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PEGANDO O BECO: COMENSALIDADE E SOCIABILIDADE BOEMIA NO BECO DA LAMA (NATAL/RN)

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

THÁGILA MARIA DOS SANTOS DE OLIVEIRA

PEGANDO O BECO: COMENSALIDADE E SOCIABILIDADE

BOEMIA NO BECO DA LAMA (NATAL/RN)

NATAL/RN 2019

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THÁGILA MARIA DOS SANTOS DE OLIVEIRA

PEGANDO O BECO: COMENSALIDADE E SOCIABILIDADE BOEMIA

NO BECO DA LAMA (NATAL/RN)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGAS/UFRN) para a obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.

Orientadora: Profª Dr. Julie Antoinette Cavignac.

NATAL/ RN 2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Oliveira, Thágila Maria Dos Santos de.

Pegando o beco: comensalidade e sociabilidade boêmia no Beco da Lama (Natal/RN) / Thágila Maria Dos Santos de Oliveira. - 2021.

123f.: il.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social,

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2021. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Julie Antoinette Cavignac.

1. Comensalidade - Dissertação. 2. Bares - Dissertação. 3. Boemia - Dissertação. 4. Cidade Alta - Dissertação. I. Cavignac, Julie Antoinette. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 394

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THÁGILA MARIA DOS SANTOS DE OLIVEIRA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte para a obtenção do título de mestre em Antropologia Social

BANCA EXAMINADORA

Profª Drª. Julie Antoinette Cavignac (Orientadora)

Prof. Dr. Jean Pierre Poulain

(Examinador externo – Université Jean Jeurès - ISTHIA)

Prof. Dr. Paulo Victor Leite Lopes (Examinador interno – UFRN)

Prof. Dr. José Glebson Vieira (Suplente – UFRN)

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AGRADECIMENTOS

Não pouparei palavras para fazer os agradecimentos. Isso porque, as pessoas a quem devo agradecer não se resumem aos dois anos em que estive como aluna de mestrado no PPGAS. Segurem os lenços, porque vocês vão se emocionar, mesmo que não leiam a dissertação, leiam esta parte. Ah! A ordem das pessoas não altera a importância.

Ao meu pai Jansey e mainha, Irene, que me deram todo o suporte para estar aqui. Sem o esforço deles, com certeza nada disso seria possível. Agradeço mais ainda por confiarem nas minhas ideias e loucuras.

Às minhas tias, Solange e Salimare por terem apoiado minhas decisões. Eu as amo muito.

Aos meus avós paternos, Neuza e Batista, que embora não estejam fisicamente aqui, contribuíram bastante para a minha formação e estariam orgulhosos de mim.

Ao meu irmão querido, Thiago, sempre um grande amigo e parceiro de brincadeiras, brigas, festas, cachaças, alegrias, decepções e tantas outras coisas.

À Vera Pinto e à Hermano Machado, duas pessoas que apoiaram a minha decisão de mudar de área na pós-graduação. Sobretudo à Vera que apareceu nas primeiras aulas de aspectos-socio antropológicos da alimentação, me mostrou outras formas de ver a comida e deu as primeiras ideias para esta pesquisa.

Um agradecimento mais que especial e francês a franco-seridoense mais incrível, Julie, ou Toinha, ou Madame, como as vezes me referia a ela. 300 páginas de agradecimento não seriam suficientes para agradecer a tudo que ela fez por mim. Desde a banca de seleção a todo cuidado com que teve nesta orientação de mestrado ao ler essas loucuras que eu escrevo. Não somente isso, mas por ter me proporcionado boas experiências de vida e principalmente gastronômicas. Com ela não aprendi somente antropologia, aprendi coisas sobre a vida. Sou muito orgulhosa de ter sido orientandas dela. Merci, Madame!!!

Ao amigo francês Jean Pierre Poulain, por aceitar fazer parte da trajetória dessa pesquisa, pela recepção calorosa em Toulouse, pelas inesquecíveis experiências gastronômicas, pelo cuidado e atenção comigo. Merci!

