicada em Études philosophiques14. O texto, como

mencionado anteriormente, discorre a respeito da criação e do fazer artístico, do drama do artista em relação ao seu processo criativo e tem como objeto central a arte, qual seja, uma pintura. Concordando que na narrativa de A Comédia Humana, conforme apregoa o personagem Massimilla Doni, “a arte pinta com palavras, com sons, com [cores], com linhas, com formas […]” (BALZAC, 1959g, p. 374) e, portanto, reconhecendo na obra balzaquiana verdadeiro amálgama resultante de recursos estilísticos que fazem alusão à escultura, à poesia, à pintura e às demais expressões artísticas, direciona-se o foco da pesquisa para a relação literatura-pintura, tendo em conta que existem entre essas duas manifestações artísticas muitas possibilidades de conexões e que fronteiras, que porventura se insinuem ou se apresentem, são evidentemente arbitrárias.

pintado pelo personagem Porbus representa justamente o momento anterior à travessia (cf.

https://www.larousse.fr/encyclopedie/personnage/Marie/131827). Não se tem registros nos arquivos da história da arte de que Frans Pourbus tenha pintado um quadro com o tema, embora outros pintores o tenham feito. Ver Balzac (2004, p. 35, nota 2).

14 Todas as citações de excertos de A obra-prima desconhecida, apresentadas nesta dissertação, são

extraídas da seguinte edição: BALZAC, Honoré de. A obra-prima desconhecida. Tradução de Leila de Aguiar Costa. In: DIDI-HUBERMAN, Georges. A pintura encarnada. São Paulo: Escuta, 2012.

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Quanto à estrutura específica desta dissertação, no primeiro capítulo explora-se a relação de Balzac com a pintura e com sua própria escritura. O desafio é, antes de tudo, compreender como a pintura é utilizada pelo criador de A comédia humana para auxiliar na transformação da suposta realidade em ficção, ou seja, driblar as adversidades inerentes ao desejo da representação. Importa, no caso, questionar e analisar como a relação do escritor com as artes plásticas se reflete no plano narrativo, como a pintura colore sua imaginação romanesca e como tudo isso influencia o processo da escritura balzaquiana.

Com base nas premissas anunciadas, faz-se imprescindível mapear alguns recursos literários como, por exemplo, a descrição pictural15, utilizada por Balzac para

transpor para a literatura gestos e efeitos típicos da pintura. Igualmente ressalta-se de que modo a descrição detalhada, por vezes considerada excessiva por alguns críticos como Sainte-Beuve e Alfred Asseline16, para citar alguns, é elemento incontornável em sua

narrativa. A análise das descrições de espaços e objetos, bem como comentários de narradores, mostra que elas contribuem para criar a dimensão do status e do caráter ficcional de seus personagens e revela a pujança de sua atividade de autor.

Assim, a partir dessas avaliações, torna-se possível verificar como Balzac, provavelmente para superar as naturais restrições impostas pela linguagem e na tentativa de “trapacear a língua”17, faz uso da pena ao mesmo tempo que cria uma narrativa repleta

de referências outras, entre elas as picturais, que resultam no que Éric Bordas nomeia de “efeito-pintura”. Para Bordas (1999, p. 121), “estilisticamente, a enunciação de um discurso carregado de referências, de valores e de práticas picturais permite à prosa narrativa alçar-se a um nível estético que lhe permite exceder sua condição linguística […]”18.

A investigação permite, igualmente, constatar que a narrativa se alimenta de efeitos alusivos à pintura para sugerir justamente o efeito de pintura. De acordo com o professor e teórico da literatura Bernard Vouilloux (1999, p. 134), isso ocorre de quatro diferentes maneiras: a primeira é discursiva e se dá através da “reflexão estética”; a

15 O termo descrição pictural no âmbito desta dissertação refere-se genericamente a textos narrativos que

convocam a imagem, seja ela uma pintura, uma gravura, um desenho etc.

16 Cf. a respeito o artigo: Sur l'écriture balzacienne: « La Rabouilleuse » de Max Andréoli. L’Année

balzacienne 2006/1 (n.7). Disponível em https://www.cairn.info/revue-l-annee-balzacienne-2006-1-page-321.htm, que entre outros, trata do tema.

17 Expressão utilizada por Barthes, principalmente em Aula (BARTHES, 1978, p. 15).

18 “Stylistiquement, l’énonciation d’un discours chargé de références, de valeurs et de pratiques picturales

permet à la prose narrative de se hisser à un niveau esthétique qui lui permet de dépasser sa conditions linguistique […].”

