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A Liberdade de Leibniz

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Academic year: 2021

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A LIBERDADE DE LEIBNIZ

TESSA MOURA LACERDA*

Departamento de Filosofia/FFLCH Universidade de São Paulo

Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 05508-900, SÃO PAULO, SP tessaml@uol.com.br

Resumo: Leibniz define a liberdade do homem através de três características fundamentais: a contingência, a espontaneidade e a inteligência. Trata-se de pensar cada uma dessas características e de mostrar por que a inteligência, ou a capacidade do pensamento de voltar-se sobre si mesmo na reflexão, constitui, nas palavras de Leibniz, a “alma” da liberdade.

Palavras-chave: liberdade; contingência; necessidade; espontaneidade; vontade; reflexão. Abstract: Leibniz defines freedom through three main ideas: contingence, spontaneity and intelligence. Considering each one of these ideas, it becomes clear that intelligence (as the ability of thoght tu turn over itself in reflection), in Leibniz’s words, is the sol of freedom.

Key-words: freedom; contingence; necessity; spontaneity; will; reflection.

Adão pecou livremente? Se respondermos que sim, então sua queda não era prevista – digamos mais: não era nem prevista nem preordenada por Deus. Se “não” for a resposta – isto é, se Deus previu e preordenou esse acontecimento na criação do mundo –, então Adão não pode ser culpado. Em outras palavras, “ou

(...) la prévision infaillible d’un événement contingent est un mystère qu’il est impossible de concevoir, ou (...) la manière dont une créature, qui agit sans liberté, pèche pourtant, est tout à fait incompréhensible”1. Leibniz apresenta assim, citando Bayle, o labirinto entre o

* Doutoranda junto ao Departamento de Filosofia da FFLCH-USP.

1 BAYLE, Dictionnaire, article “Jansénius”. Citado por Leibniz in Essais de Théodicée,

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livre e o necessário da perspectiva da ação do homem. E, como se estivesse em um verdadeiro diálogo, responde que, entre as alternativas acima colocadas, opta pela correção das duas: Adão pecou livremente e Deus o viu pecar ainda no estado de Adão possível, que se tornou atual de acordo com o decreto de permissão divino. É verdade, acrescenta o filósofo de Hannover, que Adão se determinou a pecar de acordo com certas inclinações que prevaleceram, mas essa determinação não destrói nem a contingência nem a liberdade, nem o poder de não pecar, não impede, portanto, o homem de ser considerado culpado e de ser punido. Então o filósofo devolve a palavra a Bayle – “sur la matière de la liberté il n’y

a que deux partis à prendre: l’un est de dire que toutes les causes distinctes de l’âme qui concourrent avec elle lui laissent la force d’agir ou de n’agir pas, l’autre est de dire qu’elles la déterminent de telle sorte à agir qu’elle ne saurait se défendre”2. Para finalmente encerrar a

conversa de uma maneira bastante característica: entre os dois partidos apontados por Bayle, Leibniz opta por um terceiro, um meio-termo ou uma conciliação entre os dois. Isto é, a determinação da alma não vem unicamente do concurso de todas as causas distintas dela, mas também do estado da própria alma e de suas inclinações que, misturadas às impressões dos sentidos, as aumenta ou enfraquece. Todas essas causas, internas e externas, tomadas em conjunto determinam a alma de modo certo e não necessário. Eis por que acreditamos que a capacidade humana de reflexão sobre suas próprias ações tem um papel, senão o principal, muito importante para pensarmos a liberdade dos homens. A reflexão não anula as causas externas que inclinam o indivíduo a tomar uma determinada decisão – em sentido estritamente filosófico ou em linguagem metafísica, sabemos que essas causas, que em linguagem prática são ditas externas, são causas internas3 –, mas ela conduz a alma, por um lado, a uma

ampliação da compreensão daquilo que aparece pelos sentidos e, então, à

2 Bayle citado por Leibniz in Essais de Théodicée, §370; 1969, p. 335.

3 Cf. LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §65; 1969, pp. 139-140: “il faut dire que, prenant les choses à la rigueur, l’âme a en elle le principe de toutes ses actions et même de toutes ses passions (...). Cependant dans le sens populaire, en parlant suivant les apparences, nous devons dire que l’âme dépend en quelque manière du corps et des impressions des sens, à peu prés comme nous parlons avec Ptolémée et Tycho dans l’usage ordinaire, et pensons avec Copernic, quand il s’agit du lever ou du coucher du soleil”.