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À Paulo Victor, pela amizade, pelo carinho, por participar da banca deste trabalho e por ter que sacrificar as noites de quinta-feira indo ao samba para verificar se estou fazendo tudo corretamente. Sei que não foi fácil. Força a este ícone da antropologia brasileira. Hahahahaha.

À todos os interlocutores desta pesquisa, em especial á Dayana, José Flor, Paulo Eduardo, Nazaré, Nélio e Levy.

Aos meus amigos de vida fora da Universidade: Bárbara, Andrielle, Álier, Laura, Lívia Mel, Bia, Alice, Everton, Ana e Joilson que sempre me apoiam.

Aos amigos que fiz na graduação em Nutrição e que até hoje me acompanham nessa jornada, alegrando os meus dias: Licyanne, Vevé, Wisley e Luana.

Aos amigos nutris do AlimentAção que me deram apoio no final do mestrado: Diogo, Rebekka, Natália e Ginetta.

Não poderia deixar de agradecer a minha turma de mestrado, sobretudo a Rudá, Lorran, Josyanne, Wendell e Michael. À Natália Caos Caos, pelos conselhos amorosos da madrugada. À Raphaella, uma grande amiga que fiz no mestrado, à quem confiei meus bons e maus momentos. Obrigada!!

Aos professores do PPGAS, Tania, Glebson, Angela Facundo e Juliana Melo.

Aos outros amigos do PPGAS, Paulo Filho, ou Monsieur Paul. Ele me deu meu primeiro caderno de campo e tivemos a oprotunidade de compartilhar bons momentos no intercâmbio para a França. Compartilhamos segredos e conversas incríveis. Lívia, gata, melhor pessoa para conversar sobre os crushs e dona do melhor lanche vegano de Natal. Sou muito grata pela sua amizade. À Duarte, pela parceria e pelas boas experiências gastronômicas. À Edu que me acolheu muito bem no PPGAS, leu meus escritos com paciência, se tornou um grande amigo e me levou até Ravi e à Tama. À Michelle Rato, pelas boas conversas, pelos momentos de diversão e por ser tão amável comigo. À Yuri que dedicou seu tempo para me acompanhar até os bares. Sei que não foi fácil hehehehe.

Aos membros do CIRS (Cultura Identidade e Representações Símbolicas), Danycelle, Gege, Júnior e Isabela. Além de membros de um grupo de pesquisa, nos tornamos bons amigos, compartilhando nossas angústias, desafios e conquistas.

Aos funcionários do PPGAS e do DAN que sempre ajudaram e se tornaram parte importante desse processo: Adriano, Gabi, Kayonara, Thiago e Eliane (prima).

Aos professores da Universidade de Bordeaux II que me receberam muito bem durante a estadia na França: Isabella Gobatto e Dragoss Ouédragogo.

Aos amigos franceses que fizeram da experiência internacional um momento único: Tristan (e seus pais), Amanda, Roseane, Dalva, Camille e sua família.

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À Liz Mannings, minha querida aussie amiga que sempre conversa comigo e me ajudou nas traduções de língua inglesa para esta dissertação.

No finalzinho dessa jornada, gostaria de agradecer ao pessoal que participou comigo do Summer University na Universidade de Tours. Foi uma experiência com pesquisadores de vários lugares do mundo que foi muito importante para a minha formação.

À CAPES e ao povo brasileiro que financiaram esta pesquisa. Espero ajudar sempre que eu puder e como eu puder.

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NO BECO DA LAMA CANTEI, DANCEI... E VI UMA RÉSTIA AZUL Na noite bequiana observo uma réstia azul da lua É uma dessas noites mornas que escondem segredos Quem se importa? Logo mais haverá festa Os desesperos, os lamentos. as tristezas... Procuram um canto de muro para se esconderem Nas noites de festas do Beco impera o riso, os abraços, a dança... A ordem é cantar, desopilar zoar De quando em vez um soluço aparece e é prontamente abafado

por sorrisos por tim, tins ... É, no Beco, brincar é coisa séria A lua azul bem sabe ...

