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As Origens da Incompossibilidade em Leibniz

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As Origens da Incompossibilidade em Leibniz

∗ EDGAR MARQUES

Departamento de Filosofia

Universidade Estadual do Rio de Janeiro RIO DE JANEIRO, RJ

edgarm@terra.com.br

A Karla Chediak Resumo: A determinação da origem da incompossibilidade entre substâncias possíveis consiste em um dos maiores problemas da metafísica leibniziana. Desenvolvo neste artigo uma proposta de so-lução sintética para ele.

Palavras-chave: Leibniz. Incompossibilidade. Metafísica. Relações.

Uma das teses fundamentais da filosofia leibniziana da maturidade consiste na afirmação de que tanto o mundo tomado como totalidade quanto os eventos e substâncias intramundanos são de natureza contingente. Leibniz sublinha com essa tese sua total rejeição a sistemas filosóficos como o de Espinosa, de acordo com os quais tudo o que ocorre ocorre necessariamente. Essa concepção leibni-ziana significa, do ponto de vista lógico, que as proposições que tratam do mun-do ou de seus elementos constituintes podem ser negadas sem que sejam

Este artigo consiste em uma versão ligeiramente modificada do texto apresentado, em junho de 2005, na UFPR, nos quadros da 1ª Jornada de Estudos de Filosofia Moderna e

Contemporânea. Ele retoma, de uma maneira mais direta e – espero – mais clara e madura

algumas idéias apresentadas no artigo “Possibilidade, compossibilidade e incomposibili-dade em Leibniz”. Kriterion, 109, 2004, p. 175-187. Agradeço aos colegas presentes na jornada no Paraná por suas questões e sugestões, em especial a Viviane Castilho Moreira e Lia Levy. Agradeço também a Déborah Danowski e Marcos Gleizer, que discutiram comigo em várias ocasiões muitas das idéias apresentadas neste texto. Este trabalho resul-tou de pesquisa apoiada pelo CNPq com uma Bolsa de Produtividade em Pesquisa.

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ditórias as proposições produzidas a partir dessa operação de negação. Do ponto de vista metafísico, o significado é o de que nem o mundo nem as entidades nele presentes existem necessariamente, uma vez que nas substâncias criadas, ao contrá-rio do que ocorre em Deus, não há coincidência entre essência e existência1.

A atribuição de contingência a tudo o que existe implica que tudo pudes-se pudes-ser de outra maneira. Isto é, somente pode-pudes-se dizer que uma substância, um evento ou uma ação são contingentes na medida em que faz sentido considerar que o mundo poderia apresentar uma feição constituída por outras substâncias, outros eventos ou outras ações. A caracterização do mundo e de seus elementos constitutivos como contingentes exige, assim, a aceitação da idéia de que há pos-síveis que não se atualizam nunca, quer dizer, de que não se realizam no mundo todas as substâncias que poderiam existir, havendo algumas que, apesar de possí-veis, nunca chegam a existir efetivamente. Se não fosse assim, de acordo com Leibniz, tudo aquilo que existe existiria necessariamente, sendo impossível tudo aquilo que não tivesse existência2. Qualquer sistema metafísico que não atribua algum estatuto ontológico aos meramente possíveis – quer dizer, aos possíveis que não existem, jamais existiram e nunca existirão – está, aos olhos de Leibniz, inevitavelmente condenado a alguma forma de necessitarismo.

Estamos aqui, evidentemente, diante de uma tese metafísica de significa-do enigmático. Não é óbvio em que sentisignifica-do podemos atribuir algum estatuto ontológico aos possíveis sem que isso implique considerá-los, de alguma maneira, existentes, o que nos levaria precisamente à concepção necessitarista que se quer evitar através da introdução dessa tese. Segundo Leibniz, para que os eventos e substâncias intramundanos sejam contingentes é preciso que os meramente pos-síveis sejam, mas não do modo em que os existentes são. Para que fique claro: os

1 “En Dieu l’existence ne diffère pas de l’essence, ou, ce qui revient au même, il est essentiel à Dieu d’exister. Dieu est donc un être nécessaire. Les créatures sont contingentes, c’est-à-dire que l’existence ne suit pas de leur essence.” Sur la contingence, in Leibniz, G.W., Recherches générales sur l’analyse des notions et des vérités. Paris: PUF, 1998, p. 326. 2 “Si en effet certains possibles n’existent jamais, alors les existences ne sont pas tou-jours nécessaires, sans quoi il serait impossible que d’autres existent a leur place et donc nulle existence serais jamais impossible”, Sur la liberté, in Leibniz, G.W., op. cit., p. 330.

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meramente possíveis devem ser sem ser, contudo, um item do mundo criado, pois senão eles não seriam meramente possíveis, mas sim reais. Isso significa que os meramente possíveis não podem ser nem substâncias intramundanas existen-tes nem modificações dessas substâncias. Seu ser, na medida em que é condição do caráter contingente da existência daquilo que existe no mundo, deve indepen-der de qualquer modo contingente de ser, isto é, de qualquer mundo que seja o atual. Disso se segue, por um lado, que, para Leibniz, todo meramente possível – ou, em termos mais gerais, todo o possível – é necessariamente – e não contin-gentemente – possível e, por outro, que os meramente possíveis devem pertencer a uma esfera ontológica que independa da criação para ser.