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possibilidade de perceber que o que aparentemente se mostra como um bem, não o é; por outro lado, à tomada de consciência de seus próprios desejos e, portanto, à consciência também da parte da ação que cabe a suas inclinações. A reflexão garante o reconhecimento, por parte do indivíduo, de suas ações como suas e, por isso, de sua responsabilidade moral. Vejamos.

A definição leibniziana da liberdade da vontade apresenta três caracteres fundamentais:

la liberté (...) consiste dans l’intelligence, qui enveloppe une connaissance distincte de l’objet de la délibération; dans la spontanéité, avec laquelle nous nous déterminons; et dans la contingence, c’est-à-dire dans l’exclusion de la nécéssité logique ou métaphysique. L’intelligence est comme l’âme de la liberté, et le reste en est comme le corps et la base.4

Façamos o caminho inverso da definição e comecemos pela base da liberdade. Para que uma ação seja dita livre, é preciso que não haja necessidade metafísica da ação, isto é, que uma ação diferente seja logicamente possível ou não-contraditória e que, portanto, o agente escolha um entre muitos partidos possíveis. Este acontecimento, cujo oposto (entendido como sua não ocorrência) é possível, é um acontecimento contingente. O que não significa que não exista nenhuma razão para sua ocorrência – o contingente se opõe ao necessário absolutamente, mas não ao determinado. Aquela escolha, livre de necessidade lógica, metafísica ou geométrica, pode ser moralmente necessária e o acontecimento que ela inaugura também será hipoteticamente necessário antes da sua ocorrência. É nesse sentido que se pode dizer que é necessário que Deus escolha o melhor, que os bem-aventurados não pequem e que o homem siga sempre o partido que o impressione mais – porque não é logicamente impossível que Deus não escolha o melhor ou que os bem-aventurados pequem, nem que os homens tomem uma decisão que vá contra o partido que os toca mais. É um equívoco de termos que faz com que tomemos por impossível, por exemplo, “qu’un magistrat sage et grave, qui n’a pas perdu le sens, fasse publiquement une grande

extravagance, comme serait (...) de courir les rues tout nu pour faire rire”5: a necessidade e a

4 LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §288; 1969, p.290. 5 Cf. LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §282; 1969, p. 286.

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possibilidade, tomadas metafisicamente, dependem da questão de saber se o objeto nele mesmo ou o que lhe é oposto implica contradição ou não, de modo que, por mais que seja improvável ou moralmente impossível que aquele magistrado aja de maneira extravagante, essa ação estranha não é contraditória em si mesma. A necessidade metafísica não deixa espaço para nenhuma escolha, ela apresenta apenas um objeto possível; as inclinações ou razões que determinam uma vontade livre, ao contrário, estão em pleno acordo com a contingência. Para Leibniz, se desfizermos o equívoco que envolve os termos “contingência” e “necessidade”, “on sortira aisément d’un labyrinthe dont l’esprit humain a été le Dédale

malheureux, et qui a causé une infinité de désordres, tant chez les anciens que chez les modernes, jusqu’à porter les hommes à la ridicule erreur du sophisme paresseux”6, isto é, a crença de

que a necessidade que governa as ações humanas é tal que, faça um homem o que fizer, lhe acontecerá o que é necessário que aconteça, de modo que entre agir e não agir é preferível tomar a segunda opção. Ora, não agir nesse caso é já uma escolha, uma decisão da vontade livre e o que acontecerá a este homem, que escolheu não agir, não é o mesmo que aconteceria se ele tivesse decidido pela ação, pois os acontecimentos do mundo são regidos por uma necessidade hipotética, ou seja, cada acontecimento, como efeito, deriva da hipótese das causas que o precederem.