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"Pegando o Beco": comensalidade e sociabilidade boêmia na Cidade Alta (Natal/RN) Resumo:

A Cidade Alta é um espaço degradado onde são localizados os bares tradicionais do centro de Natal (RN) que oferecem pratos da culinária local e são também redutos dos intelectuais de esquerda. Há pelo menos dez anos, observa-se uma revitalização do centro da cidade, com o surgimento de espaços festivos e a valorização de uma música popular associada à boemia, o samba. Nesta pesquisa, além dos aspectos festivos, iremos nos interessar pelo estatuto da comida e as suas formas de consumo, partindo da ideia de que fazem parte da boemia junto com a música e a bebida. Assim, objetivamos descrever o estilo de vida, as formas de comensalidade e de sociabilidade em três bares das adjacências do Beco da Lama. Para a coleta de dados, utilizamos do método etnográfico: entrevistas semiestruturadas com os cozinheiros e os garçons, conversas informais com os frequentadores dos bares e a observação direta. Portanto, encontramos que os bares aparecem como os principais responsáveis da resistência ao processo de gastronomização das cozinhas locais, pois preservam os aspectos de uma “culinária de raiz” e de antigas práticas urbanas em Natal que tem se perdido com o crescimento de um turismo gastronômico predatório. As formas de comensalidade observadas nos bares associadas à boemia apresentam uma resistência à uma cultura de massa e às mudanças recentes do cenário urbano.

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“Pegando o Beco”: commensality and bohemian sociability in Cidade Alta (Natal/RN) Abstract:

The Cidade Alta is a degraded space where the traditional bars of Natal’s downtown (RN) are located. These bars offer dishes of local cuisine and are also strongholds of leftist intellectuals. For at least ten years, there has been a revitalization of the Cidade Alta, with the emergence of festive spaces and the appreciation of popular music associated with bohemia, samba. In addition to the festive aspects, we will be interested in the status of food and its forms of consumption, starting from the idea that they are part of bohemia along with music and drink. This research aims to describe the lifestyle, the forms of commensality and sociability in three bars in the adjacency of Beco da Lama. For data collection, the ethnographic method is used: semi-structured interviews with cooks and waiters, informal conversations with consumers and direct observation. Thus, the bars appear as the main responsibility for the resistance to the gastronomization process of the local kitchens, as they preserve the aspects of “root cooking” and old urban practices in Natal that has been lost with the growth of a predatory gastronomic tourism. The forms of commensality observed in bars associated with bohemia are resistant to mass culture and recent changes in the urban scene.

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LISTA DE IMAGENS

Imagem 01: Mapa de Natal.

Imagem 02: Boêmios no Café Rotisserie, em Natal, no ano de 1929. Imagem 03: O Grande Ponto na década de 1950.

Imagem 04: Fotografia do político Djalma Maranhão em discurso no Grande Ponto Imagem 05: Beco da Lama nos anos 1970.

Imagem 06: Beco da Lama durante festa no ano de 2017. Imagem 07: Quadro com de desenho de boêmios no bar. Imagem 08: Visão do Beco da Lama após a revitalização. Imagem 09: Croqui do bairro de Cidade Alta

Imagem 10: Bar do Pedrinho.

Imagem 11: Cadeiras e mural de exposição no Bar do Pedrinho Imagem 12: Balcão do Bar do Pedrinho.

Imagem 13: Pintura de Pedro Faustino da Costa Imagem 14: Bar da Nazaré.

Imagem 15: Parte interna do Bar de Nazaré.

Imagem 16: Pintura do rosto de Nazaré na parede do bar. Imagem 17: Fachada do Bar do Zé Reeira.

Imagem 18: Espaço Cultural Ruy Pereira com as mesas do Bar do Zé Reeira. Imagem 19: Folder da festa Raízes Africanas.

Imagem 20: Folder do Hardcore contra o fascismo. Imagem 21: Croqui do Bar do Zé Reeira.

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Imagem 23: Vendedor de chapéus.

Imagem 24: Sambista na festa Raízes Africanas. Imagem 25: Ogum no Centro da Mesa de Samba. Imagem 26: Croqui do Bar da Nazaré.

Imagem 27: Dança de Ogum.

Imagem 28: Festa em Homenagem à Raul Seixas. Imagem 29: Croqui do bar do Pedrinho.

Imagem 30: Vendedor de chapéus no Bar do Pedrinho. Imagem 31: Panfleto do Carnabeco 2018.