São, creio, reflexões similares a essa que levam Leibniz a afirmar que o intelecto divino é o reino dos possíveis, pois se os meramente possíveis devem ser e se não podem ser contingentemente, então é apenas em Deus que seu ser pode encontrar abrigo. Os possíveis são representações, no intelecto divino, de substâncias individuais e de suas modificações, bastando para sua constituição que eles sejam internamente consistentes, isto é, que não haja nenhuma contradi-ção entre suas determinações. Seu estatuto ontológico consiste, portanto, em serem representações de substâncias que poderiam vir a existir autonomamente se Deus optasse por criá-las.

Uma outra tese metafísica igualmente afirmada por Leibniz gera, entre-tanto, algumas dificuldades para essa sua postulação dos meramente possíveis. Leibniz considera que todos os possíveis tendem a existir, isto é, que tudo aquilo que é possível aspira a existência3, de tal maneira que não se podem encontrar nos possíveis tomados neles mesmos a razão de sua não-existência. Deve haver

3 Interpreto essa “tendência a existir”, pelo menos no que respeita aos seres contin-gentes, de acordo com a intuição principal da “interpretação figurativa” proposta por David Blumenfeld, que afirma: “When Leibniz variously attributes to the possibles an ‘urge’, ‘inclination’, ‘need’, ‘claim’, or ‘right’ to exist, in proportion to their perfection, these are merely figurative ways of expressing the degree of attractiveness that they have to a God who is disposed to create a world”, Blumenfeld, D., “Leibniz’s theory of the striving possibles”. In: R.S. Woolhouse (ed.). Gottfried Wilhelm Leibniz. Critical assesments. London/New York: Routledge, 1994, vol. II, p. 6.

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algum motivo que envolva algo externo aos meramente possíveis para justificar a opção divina por não criar alguns desses possíveis. Essa razão reside, segundo Leibniz, no fato de não serem todos os possíveis mutuamente compatíveis. Isso significa que nem todos os possíveis poderiam ser conjuntamente criados, consis-tindo a existência de alguns deles em um entrave para a existência de determina-dos outros. Em função desse mútuo impedimento à existência não seria possível para Deus fazer com que todos os possíveis existissem.

A restrição que faz com que não haja uma passagem em todos os possí-veis da mera possibilidade à existência não tem sua origem, assim, nos possípossí-veis tomados em si mesmos, mas sim neles tomados em suas relações de mútuo im-pedimento. É esse impedimento mútuo que ocasiona que Deus não possa fazer com que todos os possíveis passem a existir, tendo ele de se conformar com a criação do conjunto por meio do qual o maior número possível de possíveis ve-nha a existir, isto é, à criação do melhor dos mundos possíveis4.

Se a incompatibilidade entre os possíveis é a razão para que algumas des-sas essências nunca venham a passar para a existência, é então, obviamente, em função dessa incompatibilidade que podem haver possíveis não-existentes, isto é, que pode haver na mente de Deus representações de essências de substâncias singulares que nunca virão a ser atualizadas. Mas se, como vimos mais acima, a atribuição de uma natureza contingente às substâncias, eventos e ações intramun-danas depende da idéia de que outras substâncias individuais poderiam ter sido criadas em seu lugar, então a contingência do mundo criado depende da idéia de que há, dentre os possíveis, casos de incompatibilidade mútua, isto é, casos em que a passagem de um determinado possível à existência impede que determinados

4 Leibniz expressa-se de maneira meridianamente clara acerca desses pontos em seu texto 24 teses metafísicas: “(7) Mais il ne s’ensuit pas que tous les possibles existent: cela ne s’ensuivrait véritablement que si tous les possibles étaient compossibles. (8) Mais, parce qu’ils sont incompatibles avec d’autres possibles, certains possibles ne parviennent pas à l’existence ; et ils ne sont pas incompatibles les uns avec les autres seulement dans leur moment commun, mais aussi de façon universelle, parce que les états futurs sont enve-loppés dans les états presents”. In: Leibniz, G. W., Recherches générales sur l'analyse des notions

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outros possíveis possam também existir. Essa idéia de impedimento entre possíveis deve ser reconhecida, assim, como desempenhando um papel fundamental no sistema leibniziano, pois sem ela Leibniz não teria como fundamentar a tese, que a seus olhos o afasta dos perigos do espinosismo, da contingência do mundo criado.

Mas estamos aqui diante de outra tese metafísica cujo sentido e razoabi-lidade estão longe de serem evidentes. O impedimento mútuo entre possíveis afirmado não pode dizer respeito às representações no intelecto divino enquanto representações. Não faz sentido considerar que a presença em Deus de uma re-presentação de uma substância possível possa impedir a presença no intelecto divino de uma representação relativa a uma outra substância possível. O impedi-mento em questão refere-se, dessa maneira, não à existência atual dos possíveis enquanto representações no intelecto de Deus, mas sim à existência possível, em um mundo criado por ele, das substâncias e modos afigurados nas representa-ções. A incompatibilidade dá-se não entre as representações elas mesmas, mas entre os conteúdos intensionais das representações quando pensados como exis-tentes. Quando se diz, então, que um possível impede a rota de um outro rumo à existência, o que se quer dizer é que Deus não poderia criar um mundo no qual ambos coexistissem.

