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Considerações sobre a ética: do bem comum ao desejo

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO RANDE DO SUL – UNIJUÍ

LIDIANE DE AZEVEDO UTZIG

CONSIDERAÇÕES SOBRE A ÉTICA: DO BEM COMUM AO DESEJO

IJUÍ 2018

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LIDIANE DE AZEVEDO UTZIG

CONSIDERAÇÕES SOBRE A ÉTICA: DO BEM COMUM AO DESEJO

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Psicologia – Bacharelado, do Departamento de Humanidades e Educação – DHE, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, como requisito parcial à conclusão do curso e obtenção do título de Bacharel em Psicologia.

Orientadora: Normandia Cristian Gilles

IJUÍ 2018

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AGRADECIMENTOS

A Deus, que me ensinou a ter fé e me proporcionou amparo no desconhecido da trajetória acadêmica.

Ao meu esposo, Fabiano - com quem compartilho minha paixão pelo conhecimento -, por extrair o meu melhor através das suas palavras sinceras e gestos de cumplicidade. Que possamos ser para sempre nós.

Ao meu filho Davi, que me ensina sobre a vida e me inspira, nos momentos de dúvida, a continuar.

Aos meus pais, Manoel e Neusa, pelo apoio que me possibilitou a conclusão dessa etapa e pelo amor incondicional. Nesse período, vivemos intensas experiências que fortaleceram o amor que nos envolve. Vencemos! Dedico a vocês o meu carinho e reconhecimento.

Aos meus irmãos, Diego e Scheila, por fazerem parte da minha história, possibilitando assim a minha formação e, principalmente, pela força que encontramos uns nos outros para superarmos os desafios.

À minha professora e orientadora Cristian Gilles, por tornar esse processo de escrita leve e prazeroso. Dedico a você minha mais sincera admiração.

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RESUMO

A presente pesquisa bibliográfica tem por objetivo apresentar a ética, enquanto uma busca pela felicidade, a partir do imperativo categórico de Kant e o meio-termo virtuoso de Aristóteles e, nesse contexto, propõe ressaltar a conclusão freudiana de que não somos senhores de nossa própria casa, como um contraponto ao discurso filosófico. Com isso, se evidencia a questão do desejo inconsciente, ponto trazido também por Lacan, o que provoca uma reflexão sobre a tentativa filosófica de compreender a vida a partir da razão. Dessa forma, o trabalho nos chama a atenção para o fato de que, pela perspectiva da psicanálise, somos colocados diante de uma realidade que altera definitivamente a concepção que temos do homem e de sua dimensão ética.

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SUMÁRIO

1. ÉTICA: UM RECORTE A PARTIR DA FILOSOFIA...08

1.1 A ética em Aristóteles...11

1.2 A tica em Kant...16

2. A ÉTICA DO DESEJO, EM PSICANÁLISE...21

CONSIDERAÇÕES FINAIS...34

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...38

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INTRODUÇÃO

É muito comum, no dia a dia da vida, encontrar diversas maneiras sobre como se

As investigações filosóficas sobre ética buscam, sobretudo, uma orientação a partir de normas para o modo de ser e agir do ser humano. Entre o grito do nascimento e o silêncio da morte, é apresentado o desafio da labuta diária pela sobrevivência e a ética filosófica se apresenta como uma tentativa de dar uma orientação para o ser humano. A ética, sob a ótica filosófica, pode ser compreendida como uma arte de saber viver ou de buscar uma resposta para essa questão, que é o que torna cada indivíduo, humano. Não se nasce com um saber sobre a vida, mas se aprende sobre ela a partir de um outro que nos insere e nos ensina sobre ela. Dar um sentido à existência não está inerente à própria vida, é um efeito de uma construção discursiva, de vínculo social.

A tentativa da ética filosófica, por sua vez, busca universalizar os critérios de satisfação do sujeito, tendo em vista que o ser humano ao se diferenciar da animalidade, ao tomar consciência de si, perde a orientação natural para a satisfação, o que o faz criar para si uma tendência não natural: quer se compreender e viver em um mundo sensato, deve agir e a partir de então, analisar se tal ação é aprovada ou reprovada pelo o que se considera correto. E essas maneiras, incidem tanto sobre a própria pessoa, quanto sobre outros indivíduos, sendo baseadas no quanto se é ou não capaz de reprimir desejos em prol da aceitação do outro e do bom convívio, o que se considera um fator responsável para o alcance da felicidade. Sentimento como culpa parece indicar um julgamento negativo, por exemplo, manifestando que os parâmetros para este sentimento se dão a partir de certos juízos produzidos culturalmente.

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onde tudo possa ser compreendido. Para isso, torna-se necessário recusar ao desejo para atender à demanda social de um bem viver comum, o que só é possível através de um viver harmonioso, em que tudo – atos, relações, desejos – seriam legitimados pela razão. Nessa perspectiva filosófica, a satisfação humana se dá pelo encontro do homem com a razão. A insatisfação, por sua vez, seria o seu desencontro, resultando em mal-estar.

O comportamento ideal seria, no entanto, o comportamento racional, aquele que está dentro de um universo de comunicação que é possível enunciar projetos e interesses universais e assim chegar a um consenso do que é o melhor para a vida social. Para isso, é preciso eximir da vida política as paixões, pois elas são consideradas desestabilizadoras, isto é, não permitem que os sujeitos tenham a capacidade de encontrar o campo comum de comunicação para os conflitos sociais. Desta forma, de um lado haveria a razão, a norma e, de outro, a paixão, o desejo de cada sujeito e essa é uma divisão muito mais arraigada no indivíduo do que gostaria de se imaginar.

A partir disso, o presente trabalho propõe lançar uma reflexão sobre a temática da ética e a contribuição da psicanálise para uma construção ética do sujeito, que o permita dar conta da perplexidade que é a vida. A organização do trabalho se dá a partir de dois capítulos: O primeiro apresenta conceitos relacionados ao termo ética, a partir de autores que se dedicaram ao assunto, destacando Aristóteles e Immanuel Kant, enquanto importantes pensadores que contribuíram para a compreensão do termo.

No segundo capítulo, são elaborados conceitos psicanalíticos, tendo como referências as obras de Sigmund Freud e Jacques Lacan, bem como as contribuições sobre a ética do desejo de Maria Rita Kehl, entre outros autores que nos auxiliam na compreensão da psicanálise, enquanto uma transmissão teórica. Tais estudos nos servem de referência para pensar a constituição psíquica do sujeito, diferenciando a ética do bem social e a ética ligada ao sujeito de desejo.

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1. ÉTICA: UM RECORTE A PARTIR DA FILOSOFIA

Para dar início ao tema proposto, pretende-se discorrer sobre o conceito de ética a partir de alguns autores, evidenciando a seguir os filósofos Sócrates e Immanuel Kant, tendo em vista a importância de uma contextualização teórica sobre o assunto, a partir de pensadores que se perpetuaram na história.

Tem-se na filosofia a busca pelo exercício crítico do pensar e do agir humano,

A ética começa quando duas pessoas decidem conviver e nesse momento, percebeu-se que a vida, enquanto grupo, só percebeu-seria viável mediante uma regulamentação do comportamento e da ação. A vida solitária não requer uma ética, mas como o homem é praticamente impensável fora de uma sociedade, ela tornou-se imprescindível. A filosofia, então, busca pensar a sociedade como um sistema de regras, normas e leis que são partilhadas pelas tradições, constituindo um sistema relativamente estável e coerente.

Quando falamos de ética, falamos de relações, pois é somente a relações (conosco, com os outros seres humanos, com a natureza) que se pode aplicar o adjetivo ético; um ser humano é ético porque as relações que ele estabelece são éticas. Não existe, é incompreensível o puro indivíduo, isolado e separado de tudo. Nós nos fazemos e nos constituímos através de relações, e a essas relações se atribui especificamente o adjetivo ético. Alguém é ético ou antiético se age bem ou mal em relação a algo ou a alguém (GUARESCHI, 2008, p.7)

Sendo assim, torna-se necessário igualdade de valores, a partir de um consenso entre as verdades de cada sujeito, que possa se submeter ao bem comum, permitindo, dessa forma, uma boa convivência. O pacto da convivência pacífica torna-se, por sua vez, muito mais uma resposta da razão para garantir a sobrevivência e conservação da espécie humana.

que gira em torno dos valores sejam eles éticos, políticos, estéticos ou epistemológicos. A filosofia e a ética, por sua vez, têm um espaço a ocupar e a contribuir, haja vista que a reflexão acerca dos problemas e conceitos criados no decorrer de sua longa história, geram discussões que desencadeiam em ações e transformações. Por isso, sempre permanecem atuais.