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segunda emprega “comparações com quadros, esculturas, música e outras expressões de arte historicamente conhecidas, e tem o objetivo de fixar uma visão, um lugar, uma atitude ou ilustrar um argumento estético”; a terceira recorre ao “vocabulário especializado” da pintura; a quarta, empregada principalmente nas descrições de lugares, interiores ou paisagens, tem, segundo Vouilloux, a finalidade de induzir o leitor a uma “percepção artística”. Por fim, por intermédio de olhares emprestados aos personagens pintores, a análise indaga como a narrativa de Balzac faz alusão e se apoia em imagens.

O segundo capítulo, com o suporte de estudiosos como Alain-Philippe Durand, Félicien Marceau e Anne-Marie Baron, entre outros, trata da investigação das obras-primas, respectivamente de Balzac (a própria obra literária) e de Frenhofer (o retrato de Catherine Lescault, obra-prima que desaparece na última sentença do livro). Dedica-se, igualmente, a identificar como no plano romanesco se manifestam, explícita ou implicitamente, as buscas por parte de seus autores pela representação da realidade e pelo ideal do absoluto na pintura e na literatura. Fica então evidente que as dúvidas e questionamentos decorrentes dessas buscas refletem-se nos desdobramentos de suas obras de arte que, caracterizadas por eternos recomeços, permanecem abertas a novas leituras e interpretações.

Com base nas colocações anteriores, verifica-se como, na contenda para ampliar o arsenal linguístico e encontrar formas outras de expressão e lugares outros para a realidade, o autor de A comédia humana voluntária ou involuntariamente ensaia, para utilizar uma expressão do filósofo Roland Barthes, “inexprimir o exprimível”.

Ouve-se dizer que a arte tem como função exprimir o inexprimível: deverá dizer-se o contrário (sem qualquer intenção de paradoxo): toda função da arte consiste em inexprimir o exprimível, em arrebatar à língua do mundo, que é a pobre e poderosa língua das paixões, uma fala outra, uma fala exacta (BARTHES, 2009, p. 18).

A língua comum, a língua do mundo – com suas palavras, expressões, perífrases nominais ou verbais – utilizada para fazer referência às coisas do mundo, para construir sentidos, para comunicar, ofereceria recursos e fórmulas suficientes apenas para dar a impressão de poder exprimir tudo. Todavia, para Barthes (2009, p. 17-19), a linguagem da arte necessita ir além da fala do mundo, das ciladas do mundo. A linguagem da arte, para ele, deveria assumir o compromisso de ir além do desejo de exprimir o inexprimível. Nesse sentido, precisa “separar uma fala segunda”, algo não repetitivo ou disponível, mas algo que é sempre “anterior” à fossilização da linguagem ordinária. Não cabe à literatura,

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portanto, o papel de ocupar-se do inominável ou de dar fala ao silêncio. Seu mister é oferecer novos caminhos e novos espaços para relatar, para contar, para representar, para inexprimir (“não existe nenhum real que não esteja já classificado pelos homens” (2009, p. 18), diz Barthes). A “língua das paixões” preconizada por Barthes é poderosa. Ela constitui um tipo de expressão que diz longe e sua riqueza não está na margem sensata, tampouco na margem transgressora, mas no turbilhão que se forma no encontro das águas. Tendo presente que as grandes obras surgem de conflitos, sejam eles externos ou internos, com a arte de Frenhofer descobre-se que criar é igualmente destruir e/ou transformar. Embora encarne a ambição de fazer com que a obra corresponda, através da linguagem, ao realismo do objeto, no final das contas, através do velho mestre, o autor de

A obra-prima desconhecida demonstra que não se pode atingir o realismo fora do âmbito

ficcional. Com o intuito de aperfeiçoar sua pintura de acordo com seus pensamentos estéticos, Frenhofer acaba por entregar um resultado inesperado, no qual somente a imagem de um pé sobrevive de “uma inacreditável, de uma lenta e progressiva destruição” (BALZAC, 2012, p. 175). Na interpretação do público contemporâneo, representado por seus dois amigos pintores, a obra se traduz em uma muralha de pintura formada por sobreposições de cores “e contidas por uma infinidade de linhas bizarras”. Analisando-se a partir desse ponto de vista, a obra é para eles ilegível. A obra de Frenhofer, sob essa ótica, pode ser comparada a um manuscrito de Balzac, que pleno de rasuras e borrões, conforme conta seu amigo, o escritor Théophile Gautier (1859, p. 75), causa calafrios aos tipógrafos que precisam decifrá-lo. Entretanto, se a obra do protagonista Frenhofer não foi bem-recebida por seus pares, devido principalmente à sua não conformidade com os padrões estéticos da época, o que aliás é muito frequente na arte, a partir do final do século XIX seu gesto criativo e sua obra ecoam nas obras e no fazer artístico de pintores como Paul Cézanne, Willem De Kooning, Pablo Picasso e outros.