Imagem 32: Banda de frevo durante o Carnabeco

Imagem 33: Caminhada durante o Carnabeco no Beco da Lama. Imagem 34: Caminhada durante o Carnabeco na Rua Princesa Isabel. Imagem 35: Preparação da Meladinha no Bar de Pedrinho.

Imagem 36: Nélio na cozinha do Bar do Pedrinho. Imagem 37: Cozinha do Bar da Nazaré.

Imagem 38: A cozinha do Bar do Zé Reeira. Imagem 40: Caldo de camarão do Bar da Nazaré. Imagem 41: Caldo de mocotó do Bar do Pedrinho. Imagem 42: Picado vendido do Bar de Nazaré.

Imagem 43: Carne de sol com macaxeira e cebola do Bar da Nazaré Imagem 44: Pirão de carne do Bar do Zé Reeira.

Imagem 45: Pastel de queijo do Bar do Zé Reeira. Imagem 46: Batatas fritas do Bar do Zé Reeira.

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Imagem 48: Almoço no Bar do Pedrinho. Imagem 49: Almoço no Bar do Zé Reeira. Imagem 50: Almoço do Bar da Nazaré.

Imagem 51: Caixas de cerveja no Bar de Nazaré. Imagem 52: Garrafa de cerveja.

Imagem 53: Frutas em cima do balcão do Bar do Pedrinho. Imagem 54: Seu Nazi. Imagem 55: Pintura de seu Nazi. Imagem 56: Meladinha.

Imagem 57: Pratos e copos no Bar do Zé Reeira.

Imagem 58: Garrafas, pratos e copos no balcão do Bar da Nazaré. Imagem 59: Copo de cerveja.

Imagem 60: Copo de cachaça.

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LISTA DE QUADROS.

Quadro 01: Petiscos servidos nos bares. Quadro 02: Caldos servidos nos bares.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

IFRN – Instituto Federal do Rio Grande do Norte.

SAMBA – Sociedade dos amigos do Beco da Lama e Adjacências. SUDENE – Superintendência de desenvolvimento do Nordeste. UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 19

COMIDA, COZINHA, SOCIABILIDADES E COMENSALIDADE ... 21

O CAMPO E A ORGANIZAÇÃO DA PESQUISA ... 23

1. OS ESPAÇOS DA BOEMIA. ... 26

1. O estilo de vida da boemia. ... 26

1.2. Das ruas para os bares, cafés e confeitarias, da Ribeira para a Cidade Alta. .... 29

1.3. O Beco da Lama e adjacências. ... 36

1.4. Os bares da boemia: Pedrinho, Nazaré e Zé Reeira. ... 41

1.5. Os Bares do Beco e adjacências: da crise identitária à resistência a gastronomização ... 52

2. ETNOGRAFANDO OS MOMENTOS DE COMENSALIDADE E SOCIABILIDADE BOEMIA NOS BARES DE CIDADE ALTA. ... 55

2.2. As festas. ... 55

2.1.1. Raízes Africanas no Bar do Zé Reeira... 55

2.1.2. A quinta-feira do samba e a festa de Ogum... 61

2.1.3. A sexta-feira do choro e do samba no Bar de Pedrinho. ... 66

2.1.4. O Carnabeco ... 70

2.3. A hora do almoço. ... 73

2.4. Os encontros. ... 75

2.5. Comensalidade e sociabilidades da boemia. ... 77

3. A COZINHA DOS BARES DA BOEMIA. ... 83

3.1. Os cozinheiros e cozinheira. ... 83

3.2. Os espaços das compras. ... 86

3.3. Os alimentos e as preparações: estilo alimentar potiguar. ... 87

3.4. As técnicas culinárias da cozinha: os assados, ensopados e guisados. ... 93

3.5. Os petiscos: pratos principais, acompanhamentos, temperos e molhos. ... 96

3.6. As bebidas. ... 100

3.7. Os utensílios. ... 104

3.8. A dietética: a comida quente e a comida pesada. ... 107

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 111

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19 INTRODUÇÃO

A ideia inicial desta pesquisa surgiu do desejo de compreender os aspectos culturais e sociais da alimentação. Por isso, o objetivo principal deste estudo é descrever e analisar a comida e as formas de comensalidade e sociabilidade nos bares da boemia no Centro da Cidade de Natal, também conhecido como Cidade Alta. A partir da etnografia realizada no ano de 2018, irei mostrar como a comida e o seu consumo revelam aspectos de um estilo de vida boêmio.