Essas causas são infinitas, há uma infinidade de condições hipotéticas que devem se cumprir para que um evento contingente tenha lugar no mundo – é por isso que um acontecimento contingente é indemonstrável. Em termos psicológicos, podemos dizer que a determinação da vontade em uma escolha livre não tem uma causa simples, mas complexa, várias percepções e inclinações aí concorrem e a vontade é o resultado do conflito entre elas, “tudo o que então nos

atinge, pesa na balança, e contribui para formar uma direção composta, quase como na mecânica”7. Determinada, não necessitada, a vontade segue o resultado de todas as

inclinações; sua ação depende, por isso, de suas causas, mas essas causas, pela harmonia preestabelecida – que faz com que a alma produza e represente o que se passa no corpo, e o corpo, o que se passa na alma, e cada alma ou substância

6 LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §367; 1969, p. 334. 7 LEIBNIZ, Novos Ensaios, II, XXI, §40; 1980, p. 140.

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simples o que se passa na totalidade do universo –, são causas internas à alma. Para comprovar a afirmação de que a alma ou toda substância simples não possui nenhuma ação ou paixão que não seja interna, Leibniz convida os homens a refletirem sobre suas próprias ações – e crê, assim, poder provar a verdade de sua tese:

il leur paraît d’abord que tout ce que nous faisons n’est qu’impulsion d’autrui, et que tout ce que nous concevons vient de dehors par le sens, et se trace dans le vide de notre esprit, tanquam in tabula rasa. Mais une méditation plus profonde nous apprend que tout (même les perceptions et les passions) nous vient de notre propre fonds, avec une pleine spontanéité.8

Tudo que acontece à alma depende apenas dela; seu estado futuro, de seu estado presente. Essa independência da alma9, conseqüência da harmonia

preestabelecida que a libera da influência física de qualquer outra criatura, é o “corpo” da liberdade humana, é a espontaneidade que faz de cada alma o princípio de suas ações e paixões: os homens encontram em si mesmos as razões que determinam sua ação. Uma ação é espontânea, afirma Leibniz lembrando de Aristóteles, quando seu princípio está naquele que age; como cada substância simples é causa única de suas ações e, com exceção do concurso ordinário de Deus, independente de influência física de outras substâncias, toda substância é também inteiramente espontânea.

É porque a vontade segue o resultado de suas inclinações que, embora esteja livre de necessidade e coação, não possui uma indiferença de equilíbrio entre os partidos a serem tomados. Leibniz admite uma indiferença relativa ou limitada, isto é, a não necessidade absoluta da vontade tomar o partido a que está inclinada – é uma indiferença pela possibilidade do oposto –, mas jamais uma indiferença de equilíbrio:

une infinité de grands et petits mouvements internes et externes concourent avec nous, dont le plus souvent l’on ne s’aperçoit pas; et j’ai déjà dit que, lorsqu’on sort d’une chambre, il y a telles raisons qui nous déterminent à mettre un tel pied devant, sans

8 LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §296; 1969, p. 293.

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qu’on y réfléchisse. Car il n’y a pas partout un esclave, comme dans la maison de Trimalcion, chez Pétrone, qui nous crie: le pied droit devant.10

Ademais, o princípio do melhor que rege as leis do movimento, rege também as inclinações da vontade que, por isso, é definida como um esforço ou uma inclinação para o bem. O espírito sempre se inclina mais para o lado onde aparece um maior bem presente – livremente, pois pode escolher um outro bem. A necessidade moral que nasce da aparência de um bem não é contraditória com o livre-arbítrio; o objeto formal da vontade humana é o bem. A opinião de um bem produz o esforço na direção dele, a vontade nasce do prazer de uma harmonia, de modo que querer é ter prazer com uma existência sentida ou imaginada como um bem. O homem, no entanto, pode se enganar e sua vontade que, como a vontade divina, busca sempre o bem pode escolher um bem aparente em lugar do melhor. Imagem de Deus, o homem imita seu Criador nas ações voluntárias; ainda que, criatura naturalmente limitada, escolha um bem também limitado, essa imitação de Deus não é uma caricatura11, ela conserva

sempre um lado autêntico, pois mesmo um bem aparente tem alguma coisa de verdadeiro, mesmo muito particular é ainda um bem. De qualquer modo há sempre uma razão que prevalece – é possível dar a razão de toda verdade, em uma proposição contingente o predicado também está incluído no sujeito, mas por decreto da vontade livre de Deus que inclina sem necessitar12 – e que leva a

10 LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §46; 1969, p. 130 (sobre causas internas e externas

ver parágrafo 68).