O terceiro capítulo é dedicado a estudos sobre o paradoxo do realismo nas artes, em especial na literatura e na pintura. Numa época em que as representações não visam o real naturalmente há muitas variantes a serem consideradas. Primeiramente, aceita-se que toda e qualquer percepção por intermédio dos sentidos baseia-se em conceitos altamente abstratos e, portanto, é sensato que se estabeleçam tendências que permitam conformar olhares e percepções. Assim sendo, para procurar compreender o que se conhece e o que permanece obscuro em relação ao tema, busca-se suporte nos pontos de vista e nas perspectivas de Agamben, Badiou e Siti, entre outros estudiosos, que abordam

(23)

a questão. Nessa etapa reconhece-se que, em sua produção, Balzac fala e conta obras de arte dentro de sua própria obra de arte. A obra-prima desconhecida, por exemplo, é uma obra de arte que fala da obra de arte de um artista, cuja apreciação é realizada por outros personagens. Como a obra-prima de Frenhofer, também A comédia humana é uma coleção de obras sobrepostas a outras obras, formando uma pirâmide na qual o autor precisa lidar com os antagonismos implícitos ao ato de representar. Então, para conceder dinamismo e criar a ilusão de que um fio condutor perpassa o conjunto, o escritor reinventa um procedimento no qual os personagens não permanecem encerrados em um único romance, ao contrário, transitam de um romance a outro. Essa circulação, denominada “retorno de personagens”19 inicia-se em O pai Goriot (1834-1835)20, quando

o escritor faz retornar Eugène Rastignac, personagem encontrado alguns anos antes em A

pele de Onagro (1831). Ainda no terceiro capítulo, são abordados os impasses e

antagonismos diante dos quais a ficção coloca a arte, seja ela de natureza pictórica, narrativa etc. Com a função de criar um lugar-outro para o suposto real, a ficção acomoda as eventuais diferenças e reduz deveras a distância entre “real”, “realidade” e “criação”. Tanto a arte, quanto a vida dita “real” estão ambas abertas à criação de semblantes sobretudo do ponto de vista interpretativo como autoriza a interpretação ofertada pelo filósofo francês Alain Badiou (2007) em Paixão pelo real e montagem do semblante.

No quarto capítulo, finalmente, analisa-se como as tramas de Balzac e seu protagonista Frenhofer ultrapassam o século XIX. É com Paul Cézanne, que representou em um desenho Frenhofer revelando seu quadro (Peintre tenant une palette, 1868-1861) (Imagem 1), e com Pablo Picasso que, em 1931, ilustra uma edição especial de A

obra-prima desconhecida (Imagem 2) a pedido de seu marchand Ambroise Vollard, que a

dimensão moderna da obra começa a se revelar. Da mesma maneira, a obra de Frenhofer encontra novos ecos com o advento, no início do século XX, da arte abstrata através dos trabalhos de Wassily Kandinsky, Paul Klee, Jackson Pollock, Mark Rotko, Piet Mondrian, Willem de Kooning, para citar alguns nomes.

19 O termo “retorno de personagens”, (recorrência intra e extra-narrativa), é utilizado para denominar um

dos princípios que regem a literatura balzaquiana. Sobre o tema ver, entre outros, Félicien Marceau (2008), Mireille Labouret (2005) e Michel Butor (1974).

20 Os títulos das obras de Balzac, com exceção de A obra-prima desconhecida, quando mencionados em

português seguem a tradução adotada em A comédia humana, organizada por Paulo Rónai e publicada pela editora Globo. Na coleção da Globo o tradutor optou pelo título A obra-prima ignorada.