Substâncias que são incompatíveis entre si, isto é, que não podem ser criadas conjuntamente, fazendo parte de um mesmo mundo, são batizadas por Leibniz de incompossíveis. Duas substâncias são, então, incompossíveis, nos termos leibnizianos, na medida em que elas se impedem mutuamente de existir, sendo compossíveis quando o contrário se dá.

A afirmação de que duas substâncias quaisquer são compossíveis não pode ser identificada, portanto, à afirmação de que essas substâncias são possíveis em si mesmas, pois isso teria como conseqüência a tese de que todas as substâncias pos-síveis são compospos-síveis, o que contrariaria, como já vimos, a concepção leibniziana da natureza contingente dos eventos e substâncias intramundanos, já que todo o possível viria a existir. A compossibilidade entre substâncias deve, então, acrescen-tar algo à mera possibilidade das substâncias tomadas individualmente. Do mesmo modo, a incompossibilidade entre duas ou mais substâncias não implica de maneira

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nenhuma que elas sejam impossíveis quando tomadas em si mesmas, o que indica que aquilo que leva à impossibilidade de sua existência conjunta diz respeito a elas unicamente quando tomadas em conjunto, e não em separado.

Somente pode surgir a incompatibilidade entre substâncias possíveis quando tomadas em conjunto caso as determinações internas próprias de uma delas entrem, de alguma maneira, em contradição com as determinações presen-tes em uma outra. Isso só ocorre se as determinações internas a essas substâncias envolverem uma referência a outras substâncias, e não apenas a si mesmas. Quer dizer, a conjunção de duas substâncias em si mesmas possíveis somente pode ser impossível caso a essas substâncias sejam atribuídas relações que se contradigam mutuamente. Assim, se, por exemplo, tivermos as substâncias possíveis A, B e C e uma determinada relação R tal que uma substância somente possa entreter essa relação R com uma única outra substância, iremos considerar A e B incompossí-veis se de A for verdadeiro que ela se encontra na relação R com C e se de B for verdadeiro que B se encontra na relação R com C5. Como C, de acordo com as condições enunciadas, somente pode entreter a relação R com uma única subs-tância, então seria contraditório um mundo em que A e B existissem conjunta-mente. Como A e B são em si mesmos possíveis, somos levados a considerar que

A e B pertencem a mundos possíveis distintos, o que significa dizer, em outras

palavras, que eles são incompossíveis.

A concepção leibniziana segundo a qual a possibilidade de A e de B to-mados em si mesmos não implica a possibilidade da conjunção de A e B – isto é, a concepção segundo a qual os conceitos de possível e de compossivel não signi-ficam a mesma coisa – parece, assim, fazer sentido somente se considerarmos que a A e a B podem ser atribuídos predicados relacionais contraditórios entre si. É essa referência, característica da idéia de relação, a algo externo à própria substân-cia que torna razoável a tese de que a conjunção de dois possíveis pode ser ela mesma impossível.

5 Devemos lembrar aqui que Leibniz defende a tese de que todos os predicados atri-buíveis de maneira verdadeira a um sujeito estão contidos na noção completa desse su-jeito.

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A questão torna-se um pouco mais espinhosa, contudo, quando levamos em conta, por um lado, a teoria leibniziana das relações e, por outro, a natureza das substâncias individuais. Leibniz sustenta, em várias passagens de sua obra, que as propriedades relacionais fundam-se em propriedades monádicas, consis-tindo as relações em uma maneira de se pensar conjuntamente modificações presentes em indivíduos distintos. Relações viriam a ser, desse modo, itens men-tais ou semi-menmen-tais, e não algo de propriamente real. Segundo Leibniz, em carta a Des Bosses de 29 de maio de 1716, “as relações que ligam duas mônadas não são nem em uma nem em outra dessas mônadas, mas nas duas simultaneamente, quer dizer, não são verdadeiramente, em nenhuma das duas, mas no espírito somente.”6 Ao mesmo correspondente ele já havia escrito em 21 de abril de 1714 as seguintes linhas: “É assim que eu julgo as relações: a paternidade em Davi e a filiação em Salomão são duas coisas diferentes, mas a relação comum entre as duas é coisa simplesmente mental, que tem seu fundamento nas modificações dos singulares.”7

Se as relações forem simplesmente mentais – ou semi-mentais –, poden-do topoden-do predicapoden-do relacional ser reduzipoden-do a um predicapoden-do monádico, então fica, para dizer o mínimo, extremamente difícil compreender como a existência de uma certa substância pode consistir em um impedimento para a existência de uma outra substância, pois as relações supostamente contraditórias terão sim-plesmente o estatuto de modificações internas distintas em mônadas distintas, o que não parece ser em si nada problemático. Retomando o exemplo acima, seria internamente inconsistente um mundo no qual as relações reais ARC e BRC subsistissem, pois, enquanto itens reais de um mundo, tais relações são incom-possíveis, isto é, não podem ser atualizadas conjuntamente. Mas será que pode-mos dizer o mesmo de um mundo em que a substância A expressa, através de uma modificação interna, a relação ideal ARC e a substância B, igualmente atra-vés de uma modificação interna, expressa a relação ideal BRC sem que nenhuma dessas relações possa ser tomada como algo de real para além de seu estatuto de modificação interna a uma substância?