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Falar, portanto, de ética, implica um esforço de tornar explícitos os pressupostos que orientam a nossa ação concreta sobre o mundo, e que, enquanto reguladores, também criam a ilusão de nossa autonomia e de nossa liberdade. Segundo Fonseca:

Falar de ética implica na busca daquilo que, sob aparência de pessoal e individual, se inscreve como valores sociais estruturados historicamente que, com sua capacidade estruturante modelam os espíritos segundo seus conteúdos (FONSECA, 2008, p. 12).

E é importante destacar que, quanto a esses valores sociais, a humanidade só reteve depoimentos sobre as normas de comportamento dos últimos milênios, embora os homens já existam há muito mais tempo, o que impede de saber como se comportavam eticamente os pré-históricos, há mais de trinta mil anos, por exemplo. Porém, quanto as grandes teorizações, existem importantes documentos, pelo menos desde os gregos antigos, ao longo desses muitos séculos, em que inúmeros filósofos têm contribuído para o entendimento da ética, cada um dentro do seu momento na história.

Didaticamente, costuma-se separar os problemas teóricos da ética em dois campos:

Num, os problemas gerais e fundamentais, como liberdade, consciência, bem, valor, lei e outros; e no segundo, os problemas específicos, de aplicação concreta, como os problemas da ética profissional, da ética política, da ética sexual, de ética matrimonial, de bioética, etc (VALLS, 1994, p. 8).

Contudo, na prática da vida cotidiana, essa dicotomia não se apresenta dessa forma e definir o termo “ética” se torna tarefa desafiadora, em virtude da enorme quantidade de definições, principalmente no campo da filosofia.

Chauí (2000) compreende que a ética como valores normativos, isto é, que “enunciam normas que determinam o dever ser de nossos sentimentos, nossos atos, nossos comportamentos” (CHAUÍ, 2000, p.431). Para ela, esses juízos enunciam obrigações segundo o critério do correto e do incorreto. Os juízos éticos de valores retratam o que são o bem, o mal, a felicidade. Logo, “os juízos éticos normativos nos dizem que sentimentos, intenções, atos e comportamentos devemos ter ou fazer para alcançarmos o bem e a felicidade” (CHAUI, 2000, p. 431).

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Para que haja conduta ética, na concepção de Chauí (2000), é preciso que exista o agente consciente, isto é, aquele que conhece a diferença entre bem e mal, certo e errado, permitido e proibido, virtude e vício. Desta forma, “consciência e responsabilidade são condições indispensáveis da vida ética (CHAUI, 2000, p. 433).

Segundo o doutor em filosofia Álvaro Valls (1994, p. 7), em seu livro “O que é ética?”, ela é tradicionalmente entendida como:

Um estudo ou uma reflexão, científica ou filosófica, e eventualmente até teológica, sobre os costumes ou sobre as ações humanas. Mas também chamamos de ética a própria vida, quando conforme aos costumes considerados corretos. A ética pode ser o estudo das ações ou dos costumes, e pode ser a própria realização de um tipo de comportamento.

Poder-se-ia indagar o que seria um comportamento correto, considerando as múltiplas facetas do bom comportamento e que muitas vezes se tornam convenções provisórias, quando o que é considerado errado hoje, não é, da mesma forma, amanhã. O processo de civilização perpassa pela pergunta sobre quem se quer ser e na resposta para essa questão aparecem os conflitos dessa busca por sujeição e controle no que tange ao comportamento humano. E à medida que as sociedades se modificam, a ética começa a acompanhar esse processo, assim, “por um lado, consideraremos que o debate ético não funciona em torno de ideias eternas, mas em torno de conceitos historicamente construídos e, por outro lado, que o próprio debate evolui ao longo da história” (FOUREZ, 1995, p. 266).

Para Valls (1994), o comportamento correto não seria nada mais do que adequado aos costumes vigentes, enquanto esses últimos tivessem força para agir socialmente, isto é, “quem se comportasse de maneira discrepante, divergindo dos costumes aceitos e respeitados, estaria no erro, pelo menos enquanto a maioria da sociedade ainda não adotasse um comportamento ou um costume diferente” (VALLS, 1994, p.10). E não são apenas os costumes que variam, mas também os valores que os acompanham, as normas, os ideais, a própria sabedoria de um povo a outro.

Tendo em vista que os ensinamentos éticos se erradicam no tempo, inserindo-se no caráter histórico-cultural dos povos, elenca-se dois autores que obtiveram

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significativo reconhecimento acerca de suas ideias sobre esse entendimento ético filosófico, como uma tentativa de resposta ao bem comum, as quais transcorreram por gerações. São eles: Aristóteles (384-322 a.C.) que, juntamente com outro filósofo grego pré-socrático Demócrito (460-370 a.C.), inaugura o conceito de Ética e Immanuel Kant (1724-1804), que culmina pelo final do século XVIII, em que se dedica a apresentar “proposições que encerram uma determinação universal da vontade” (KANT,1959, p. 24).

1.1 A ética em Aristóteles

Aristóteles (384-322 a.C.), no decorrer de sua trajetória, demonstrava grande interesse especulativo e analítico, ao colecionar depoimentos sobre a vida das pessoas e das diferentes cidades gregas e se punha a compará-las. Para ele, o homem se distingue dos outros seres da natureza em virtude da razão. A racionalidade é o elemento que diferencia e torna o homem peculiar. Em suas palavras:

A característica específica do homem em comparação com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais, e é a comunidade de seres como tal sentimento que constitui a família e a cidade (ARISTÓTELES, 2004, p.15)

Dessa forma, o homem tem a capacidade de se constituir enquanto ser político e, sendo assim, a comunidade política tem como tarefa não apenas assegurar a vida de seus membros, mas igualmente lhe proporcionar uma vida melhor. O indivíduo, para Aristóteles (2004), se completa como um todo na vida social que a comunidade política garante. Não existem, na concepção aristotélica de homem, interesses privados colocados acima dos coletivos, logo, a comunidade e suas finalidades estão acima dos indivíduos e seus interesses.

Aristóteles (2004) caracteriza o homem enquanto animal político, o que significa que o homem é um animal que só existe na convivência, que não existe sozinho e desta forma, o animal político é naturalmente o homem para além da sua condição animal, que existe para se dedicar a vida em comunidade. Os seres humanos são sociáveis por natureza e levados a viver em comunidade por sua própria natureza, caso contrário, estariam acima ou abaixo do que é ser humano. Em seu livro, A política (2004), Aristóteles define o indivíduo como aquele que se subordina à Cidade:

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O todo existe necessariamente antes da parte. As sociedades domésticas e os indivíduos não são senão as partes integrantes da Cidade, todas subordinadas ao corpo inteiro, todas distintas por seus poderes e suas funções, e todas inúteis quando desarticuladas, semelhantes às mãos e aos pés que, uma vez separados do corpo, só conservam o nome e a aparência, sem a realidade, como uma mão de pedra. O mesmo ocorre com os membros da Cidade: nenhum pode bastar-se a si mesmo. Aquele que não precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um deus, ou um bruto. Assim, a inclinação natural leva os homens a este gênero de sociedade” (ARISTÓTELES, 2004, p. 12).

Os gregos antes de serem indivíduos, eram cidadãos e era impensável procurar a felicidade independente dos outros, pois só se entendiam e se compreendiam como parte de uma comunidade, a Pólis. No princípio da vida social, que o homem não se basta a si mesmo. Esse, segundo Aristóteles, não possui condições de suprir a suas necessidades sozinho, isto é, fora da disciplina imposta pelas leis e pela educação, ele não atinge a virtude necessária para a convivência e a felicidade.

Todos os cidadãos viviam em comum e a racionalidade procurava encontrar um bem supremo para todos os habitantes da Pólis e todos guiavam-se pela racionalidade indo em direção a esse bem. O pensamento ético de Aristóteles fala do comportamento do homem, na identificação do que é certo e errado, justo e injusto.