11 Cf. GRUA, 1953, p. 147.

12 Filósofo da prioridade da essência sobre a existência, Leibniz recusa, todavia, uma

dedução direta das escolhas ou ações de uma vontade livre a partir da essência individual – o que negaria a existência de puros possíveis. O elemento de irredutibi-lidade das verdades contingentes a uma identidade tautológica é a razão moral para que um evento se realize em lugar de outro e essa razão se encontra na escolha livre de um Deus que, arquiteto e geômetra, é também monarca ou pai. Querer reduzir o universo leibniziano ao resultado de um cálculo lógico puro e simples é desconsiderar a tensão e a ambigüidade sempre presentes entre os aspectos lógico-quantitativo e moral-qualitativo do sistema de Leibniz – ou considerar que o primeiro predomina sobre o

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vontade à escolha. Se fôssemos indiferentes a partidos opostos, não escolheria-mos, pois, diz Leibniz, “un tel choix serait une espèce de pur hasard, sans raison

déterminante, tant apparente que cachée. Mais un tel hasard, une telle casualité absolue et réelle, est une chimère qui ne se trouve jamais dans la nature. (...) le hasard n’est qu’une chose apparente, comme la fortune: c’est l’ignorance des causes qui le fait.”13

É a ignorância em relação a nossas próprias inclinações, aquelas que nascem da impressão que os sentidos causam em nós e aquelas derivadas do estado de nossa alma, que faz com que imaginemos que escolhemos ao acaso, sem que haja uma razão determinante da escolha. O universo não podendo jamais ser dividido em duas partes iguais de modo que as impressões que ele causa na alma sejam equivalentes de um lado e de outro, é impossível um caso de perfeito equilíbrio como no sofisma de Buridan14 – em que um asno situado a

igual distância entre dois montes de aveia, sem razão para preferir um ao outro, morre de fome. A liberdade de indiferença indefinida seria, portanto, prejudicial se não fosse impraticável e quimérica. Ainda que eu não veja a razão de minha inclinação, há sempre alguma impressão, mesmo imperceptível, que determina minha ação. Querer que uma determinação, uma escolha, siga de uma plena indiferença absolutamente indeterminada é querer que ela nasça naturalmente do nada; ora, uma causa não agiria sem possuir uma disposição para a ação ou uma predeterminação.

Essa falsa idéia de liberdade como uma indiferença plena ou de equilíbrio leva à afirmação de uma contradição entre a presciência e a preordenação divinas e a liberdade humana15. Ora, o decreto de fazer existir uma ação não muda a

natureza dessa ação, assim como o conhecimento que Deus tem de uma ação humana não a transforma – Deus prevê nossas ações tal como Ele as viu em suas idéias, como ações livres. O paradoxo deixaria de ser aparente para ser um verdadeiro problema se quiséssemos conciliar essa previsão ou preordenação

segundo, coisa que o filósofo, ambíguo ou conciliador por excelência, aparentemente não fez. Cf. GRUA, 1953, p. 131, e também BOUTROUX, 1925, p. 84 e 158.

13 LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §303; 1969, p. 298.

14 LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §49 e §307; 1969, p. 131 e pp. 299-300. 15 LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §365; 1969, p. 332.

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com ações de causa indeterminada; mas como tudo acontece por razões determinadas, essas determinações certas permitem a previsão do que acontecerá. É verdade, diz Leibniz16, que Deus, porque vê a série inteira do universo de uma

só vez quando escolhe o melhor dos mundos, não precisa da ligação sucessiva entre efeitos e causas para prever os efeitos que seguirão de causas determinadas, para julgar o futuro a partir do passado – mas não haveria previsão se supuséssemos a existência de causas indeterminadas, que pudessem produzir efeitos aos quais fossem inteiramente indiferentes, e a possibilidade humana de escolha ao acaso, pois, então, haveria um acaso efetivo e não apenas em relação a nossa ignorância, mas também à natureza das coisas e a Deus mesmo17. A

existência da série mais perfeitamente ligada em que cada parte está em conexão com todas as outras – série escolhida pela sabedoria divina – permite que o Criador veja em uma parte da série uma outra parte e que veja naquilo que agora é, o que será: os futuros contingentes são vistos de maneira determinada em suas causas e Deus, vendo tudo que convida ou desagrada a vontade humana, isto é, tudo que a solicita positivamente ou negativamente, vê também o partido que ela tomará. A ciência divina da visão não difere da ciência da simples inteligência senão pelo conhecimento do decreto efetivo de escolher esta série de coisas, que a ciência da inteligência conhecia apenas como possível. Assim, as proposições sobre os contingentes futuros têm sua verdade determinada.