6 Frémont, C. L’être et la relation. Lettres de Leibniz à Des Bosses. Paris: Vrin, 1999, p. 255. 7 Op. cit., p. 235.

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Creio que, sendo as relações meramente mentais ou semi-mentais, po-demos, ao menos à primeira vista, considerar que duas substâncias podem conter estados internos que expressem relações que, caso fossem itens do mundo real não redutíveis a meras modificações internas de substâncias, não poderiam sub-sistir conjuntamente, sem que, contudo, isso implique a impossibilidade de exis-tência conjunta dessas substâncias mesmas. Meu ponto aqui é o de que ao consi-derar que os predicados relacionais são redutíveis a predicados monádicos, sendo, portanto, as relações entes mentais ou semimentais, Leibniz retira de si os ins-trumentos teóricos que permitiriam, no interior de seu sistema, a geração de con-tradição entre relações. Tomadas como reais as relações ARB e ARC contradi-zem uma a outra, não podendo ambas serem o caso em um mesmo mundo. En-tretanto, quando tomadas como redutíveis a modificações expressivas internas às mônadas, podendo ser, portanto, descritas através do emprego de predicados monádicos, as relações não parecem ser mais passíveis de mútua contradição, pois, para permanecer no exemplo já empregado, as relações ARB e ARC consis-tiriam, em última instância, em representações que mônadas distintas fariam de si mesmas e de outras mônadas, não havendo aqui nada que nos force a aceitar que não poderiam existir conjuntamente uma mônada A, que representa a si mesma na relação R com C, e uma mônada B, que representa a si mesma na mesma rela-ção R com C, uma vez que as relações não seriam por si mesmas itens do mundo real, não indicando daí a verdade de uma proposição relacional a subsistência de um estado de coisas no mundo8.

8 Infelizmente, por uma questão de espaço e de estruturação do texto, não poderei tra-tar aqui da questão relativa ao significado da atribuição de valor de verdade às proposições relacionais em Leibniz. Espero poder fazê-lo em um artigo posterior. No que diz respeito a esse tópico, eu gostaria apenas de avançar uma tese e uma sugestão. A tese é a de que dizer que uma proposição relacional é verdadeira não implica dizer que subsiste no mun-do um ítem – um estamun-do de coisas – irredutível a modificações presentes em mônadas, sendo, assim, o discurso verdadeiro acerca de relações redutível a um discurso verdadeiro acerca de modificações internas às mônadas. A sugestão é a de que o ponto de vista leib-niziano acerca dessa questão guarda semelhanças mutatis mutandi com a distinção feita por Leibniz entre fenômenos reais e ilusórios (tal como esta é desenvolvida, por exemplo, no

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Além disso, podemos ainda recordar que uma das características funda-mentais das substâncias individuais leibnizianas consiste em seu completo isola-mento causal. Todas as substâncias são, de acordo com a metafísica de Leibniz, plenamente espontâneas, de tal modo que todas as suas modificações decorrem de sua natureza intrínseca, e não de relações extrínsecas reais entretidas com ou-tras substâncias. A imagem mais forte dessa severa reclusão causal das substâncias é fornecida pelo célebre dito leibniziano de que as mônadas são desprovidas de janelas, transcorrendo tudo para cada uma delas, em um certo sentido, como se somente existissem ela e Deus. Se as substâncias são como casulos, entretendo unicamente com Deus uma relação real, e se a realidade em seu nível mais fun-damental consiste unicamente de substâncias e suas modificações, então não parece haver, a princípio, nada que impeça a criação de todas as substâncias pos-síveis, pois, em termos rigorosos, nenhuma substância influencia nenhuma outra em nenhum sentido, tornando-se difícil compreender como uma pode consistir em um obstáculo para a existência de outra. A incompossibilidade torna-se, então um problema.

Em seu célebre artigo “Leibniz on compossibility and relational predica-tes”9, D’Agostino caracteriza as soluções possíveis para o problema da incom-possibilidade como sendo, em linhas gerais, ou analíticas ou sintéticas: “uma solução analítica mostraria como seria logicamente impossível para duas substâncias serem parte de um mesmo mundo possível. Uma solução sintética, por outro lado, mos-traria como, apesar da compatibilidade lógica de dois conceitos, as substâncias que eles representam não poderiam, não obstante, pertencer ao mesmo mundo possível sem violar alguma lei sintética que governa o arranjo de substâncias na-quele mundo”10. Uma solução seria, assim, analítica caso ela estivesse

texto “On the method of distinguishing real from imaginary phenomena”. In: Leibniz, G. W. Philosophical Papers and Letters. Translated and edited by L. Loemker. Dordrecht: Klu-wer, 1989, p. 363-367), repousando, em última instância, sobre o acordo ou desacordo entre aquilo que é expresso pelas diversas mônadas por meio de suas modificações internas.

9 D’Agostino, F.B. “Leibniz on compossibility and relational predicates”. Philosophical

Quarterly, 26, 1976, p. 125-138.