Antes de problematizar esta pesquisa, é necessário explicar como cheguei até este objeto de pesquisa. Cada pessoa tem um espaço preferido em sua cidade. Particularmente, para mim que nasci em Natal, a Cidade Alta é um lugar de boas memórias da infância, pois meu pai tinha o costume de me levar aos sebos do Centro para comprar livros. Este espaço, também, sempre despertou a minha curiosidade e encantamento por causa dos prédios antigos. O interesse pelo Centro da Cidade se intensificou durante a minha graduação, pois foi ali que iniciei minhas pesquisas.

Eu tive formação acadêmica em Nutrição, na qual havia uma preocupação com aspectos socioantropológicos da alimentação que apontava para a necessidade de desconstruir a ideia de que a alimentação era apenas um aspecto biológico. Nesse sentido, passei a dar mais atenção às disciplinas de Ciências Humanas, em especial à Antropologia e à Sociologia. Nesse cenário, participei de alguns projetos de extensão que tiveram uma interface entre Nutrição e Ciências Humanas. Em uma das disciplinas do currículo, que tratava especificamente de Pesquisa Qualitativa em Nutrição, descobri a Casa da Maçã, um restaurante que existiu na Cidade Alta entre 1970 e 1980. Minha orientadora de graduação sugeriu que eu fizesse minha monografia sobre as representações do consumo alimentar na Casa da Maçã. Desde esse pequeno trabalho já tinha percebido a importância dos bares e restaurantes na Cidade Alta.

Antes de finalizar a graduação, em uma conversa com a minha orientadora, falei do meu interesse em continuar na vida acadêmica e que pretendia continuar a estudar sobre aspectos culturais da alimentação. Nessa conversa, surgiu o tema da Cidade Alta, e em seguida falamos dos bares da boemia e das festas que acontecem neles. A partir disso, mesmo sem ter um projeto de pesquisa concreto sobre como fazer a pesquisa, pensamos em como seria interessante observar o espaço social alimentar dos bares do Centro da Cidade que são designados como tradicionais pelos seus frequentadores.

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20 Ingressei no mestrado em Antropologia Social em 2017 e comecei a procurar uma problematização das formas de consumo alimentar e de sociabilidade. Inicialmente, a partir da influência de amigos que frequentavam os bares de Nazaré e Zé Reeira na Cidade Alta, passei a frequentar os dois lugares e observar como eu poderia discutir o comer e a comida. Durante as observações, a partir de conversas com amigos na mesa do bar, lembrei do Festival

Pratodomundo1 ocorrido em 2015. O slogan do evento dizia que os cozinheiros dos bares deveriam preparar pratos de valor acessível (entre 10 e 12 reais) que prestassem homenagem à Luís da Câmara Cascudo, folclorista potiguar boêmio, e autor do livro A história da

alimentação no Brasil. A chamada do festival também dizia que os pratos deveriam estar de

acordo com o estilo de vida da boemia da Cidade Alta. Além disso, em uma das conversas que tive com um dos donos dos bares sobre a comida, questionei sobre a escolha do cardápio e ele respondeu: “Quem já se viu, na Cidade Alta, um reduto boêmio, se comer lasanha? Pizza? Nem pensar! Aqui é petisco, caldo! É comida para se comer com cerveja e com cachaça!". A partir dessas observações sobre o festival gastronômico dos bares, e durante as minhas primeiras conversas com cozinheiros e frequentadores, percebi que a comida e as formas de sociabilidade eram elementos que poderiam retratar a identidade da boemia em Natal.

Portanto, a primeira pergunta que norteou esta pesquisa foi: Quais as características da comida e as formas de sociabilidade que estão relacionadas a um estilo de vida boêmio?