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Imagem 1 - Paul Cézanne, Peintre tenant sa palette

Crayon et Plume, 103x107 cm, 1868-1871. Aix-en-Provence, Société Cézanne

Imagem 2 - Pablo Picasso, Le Chef d’œuvre inconnu

Page (orientation varies; each approx.): 12 15/16 x 9 15/16" (33 x 25.2 cm), 1931.Edição Ambroise Vollard.

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1 OS EFEITOS E OS REFLEXOS DA PINTURA NA LITERATURA DE BALZAC

Análises no contexto de A comédia humana permitem constatar que as alusões à arte e aos artistas são onipresentes. Pinturas, esculturas, desenhos, retratos, instrumentos musicais etc., fazem parte do décor, complementam e se integram aos espaços nos quais evoluem os personagens. O escritor, porém, mantém relação de amador com a pintura. Ele ama as artes plásticas, coleciona pinturas e objetos de arte e frequenta os meios artísticos e os museus de seu tempo, onde encontra, entre outros, Eugène Delacroix (1798-1863), por quem nutre uma grande admiração, a ponto de honrá-lo com uma dedicatória no romance A menina dos olhos de ouro (1834). Delacroix começa a se apresentar no cenário da arte a partir de 1822, mais precisamente no Salon de Paris21, com a tela Barca

de Dante, quase ao mesmo tempo em que Balzac começa a escrever seus romances

(1823).

Um passeio pelos corredores dessa imensa galeria literária permite detectar a presença da pintura materializada de diferentes maneiras e com diversos aspectos. Romances e novelas e contos como, por exemplo, Pedro Grassou, A vendeta, O primo

Pons, A bôlsa, Um conchego de solteirão e A obra-prima desconhecida apresentam em

sua tramas, no desenvolvimento de suas intrigas e mesmo como tema principal, a pintura, os pintores, suas técnicas, seus gestos, inquietações etc. A utilização de metáforas, de expressões metafóricas, de associações, de descrições picturais, tais como “pintar os carácteres”, “quadro da sociedade”, “pintar os fatos tais quais são”, “pintar as duas ou três mil figuras salientes de uma época”, “depois de ter pintado nesses três livros a vida social”, “as devastações do pensamento são pintadas, pensamento a pensamento”, “pintar uma face da vida”22, se manifestam recorrentemente tanto nos paratextos – escritos

críticos e prefácios – quanto na narrativa ficcional de Balzac. A comédia humana é comparada pelo autor a um museu com suas galerias:

Não era pequena a tarefa de pintar as duas ou três mil figuras salientes de uma época, pois tal é em definitivo, a soma dos tipos que cada geração apresenta e

21 O Salon de peinture et de esculture de Paris, conhecido simplesmente como Salon, é uma manifestação

artística que acontecia regularmente no Salon Carré du Louvre, desde o final do século XVII, organizado pela Escola de Belas Artes. A exposição era reservada aos artistas consagrados ainda vivos e a jovens artistas que fossem aceitos por um júri especializado. Um novo artista que fosse aceito no Salon tinha a oportunidade de se tornar conhecido e então se beneficiar de encomendas do Estado, dos aristocratas e de ricos burgueses. A correspondência de Balzac permite afirmar que o escritor visitou o Salon de Paris em 1833, 1834, 1835, 1836 e 1839. Antes disso, ele pode ter comparecido em 1819, 1822, 1829, e 1831 (MONNET, 1999, p. 41-42).

(26)

que A Comédia Humana comportará. Esse número de figuras, de caracteres, essa multidão de existências, exigiram cenários, e, perdoem-me a expressão, galerias (BALZAC, 1959a, p. 20).

A pintura, como fica evidente em qualquer breve incursão panorâmica através dos textos, tem papel fundamental na literatura balzaquiana e colabora para a realização de seu sonho de representar os costumes da sociedade. Ao fazer alusões sobre, e ao lançar mão de metáforas próprias da arte da pintura, a ficção balzaquiana borra as fronteiras entre essas duas artes. A partir dessa leitura, faz sentido acatar as palavras de Barthes (1992, p. 85): “toda descrição literária é uma ‘visão’. Diria-se que o enunciador, antes de escrever, põe-se à janela, não tanto para ver bem, mas para construir o que vê através de sua própria moldura: o marco da janela faz o espetáculo”. De certa maneira, também a professora e especialista na obra balzaquiana, Anne-Marie Baron23, (2004, p. 21)

corrobora com Barthes ao declarar: “Toda A comédia humana se quer espetáculo e se endereça ao olhar. Isso porque Balzac é um dos maiores criadores de imagens que existiram”24. Na análise de Bernard Vouilloux, no projeto literário balzaquiano, a pintura

representa uma realidade social, não como as outras, mas entre as outras. É dessa forma, diz Vouilloux (1999, p. 133), que “a [pintura]constitui um componente do universo humano fictício colocado em órbita pelos noventa romances e novelas que compõem A

Comédia Humana”.