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tida com a tese da identificação da incompossibilidade a um tipo qualquer de contradição lógica. Nesse caso, duas substâncias possíveis quaisquer A e B seriam incompossíveis se sua existência conjunta consistisse em uma impossibilidade lógica por implicar uma contradição. Já o adepto de uma solução sintética conside-raria que as raízes da incompossibilidade não se encontram na lógica estrito sen-so, mas sim que, por exemplo, duas substâncias possíveis quaisquer A e B seriam incompossíveis caso não pudessem ambas pertencer a um certo mundo comum sem que uma delas violasse alguma das leis fundamentais desse mundo. Dito de outra maneira, a incompossibilidade entre as substâncias A e B teria sua origem no fato de elas estarem submetidas a conjuntos distintos de leis fundamentais, determinando isso seu pertencimento a diferentes mundos possíveis.

Soluções de tipo analítico são, creio, incompatíveis com as teses leibni-zianas de que (1) as relações são entidades mentais ou semi-mentais – e não reais – e de que (2) todos os predicados relacionais são, em última instância, redutíveis a predicados monádicos. Tal como Hintikka já o tornou suficientemente claro11, o único modo pelo qual pode-se sustentar a tese de que duas substâncias leibnizi-anas são logicamente incompatíveis é através do recurso a propriedades irreduti-velmente relacionais que sejam contraditórias entre si, sendo, em função disso, formalmente inconsistente um mundo em que essas propriedades fossem atuali-zadas conjuntamente. Hintikka lança mão desse argumento em favor da interpre-tação de que Leibniz não pode ter sustentado verdadeiramente as teses (1) e (2), pois elas, associadas às demais teses metafísicas constitutivas de seu pensamento, o conduziriam ao necessitarismo, já que todas as substâncias possíveis se revela-riam compossíveis.

Por uma questão de foco de discussão, eu não vou me alongar na polê-mica acerca do estatuto das relações em Leibniz, mas considero que Leibniz efe-tivamente assume as teses (1) e (2), cabendo ao comentador buscar uma interpre-tação do sistema que compatibilize essas teses com a afirmação de que algumas das

11 Hintikka, J. “Leibniz on plenitude, relations and the ‘reign of law’”. In: R.S. Wool-house (ed.). Gottfried Wilhelm Leibniz: critical assessments, vol. II. London/New York: Rou-tledge, 1994, p. 187-212.

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substâncias possíveis são incompossíveis, ainda que a incompossibilidade não possa ser compreendida como tendo sua origem em uma contradição lógica. Em resumo, não vejo, no interior do sistema metafísico leibniziano, espaço para uma interpreta-ção da incompossibilidade em termos da mera contradiinterpreta-ção lógica entre conceitos completos de substâncias distintas. Passo, então, para as soluções de viés sintético.

A intuição fundamental das soluções sintéticas para o problema da in-compossibilidade consiste precisamente na idéia de que se deve recorrer a algo além do princípio de contradição para dar conta da origem da incompatibilidade existencial mútua entre substâncias possíveis. Em função das razões acima apre-sentadas, considero que essa intuição constitui um ponto de partida apropriado para a solução da questão.

Entretanto, julgo problemático que se considere, como Bertrand Russell o faz12, que a incompossibilidade entre duas substâncias resulte da incompatibili-dade de uma delas com a lei geral organizadora dos fenômenos em um mundo possível determinado, pois Leibniz considera que para quaisquer conjuntos de fenômenos sempre seria possível encontrar uma lei geral à qual eles estariam submetidos, da mesma maneira como poderíamos sempre encontrar uma função que teria como valores pontos aparentemente dispostos de maneira aleatória em um plano cartesiano13. Desse modo, substâncias incompossíveis poderiam ser

12 “Sem a necessidade de algumas leis gerais, dois possíveis quaisquer seriam co-possíveis desde que não se contradissessem. Os co-possíveis só deixam de ser co-co-possíveis quando não existe lei geral a que ambos se conformem.” (Russell, B. A Filosofia de Leibniz. São Paulo: Companhia Editoral Nacional/EDUSP, 1968, p. 69)

13 Vejamos a esse respeito o que Leibniz escreve no parágrafo VI de seu Discurso de

Metafísica: “Nada acontece no mundo que seja absolutamente irregular, mas nem sequer

tal se poderia forjar. Suponhamos, por exemplo, que alguém lance ao acaso muitos pon-tos sobre o papel, como os que exercem a ridícula arte da geomancia. Digo que é possível encontrar uma linha geométrica cuja noção seja constante e uniforme segundo uma certa regra, de maneira a passar esta linha por todos estes pontos e na mesma ordem em que a mão os marcara. (...) Assim, pode-se dizer que, de qualquer maneira que Deus criasse o mundo, este teria sido sempre regular e dentro de certa ordem geral.” Leibniz, G.W.

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tomadas como compossíveis caso as pensássemos em relação a uma outra lei geral, que as abrangesse. Substâncias incompossíveis em relação a uma determi-nada lei geral seriam compossíveis quando referidas a uma outra lei geral. A in-compossibilidade transformar-se-ia, assim, em algo relativo, e não absoluto.