Podemos dizer, em resumo, que as ações voluntárias são duplamente determinadas18: pela presciência ou providência de Deus (que faz com que toda

vontade tenda naturalmente para o bem) e pelas disposições da causa particular próxima, isto é, pelas inclinações da alma. Aqueles que imaginam possuir uma liberdade de indiferença, na verdade não julgam suas ações, agem pelas paixões, ignorando as causas de seus atos. A alma humana, diz Leibniz19, é como uma

força que faz esforço ao mesmo tempo em muitas direções, mas age apenas naquela em que encontra mais facilidade ou menos resistência – assim como o ar

16 LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §360; 1969, p. 329. 17 LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §362; 1969, p. 330. 18 Cf. LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §365; 1969, p. 332.

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comprimido em uma garrafa força todas as partes do vidro, mas se lança para fora estilhaçando a parte mais fraca. As inclinações da alma se dirigem a todos os bens que a ela se apresentam como vontades antecedentes, mas o resultado delas, a vontade conseqüente, se determina pelo que a comove mais. A força das inclinações ou paixões não impede, todavia, que o homem seja mestre de si mesmo; é preciso que ele saiba usar seu poder, “son empire est celui de la raison”20.

Os homens têm o privilégio do pensamento: numa alma racional, a representação ou percepção natural é acompanhada de consciência “et c’est alors

qu’on l’appelle [l’expression] pensée”21. Essa ação interna do espírito sobre si mesmo

é na verdade a única que ele exerce. Toda substância simples exprime o universo por suas ações internas ou imanentes, não basta, por isso, dizer que o pensamento é uma ação interna das almas racionais, é preciso, para caracterizar sua peculiaridade, salientar que é uma ação da alma sobre si, reflexão ou consciência. Uma alma que pensa pode se debruçar sobre si mesma, voltar o pensamento para o pensamento, fazendo coincidir sujeito e objeto através da reflexão. A alma humana sente imediatamente seu pensamento, que é ação, porque o espírito que se sente pensar é imediato a si mesmo. A consciência, todavia, não é definida como simples presença, mas também como memória – em sentido estrito reservada às almas racionais – que dá ao espírito o sentimento de sua continuidade pela concentração de momentos passados e permite que ele se aperceba de si na totalidade de sua duração. É a memória que constitui a personalidade dando ao homem a consciência de sua existência ao longo das mudanças por que passa. O pensamento, então, é uma ação sobre si que compreende a memória e pode envolver um pensamento prático22.

Não pensamos termos simples, mas proposições, pois mesmo as idéias simples envolvem a afirmação de sua possibilidade. As proposições reflexivas dobram seus enunciados ao tratarem não apenas das coisas, mas também da nossa maneira de concebê-las: não nos representamos somente nossa ação (ou

20 LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §326; 1969, p. 310.

21 LEIBNIZ, “Carta de 9 de outubro de 1687” in Correspondance avec Arnauld; 1966,

p. 181.

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pensamento), mas pensamos ainda que somos nós que a fazemos ou fizemos. A reflexão é, por isso, uma atenção ao que se passa em nós. Por ela pensamos distintamente um objeto e temos, simultaneamente23, consciência de nós mesmos

– a reflexão é uma repetição de um pensamento e uma regressão a um princípio inato de pensar. Esse dobrar-se do pensamento sobre si mesmo pode ir ao infinito, mas a série de atos de reflexão nos espíritos criados é virtualmente infinita (atual, só em Deus), senão nosso pensamento jamais avançaria:

não é possível que reflitamos sempre expressamente sobre todos os nossos pensamentos; do contrário, o espírito refletiria sobre cada reflexão ao infinito, sem jamais poder passar a um novo pensamento. (...). Ora, é necessário que eu cesse de refletir sobre todas essas reflexões, e que haja, finalmente, algum pensamento que deixemos passar sem pensar nele; do contrário, permaneceríamos sempre fixos na mesma coisa.24