Em O Primo Pons (1847) a coleção de pinturas e objetos de artes, ou melhor dizendo, a mania de coleções, está no centro do drama. Sylvain Pons é um compositor musical que teve seus momentos de glória durante o Primeiro Império. Viveu em Roma durante um período, para estudar música, onde adquiriu o gosto pelas antiguidades e pelos objetos de arte. De volta à Paris começa a montar sua própria coleção, um verdadeiro museu privado. Goetz (1999, p. 188-189) diz que o personagem Pons, ao organizar seus tesouros, dedica cuidado idêntico ao que Balzac consagra a organizar e a classificar seus romances em A comédia humana.

Para expor em A comédia humana esse verdadeiro acervo de imagens, a narrativa balzaquiana exibe obras de arte consagradas, cria suas próprias obras de arte, utiliza descrições carregadas de referências picturais, além de convocar artistas e pintores, entre eles Frenhofer, Porbus e Poussin. A ficção balzaquiana, igualmente, retrata heroínas que

23 Presidente da Société des Amis d’Honoré de Balzac e da Maison de Balzac e crítica de cinema. 24 “Toute La Comédie Humaine se veut spectacle et s’adresse aux regards. C’est pourquoi Balzac est l’un

(27)

em muitos casos são comparadas às madonas e às virgens de Raffaello25, de Guido de

Reni, de Tiziano, de Dürer. Todavia, em seus retratos femininos, o autor reiteradas vezes não se furta a colocar em um rosto um sinal de fadiga ou uma pequena dobra, em outro uma ruga, em um terceiro uma veia mais aparente. À época de Balzac o corpo da mulher, que até o final do século XVIII, na grande maioria das vezes, era representado de maneira contida, impessoal, idealizada, estereotipada, começa a ser reconhecido na literatura e nas demais artes como forma de expressão e manifestação social e passa a ser exposto com suas complexidades. A mulher balzaquiana pode, por conseguinte, ser: bela, feia, graciosa, sem graça, santa, pecadora, delicada, robusta, fria, generosa, mesquinha, interesseira, ingênua, mau caráter e manifesta suas qualidades, suas virtudes, seus vícios, seus desejos, suas carências, suas satisfações, seus rancores, seus sofrimentos. Alguns dos personagens femininos de A comédia humana desafiam a ordem social e provocam pela força de sua presença, o desejo, a paixão, a compaixão, o amor e, naturalmente, seus opostos, o rancor, o desamor, a raiva, o drama.

Em Ao“Chat-qui-Pelote”, romance que abre A comédia humana, o narrador descreve a fachada de uma casa da “Antiga Paris” que abriga ao mesmo tempo a moradia e o comércio da família Guillaume. A fachada serve de moldura para o retrato da jovem Augustine que, admirada pelo pintor Sommervieux, é comparada a uma virgem de Raffaello (Imagem 3): “Nenhuma expressão de constrangimento alterava a ingenuidade daquele semblante, nem a calma daqueles olhos imortalizados nas sublimes composições de Rafael: era a mesma graça, a mesma tranquilidade daquelas virgens que se tornaram proverbiais” (BALZAC 1959c, p. 36). A despeito de toda a beleza da descrição que, à primeira vista promete a felicidade, de fato, a carga dramática da cena anuncia o destino trágico de Augustine.

25 Os nomes dos pintores consagrados pela história da arte são mencionados nessa pesquisa, conforme

idioma da nacionalidade de cada um, com exceção das citações diretas, nas quais são mantidas as opções do tradutor.