Além disso, essa concepção exige que se considere que Deus pensa pri-meiramente na estrutura legal dos mundos possíveis – nas suas leis fundamentais – para então, por assim dizer, em um segundo momento, pensar nas substâncias compatíveis com essas leis, como se a incompatibilidade mútua entre substâncias possíveis tivesse sua origem no seu pertencimento ou não a um determinado mundo possível, quando o movimento conceitual na metafísica leibniziana é precisamente o oposto: é em função de algumas substâncias possíveis serem incompossíveis que Deus não pode criar todas conjuntamente, sendo “forçado” a agrupá-las em conjuntos maximais de substâncias compossíveis, para então deci-dir-se pela criação do mais perfeito e mais abrangente dos conjuntos. Isso signifi-ca que não há uma estrutura de mundos possíveis que esteja na fonte da incom-patibilidade mútua entre substâncias, mas sim é a partir dessas redes de incompa-tibilidades que passa a fazer sentido falar de mundos possíveis distintos. É a in-compossibilidade entre substâncias possíveis que se encontra na origem da diver-sidade de mundos possíveis, e não o contrário14.

Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 12-13. (Devo a recordação dessa passagem em Leibniz a Déborah Danowski).

14 Viviane Moreira, quando da apresentação oral de uma primeira versão deste texto no colóquio na UFPR, objetou-me – e essa objeção ecoa observações críticas feitas por Déborah Danowski acerca de minha interpretação em “A propósito de ‘Possibilidade, compossibilidade e incompossibilidade em Leibniz’, de Edgar Marques”, Kriterion, 109, 2004, p. 188-190 – que minha estratégia de reconstrução da metafísica leibniziana é inade-quada, pois as substâncias individuais expressam a totalidade dos fenômenos e das subs-tâncias pertencentes ao mundo, de tal maneira que não faz sentido considerar nem as substâncias independentemente do mundo ao qual elas pertencem nem o mundo inde-pendentemente delas. Sendo assim, a própria colocação da questão acerca da origem da incompossibilidade mereceria ser repensada, pois, ao menos em minha reconstrução, ela parece ter como ponto de partida substâncias cuja individuação, ao menos à primeira

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Os defensores da solução sintética acertam, creio, quando afirmam que se deve buscar apoio em algo outro que o princípio de contradição para resolver o problema da incompossibilidade, pois essa não consiste em um tipo de contra-dição lógica. Quer dizer, não é por serem logicamente contraditórias que duas

vista, é dada independentemente de seu pertencimento a um mundo específico, o que contrariaria a concepção leibniziana.

Apesar da inegável plausibilidade aparente dessa objeção, considero, contudo, que ela repousa sobre um profundo mal-entendido. É claro que o sistema metafísico leibniziano uma vez constituído tem como uma de suas teses principais a afirmação de que as môna-das expressam a totalidade dos fenômenos e mônamôna-das integrantes do mundo ao qual elas pertencem. A questão é saber se tal tese deve ser tomada como um axioma do sistema – isto é, sem que se possam apresentar razões que a sustentem – ou se há alguma motiva-ção conceitual ou estrutural que leva Leibniz a adotá-la. Quer dizer, o que está em jogo não é se Leibniz adota ou não a tese da inter-expressibilidade mútua das substâncias – isso parece ser meridianamente evidente –, mas sim qual vem a ser seu estatuto: se ela consiste em uma tese arbitraria e dogmaticamente assumida por seu autor ou se sua formulação cumpre alguma função na arquitetônica da metafísica de Leibniz.

Minha hipótese interpretativa é a de que a adoção dessa tese pode ser compreendida no bojo da solução leibniziana para o problema da incompossibilidade. Uma outra manei-ra de colocar a mesma questão seria perguntar como substâncias leibnizianas – lembre-mos: que não possuem nenhum tipo efetivo de vínculo que ligue umas às outras – podem constituir um mundo. Parece-me claro que a resposta a esse questionamento não pode ser a de que substâncias estão sempre ligadas a mundos, pois isso nada esclarece acerca de como tal relação é possível. O preço a pagar pela negação de razoabilidade à minha ques-tão seria, a meu ver, ter de aceitar que a afirmação de que substâncias expressam o mun-do, não podendo ser definidas independentemente dele, é uma tese da qual Leibniz parte dogmaticamente, não tendo como fornecer argumentos em favor de sua aceitação. Preço que me parece demasiado elevado.

Apenas para traçar uma comparação que talvez torne um pouco mais clara a minha posição: negar a colocação em Leibniz do problema da incompossibilidade com base na afirmação de que substâncias expressam o mundo ao qual pertencem parece-me seme-lhante a negar plausibilidade inicial para a questão kantiana acerca da objetividade das categorias fundado na alegação de que sendo condição de possibilidade da constituição, por um lado, de objetos enquanto objetos e, por outro, da permanência e identidade do sujeito cognoscente as categorias são necessárias. Tratar-se-ia, assim, do procedimento de negação de legitimidade a uma questão com base nas concepções formuladas precisamen-te como resposta a ela. E isso parece-me ser inadequado.