O homem bom e perfeito, para Aristóteles, deseja fazer com que seus concidadãos obedeçam às leis políticas e “cabe à política o conhecimento da alma, assim como cabe à medicina o conhecimento do corpo” (ARISTÓTELES, 1973, p.19). A conduta do indivíduo só seria boa com o amparo das leis da cidade que impõem suas regras. Tem-se, então, um entrelaçar entre a ética e a política.

As hipóteses encontradas na ética aristotélica, então, indicam a vida ideal como vivência das virtudes, junto com os outros, e que essa vivência é a felicidade. Seu objetivo ao escrever seu livro “Ética a Nicômaco” (tradução de 1973), não é somente educar o filho Nicômaco no caminho da felicidade, mas também fazer com que as pessoas reflitam sobre as suas ações e coloquem a razão acima das paixões, buscando a felicidade coletiva, pois o ser humano é um ser social e suas práticas devem visar o bem comum.

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O caráter se dá pelo bom uso das paixões. Ninguém nos considera bom ou mau segundo nossas paixões, mas segundo nossos vícios e virtudes. É pelas nossas virtudes que somos louvados ou censurados. A virtude é uma modalidade de escolha. Ao se trata de paixões dizemos que fomos movidos, ao se tratar de virtudes dizemos que temos tal disposição. Sendo assim as virtudes são disposições de caráter (ARISTÓTELES, 1973, p. 27).

Nasce-se sem um saber constituído sobre a vida e como ela é vivida e se aprende a partir das relações sociais, tornando-se sujeitos do outro para sobreviver e as hipóteses encontradas na ética aristotélica, indicam a vida ideal como vivência das virtudes, junto com os outros, e que essa vivência é a felicidade. Para ele, as pessoas de boa índole identificam a felicidade com a honra, pois a honra é a finalidade da vida política. “Os homens buscam a honra para se convencerem de que são bons” (ARISTÓTELES, 1973, p.5) e assim, buscar a ética significa determinar as escolhas corretas que o leve a um caminho de virtudes e justiça, buscando a conservação de uma ordem social. Para Aristóteles, no Livro 1 de Ética a Nicômaco:

A virtude é por sua vez uma disposição de caráter, a partir da escolha entre o que é excesso e falta, optando pelo meio termo, o que determina a sabedoria. É o meio-termo entre os dois vícios – excesso e falta – que o homem virtuoso se encontra (ARISTÓTELES, 1973, p.29)

A virtude torna-se uma permanente disposição de caráter para querer o bem e a teoria da mediania, de encontrar o justo meio, implica o enfrentamento dos elementos irracionais da alma, como as paixões. O equilíbrio é um valor estético importante para esse filósofo, pois o homem que sabe agradar a todos da maneira devida, que sabe estabelecer uma hierarquia da sua vontade tendo como base a boa medida, é amável e ser amado é justamente o desejo que move o sujeito, isto é, o desejo de ser desejado.

É virtuoso aquele que controla interiormente seus impulsos, suas inclinações e suas paixões, discute consigo mesmo e com os outros o sentido dos valores e dos fins estabelecidos, indaga se devem e como devem ser respeitados ou transgredidos por outros valores e fins superiores aos existentes, avalia sua capacidade para dar a si mesmo as regras de conduta, consulta sua razão e sua vontade antes de agir, tem consideração pelos outros sem subordinar-se nem submeter-se cegamente a eles, responde pelo que faz, julga suas próprias intenções e recusa a violência contra si e contra os outros (CHAUI, 2000, p. 434).

O sujeito, por sua vez, torna-se cúmplice da sua própria sujeição para ser amado e não censurado. Enquanto isso, aquele que excede os limites, é uma pessoa lisonjeira e

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“o homem que peca por deficiência e se mostra sempre desagradável, é uma pessoa mal-humorada” (ARISTÓTELES, 1973, p.31), portanto, não digna de amor:

Até que ponto, pois, e de que modo, um homem pode desviar-se do caminho sem se tornar merecedor da censura é coisa difícil de determinar. Mas uma coisa pelo menos é certa: o meio-termo merece ser louvado, enquanto os excessos e deficiências são dignos de censura. Torna-se assim, evidente que devemos ater-nos ao meio termo (ARISTÓTELES, 1973, p. 71).

Sendo assim, o meio termo estaria no balizamento, na medida, no controle das pulsões com vista para o reconhecimento da virtude e do bom caráter. Porém, existem paixões que não cabem no meio-termo, pois são más por essência como o adultério e a inveja e para Aristóteles, “tais paixões são um erro e fazer qualquer uma delas é um mal” (ARISTÓTELES, 1973, p. 30).

É um mal porque é suscetível de condenação e o homem virtuoso é aquele que busca o reconhecimento e a honra. Segundo Aristóteles, ninguém condena o que é feio por natureza, o que significa, por exemplo, que “ninguém condena um cego de nascença, mas condena aquele que ficou cego por conta da embriaguez ou alguma outra intemperança” (ARISTÓTELES, 1973, p.45). Toda condenação parte de um princípio ético. Condena-se a partir de um ideal de conduta, o qual foi corrompido pelo excesso, isto é, o vício tanto para mais quanto para menos. Não se condena o meio-termo, pois esse passa despercebido pelos olhos do julgamento por atender ao conceito de justiça.

Condenar implica colocar-se em posição de julgamento, partindo sempre de um ideal ético pressuposto pela maioria como adequado para a convivência e o reconhecimento. É a partir desse ideal que Aristóteles formula sua filosofia ética. Para ele, “a justiça não é uma parte da virtude, mas a virtude inteira” (ARISTÓTELES, 1973, p.80). A justiça, por fim, é um medidor, colocando um limite, uma lei para o que é bom e aquele que não respeita a lei é injusto, porém o que respeita é justo, portanto virtuoso.

O bem-comum torna-se preservado pela lei, a qual possibilitou a passagem do mundo animal – regido apenas pelos instintos, imutáveis e repetitivos, que visa apenas a autopreservação e a perpetuação da espécie – para o mundo humano, que pensa, ve e age (ou deveria assim se-lo) adiante dos instintos básicos (TEREZINHA, 2008, p .23)

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Para fazer parte do universo humano, exige-se a prática da virtude. “O homem precisa encontrar prazer em coisas apropriadas e detestar as que se devem ser detestadas, pois isso tem a maior influência possível sobre o caráter virtuoso” (ARISTÓTELES, 1973, p.179), isto é, a questão seria, propriamente, saber reconhecer o verdadeiro bem e orientar-se em direção a ele.

O bem leva cada indivíduo a ser capaz de viver com os outros, na polis e a ética prepara o indivíduo para a política, no campo coletivo e para Aristóteles, a finalidade da política é a busca do bem de todos os homens. E é interessante que Aristóteles reconhece não existir um bem que seja comum, que corresponde a uma só ideia e que mesmo se tivesse um bem único concernente à Ideia, seria inatingível. Aristóteles não isola um bem supremo, pois ele sabe que o homem precisa, por sua vez, de vários bens, como amizade, saúde e até alguma riqueza (VALLS, 1994).

Porém, entre esses bens há aquele que é melhor que o outro e a resposta para o melhor bem parte do fato de que “o homem tem seu ser no viver, no sentir e na razão” (ARISTÓTELES, apud VALLS, 1994, p.30). E esta última é o que caracteriza especificamente o homem. O que ele busca, ao escrever sobre uma ética que alcance o bem, é algo “atingível, a partir da razão” (ARISTÓTELES, 1973, p.8). O homem, por sua vez, não pode apenas viver, mas ele precisa viver racionalmente, isto é, viver de acordo com a razão. E a razão, para não se deixar desorganizar-se, precisa da virtude, precisa de uma vida virtuosa.

A felicidade verdadeira se encontra através da virtude, isto é, uma vida feliz é virtuosa, que se adquire a partir da sabedoria prática, isto é, a partir de uma “capacidade verdadeira e raciocinada de agir com respeito aos bens humanos” (ARISTÓTELES, 1973, p.104). A sabedoria prática é a disposição da mente que se ocupa com as coisas justas, nobres e boas para o homem e essas coisas são características de um homem bom.

Parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é tida como este bem supremo, pois a escolhemos sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais, mas as honra- rias, o prazer, a inteligência e todas as outras formas de excelência, embora as escolhamos por si mesmas (escolhê-las-íamos ainda nada resultasse delas), que escolhemo-las por causa da felicidade, pensando que através delas se- remos felizes. (ARISTÓTELES, 1973, p. 23)

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A busca pelo bem e consequentemente pela felicidade, para Aristóteles, é algo absoluto e autossuficiente, sendo também a finalidade da ação. E “a autossuficiência é aquilo que torna a vida desejável de nada” (ARISTÓTELES, 1973, p.10). O homem só encontrará a felicidade se viver em conformidade com a razão.

A felicidade é o que mais se deseja por si mesma, e sendo autossuficiente, o que mais se deseja é uma vida em que não se deseje nada. Deseja-se a felicidade para não mais desejar e não desejar seria a felicidade, que por fim, é o que todos buscam.

1.2 A ética em Kant

Na continuação dessa breve abordagem filosófica sobre Ética, é possível encontrarmos outro exemplo de reflexão, com o filósofo Immanuel Kant (1724-1804). Seu objetivo era buscar uma ética de validade universal, que se apoiasse na igualdade fundamental entre os homens, em que “os únicos objetos de uma razão prática são os de bem e mau” (KANT, 2011, p.93).

A ação humana, no seu entender, quando elevada à condição de universalidade aceita, acaba se tornando uma lei moral, devendo, por razões racionais, ser observada por todos. O direito natural exprimiria deveres que se impõe à vontade de cada um e a liberdade seria uma ilusão da consciência, não passaria de uma ideia. A liberdade do homem, por fim, estaria ligada à lei. Em suas palavras:

Todo ser que não pode agir senão sob a ideia da liberdade, é por isso mesmo, em sentido prático, verdadeiramente livre, quer dizer, para ele valem todas as leis que estão inseparavelmente ligadas à liberdade, exatamente como se a sua vontade fosse definida como livre em si e de modo válido na filosofia teórica. (KANT, 2007, p. 95).

Para Kant, assim como existiam leis físicas universais, também seria possível leis morais universais e seu objetivo era fundar uma lei universal que regesse o agir humano, independente do contexto em que este se insere, independente da religião, das crenças ou de qualquer situação particular. A partir disso, procurava encontrar, através do imperativo categórico, leis indiscutíveis que regessem o homem a serviço do bem.

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Kant (2007) afirma que o que distingue o homem dos outros seres da natureza é a razão e introduz, então, o conceito de Boa vontade.

Para ele, “nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem

Kant rejeita as concepções éticas desenvolvidas até então, que norteiam a ação a partir de fatores como a felicidade ou o prazer. A ação não pode ser condicionada por interesses, mas deve estar fundada na razão, além de ser universal, necessária e não meramente subjetiva. Segundo a explicação de Chaui (2000) para a ética de Kant:

A vontade é esse poder deliberativo e decisório do agente moral. Para que exerça tal poder sobre o sujeito moral, a vontade deve ser livre, isto é, não pode estar submetida à vontade de um outro nem pode estar submetida aos instintos e às paixões, mas, ao contrário, deve ter poder sobre eles e elas (CHAUI, 2000, p.433)

Ter uma vontade guiada por desejos e paixões, seria, o que ele chama, de “imperativo hipotético” (KANT, 2007, p. 50) e a vontade guiada pela razão seria, então, o “imperativo categórico” (KANT, 2007, p.50). O imperativo categórico assim rege: “Age segundo a máxima que possa simultaneamente fazer-se a si mesma lei universal” (KANT, 2007, p.80). É importante ressaltar que o imperativo kantiano não é exterior ao indivíduo, mas um dever imposto a si mesmo, isto é, ela não visa apenas uma realização subjetiva, mas à universalidade. O dever é a ética em forma de mandamento, de exigência, de imperativo.

Para Kant, agir a partir de uma vontade guiada pela razão é agir pelo certo, é obedecer ao puro dever e por fim, agir pelo bem, pois se a vontade não for boa, dela também seria impossível decorrer uma boa ação e o homem comum não necessita de muita inteligência para saber o que tem de fazer para agir pelo bem, pois:

contudo, “o bem supremo e a condição de tudo o mais, mesmo de toda a aspiração de felicidade.” (KANT, 2007, p. 25-26).

limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade” (KANT, 2007, p.21). Ele concebe a vontade como “a faculdade de se determinar a si mesmo a agir em conformidade com a representação de certas leis” (KANT, 2007, p. 67), o que só se pode ser encontrado em seres humanos. E essa vontade não será o único bem nem o bem total, mas terá de ser,

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Basta, sem que com isto lhe ensinemos nada de novo, que chamemos a sua atenção, como fez Sócrates, para o seu próprio princípio, e que não é preciso nem ciência nem filosofia para que ele saiba o que há a fazer para se ser honrado e bom, mais ainda, para se ser virtuoso (KANT, 2007, p.35-36)

Kant (2007) descreve o homem como um ente cindido entre sua natureza sensível e racional. Essa ambivalência é, portanto, o que se aproxima de uma definição mais exata da natureza humana, pois o este é livre para escolher as suas ações, a partir de seus princípios e do livre arbítrio. Nas palavras de Souza (2009):

Na consciência de si, o homem kantiano se vê cindido entre razão e sensibilidade. O homem fica diante de uma encruzilhada quando sua vontade tem de decidir se se determina conforme as exigências da razão ou se se deixa conduzir pelas solicitações da sensibilidade (SOUZA, 2009, p.134)

Frente a essa encruzilhada, nasce uma “dialética natural” (KANT, 2007, p.37), a partir de um contraste de dois princípios distintos, em que é preciso decidir entre os desejos e inclinações, que “corrompem e despojam de toda a dignidade” (KANT, 2007, p.37-8) e as exigências da razão. Da primeira, emergem as inclinações, ao passo que da segunda, em oposição às inclinações, o dever.

Portanto, por conta de o homem estar cindido entre razão e sensibilidade, a vontade humana pode ser motivada tanto por estímulos empíricos “fundados no modo como a sensibilidade é afetada e que constituem, por assim dizer, o princípio egoísta” (SOUZA, 2009, p. 40-41), quanto por um elemento puro produzido pela razão.

Ao contrário dos demais animais, que estão fadados a agirem mediante o imperativo hipotético, o homem é livre para escolher entre impulsos sensíveis ou por motivações que podem ser representadas pela razão e caberá a ele “escolher se determina sua vontade conforme o princípio racional ou se se deixa seduzir pelas solicitações do desejo sensível” (SOUZA, 2009, p.17-8), tendo essa escolha pelas solicitações do desejo como uma vontade egoísta e, portanto, repreensível ou condenável.

São os imperativos categóricos que formam a moral Universal racional. Se a ação não tiver uma boa vontade, ela estará desprovida de conteúdo moral e com essas reflexões, a partir de uma crítica da razão em geral, ele apresenta o homem como um ser

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humano que tem um valor absoluto porque é capaz de boa vontade, isto é, porque tem consciência de colocar seu agir sob o ditame da razão prática (HERRERO, 2010). O conceito ético kantiano se restringe a um universo em devir, “em processo permanente dos momentos indicativos – eu sou, ao lado de um momento imperativo – eu devo ser, tudo vivido dentro das circunstâncias limitantes (TEREZINHA, 2008, p.22-23).

Contudo, considerando que a felicidade seja a máxima do desejo humano, isto é, a finalidade de todo ser humano, cabe então que seja universal a máxima segundo a qual cada um faz desse desejo o fundamento da determinação de sua vontade. Tomado por esta preocupação, Kant estabelecerá a tentativa de provar a existência de uma razão prática, através de uma lei prática puramente racional, como um princípio de legislação universal com proposições idênticas, e se a vontade está submetida a essa lei prática, não poderá se dispor a seguir uma inclinação. Em suas palavras:

Se, no entanto, a razão nos foi dada como faculdade prática, isto é, como faculdade que deve exercer influência sobre a vontade, então o seu verdadeiro destino deverá ser produzir uma vontade, não só boa quiçá como meio para outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma, para o que a razão era absolutamente necessária, uma vez que a natureza de resto agiu em acerto na repartição das suas faculdades e talentos (KANT, 2007, p.25)

Kant busca encontrar respostas práticas e generalizadas para o que é considerado um bom comportamento, a partir do conceito do Dever, “que contém em si o de boa vontade” (KANT, 2007, p.26) e que difere de uma ação egoísta. Para ele, uma ação praticada “sem qualquer inclinação, simplesmente por dever, é a que teria o seu autêntico valor moral” KANT, 2007, p. 28).

