CONFRONTANDO HÉRCULES:
os desafios à prática judiciária do direito
como integridade
A.P.P. Martins¹
¹Estudante de graduação em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da Liga Acadêmica Jurídica do Pará; membro do Grupo de Pesquisa Teoria do Direito Contemporânea, orientado pelo Prof. Msc. André Coelho. Email: anappmartins@hotmail.com.
RESUMO
O presente trabalho visa analisar, no contexto da teoria do direito como integridade de Ronald Dworkin, o chamado Método de Hércules, conceituandoo e identificando seus principais objetivos e trunfos em relação ao convencionalismo e ao pragmatismo, em um primeiro momento, no contexto da Tese da Única Resposta Correta. Em seguida, verificarseá se o referido método realmente atende aos objetivos interpretativos propostos por Dworkin, na medida em que confrontado com dois principais desafios à sua tese: a heterogeneidade da história institucional e a vinculação aos valores políticos e morais do juiz.
PALAVRASCHAVE: Ronald Dworkin; interpretação; Método de Hércules; Tese da Única Resposta Correta.
INTRODUÇÃO
O juiz Hércules de Dworkin é um modelo de juiz ideal, introduzido primeiramente pelo artigo Hard Cases (1975) e aperfeiçoado posteriormente por sua vinculação ao direito como integridade de O Império do Direito. Sua primeira utilização procurava demonstrar a argumentação jurídica aplicada à prática judiciária, uma vez conjugados os conceitos de propósito legislativo e os princípios da common law , bem como o que ambos exigem do intérprete do direito na análise do caso concreto.
Dworkin descreve o juiz Hércules como “a lawyer of superhuman skill, learning, patience and acumen” (1975, p. 1083); em virtude destas características, Hércules seria capaz
de elaborar teorias de justificação da prática jurídica estabelecida, encontrando seu propósito ou suas exigências, com o fulcro de solucionar hard cases, que consistem em situações judiciais nas quais o juiz encontra duas ou mais interpretações aceitáveis de uma lei ou de um julgado (DWORKIN, 2004, p. 306). Para isso, Hércules deve partir de uma análise de moral política para encontrar, dentre as interpretações possíveis, aquela que revele o direito em sua melhor luz.
Este compromisso, trazido à tona pelo teoria interpretativista de Dworkin, confere um duplo papel à interpretação jurídica, vez que identifica como essencial a combinação de elementos voltados tanto para o passado quanto para o futuro de determinada prática jurídica. Para tanto, insere o conceito de integridade no direito, que, em seu aspecto adjudicatório, é um princípio que vincula o jurista a decidir com fulcro no direito existente, exigindo deste que “ponha à prova sua interpretação de qualquer parte da vasta rede de estruturas e decisões políticas de sua comunidade, perguntandose se ela poderia fazer parte de uma teoria coerente que justificasse essa rede como um todo” (DWORKIN, 2003, p. 294). Assim, a integridade requer que regras diferentes de um mesmo ordenamento jurídico reflitam e justifiquem coerentemente os mesmos princípios morais e políticos (BALKIN, 1987, p. 402).
Significa dizer que o trabalho interpretativo de Hércules, para que se adeque aos mandamentos do direito enquanto integridade, deve levar em consideração dois aspectos: a história institucional relativa àquela prática jurídica em questão o modo como os juízes anteriores decidiram a respeito do mesmo problema e o apelo moral que a tese adotada pela atual decisão deve conter, a saber, a justificação da comunidade de princípios vigente no momento do exercício interpretativo.
Logo após identificar o papel da interpretação jurídica, Dworkin traz à tona uma afirmação importante quanto ao direito como integridade. Por se tratar de um modelo de racionalidade jurídica voltado para os fundamentos do direito, afirma Dworkin ser o direito como integridade “mais inflexivelmente interpretativo que o convencionalismo ou o pragmatismo”, versões adaptadas do positivismo e do realismo jurídico norteamericano, respectivamente, à teoria interpretativista.
Estas últimas, segundo Dworkin, não passariam de interpretações em si, isto é, concepções de direito que propõem modelos específicos para a interpretação do direito e a deliberação judicial. Embora destituídos do problema do aguilhão semântico, que caracterizavam suas teorias semânticas equivalentes, o convencionalismo e o pragmatismo
apresentariam uma abrangência interpretativa muito maior, vez que não associam a necessidade de coerência com as decisões do passado à imperatividade de justificação da comunidade jurídica atual, vinculandose apenas a um destes elementos.
A integridade, por sua vez, exige que a comunidade tome suas decisões com base nos princípios que informam a nossa posição compartilhada do que significa a justiça, a equidade e o devido processo legal naquele momento históricopolítico específico. Esta concepção rejeita a ideia de que todas as interpretações dentro da moldura ou dentro da zona de foco e de penumbra são juridicamente autorizadas, vez que autorizado está o magistrado competente a decidir a respeito.