A partir dessa primeira questão, outras perguntas também surgiram: como definir a boemia? Por que os bares de Cidade Alta em Natal são espaços da boemia? De que comida se fala? Que regras e representações perpassam desde a escolha do bar até o consumo alimentar? Como acontecem a sociabilidade e comensalidade da boemia? Resolvi desenvolver esta pesquisa para responder a estas perguntas.

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21 COMIDA, COZINHA, SOCIABILIDADES E COMENSALIDADE

Dize-me o que comes e te direi qual deus adoras, sob qual latitude vives, de qual cultura nascestes e em qual grupo social te incluis.

Sophia Beiss (1995, p. 10)

A ideia de partida desta pesquisa é de que as formas de sociabilidade e de comensalidade traduzem um estilo de vida urbano, no caso o do centro da cidade do Natal. Assim, precisamos recorrer aos autores especialistas da Antropologia da Alimentação e da Antropologia Urbana.

O autor de referência da Antropologia da Alimentação em contexto urbano é Roberto Damatta (1986). Aponta para a diferenciação entre alimento e comida: a substância alimentar e os nutrientes necessários à manutenção do corpo biológico em funcionamento se opõem à comida, que é um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se. As formas de comer definem não só aquilo que é ingerido, mas também aquele que ingere (DAMATTA, 1986, p. 56). A comida, como aponta Damatta, é um elemento capaz de classificar os indivíduos e as sociedades, e cada grupo possui maneiras distintas de escolher, produzir, preparar e consumir sua comida. Assim, há estilos nacionais: a cozinha brasileira se distingue da italiana ou da francesa (POULAIN, 2013). Nesse sentido, têm-se ainda dentro desses territórios cozinhas que caracterizam uma região, um estado, uma cidade e até um bairro.

A outra perspectiva teórica que nos guiará nesta pesquisa é a de Claude Lévi-Strauss (2006). Na sua reflexão sobre os mitos bororos, ele definiu a cozinha como uma linguagem: o uso e o controle do fogo, as técnicas de preparação dos alimentos, as práticas alimentares ou as maneiras à mesa revelam estruturas lógicas que são a da cultura. Ao retomar elementos da teoria estruturalista, Claude Fischler (1995) amplia a perspectiva e propõe uma generalização, explicando que a cozinha ou a culinária é um reflexo da cultura, pois é composta por ingredientes, regras, classificações, técnicas e valores. Nas palavras do autor, a cozinha é um conjunto de:

Representações, crenças e práticas que estão associadas a ela e que compartilham os indivíduos que formam parte de uma cultura ou de um grupo no interior desta cultura. Cada cultura possui uma cozinha específica que implica classificações, taxonomias particulares e um conjunto complexo de regras que atendem não só à preparação e combinação de alimentos, mas também sua colheita e seu consumo (FISCHLER, 1995, p. 34, tradução minha).

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22 Outros autores também se propuseram a discutir a comida como um elemento importante para definir as identidades. Contreras e Gracia (2011) mostram que através da comida as sociedades revelam aspectos importantes sobre seus modos de vida, da identidade social e os elementos que constituem as tradições e memórias da coletividade. Montanari (2010) concorda com esses autores quando afirma que a comida é um elemento pelo qual é possível expressar a identidade e comunicar algo sobre a sociedade. A ingestão de alimentos tem um poder transformador da realidade: assim a alimentação é consubstancial à identidade (MINTZ, 2001; MACIEL, 2005).

Além da cozinha e da comida, trataremos das formas de sociabilidade e comensalidade da boemia: os usos dos espaços públicos, as temporalidades, a frequentação dos espaços. As maneiras pelas quais os indivíduos se organizam nos bares e as maneiras à mesa também são marcadores da identidade e do estilo de vida do grupo. Como mostra Freitas (2003), é ao redor da mesa e da comida que as identidades se expressam: práticas, estilos, relações e subjetividades são compartilhados ou marcam as diferenças entre os grupos.

Se os bares da boemia são espaços de consumo de alimentos e bebidas, também são lugares onde acontecem outras formas lúdicas da sociação, maneira pela qual a sociedade se representa como unidade, reunindo-se em torno de interesses em comum (SIMMEL, 2006). Desta forma, a sociabilidade que envolve o comer e o beber junto é chamada comensalidade. Para Simmel (2004), comer e beber junto são elementos socializadores que transformam uma atividade biológica individual em ato compartilhado. Concordando com o autor, Fischler mostra que “um dos aspectos mais marcantes da sociabilidade humana é dado pela comensalidade” (FISHLER, 2012 p. 271), pois envolve hábitos culturais, atos simbólicos, organização social e compartilhamento de experiências e valores.