Tal ação, sustenta o viver civilizado e remete à vontade verdadeiramente boa, objetivando chegar a uma moral igual para todos, uma moral racional e possível para todo e qualquer ser racional, pois para ele, a igualdade entre os homens era fundamental para o desenvolvimento de uma ética universal. Segundo Valls (1994), na teoria de universalidade ética de Kant, esta ética não se interessa pelos costumes, tradições, convenções, nem pelas inclinações pessoais, pois se a ética é a racionalidade do sujeito, este deve agir de acordo com o dever: porque é dever, eis o único motivo válido da ação ética.

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Na ética kantiana, o bem e o dever estão intimamente ligados e Souza (2009) exemplificar isso ao dizer que em toda situação em que seja necessária uma escolha, o homem inevitavelmente faz para si a pergunta: o que devo fazer para bem conduzir minha ação? De fato, está inerente à pergunta a busca por uma regra de conduta que forneça à decisão um amparo do que seja a melhor ação a ser praticada. E é essa possibilidade de escolha sobre “o que fazer” que nos torna livres, porém, livres para nos sujeitarmos ao dever da boa vontade, pois a escolha de sujeição é o que nos torna reconhecidos como virtuosos e honrados.

Essa breve contextualização mostra o quanto a ética não é um conceito considerado abstrato e distante, mas sim, considerado como algo prático, palpável, possível de compreensão através da razão, como um exercício que permite a felicidade humana. Um dos temas centrais da ética de Aristóteles é a felicidade, sendo considerada a finalidade última do ser humano e a partir dela elabora uma teoria que contemple a todos, a partir da virtude. Da mesma forma, Kant enfatiza a felicidade como premissa para a universalização dos princípios que promovam ações corretas, a partir de um imperativo categórico, que orienta o comportamento.

Tendo em vista essa regularização massificadora do agir humano, como uma busca pelo bem-estar, será realizado uma articulação sobre a ética da psicanálise, a fim de compreender seu ponto de vista acerca dos efeitos que a ética filosófica produz no sujeito.

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2. A ÉTICA DO DESEJO, EM PSICANÁLISE

Relacionar o tema ética com a Psicanálise é uma tarefa desafiadora, considerando a função normatizadora da ética, pautada por princípios conscientes, frente ao desejo e ao drama da liberdade e alienação que o homem se encontra com relação ao inconsciente. Há pelo menos duas maneiras de abordar a relação da ética com a psicanálise. A primeira é enquanto ética clínica, como uma forma de proteção do paciente que se submete ao tratamento psicanalítico e a segunda se refere às implicações éticas a partir do advento da Psicanálise no Ocidente, com a sua teoria do Inconsciente, como uma prática questionadora dos pressupostos éticos tradicionais (KEHL, 2002).

Neste sentido, a proposta dessa escrita é se concentrar na segunda maneira de abordar essa questão, a partir de uma sociedade que constrói discursos, muitas vezes, angustiantes para o bom-convívio. Com isso, torna-se necessário uma reflexão sobre a ética que orienta o ser humano e, a partir disso, a psicanálise nos apresenta essa possibilidade, que segundo Maria Rita Kehl (2002), é como uma filosofia imanente da existência, preenchendo os vazios de um discurso, muitas vezes tão intoleráveis. “A psicanálise revelou no século XX o preço pago pelo controle excessivo dos impulsos que a sociedade impunha em seus membros” (KEHL, 2002, p.16). Para Kehl (2002) toda uma grande parcela daquilo que o sujeito cala e esconde, em troca da convivência com os outros, vai se silenciando, até se alienar do próprio eu, formando assim um sujeito dividido que desconhece a dimensão do que cedeu ao Outro.

Como pano de fundo para compreender a relação de alteridade que o sujeito constitui com o que Lacan vai chamar de pequeno e grande outro, dada a importância desse entendimento para continuar a reflexão sobre a ética na psicanálise, faço uso da obra Os outros em Lacan, escrita por Antonio Quinet (1999), que evidencia que não há sujeito sem o outro. Em sua perspectiva, o pequeno outro é o semelhante, entendido como um intruso que desestabiliza nosso imaginário sentimento de identidade. Esse outro invade em primeiro momento e se torna, por fim, um reflexo de si mesmo, sendo, porém, o reflexo do amor narcísico. “Trata-se do amor pelo mesmo, o amor narcísico que Lacan qualifica como hommossexual (com dois “m”) para indicar que é um amor de

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homem (genérico) pelo homem – um amor homensexual. E que faz parte constitutiva de todo amor” (QUINET, 1999, p.11).

Desta forma, o semelhante é aquele que nos permite uma identificação da imagem, mas também nos remete à questão da rivalidade. É o motor da agressividade, tendo em vista que a construção do eu tem a ver com a dependência do outro. Nas palavras de Maria Rita Kehl (2002):

O primeiro afeto despertado pela intrusão do semelhante em nossa vida é o ódio. O semelhante, que para nós é sempre um semelhante da diferença, invade nosso campo narcísico para nos roubar alguma coisa: o amor da mãe (para Freud), ou nossa certeza sobre nós mesmos (Lacan). Por ser ao mesmo tempo tão semelhante e tão diferente, o “próximo” vem sempre nos deslocar de nossa identidade (uma ilusão narcisista), pois traz inevitavelmente a questão: se eu sou este e ele se assemelha tanto a mim, mas não é eu, quem é ele? Diante dele, quem sou eu? Só depois de nos desestabilizar dessa maneira – se aguentarmos o tranco – é que o “próximo” pode se revelar também uma fonte de aprendizado, de experiências compartilhadas, de novas identificações (KEHL, 2002, p.20).

O grande outro, porém, como discurso do inconsciente, é um lugar. É o Outro, escrito com maiúsculo, dispensando o adjetivo grande e que, a partir de Quinet (1999), é de onde vem as determinações simbólicas da história do sujeito, isto é, “é o arquivo dos ditos de todos os outros que foram importantes para o sujeito em sua infância e até mesmo antes de ter nascido” (QUINET, 1999, p.15). É o lugar onde se coloca para o sujeito a questão da sua existência. O Outro é, por fim, a alteridade do eu consciente, como um lugar psíquico para o inconsciente. O Outro, na leitura de Quinet, é o conjunto de significantes que marcam o sujeito em sua história, seu desejo, seus ideais, sustentando suas fantasias inconscientes. Em suas próprias palavras:

O Outro, como discurso do inconsciente é um lugar. É o alhures onde o sujeito é mais pensado no que efetivamente pensa. É a alteridade do eu consciente. É o palco que, ao dormir, se ilumina para receber os personagens e as cenas dos sonhos. É de onde vêm as determinações simbólicas da história do sujeito. É o arquivo dos ditos de todos os outros que foram importantes para o sujeito em sua infância (QUINET, 1999, p. 15).

No texto Uma dificuldade da psicanálise, escrito por Freud ([1917] 2010), encontramos três duras afrontas sofridas pela humanidade, por parte da pesquisa

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científica, sendo uma de caráter cosmológico, com a descoberta de Copérnico de que a Terra não é o centro do Universo; a segunda de caráter biológico, com a teoria da evolução natural de Charles Darwin, de que o homem não é melhor nem diferente dos animais. E a terceira, considerada por Freud a mais sentida, de caráter psicológico, isto é, de que o homem não é soberano em sua própria psique. Como um convite para o homem voltar-se para si, Freud sustenta a descoberta do Inconsciente como um caminho ao conhecimento dos profundos desejos que levam ao adoecimento ou que o evita.