Destarte, como consequência do compromisso assumido com o princípio da integridade, só pode haver apenas uma interpretação adequada da prática jurídica, havendo, portanto, apenas uma resposta certa para as questões jurídicas. Esta única resposta será, para Dworkin, o resultado construtivo do processo de interpretação realizada pelo juiz, após assumir a obrigação de coerência com as decisões anteriores e a sua justificação pela análise dos propósitos defendidos pela comunidade de princípios do atual momento histórico. Hércules, portanto, tem o poder de trazer à tona uma única resposta correta para cada hard case que julgar (ROSENFELD, 2005). Ao mesmo tempo, porém, Dworkin reconhece, como afirma Lucy (2004) que “accounts of law offered in the course of both adjudication and theorizing depend upon the values of the adjudicator or theorist and that values differ significantly between members of the same community”. Isso, para Dworkin, não consistiria em uma contradição dentro da denominada Tese da Única Resposta Correta, uma vez que tanto a decisão do juiz quanto as críticas a ela dirigidas devem se basear em princípios de moralidade política, presumindo estas que há uma resposta correta ao caso controvertido e que o juiz não foi capaz de atingila (BALKIN, 1987, p. 408)..
No entanto, a teoria interpretativa do direito de Dworkin, bem como, por consequência, seu juiz ideal, são frequentemente confrontados com dois principais desafios, levantados por seus críticos. O primeiro, relativo ao critério de adequação do direito como integridade, questionase se, em alguma medida, é possível que os juízes passem a emular Hércules em sua prática judiciária, haja vista que as decisões tomadas pelos magistrados do passado são completamente das jurisprudências revisitadas pelo juiz sobrehumano. Destarte, o primeiro desafio expõe Hércules à realidade das decisões judiciais, em que juízes reais, desconhecendo as decisões de seus consortes e desprovidos de tempo, habilidade ou paciência
para exaurir as exigências teóricas de uma decisão judicial íntegra nos termos de Dworkin, escrevem uma história institucional heterogênea e caótica, chegando a discordar do mesmo conjunto de princípios regentes do ordenamento jurídico num mesmo período histórico.
O segundo desafio questiona Hércules a respeito da suposta nãocontradição entre a Tese da Única Resposta Correta e o método em que juízes decidem, fundamentados em suas convicções morais e políticas, a respeito daquilo que revela o direito em sua melhor luz. Tal questionamento é melhor contextualizado quando se considera que o esforço de Dworkin em reconstruir a prática judicial de sistemas jurídicos complexos vinculase a uma filosofia política específica o liberalismo político , que se posiciona como rival em relação a certas teorias do direito e procura aplicar seus princípios à prática judiciária interpretativa, seja da common law
, da lei ou da Constituição (ROSENFELD, 2005).
Esta tarefa, ainda segundo Rosenfeld (2005), tem como principal resultado “the reconceptualization of law as a principle based unified system of regulation consistent with Dworkin's moral and political vision — what we may, in short, refer to as ‘the one law principle’”. Desta forma, o segundo obstáculo que se propõe à aplicação do método de Hércules consiste em verificar que, devido à pluralidade de concepções éticas e políticas a respeito da boa vida e dos princípios que regem a política e a moral de uma comunidade, não há que se falar de única resposta correta para Hércules e para os juízes que o emulam.
O presente trabalho, portanto, tem como objetivo verificar se Hércules realmente atende aos objetivos interpretativos propostos por Dworkin, na medida em que confrontado com dois grandes desafios, em suma, a heterogeneidade da história institucional e a vinculação da decisão judicial aos valores políticos e morais do juiz. Da mesma forma, procurase averiguar em que medida estes desafios foram respondidos por Dworkin e seus seguidores, além de observar os problemas persistentes no contexto do debate contemporâneo da teoria do direito, a partir da leitura analítica dos argumentos de seus críticos.
METODOLOGIA
O método de pesquisa utilizado é bibliográfico, consistindo na leitura da obra “O Império do Direito” de Ronald Dworkin, com particular atenção a seu capítulo 6, bem como de livros e artigos de comentadores e críticos das mesmas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALKIN, Jack M., Taking Ideology Seriously: Ronald Dworkin and the CLS Critique (1987). Faculty Scholarship Series.
Paper 293. Disponível em:
http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/293. Acesso em: 20 set. 2016.
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
__________, Ronald. O Império do Direito. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Trad. Luis Carlos Borges. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
LUCY, William. Adjudication. In: The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law. Edited by Jules L. Coleman, Kenneth Einar Himma, and Scott J. Shapiro. Oxford: Oxford University Press, 2004.
MARMOR, Andrei (edit.). Direito e Interpretação: ensaios de filosofia do direito. Trad. Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
ROSENFELD, Michel, « Dworkin and the One Law Principle: A Pluralist Critique », Revue
internationale de philosophie 3/2005 (n° 233), p. 363392. Disponível em:
www.cairn.info/revueinternationaledephilosophie20053page363.htm. Acesso em: 19
set. 2016.
SOLUM, Lawrence B., "The Unity of Interpretation" (2010). Georgetown Law Faculty Publications and Other Works. Paper 855. Disponível em: http://scholarship.law.georgetown.edu/facpub/855. Acesso em: 23 set. 2016.