Toda ação da alma é pensamento; o pensamento envolve consciência de si, memória e, de um ponto-de-vista prático, esforço de ação ou vontade. A vontade25 é uma potência de começar ou não começar várias ações, as ações

voluntárias constituem um esforço ou uma tendência para o que consideramos bom e contra o que cremos mau. Mesmo o ato de querer é um pensamento, o pensamento da bondade de uma coisa, isto é, uma reação diante de uma intelecção, diante de uma percepção distinta associada à faculdade de refletir, e que resulta imediatamente da apercepção. Leibniz subordina, assim, a vontade à inteligência e, conseqüentemente, recusa a ela uma reflexão como aquela da inteligência que pode ir ao infinito, já que a vontade resultante da intelecção vai de imediato ao ato. O que, por um lado, nos é útil, uma vez que de outra forma permaneceríamos sempre fixos na mesma coisa, mas, por outro, restringe o poder da alma sobre suas próprias inclinações a um poder indireto. Não escolhemos nossas vontades como escolhemos nossas ações pela vontade – não

23 A ordem dessas duas “operações”, como nota Grua, varia nos textos de Leibniz.

Para nosso propósito, entretanto, essa alternância não traz nenhum problema. Cf. GRUA, 1953, p. 91.

24 LEIBNIZ, Novos Ensaios, II, I, §19; 1980, pp. 68-69. 25 Cf. LEIBNIZ, Novos Ensaios, II, XXI, §5; 1980, pp. 123-124.

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podemos querer alguma coisa, seria uma veleidade26 –, mas podemos contribuir

indiretamente para determinar nossa vontade a querer no futuro aquilo que queríamos querer no presente27 – esse poder resulta da união entre a

espontaneidade e a inteligência. Em resumo, mesmo sendo a causa de nossas vontades, não somos diretamente mestres delas, porque são reações imediatas diante de uma intelecção, mas temos um poder indireto sobre a vontade. Assim tudo que acontece à alma depende dela, mas nem sempre depende de sua vontade, aqui entendida em sentido estrito como uma inclinação que nasce de uma percepção distinta acompanhada de reflexão – “ce serait trop”, diz Leibniz, porque se há na alma uma ordem de percepções distintas, seu império, há também uma ordem de percepções confusas ou paixões, “et il ne faut pas s’en

étonner; l’âme serait une divinité, si elle n’avait que de perceptions distinctes”28. O

conhecimento humano é, então, de dois tipos, distinto ou confuso: quando agimos com um conhecimento distinto do objeto da deliberação, estamos isentos da escravidão das paixões; quando, ao contrário, temos do objeto da deliberação percepções confusas e, ainda assim, agimos, nos sujeitamos às inclinações das paixões – “c’est dans ce sens que nous n’avons pas toute liberté d’esprit qui serait à souhaiter,

et que nous pouvons dire avec saint Augustin, qu’étant assujetis au peché, nous avons la liberté d’un esclave”29. Em ambos os casos, com um conhecimento distinto ou confuso,

seguimos sempre a tendência natural da vontade de buscar o bem, queremos sempre o que nos agrada, mas, porque nem sempre temos os olhos do entendimento abertos, o que nos agrada pode ser um mal ou um bem menor. Ora, mesmo que não utilizemos sempre o poder da nossa razão, não deixamos nunca de possuí-lo e, portanto, nada nos impede de fazer escolhas livres.

É verdade que se fôssemos capazes de prolongar ad infinitum a reflexão diante de uma percepção, simplesmente não agiríamos ou não deixaríamos que

26 Cf. LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §404; 1969, p. 354: na verdade as veleidades, que

não se confundem com as vontades antecedentes, são vontades condicionais do tipo “eu quereria isso, se pudesse”, em que os homens querem poder alguma coisa, isto é, poder querer sem que haja razão para o desejo.

27 Cf. LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §301 e §327; 1969, p. 297 e 310. 28 LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §64; 1969, p. 139.