(...) em todos os casos, porém, as informações de sua consciência são incompletas e, frequentemente, suspeitas; também acontece de você ter notícia dos eventos apenas depois de consumados, e já não poder modificá-los. Ainda quando você não está doente, quem pode avaliar o que age em sua alma, coisas de que você não vem a saber ou de que é informado erradamente? Você se comporta como um rei absoluto, que se contenta com os dados fornecidos por seus principais cortesãos e não desce até o povo para escutar a voz dele. Volte-se para si, para suas profundezas, e conheça antes a si mesmo; então compreenderá por que tem de ficar doente, e conseguirá talvez não ficar doente” (FREUD, [1917] 2010, p. 186)

Este severo golpe narcísico, porém, produziu efeitos no campo filosófico, pois afirmar que o “Eu não é senhor da sua própria casa” (FREUD, [1917] 2010, p.186), implica em reelaborar toda uma forma de pensamento, alicerçado na consciência. Entretanto, é possível observar que, cada vez mais na atualidade, o saber da psicanálise é convocado para tentar pensar as questões da sociedade, pois a existência do inconsciente nos tira o controle que imaginamos ter sobre quem somos, despertando assim, a reflexão sobre o que escapa à consciência nas relações humanas. Torna-se um exercício de dignidade ao sujeito a reflexão de que a sua felicidade não está imposta a uma construção consciente apenas, tendo em vista as propostas freudianas de deslocar o sujeito consciente de sua posição dominante do psiquismo.

Desde a invenção da Psicanálise, Freud, ao diferenciar o psiquismo em consciente e inconsciente, nos colocou diante de uma realidade que altera nitidamente a concepção que temos do homem e sua dimensão ética, dimensão que não pode mais recusar, deixar de lado a dimensão do desejo inconsciente. No texto O Eu e o Id, em que Freud ([1923] 2011) retoma a questão do Inconsciente, como uma noção introdutória, ele vai dizer:

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A diferenciação do psiquismo em consciente e inconsciente é a premissa básica da psicanálise e o que ela permite compreender e inscrever na ciência os processos patológicos da vida psíquica, tão frequentes e importantes. (...) a psicanálise não pode por a essência do psiquismo na consciência, como uma qualidade do psíquico, que pode juntar-se a outas qualidades ou estar ausente (FREUD, [1923] 2011, p. 11)

Para definir o termo Inconsciente, em um sentido descritivo, Freud (1923) parte do recalque como ponto de partida dessa Instância. Segundo ele, o recalcado é o protótipo do que é inconsciente. Conteúdos recalcados, por sua vez, seriam poderosos processos e ideias psíquicas que não se tornam conscientes devido a uma certa força que se opõe a isso, ao que Freud vai chamar de “resistência” (FREUD, [1923] 2011, p.13). Freud continua dizendo que para a cultura filosófica, se torna incompreensível à ideia de algo psíquico que não seja também consciente, sendo então, considerado ilógico.

No texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud ([1905] 1996) introduz o termo pulsão em sua discussão sobre a problemática da satisfação humana, a partir do Inconsciente. Ancorada nesse texto, a psicóloga/mestre Tais Ribeiro Gaspar, conceitua o termo como:

[...] .o representante psíquico de uma fonte endossomática e contínua de excitação. Trata-se de uma exigência de trabalho feita ao psiquismo, que tem sua origem no corpo. A pulsão é descrita como um impulso que busca satisfação, contudo sem possuir um direcionamento para atingi-la (GASPAR, 2007, p.47).

Para Freud ([1915] 2010), ao retomar o termo em seu texto “As pulsões e suas vicissitudes”, o que mais varia na pulsão é o objeto, inexistindo assim um fundamento capaz de orientar o homem no mundo, de conduzi-lo à satisfação. A partir desse conceito, Freud evidencia uma problemática que se refere às questões éticas, que seria o caminho pelo qual se alcança a satisfação.

Através da cultura as relações sociais são reguladas, para que assim não ponha em risco a existência humana e para isso existe um certo sacrifício pulsional em troca da boa convivência. A renúncia pulsional, por sua vez, pode ser considerada um pressuposto universal da cultura, enquanto mediadora da convivência, tendo como objetivo a felicidade. Contudo, Freud ([1914] 2010), em Introdução ao Narcisismo,

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descreve a impossibilidade de o sujeito reconhecer como determinante as ideias culturais, a ponto de se submeter completamente as exigências que dela partem. A busca por satisfação acaba por sobrepor a exigência ideal de comportamento, tendo em vista que “o indivíduo se revelou incapaz de renunciar a satisfação que uma vez foi desfrutada” (FREUD, [1914] 2010, p.27).

No texto “O mal-estar na civilização”, Freud ([1930] 2010) salienta que a conservação do laço social implica na renúncia às exigências pulsionais do indivíduo em detrimento do bem-estar coletivo. Desta forma, ele vai dizer que:

Finalmente – e isso parece o mais importante de tudo –, é impossível desprezar o ponto até o qual a civilização é construída sobre uma renúncia aos instintos, o quanto ela pressupõe exatamente a não-satisfação [...] de instintos poderosos (FREUD, [1930] 2010, p.103-104).

Freud ([1930] 2010) fala sobre a dificuldade que a vida é para nós, da forma que nos é apresentada no Real, pois traz demasiadas dores. Para ele, o homem se torna neurótico por não conseguir suportar a medida de privação que lhe é imposta, em prol dos ideais culturais. O sofrimento, por sua vez, “nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, do mundo externo e, por fim, das relações com os outros” (FREUD, [1930] 2010 p. 21). Esse último, segundo Freud ([1930] 2010) é, muitas vezes, considerado supérfluo, mas que, na verdade, é o sofrimento mais doloroso que qualquer outro. Sendo assim, moderamos nossas pretensões à felicidade, pela pressão desse sofrimento. A felicidade, por sua vez, enquanto busca pela ausência total de desprazer e sofrimento, a partir da crença de que existe uma satisfação possível de ser universalizada, torna-se irrealizável.

Porém, “não somos capazes de abandonar os esforços para, de alguma maneira, tornar menos distante a sua realização” (FREUD, [1930] 2010, p.27). Mas, é preciso admitir que, por mais que sejam muitas as promessas de completa felicidade oferecidas a partir do consumo, da filosofia ética e moral, da ciência e da religiosidade, “fracassamos, justamente nessa parte da prevenção total do sofrimento e do mal-estar” (FREUD, [1930] 2010, p.27). Desta forma, o sujeito se vê, como dito no capítulo anterior, em uma encruzilhada entre a felicidade idealizada pela cultura e aquela concernente aos seus anseios individuais.

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Boa parte da peleja da humanidade se concentra em torno da tarefa de achar um equilíbrio adequado, isto é, que traga felicidade, entre tais exigências individuais e aquelas do grupo, culturais; é um dos problemas que concernem ao seu próprio destino, a questão de se este equilíbrio é alcançável mediante uma determinada configuração cultural ou se o conflito é insolúvel (FREUD, [1930] 2010, p.38).

Freud ([1930] 2010) define o mal-estar como sendo essencialmente sensação de culpa e o caracteriza como um obstáculo para a ideação civilizatória. Esse mal-estar decorreria do impasse do sujeito diante da impossível adequação ao ideal de universalidade que lhe é imposto pelo Outro. Sendo assim, para Freud ([1930] 2010), a culpa se origina do medo da autoridade e, depois, o medo diante do superego.

O superego, portando, se formaria somente após o Complexo de Édipo, teoria desenvolvida por Freud ([1905] 1996) que pode ser bem definida através do verbete de Laplanche e Pontalis (1992), no livro “Vocabulário da psicanálise”:

Conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais. Sob a sua forma dita positiva, o complexo apresenta-se como na história de Édipo-Rei: desejo da morte do rival que é a personagem do mesmo sexo e desejo sexual pela personagem do sexo oposto. Sob a sua forma negativa, apresenta-se de modo inverso: amor pelo progenitor do mesmo sexo e ódio ciumento ao progenitor do sexo oposto. Na realidade, essas duas formas encontram-se em graus diversos na chamada forma completa do complexo de Édipo. Segundo Freud, o apogeu do complexo de Édipo é vivido entre os três e os cinco anos, durante a fase fálica; o seu declínio marca a entrada no período de latência. É revivido na puberdade e é superado com maior ou menor êxito num tipo especial de escolha de objeto. O complexo de Édipo desempenha papel fundamental na estruturação da personalidade e na orientação do desejo humano. Para os psicanalistas, ele é o principal eixo de referência da psicopatologia (LAPLANCHE e PONTALIS, p. 77).