Em uma perspectiva histórica Flandrin e Montanari (1998) afirmam que a comensalidade na história foi percebida como a fundadora da civilização humana, pois foi em torno do fogo que os seres humanos começaram a se reunir para assar os alimentos, se aquecer e conversar. Este dado mostra como a comensalidade tem um papel importante para a humanidade, pois mostra a passagem de uma atividade biológica para uma atividade social. Segundo Ishige (1987), em muitas culturas as refeições podem ser gustativamente boas, mas quando realizadas sozinho podem se tornar ruins.

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23 Portanto, guiada pela discussão apresentada acima pretendo descrever e analisar a cozinha, a comida e as formas de comensalidade nos bares das adjacências do Beco da Lama que estão relacionadas ao estilo de vida da boemia.

O CAMPO E A ORGANIZAÇÃO DA PESQUISA

Para alcançar os objetivos propostos nesta pesquisa, escolhi inicialmente observar dois bares frequentados pela boemia na Cidade Alta: o Bar da Nazaré e o Bar do Zé Reeira, sabendo que era o mesmo perfil de pessoas que frequentava os estabelecimentos. Assim, a pesquisa etnográfica, como propõe Oliveira (1998), permite a aproximação da teoria e das práticas através do olhar, ouvir e escrever, ou como propõe Geertz (2009), estar lá e escrever aqui, que se traduz em imergir em campo e refletir em momentos distintos.

Inicialmente conversei com o dono do Bar do Zé Reeira, José Flor, falei sobre o meu interesse de pesquisa, e ele, entusiasmado, concordou com a minha proposta. Da mesma forma, conversei com a dona do Bar da Nazaré, Nazaré, e ela concordou que eu realizasse minha pesquisa em seu bar. Também fui recebida por Dayana, filha de José Flor; e por Paulo Eduardo, filho de Nazaré, que juntos com os pais administram os bares.

Ao chegar nos bares, me apresentei como antropóloga e expliquei que a proposta era fazer a pesquisa sobre a comida e as maneiras de comer nos bares. Durante o primeiro semestre de 2018, fiz a observação direta na cozinha dos bares para observar as formas de preparo e a organização funcional do espaço. Também fiz a observação direta nos momentos de comensalidade e sociabilidade desses bares em quase todos os dias da semana durante a manhã, tarde e noite. Como nos bares sempre havia festas, Paulo e Dayana me informavam através do whatsapp sobre os eventos.

Durante a pesquisa, devido à minha frequência nesses bares, construí uma rede de amizades com frequentadores assíduos. Destaco aqui Franklin Levy, um senhor que sempre trabalhou com fotografias e atualmente, por hobby, faz fotos dos eventos no Centro da Cidade para colocá-las em seu facebook. Nós nos conhecemos na primeira festa que aconteceu no Bar do Zé Reeira. Nosso primeiro contato aconteceu por causa da câmera fotográfica que eu portava no dia da festa. Ele se aproximou de mim e perguntou se eu era jornalista, então expliquei que minhas fotos iriam servir para a minha pesquisa de mestrado.

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24 Conhecer Levy (passei a chamá-lo de Levy) naquela noite foi fundamental para minha pesquisa, pois ele conhecia cada lugar da Cidade Alta, os donos dos bares, os artistas, assim como também era reconhecido pelos frequentadores assíduos. Além disso, ele sempre me avisava pelo whatsapp sobre os eventos no Centro. Sua fala refletia o quão conhecedor dos artistas ele era. Quando eu expliquei sobre a minha pesquisa, ele me perguntou: “Vá quinta lá em Nazaré que tem Batuque de um povo, sabe, não é? Você conhece Didi de Assis? E o outro

final de semana vai ter Debinha aqui, venha”2

A partir de Levy conheci Andrea, Carolina, Alex e Tarcio, frequentadores assíduos dos bares; as integrantes da SAMBA (Gorete, Hortência e Patrícia), uma associação de frequentadores do Beco da Lama; e os músicos que fazem shows nos bares como Debinha e Carlos Brito. As conversas informais com essas pessoas também foram utilizadas nesta pesquisa.