(28)

Imagem 3 - Raffaello Sanzio, La Velata

Olio su tela, 79,7x63,5 cm, 1516. Firenze, Galleria Palatina

Em Um conchego de solteirão o retrato de Aghate Rouget exposto no atelier do seu filho, o pintor Bridau, “mostra um oval perfeito, uma brancura inalterada e sem sardas, apesar de seus cabelos dourados. Mais de um artista ao observar a fronte pura, a [boca] discreta, os lábios discretos, o nariz fino, os cílios longos […] pergunta: É a cópia de um rosto de Raffaello?” (BALZAC 1958, p. 16). Do mesmo modo, ao ver as costas alvas e o colo deslumbrante de Flore Brazier, Bridau não se contém e exclama: “Eis uma bela mulher! e é raro! Foi feita para ser pintada! Que carnação! Oh! os belos tons. Que curvas, que ombros! ...É uma magnífica Cariátide! Seria um modelo perfeito para uma Vénus de Ticiano” (BALZAC 1958, p. 146) (Imagem 4). Bridau, do mesmo modo que outros pintores-personagens de A comédia humana, aborda e debate sobre a antiga questão estética do encarnado na pintura, ou seja, sobre a complexidade de recriar, com tinta, carne e pele sobre a tela.

(29)

Imagem 4 - Tiziano Vecellio, Flora

Olio su tela, 79,7x63,5 cm, 1517 circa. Firenze, Galleria degli Uffizi

Madame Mignon (Modesta Mignon), devido à escassez de gestos, a rigidez para com os costumes, e a frieza de suas expressões, poderia ser pintada em uma só frase: “Sua peruca loura bem encrespada, bem colocada, convinha à sua alva figura, fria como a das mulheres de burgomestres pintadas por Holbein”26 ( BALZAC, 1959h, p. 370). Se nos

casos anteriores o autor toma emprestado as cores quentes da paleta italiana e veneziana, nesse último prefere a precisão do desenho e os traços dos renascentistas do norte.

No universo ficcional balzaquiano, as referências artísticas propiciam simbiose literária, pictural e, por que não?, cultural, e permitem fomentar imagens polissêmicas dos personagens que vivem e circulam nesse universo, ao mesmo tempo que a memória das obras de arte penetra a linguagem balzaquiana e permite o desenvolvimento dramático. A literatura de Balzac, portanto, apresenta uma tendência caracterizante, qual seja, a referência e a alusão pictural decorrentes de sua especificidade narrativa. Com relação a isso, o especialista em Belas Artes Philippe Le Leyzour afirma que a imaginação

26 “Sa perruque blonde bien frisée, bien mise, seyait à sa blanche figure froidie comme celle de ces

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romanesca de Balzac se alimenta, dentre outras fontes, de imagens e por isso questiona se Balzac “não utilizaria a pintura como ponto de partida de uma intriga na qual só a literatura poderia exprimir todas as potencialidades?”27 (1999, p. 18). De fato é comum

encontrar, nos textos ficcionais balzaquianos, pintores contemplando e compondo, a partir dessa contemplação, quadros, retratos, croquis, desenhos. Em A obra-prima

desconhecida, por exemplo, uma pintura é o coração da ação e uma série de reflexões a

respeito da criação artística ocupa o centro da narrativa e as referências picturais abundam a ponto de se tornarem quase uma obsessão.

Ademais, o sonho de ser documentarista de costumes sociais de uma época e seu gosto desenfreado pelos detalhes lança o escritor, nas palavras de Baudelaire (1859, p. 47), em “uma ambição imoderada de tudo ver, tudo fazer ver, de tudo adivinhar, de tudo fazer adivinhar [que] o obriga a marcar com mais força as linhas principais, para salvar a perspectiva do conjunto”28. Com essa determinação Balzac faz uso de um complexo

arsenal linguístico e por vezes não se contenta em evocar, antes, pretende fazer sentir, fazer ver e fazer ouvir. A presença da pintura, consequentemente, se acumula na narrativa, mesmo nas obras que não tratam o tema diretamente, e pela ênfase e correspondência ao sentido da visão é uma metalinguagem que impregna sem limites a escritura de Balzac.

Em A pintura encarnada (texto publicado originalmente em 1985), o filósofo e historiador da arte, Georges Didi-Huberman escreve que Balzac "conta-nos que a causa final da pintura é um além da prática da pintura. Isso certamente constitui topos de todas as literaturas sobre a arte” (2012, p. 23). Para o filósofo seria possível “seguir a narrativa de A Obra-Prima Desconhecida como uma perpétua derrogação: de quadro em quadro” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 23), desde a obra Marie égyptienne de Porbus até o quadro da mulher seminua que Porbus e Poussin, que procuravam uma pintura finalizada, julgaram, indevidamente, ser a misteriosa obra-prima de Frenhofer. O arremate aguardado por Porbus e por Poussin, entretanto, não acontece (DIDI-HUBERMAN, 2012).