A criança se identifica, por fim, com o pai, posto como ideal, por ser ele o possuidor da mãe, objeto de desejo da criança. Em um retorno ao texto Introdução ao Narcisismo, compreendemos que o pai se estabelece como ideal do Eu, isto é, uma instância simbólica que, “para o Eu, seria a condição para a repressão” (FREUD, [1914] 2010, p.27), sendo apropriado pelo Superego, que vai exigir o cumprimento deste ideal pelo sujeito. O superego torna-se um conceito muito próximo desse ideal do Eu, tendo como função a regulação das ações do sujeito que não fossem apropriadas a esse ideal

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estabelecido. E é a partir desse ideal do Eu que se constitui o Eu ideal, em que o sujeito passa a vida toda tentando se igualar. Segundo Quinet (1999):

O sujeito passará a vida toda tentando moldar seu eu à imagem e semelhança desse eu ideal que mamãe e papai querem que ele seja, como por exemplo, „inteligente‟, „bacana‟, „bem-sucedido‟, „bonito‟, etc., que são significantes que veiculam o desejo do Outro (QUINET, 1999, p.12)

A cultura, por sua vez, toma o lugar desse pai, através de um ideal, de uma busca pela orientação para o agir, o que caracteriza um projeto ético. Para isso, o homem busca superar os conflitos e, sobretudo, a violência e então viver em um mundo harmonioso, a partir de um sentido concreto e consciente dos seus atos. A tentativa de reduzir a satisfação aos padrões pré-estabelecidos, se engendra, como vai dizer Freud ([1930] 2010), em um mal-estar provocado pelo sentimento de culpa.

Somos culpados porque sofremos sem conseguir saber do que. Como diz Maria Rita Kehl (2002), “culpados, a um só tempo, de ter perdido a Coisa e de pressentir, pelo que a fantasia e o sintoma nos informam, que, se há algo que o inconsciente nos esconde, boa notícia não há de ser” (KEHL, 2002, p.128). A notícia, segundo Freud ([1930] 2010), é de que o ser humano não é uma criatura agradável, insaciável de amor, que no máximo pode se defender quando atacada, mas sim um ser dotado de agressividade. E “devido a essa hostilidade primária entre os homens, a sociedade é permanentemente ameaçada de desintegração” (FREUD, [1930] 2010, p.49-50). Assim, diferentemente de Rousseau (2007), que afirma que a sociedade que corrompe o homem, que por natureza é bom, Freud toma o processo civilizatório ao molde do desenvolvimento de cada sujeito.

Sendo a ética uma tentativa de evitar, diminuir ou controlar a violência com o objetivo de alcançar uma satisfação plena, ou seja, a felicidade, a civilização, precisa recorrer a tudo que pode para dar conta dessa agressividade primitiva, portanto sabemos que a instância ética que deveria impedir a manifestação da agressividade surge a partir da própria agressividade que tenta coibir. Nas palavras de Freud:

A civilização controla então o perigoso prazer em agredir que tem o indivíduo, ao enfraquecê-lo, desarmá-lo e fazer com que seja vigiado por uma instância no seu interior, como por uma guarnição numa cidade conquistada (FREUD, [1930] 2010, p. 59).

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Desta forma, quando inibimos nossa agressividade, que é preço que pagamos para entrar na cultura, ela se transforma, como dito, em superego, satisfazendo sua agressão em direção ao próprio eu. Está instalado, então, o mal-estar na civilização.

A partir do sentimento de culpa podemos caracterizar a ética não como uma via de solução para o problema do mal-estar, mas como a causa, ao tentar coibir a violência. A perda da satisfação decorrente da internalização da lei, que regula a boa convivência e a aceitação entre os pares se expressa, por fim, como sentimento de culpa. Se expressa a partir do desejo de amor, pois segundo Freud, “a culpa não passa claramente do medo da perda de amor, da perda social, pois no lugar do pai que a criança objetiva o amor, está a grande sociedade humana” (FREUD, [1930] 2010, p. 60). E esse enigma do que esse Outro quer para nós nos coloca em posição de objeto para ser amado e reconhecido como virtuoso, como aquele que responde ao ideal do Eu, como dito anteriormente.

Lacan (1959-60), em seus escritos no Seminário VII, sobre a Ética da Psicanálise, propõe extrair “as consequências éticas gerais que a relação com o inconsciente, tal como foi aberto em Freud, comporta” (LACAN, [1959-60] 2008, p. 342), a partir disso, ele vai dizer que “o estatuto do inconsciente é ético” (LACAN, [1959-60] 2008, p.37). Isto é, a ética, por sua vez, é o campo das ações do sujeito em direção ao bem, porém não exatamente ao bem da tese de Aristóteles, ou o querer fazer o Bem ou o Mal em função de um Imperativo, como na ética universal de Kant, pois para Lacan, a ação humana permeada pela perspectiva desse bem, se coloca como problemática. Lacan deixa isso evidente ao afirmar que:

Toda a experiência analítica não é senão o convite para a revelação de seu desejo, e ela muda a primitividade da relação do sujeito com o bem, em relação a tudo o que até então foi articulado sobre isso pelos filósofos (LACAN, [1959-60] 2008, p. 265).

Desta forma, Lacan abre caminho para uma proposta ética que não produza necessariamente a culpa, a partir da anulação do sujeito.

O bem, para Lacan ([1959-60] 2008) estaria na ordem do encontro do sujeito com a liberdade da ilusão dessa promessa de que existe um objeto de seu bem, isto é,

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“curá-lo das ilusões que o retêm na via de seu desejo” (LACAN, [1959-60] 2008, p.262). Para Lacan ([1959-60] 2008), a ética da psicanálise e, portanto, o bem, é “das Ding”, objeto que está na mais primitiva origem do inconsciente, excluído do campo das representações, mas ao mesmo tempo cercado delas. Das ding é aquilo que “do real padece dessa relação fundamental, inicial, que induz o homem nas vias do significante” (LACAN, [1959-60] 2008, p. 164). A concepção da ética do Seminário VII, se estabelece a partir do desejo, definido como o universo da falta.

Com isso, é possível compreender uma separação entre os efeitos produzidos por uma ética normatizadora e superegoica, de uma ética que ele chama de ética do desejo. Esta, por sua vez, aceita a dimensão da falta, ao invés de negá-la:

Trata-se de uma ética que não exorta o sujeito à universalização, pois surge no ponto onde falha a tentativa do sujeito de tudo significar. É nesse ponto de falha, de impossibilidade do sujeito em alcançar das Ding, objeto do seu desejo, que Lacan postula a vertente ética do desejo (GASPAR, 2007, p. 45).

Doris Rinaldi (1996), psicanalista e doutora em antropologia, em seu livro A Ética da Diferença, nos apresenta a Ética em Lacan como o que está além do sentimento de obrigação, “não podendo ser resumida à coação social” (RINALDI, 1996, p.67). A ética lacaniana, para Rinaldi (1996), é entendida como uma “Ética da castração”, tendo em vista que o Bem Supremo não existe, porém, também não se trata de uma ética de resignação, pelo contrário, a partir do reconhecimento do desejo, ela deve ser levada até o fim. Portanto, a discussão ética situa-se na questão da verdade, sendo ela a verdade do desejo. E nesse sentido, completa Rinaldi:

Em Lacan, como em Freud, o desejo está inextrincavelmente vinculado à Lei que institui o simbólico, ainda que para Lacan esta Lei indique, mais do que uma proibição, indica a presença da impossibilidade (RINALDI, 1996, p. 69).

É importante a compreensão de que a falta do objeto, para Lacan, não se interpreta como a perda do objeto, o que associa o desejo à busca de uma experiência em que tal objeto foi tido. A falta do objeto, para Lacan, não remete à “Coisa” perdida, mas sim à condição de possibilidade de desejo. Para Rinaldi, “a noção de Coisa remete ao objeto perdido, impossível de alcançar, que comanda o desejo do sujeito e que indica

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ao mesmo tempo, o anseio de plenitude e, ao mesmo tempo, da sua impossibilidade” (RINALDI, 1996, p.69).