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da percepção nascesse um esforço prático. Não podemos mudar nossas percepções confusas ou as paixões que delas nascem sur-le-champ, mas temos o poder de nos dar paixões novas e criar hábitos; assim como, em relação às percepções mais distintas, podemos nos dar indiretamente opiniões e vontades ou nos impedir de possuir determinada opinião ou vontade, bem como podemos suspender ou prolongar o julgamento:

car nous pouvons chercher des moyens par avance, pour nos arrêter dans l’occasion sur le pas glissant d’un jugement téméraire; nous pouvons trouver quelque incident pour différer notre résolution, lors même que l’affaire paraît prête à être jugée; et quoique notre opinion et notre acte de vouloir ne soient pas directement des objets de notre volonté (...), on ne laisse pas de prendre quelquefois des mesures, pour vouloir et même pour croire, avec le temps, ce qu’on veut ou ne croit pas présentement. Tant est grande la profonder de l’esprit de l’homme.30

Nenhum bem, com exceção do bem supremo (Deus), é tão evidente para um espírito que ele não possa suspender seu julgamento se quiser e se tiver ocasião de deliberar. Se a criatura racional não escolhe jamais um menor bem aparente, ela também não escolhe sempre o que parece ser o melhor atualmente, porque pode suspender seu julgamento e dirigir sua atenção a outra coisa. A ligação entre julgamento e vontade não é tão necessária quanto pode parecer. Embora a vontade sempre tenda para o bem, o esforço de agir a partir do julgamento de um bem aparente, que caracteriza a vontade, não só precisa de tempo para se efetuar como pode ser suspenso ou transformado por uma nova percepção ou inclinação que leve o espírito a um julgamento diferente do inicial – a percepção do melhor se dá de forma muito diferente da percepção de uma verdade, o paralelo entre a relação do entendimento com a verdade e da vontade com o bem não é totalmente exato: o entendimento é necessitado pela afirmação da verdade contida em uma percepção clara e distinta dessa verdade, a vontade não precisa seguir o julgamento necessariamente31. E inversamente, ainda que

julgar não seja um ato de vontade, a vontade pode contribuir com o julgamento,

30 LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §64; 1969, p. 139. 31 LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §311; 1969, p. 302.

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pois quando queremos dirigir nossa atenção a outra coisa, podemos suspender o julgamento. A vontade e o julgamento são, portanto, “companheiros”32 e não

causa um do outro; a vontade permanece subordinada à inteligência, é um conhecimento claro do melhor que a determina, como nem sempre temos um conhecimento distinto ou um julgamento de acordo com a razão, nem sempre agimos pela liberdade da vontade. Além do julgamento do entendimento, em que temos um conhecimento expresso, nossa alma tem paixões e inclinações, das quais não nos apercebemos, nascidas das percepções confusas dos sentidos; e esses movimentos freqüentemente impedem o julgamento do entendimento prático33. Todas as criaturas inteligentes, porque criaturas, estão sujeitas a essas

paixões, por isso, nem sempre é possível entender as razões de nossos instintos. Não formamos nossas idéias porque queremos, “elles se forment en nous, elles

se forment par nous, non pas en conséquence de notre volonté, mais suivant notre nature et celle des choses”34. A alma humana é como um autômato espiritual – e contém

eminentemente todas as operações de um autômato mecânico, tudo que há de mais belo na mecânica –, toda percepção presente da alma tende a uma nova percepção, como todo movimento tende a um novo movimento: as idéias se formam em cada alma de maneira regular pela natureza particular desta substância e exprimem a natureza universal. As representações da alma têm uma relação natural com o que representam, elas não acrescentam nada à coisa representada, embora muitas vezes suprimam algum detalhe. Uma mesma coisa pode ser representada de maneiras diferentes, cada alma representa o universo de acordo com seu ponto-de-vista e segundo uma lei que lhe é própria e, assim, cada ponto-de-vista perde detalhes que uma outra perspectiva representa. A supressão de detalhes não é nunca inteira, mas há sempre mais a ser percebido do que aquilo que podemos, pela representação, perceber. Assim, o mundo aparece para nós, através de nossas representações ou idéias, mas o que aparece não é tudo e, por isso, não temos uma percepção distinta:

32 Cf. GRUA, 1953, p. 143.

33 Cf. LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §310; 1969, p. 301. 34 LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §403; 1969, p. 353.

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A peu près comme il arrive que nous ne discernons pas le bleu et le jaune qui entrent dans la représentation, aussi bien que dans la composition du vert, lorsque le microscope fait voir que ce qui paraît vert est composé de parties jaunes et bleus.35

É impossível que um homem conheça distintamente toda sua natureza e se aperceba de todas as pequenas percepções que se formam em sua alma – “il

faudrait pour cela qu’elle [l’âme] connût parfaitement tout l’univers qui y est enveloppé, c’est-à-dire qu’elle fût un Dieu”36.