Por sua vez, Vouilloux (1999, p. 134) relata que Balzac é provavelmente o primeiro escritor a colocar em cena um artista (Frenhofer) com todos os problemas e dúvidas inerentes à sua arte. Ainda segundo Vouilloux, a pintura alimenta o discurso de

27 “N’utilise-t-il la peinture que comme point de départ, image initiale d’une intrigue dont seule la

littérature peux exprimer les potentialités?”

28 “[...] à une ambition immodérée de tout voir, de tout faire voir, de tout deviner, de tout faire deviné,

l’obligeaient à marquer avec plus de force les lignes principales, pour sauver la perspective de l’ensemble.”

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Balzac de diversas maneiras. Uma delas visa induzir o leitor a uma percepção artística da cena. A pintura aflora justamente nas descrições, notadamente de lugares, sejam esses paisagens ou interiores, e por isso é possível perceber a narrativa literária como se fosse um quadro. Enfim, todas essas considerações, sem pretensão de exaurir o tema, querem somente dar conta da relação intensa e polissêmica entre escritura e imagem na obra de Balzac.

1.1 Escrever, descrever, reescrever, narrar

Em seu discurso sobre A comédia humana, Balzac frequentemente declara que aspira pintar e analisar, através de sua literatura, a história dos costumes da sociedade francesa contemporânea. O projeto o obriga a elaborar longos inventários para dar à sua narrativa a ideia mais justa possível do ambiente, do enredo e do perfil dos personagens. O propósito, portanto, justifica a presença incontornável e a importância das descrições no romance balzaquiano. Em certa medida, no Avant-propos de 1842, o escritor oferece esclarecimento a respeito da constante presença de longas descrições, através de sua concepção da função do escritor:

[…] um escritor podia tornar-se um pintor mais ou menos fiel, paciente ou corajoso dos tipos humanos, o narrador dos dramas da vida íntima, o arqueólogo do mobiliário social, o enumerador das profissões, o registrador do bem e do mal; mas, para merecer os louvores que todo artista deve ambicionar, não deveria eu estudar as razões ou a razão desses efeitos sociais, surpreender o sentido oculto nessa imensa reunião de tipos, de paixões e de acontecimentos? Enfim, depois de ter procurado, não digo achado, essa razão, [esse] motor social, não seria preciso meditar sobre os princípios naturais e ver em que as sociedades se afastam e se aproximam da regra eterna do verdadeiro belo? (BALZAC, 1959a, p.14).

Ao analisar a sociedade balzaquiana na qual se desenrolam tantas histórias narradas, o romancista e ensaísta Félicien Marceau (2008) conclui que existe na literatura de Balzac algo difícil de se tocar, qualquer coisa que não está ao alcance. Sua escritura repleta de descrições constitui um mundo que como tal apresenta múltiplas facetas a explorar. Cada um pode obter desse mundo “o que lhe agrada, o que lhe desagrada ou o que lhe toca, um os bosques, outro as velhas fachadas, um terceiro um escaravelho ou os olhos azuis de uma vendedora de queijos”29 (MARCEAU, 2008, p. 7). Tantas vezes a

narrativa é suspensa para ceder lugar a longas e detalhadas descrições, frequentemente

29 “[…] ce qui lui plaît, l’agace ou le touche, l’un les bocages, l’autre les vieilles façades, un troisième les

(32)

carregadas de aspectos picturais, de um salão, de uma rua, de um palacete, de um processo industrial. Nas primeiras trinta páginas de Ilusões perdidas, por exemplo, são descritos em suas minúcias os processos técnicos de composição gráfica e tipográfica. No romance

César Birotteau, são relatados com pormenores os apartamentos das famílias Birotteau,

Molineux e du Tillet, as lojas de Popinot, a casa dos Ragon, os escritórios de Claparon e dos Keller. Da mesma forma, em A obra-prima desconhecida, o atelier de Porbus e sua obra Marie égyptienne são detalhadamente contados. O primeiro capítulo de O pai Goriot começa com descrição do exterior da pensão Vauquer, do bairro e da rua onde está localizada. Continua com as sensações que se experimenta ao se entrar no local e com o que se vê no interior das diferentes peças. Depois de mais de uma vintena de páginas, a descrição termina com os retratos de Madame Vauquer e com os retratos de cada morador e de cada frequentador da pensão. Então, por entender que da maioria das técnicas e dos temas utilizados ou abordados pela literatura francesa dos últimos 100 anos não há nenhum que Balzac não tenha pelo menos tocado, Marceau sugere que todos os escritores franceses deveriam ler todas as suas obras. De um modo ou de outro, “[…] três quartos dos escritores franceses deveriam dizer: nós somos todos filhos do Pai Goriot. O que encontraremos que Balzac não inventou?”30 (MARCEAU, 2008, p. 8).