Lacan ([1959-60] 2008) dizia, através da tragédia de Antígona, que a única coisa da qual se pode ser culpado, pelo menos da perspectiva analítica, é de ter cedido do seu desejo (LACAN, [1959-60] 2008, p.376). Mas, que desejo é esse de que falava Lacan? Seria o desejo sexual que também falava Freud, em seu texto A interpretação dos Sonhos (1900), onipresente em nossos sonhos, mesmo que de maneira disfarçada? Como nos mostram Freud (1924/1973b, p.2748-2751) e Lacan (1957-1958/1999, p.185-220), citado por Sérgio Scotti (2012), em seu artigo Psicanálise: uma ética do desejo, o desejo sexual é sempre conflituoso, na medida em que seus primeiros objetos são objetos proibidos, daí provém que todos os objetos que venham a substituir nosso desejo possuam algo de conflituoso.

Dito de outra forma, “o desejo pode provocar angústia, todo desejo na sua origem comporta algo de recusado pelo sujeito” (SCOTTI, 2012, p.57). A angústia, por sua vez, surge como uma reação a um estado de perigo que pode levar à vivência de um desamparo. Para Lacan ([1962-63] 2005), esse perigo representa a ameaça do objeto a, que anteriormente chamamos de das Ding. Esse objeto inapreensível, não representável no registro do real, está atrás do desejo. Como diz Lacan ([1962-63] 2005), o tempo da angústia não está ausente da constituição do desejo, isto é, “ depois de superada a angústia e fundamentado no tempo da angústia, que o desejo se constitui” (LACAN, [1962-63] 2005, p.193). É preciso, então, atravessar a angústia para chegar ao desejo.

Para elucidar a compreensão sobre o desejo inconsciente, Lacan (1959-60) toma a tragédia, supracitada, de Antígona, escrita por Sófocles e analisa as relações dessa tragédia com a prática e a ética da psicanálise.

Antígona é uma famosa tragédia grega que Sófocles (496-406 a.C.), dramaturgo grego, escreveu no século V antes de Cristo. No mito, os dois irmãos de Antígona encontram-se constantemente lutando pelo trono de Tebas e, em meio à luta pelo poder, ambos morrem. O trono, então, fica com o seu tio Creonte, que ordena que um dos irmãos seja enterrado com honras e que o corpo do outro seja deixado aos abutres. Antígona não aceita isso e decide enterrar dignamente o irmão, dando a ele a honra que

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ela acreditava merecer. O livro em que a peça está escrita, começa com o diálogo entre ela e sua irmã Ismênia, a qual tenta convencê-la de não realizar o sepultamento do irmão, pois seria acusada de violar algo que estava vedado a toda a cidade. Diante desse pedido, Antígona responde que seria, para ela, “muito pior ser acusada de traição para com o seu dever” (SÓFOCLES, 2005, p. 8). Seu fim, como consequência disso, foi a morte.

Lacan não foi o primeiro a evocar essa tragédia como um exemplo de conflito ético, porém, do seu ponto de vista, a tragédia tem por meta a catarse das paixões, do temor e da piedade. “Antígona nos faz, com efeito, ver o ponto de vista que define o desejo” (LACAN, [1959-60] 2008, p. 300). Sua decisão em enterrar o irmão, indo contra o veredito do rei, por acreditar que estaria honrando seu desejo de fazer o que acreditava ser o bem, a faz brilhar entre aqueles que a consideravam louca. Para ela, “louco era aquele que o acusava de loucura” (SÓFOCLES, 2005, p.31), pois estes, assim como sua irmã Ismênia, não tinham forças para agir contra as leis da cidade. A sentença para a sua decisão foi a de ser enterrada viva em uma tumba – um corpo morto, vivo no mundo dos mortos é o cenário dessa tragédia de Sófocles. Nas palavras de Lacan:

O terço central da peça é constituído pela apofonia detalhada que nos é dada do que significa a posição, o destino de uma vida que vai confundir-se com a morte certa, morte vivida de maneira antecipada, morte invadindo o domínio da vida, vida invadindo a morte (LACAN, [1959-60] 2008, p. 301).

A partir dessa tragédia, conseguimos situar duas medidas diferentes uma da outra: uma defendida por Creonte e a outra, marcada por Antígona. Por um lado, a lei dos homens que visa o bem-estar de todos, por outro a Lei para além do bem-estar ou da lei da cidade. Através de Antígona, Lacan quer evidenciar que o campo do desejo é

muito diferente do campo do bem de todos. Ao contrário de Creonte, Antígona desconsidera o “bem a todos” e age submetida a uma outra Lei: oferecer ao irmão as honras funerárias. E para isso, ela vai transgredir os limites da vida para atingir tal meta e ainda vai dizer que “todos têm desejos, porém silenciam para agradar o rei” (SÓFOCLES, 2005, p.33).

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Agora, é importante salientar que a ética da psicanálise não só exige uma responsabilidade pelo desejo inconsciente, mas também pelo gozo, isto é, a elevada responsabilidade pelo desejo envolve uma transformação no modo como o sujeito goza.

No campo psicanalítico, podemos diferenciar, de forma sucinta, o gozo do prazer. O prazer seria a repetição de experiências de infância, como já explicitado anteriormente, através do Complexo de Édipo, em que o sujeito é posto em posição de desejante após o pai interditar a mãe. O gozo, por sua vez, é o que está para além do princípio do prazer, indicando, de alguma maneira, a transgressão. Consoante com a perspectiva psicanalítica, eis uma explicação dessa diferença, pela psicanalista do campo lacaniano, Mara de Castro Sternick:

Ter acesso ao prazer seria apenas se deliciar com uma prova, uma degustação do que pôde ser a relação inicial com a mãe e portanto, do prazer, do qual, dito à maneira freudiana, conhecemos apenas um princípio; o excesso, a transgressão, o deleite e o desfrute estão além do princípio do prazer, estão do lado do gozo (STERNICK, 2010, p. 37).

O gozo estaria na dimensão do vazio impossível da qual o sujeito o transforma em falta e busca construir uma história que o signifique. História essa, amarrada ao Édipo, supracitado, através desse Complexo de castração em que o sujeito se encontra na busca eterna pelo objeto perdido, objeto que o faz gozar.

Para Lacan ([1959-60] 2008), não é o ideal aristotélico do prazer como um “bem supremo” que regeria a conduta ética do sujeito, mas a impossibilidade real. E é da impossibilidade que emerge o gozo. Desta forma, o que está em foco é a relação do sujeito com a dimensão simbólica que organiza o gozo.

Cada sujeito deve realizar uma escolha quanto ao que fazer com seu desejo e seu gozo, considerando as condições de sua história, do Outro que o cerca, bem como de seus ideais fantasmáticos e essa é a dimensão trágica da ética da psicanálise. E Antígona, por sua vez, estava disposta a enfrentar as consequências do seu desejo, mesmo que isso custasse a sua morte. Ela não cedeu a ele.

Ser ético com o desejo, sempre está acompanhado de um desamparo. O desamparo de não termos um Outro ao qual precisamos responder, nos deixa solitários

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para decidirmos quem somos ou quem queremos ser. A pergunta “O que o Outro quer de mim?” se transforma em “O que eu quero?”. Desta forma, temos de um lado, uma constituição que implica na sujeição a essa demanda do Outro, isto é, “o desejo do homem é o desejo do Outro” (LACAN, [1959-60] 2008, p. 362), que implica em responder ao que o Outro quer, para ter o reconhecimento. Por outro lado, a luta contra essa tendência aniquiladora do sujeito, de um indivíduo que deseja ser. A isso Lacan ([1959-60] 2008) vai chamar de duro desejo de desejar.

Há quem fique preso tentando atender às demandas do outro para não precisar se confrontar com o próprio desejo, para não se responsabilizar por ele, pois, mesmo que inconscientemente, somos responsáveis pelo nosso desejo e isso significa dizer que “o inconsciente faz parte de nós e que, talvez ele seja mesmo a nossa própria essência” (LACAN, [1959-60] 2008, p.335). E qualquer ética que não leve em conta a dimensão do desejo inconsciente, é uma ética no mínimo superficial. A ética tradicional para Lacan, trata do serviço dos bens, ou seja, uma ética que mede a estatura moral do sujeito segundo a depreciação do desejo, segundo a modéstia, a temperança, ou seja, ao cumprimento do status quo. E, em meio a essas exigências, o questionamento ético, proposto pela psicanálise, que insiste em permanecer é: “Agiste em conformidade com o desejo que te habita” (LACAN, [1959-60] 2008, p.367)?

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