Ora, se não formamos nossas idéias voluntariamente, se elas representam as coisas suprimindo detalhes de que não nos apercebemos e se julgamos o que aparece como bem de acordo com essas representações para determinar nossas escolhas, como podemos ser considerados criaturas livres? Leibniz não opõe natureza ou determinismo à liberdade, assim, agimos de acordo com a espontaneidade própria de nosso ser, mas temos a possibilidade de refletir sobre nossas ações e, embora não possamos agir contrariamente ou resistir às nossas inclinações momentâneas, podemos influenciar indiretamente nossa vontade a se dirigir para um bem que, agora, ela não busca. Para Leibniz, não é a indiferença de equilíbrio ou o determinismo que define uma ação livre ou coagida, ou que caracteriza a responsabilidade moral do homem por suas ações; mas a possibilidade humana de buscar as razões para suas inclinações ou desejos, a potencialidade de refletir sobre cada ação e, senão diretamente, influenciar pela razão os desejos futuros. Nenhum animal, embora só tenha percepções confusas, está sujeito à miséria ou pode ser sujeito de uma alegria como a da graça, “il paraît

que leurs plaisirs et leurs douleurs ne sont pas aussi vifs que dans l’homme: car ne faisant point de réflexion, ils ne sont point sucetibles ni du chagrin qui accompagne la douleur, ni de la joie qui accompagne le plaisir”37. É a reflexão – ou sua possibilidade – que transforma uma

ação espontânea em uma ação moral: a vontade segue imediatamente uma intelecção ou uma percepção distinta, mas diante de uma percepção confusa po-demos suspender a ação e, refletindo, buscar os motivos convenientes para agir.

35 LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §356; 1969, p. 327. 36 LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §403; 1969, p. 354. 37 LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §250; 1969, p. 267.

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“Dic cur hic” caracteriza a ação de um ser que, embora limitado, pode conhecer as razões de cada ato; mesmo que o homem não atualize esse conhecimento, mesmo que não reflita sobre o que faz, a obediência aos preceitos de Deus ou a escolha conforme ao melhor e não apenas a um simulacro de bem é sempre possível: a vontade do sábio se inclina sempre antecedentemente a todo bem, mas se decide por fazer o melhor possível na proporção de seus conhecimentos e de suas forças38. É o que basta para caracterizar uma ação

humana como uma ação voluntária, é isso que define a liberdade do homem, a possibilidade de deliberação e de uma decisão que minimize o risco de erro (a que todos estamos sujeitos): “l’homme y est comme un petit dieu dans son propre monde, ou

microcosme, qu’il gouverne à sa mode; il y fait merveille quelquefois (...) mais il fait aussi de grandes fautes, parce qu’il s’abandone aux passions”39. A liberdade, espontaneidade

inteligente, porque privilégio entre as criaturas da criatura racional, encontra sua raiz no espírito e se define, então, como escolha em razão da bondade verdadeira ou aparente que o inclina – quanto mais conhecer suas próprias ações, quanto maior for o número de percepções distintas que tiver sobre o objeto que inclina seu desejo, quanto mais fundo mergulhar em si mesmo e procurar entender por que tende espontaneamente para um lado e não para o outro e, em sendo esse outro lado aquele que ele gostaria que dirigisse seu desejo, quanto mais ampliar a influência desse julgamento sobre sua vontade futura, maior será o exercício da liberdade desse espírito. As condições para esse exercício estão dadas, é necessário ao homem atualizá-las.

BIBLIOGRAFIA

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Introduc-tion, texte et commentaire par G. Le Roy. Paris: Vrin, 1984.

_________. Essais de Théodicée sur la Bonté de Dieu, la Liberté de l’Homme et l’Origine

du Mal. Chronol. et introd. par J. Brunschwig. Paris: Garnier-Flammarion,

1969.

38 Cf. LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §282; 1969, p. 286. 39 LEIBNIZ, Essais de Théodicée, §67; 1969, p. 199.

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_________. La Monadologie. Acopaigné d’éclaircissements par E. Boutroux. Paris: Delagrave, 1930.

_________. Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano. Trad. de L. J. Baraúna. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

Referências

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