Por sua vez, Baron (2013, p. 23) constata que o autor de A comédia humana conseguiu com sua narrativa “[…] edificar um sistema filosófico, político, social, metafísico, fundado sobre a dialética do segredo, ao mesmo tempo, revelado e ocultado”31. O escritor, diz Baron, narra para revelar ou para ocultar facetas da sociedade

em toda a sua complexidade, para compreender e para fazer compreender o mundo. A descrição, nesse caso, ganha relevância e torna-se fundamental para a construção da realidade no interior do universo ficcional balzaquiano. Balzac “pensa que a pintura da sociedade moderna torna-se árdua sem ‘a introdução do elemento, dramático, da imagem, do quadro, da descrição, do diálogo […]’” e acrescenta que “a ideia tornada Personagem é da mais bela inteligência”32 (BARON, 2004, p. 22).

30 “[…] ainsi les trois quarts des romanciers français devraient dire: nous sommes tous les fils du Père

Goriot. Que trouverons-nous que Balzac n’ait pas inventé?”

31 “[…] édifier un système philosophique, politique, social, métaphysique, fondé sur la dialectique du

secret révélé et cache en même temps”

32 “Balzac pense donc que la peinture de la société moderne est impossible sans “ l’introduction de

l’élément dramatique, de l’image, du tableau, de la description, du dialogue [...]” et il ajoute : “ L’Idée, devenue Personnage, est d’une plus belle intelligence.”

(33)

Na ficção balzaquiana, o ser humano e o meio em que vive se tocam, influenciando um ao outro. Existe uma forte e determinante porosidade entre o espaço e aqueles que o habitam. Sobre Madame Vauquer e sua pensão (Le Père Goriot), o narrador constata após fornecer detalhes do local e de sua proprietária: “toda a sua pessoa, enfim, explica a pensão, como a pensão implica sua pessoa”33 (BALZAC, 1971, p. 29). No

contexto da narrativa balzaquiana, portanto, o caráter de um indivíduo pode ser revelado pela rua que escolhe para morar – quando lhe cabe escolher –, pela maneira de se trajar, pela decoração de sua habitação, pelos objetos que o cercam etc. Em vista disso, para compor a imagem da sociedade contemporânea, que vivia uma época de cataclismos sociais, em seu gesto narrativo o autor utiliza em profusão o recurso da descrição, colocando, metaforicamente, uma “moldura vazia que o autor realista transporta sempre com ele (mais importante do que seu cavalete), diante de uma coleção ou de uma sequência de objetos inacessíveis à palavra” (BARTHES, 1992, p. 85).

Para compreender claramente o caráter de alpinista social e aventureiro de Rastignac no romance O pai Goriot, a descrição detalhada da pensão Vauquer, com sua banalidade, com seus odores, com as fofocas da criadagem e dos pensionistas, com as conversas que ocorrem em torno da mesa de refeições, torna-se fundamental. Igualmente, em Eugênia Grandet, os pormenores do cotidiano controlado rigidamente pelo dono da casa, a frugalidade das refeições e a escassez de itens de conforto da casa do Sr. Grandet complementam e esclarecem o caráter usurário do personagem. Da mesma maneira, quando se conhece o lar da família Marneffe (A prima Bette), pode-se adivinhar o desejo de poder, as virtudes, os vícios, a ambição, a inveja e a vontade de promoção social do casal que ali vive. Descrito como de uma mediocridade lamentável, o lugar denuncia e anuncia os estratagemas que o casal, comandado pela mulher, vai utilizar para sair da miséria:

O apartamento ocupado por essa família, igual a muitas famílias parisienses, apresentava as enganadoras aparências de falso luxo que reina no interior de certas habitações. Na sala, os móveis recobertos de veludo de algodão, as estatuetas de gesso imitando bronze florentino, o lustre mal cinzelado, apenas pintado a cor, com arandelas de cristal fundido; […] tudo, até as cortinas de damasco de lã que não tiveram três anos de esplendor - tudo denunciava a miséria, como um pobre esfarrapado à porta de uma igreja (BALZAC, 1990, p. 73).

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