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substâncias são incompossíveis. Eles erram, contudo, quando buscam em algo intramundano – as leis de ordenação de um mundo específico – a origem da incompossibilidade, pois acabam por pressupor como condição da incompossibi-lidade aquilo que, pelo contrário, tem sua origem nela.

Para encontrarmos alguma solução viável para nosso problema é neces-sário que redefinamos seus termos. A questão diz respeito à origem da incompa-tibilidade mútua entre substâncias possíveis, que, por definição, são causalmente encerradas em si mesmas. Tais substâncias possuem estados internos de natureza representativa, isto é, que representam tanto a substância à qual eles inerem quan-to outras substâncias. Estados internos de substâncias distintas são causalmente independentes entre si, quer dizer, o estado interno de uma substância não influ-encia a presença de um certo estado interno em outra substância.

Traçado o panorama dessa maneira parece claro que a via de solução do problema – se é que há alguma – deve passar por uma consideração do conteúdo intensional desses estados internos. É em função daquilo que seus estados inter-nos representam que as diversas substâncias possíveis serão compossíveis ou incompossíveis. Na medida em que esses estados internos consistem em diferen-tes maneiras de as substâncias expressarem a si mesmas e a outras substâncias, eles podem ser ou não congruentes, isto é, podem ser ou não integráveis em uma representação mais ampla que articule os conteúdos oriundos de cada um deles. O que eu quero dizer é que é possível que haja uma acomodação dessas represen-tações entre si, de uma tal maneira que suas diferenças possam ser interpretadas como expressão da assunção de perspectivas distintas acerca de algo, e não como representações de coisas distintas. Isto é, a inexistência de uma interação causal entre as substâncias não torna em si mesma impossível uma congruência entre seus conteúdos, permanecendo aberta a possibilidade de que algumas substâncias possuam estados internos dotados de um conteúdo intensional que permita a sua assimilação em uma hipotética representação que congrace nela as informações semânticas próprias a cada um desses estados.

Desse modo, ainda que não possamos dizer que haja uma contradição ló-gica entre representações de substâncias distintas, uma vez que essas representações

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expressam simplesmente o modo como cada substância “vê” a si mesma e às ou-tras substâncias, o que gera uma espécie de opacidade referencial em seus conteú-dos intensionais, podemos caracterizar essas representações como sendo ou não congruentes, isto é, como sendo ou não integráveis em uma representação sinópti-ca que as abrangeria, reinterpretando-as como sendo pontos de vista distintos acer-ca de um mesmo todo, e não como representações distintas de totalidades distintas.

Segundo a interpretação que ora proponho, dizer que duas ou mais subs-tâncias fazem parte de um mesmo mundo não consiste em nada além de dizer que os conteúdos de suas representações podem ser acomodados uns aos outros, isto é, que eles se deixam integrar harmonicamente em uma representação mais ampla, de tal modo que esses conteúdos podem ser caracterizados como sendo a expressão de pontos de vista distintos acerca de uma mesma totalidade15.

A idéia básica é a de que a caracterização de duas ou mais substâncias como sendo mutuamente compossíveis ou incompossíveis residiria na possibili-dade – ou impossibilipossibili-dade – de sua acomodação harmoniosa em uma representa-ção sinóptica de um mesmo todo. Diríamos, assim, que duas substâncias simples quaisquer são compossíveis quando suas representações se deixam integrar har-monicamente em uma única e mesma representação panorâmica que preserve o conteúdo intensional dessas representações. Substâncias seriam incompossíveis quando essa integração fosse impossível, isto é, quando ela não gerasse uma re-presentação de um mundo harmônico.

A tese metafísica do impedimento mútuo de algumas substâncias em si mesmas possíveis significa, então, de acordo com essa interpretação, que as

15 Na primeira resposta a Bayle acerca do Sistema Novo, publicada em julho de 1698 no periódico Histoire des Ouvrages des Savants, Leibniz assume precisamente essa concepção ao afirmar que o pertencimento de substâncias distintas a um mesmo mundo se dá pela congruência de seus fenômenos: “Deus poderia ter dado a cada substância seus fenôme-nos independentes dos fenômefenôme-nos das outras, mas dessa maneira ele teria feito, por assim dizer, tantos mundos sem conexão quantas substâncias há. Mais ou menos como quando se diz que, quando se sonha, se está em um mundo à parte, e que se está no mundo co-mum quando se está desperto.” In: Leibniz, G.W. Sistema Novo da Natureza e da

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presentações presentes nessas diferentes substâncias não podem ser integradas umas com as outras de maneira a constituírem aspectos de uma única representa-ção abrangente do mundo, devendo ser compreendidas, ao contrário, como constituindo, no interior de cada substância, modelos contraditórios de mundo.

No caso de substâncias incompossíveis, o que ocorre é que as diferenças dos conteúdos intensionais constitutivos de suas representações não se deixam compreender como meras diferenças de perspectiva relativas a um mesmo e único mundo descrito, devendo ser compreendidas como descrições irredutíveis umas às outras de mundos irredutivelmente distintos uns dos outros. A harmoni-zação ou acomodação dos conteúdos representacionais presentes nas modifica-ções das diversas mônadas constituiria, assim, a fonte da concepção da unidade dos diferentes mundos possíveis, sendo sua desarmonia a origem da incompossi-bilidade.

Em resumo, o que estou propondo é que se considere que enquanto a possibilidade tem, em Leibniz, como único fundamento o princípio de não-contradição, a compossibilidade envolve ainda o recurso ao princípio da harmo-nia. Isto é, dizer que uma substância é possível significa considerar que não há nenhuma contradição entre suas determinações internas, sendo consistente o conjunto formado por elas. Já dizer que duas substâncias são compossíveis impli-ca que se considere que os conteúdos intensionais de suas representações são harmônicos a um tal ponto que eles podem ser integrados em uma representação

omni abrangente do mundo.

Uma objeção possível aqui16 seria a de que o princípio de harmonia não é, na minha interpretação, em nada distinto do próprio princípio de não-contradição. Quando digo que duas representações são harmônicas não pareço estar dizendo nada além da afirmação de que elas não são contraditórias entre si, colapsando, assim, em si mesma a distinção que procurei introduzir.

Concedo que não haja nenhuma diferença operacional entre os dois princípios, sendo correta a caracterização da harmonia como ausência de

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dição. Essa identificação não deve nos tornar, contudo, insensíveis para o ponto fundamental aqui. A aplicação do princípio de não-contradição às determinações constitutivas de um ente é garantida pela idéia mesma da impossibilidade de cons-tituição de um ente auto-contraditório. Quer dizer, é uma idéia da qual partimos sem necessidade de nenhum argumento que a sustente a idéia de que o conjunto das notas características de um ente esteja submetido ao princípio de não-contradição, sendo possível o ente que apresente um conjunto de notas caracte-rísticas coerente e internamente consistente. Isso, contudo, não é verdade em relação às representações de mundo presentes em mônadas distintas. Por que razão essas representações devem ser comparadas umas com as outras e agrupa-das em um modelo de um mundo possível quando não são contraditórias entre si? Dito de outro modo: o que faz com que modificações presentes em substân-cias distintas sejam tomadas como um conjunto ao qual o princípio de não-contradição se aplica legitimamente? Isto é, por que essas representações estão, enquanto conjunto, submetidas ao princípio de não-contradição se considerar-mos que elas inerem a substâncias distintas?

O que chamo de princípio de harmonia é precisamente o que garante a subsunção dessas representações, tomadas em conjunto, ao princípio de não-contradição. O princípio de harmonia é, então, em última instância, o responsável pela constituição do conjunto das representações presentes nas mônadas diversas como unidade à qual o princípio de não-contradição se aplica. Diferentemente do indivíduo, que consiste em uma unidade dada, estamos aqui diante de uma uni-dade constituída, e é a decisão divina – que se encontra obviamente fora do âmbi-to da lógica – de criação unicamente de um mundo harmônico – isâmbi-to é, de um mundo no qual as expressões presentes nas diversas substâncias individuais sejam compatíveis umas com as outras – que leva à organização das substâncias possí-veis em conjuntos maximais de substâncias cujas representações sejam congruen-tes entre si, vale dizer, harmônicas. Quer dizer, é unicamente em função da von-tade de Deus de que o mundo criado seja necessariamente um mundo harmônico que tal princípio pode se impor aos possíveis, uma vez que não há nenhuma restrição lógica quanto à existência de conjuntos desarmônicos de substâncias.

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Por esse apelo a um fator extra-lógico – a decisão divina de criação de um mundo harmônico – considero que essa interpretação consiste em uma solução sintética para o problema da incompossibilidade, diferindo, contudo, das soluções de tipo russelliano por apelar não para fatores estruturantes internos aos mundos – suas leis gerais –, mas sim a um princípio válido para todos os mundos possíveis: o princípio da harmonia.

Antes de concluir o artigo, eu gostaria de fazer ainda três observações. A primeira diz respeito às razões que sustentam, do ponto de vista divino, a decisão de criação unicamente de conjuntos harmônicos de substâncias. Creio que isso tem de ser assim para que a esfera fenomenal própria de cada mundo possua estatuto de realidade, pois em caso de desarmonia maciça entre as substâncias todos os fenômenos seriam ilusórios. Em segundo lugar, eu gostaria apenas de ressaltar que, de acordo com minha interpretação, todos os mundos são harmô-nicos, pois é precisamente a harmonia entre as representações monádicas que determinam o pertencimento das substâncias diversas a um mesmo mundo, es-tando, assim, a harmonia na base da unidade dos mundos. O terceiro ponto é que a assimilação das representações monádicas a perspectivas distintas de um mes-mo todo – as substâncias possíveis pertencem a mundos possíveis – implica a tese de que todas as mônadas devem estar necessariamente ligadas a corpos, pois é a inserção do corpo em um contínuo espácio-temporal que fornece à mônada a ele ligada um ponto de vista acerca desse todo17. Vejo a interrelação entre essas teses fornecida pela minha interpretação como um ponto favorável à sua adoção.

17 Ver a esse respeito meus artigos “Corpos e mônadas na metafísica madura de Leib-niz”. O Que Nos Faz Pensar, 18, 2004, p. 183-194 e “Sobre a necessidade da ligação das mônadas a corpos em Leibniz”. Síntese, v. 32, n. 103, 2005, p. 169-180.

Referências

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