A partir dessas amizades que fui construindo durante a pesquisa, fui convidada a conhecer o Bar do Pedrinho, que, segundo a maioria desses frequentadores, seria interessante incluir na pesquisa, já que tinha um significado importante para a boemia. Portanto, no final do ano de 2018 e início do ano de 2019 passei a frequentar este bar, realizando observação direta na cozinha e nos espaços de sociabilidades. Informei a Nélio, dono do Bar do Pedrinho, sobre a pesquisa, e ele também aceitou a proposta positivamente. Assim como fiz com os outros donos dos bares, realizei uma entrevista semiestruturada para conhecer a história do bar na Cidade Alta.

Todas as minhas observações nos bares eram anotadas em um caderno de campo que me serviu como material de análise. As fotografias e os vídeos que fiz durante a pesquisa também serviram como material de análise.

A principal dificuldade encontrada para realizar esta pesquisa diz respeito ao fato de ela estar inserida em uma realidade próxima à minha vivência em Natal. Foi o desafio de realizar “um estranhamento em casa” (PEIRANO, 2006), pois a comida e as formas de sociabilidade nesses bares são práticas comuns do cotidiano de alguém que mora em Natal.

Após a análise, para poder descrever as formas de comensalidade e a frequentação dos bares, estruturei este trabalho em três capítulos. No primeiro, apresento o contexto histórico da

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25 Cidade Alta e dos bares, e como esses espaços se tornaram lugares de resistência identitária frente às mudanças socioeconômicas da cidade e ao processo de gastronomização das cozinhas locais.

No segundo capítulo descrevo os momentos de sociabilidade e as formas de comensalidade nos bares da boemia. A partir da observação participante, verifiquei que havia três formas de frequentar os bares: durante o almoço, em encontros com amigos e nas ocasiões festivas. Assim, o estilo de vida boêmio natalense se desenha melhor: é composto pela frequentação dos espaços degradados do centro da cidade, o compartilhamento de um estilo de música, os mesmos modos à mesa e a partilha de alimentos e bebidas.

No terceiro e último capítulo analiso o conjunto de regras e representações da cozinha dos bares. Primeiro, eu explico como são organizadas as compras dos ingredientes; em seguida mostro quais são os pratos servidos nesses bares, os utensílios utilizados, a escolha das bebidas e as representações simbólicas dos alimentos. Ao final do capítulo, analiso as características em comum da cozinha que representam o estilo de vida da boemia: as compras em feiras locais, o uso de técnicas e alimentos locais (as comidas de raiz), os utensílios de baixo custo e as bebidas alcoólicas.

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26 1. OS ESPAÇOS DA BOEMIA.

Meu propósito neste primeiro capítulo é explicar e descrever os espaços de sociabilidades e comensalidades. Como foi explanado na introdução desta pesquisa, a boemia utiliza os bares e becos da Cidade Alta como espaços privilegiados para suas reuniões sociais e comensais. Esta relação se configurou a partir de modificações socioculturais que aconteceram em Natal ao longo do século passado.

Incialmente eu irei explicar as mudanças que culminaram na transferência dos espaços da boemia das ruas para os bares, cafés e confeitarias entre o século XIX e XX, e do bairro da Ribeira para a Cidade Alta. Em seguida mostro a importância do Beco da Lama atualmente para a boemia, e como esse espaço foi reapropriado por diferentes grupos para se transformar em espaço boêmio. Em seguida descrevo os bares e a história de vida dos seus donos, que serviram de modelos para esta pesquisa, e por último mostro como um movimento de contestação de antigos moradores, donos de bares e classes artísticas (poetas, músicos, pintores), militantes de esquerda e intelectuais entre os antigos ao processo de gastronomização da culinária colocaram esses bares descritos como espaços privilegiados para a boemia e para se conhecer a culinária local e os espaços de comensalidade.

1. O estilo de vida da boemia.

Popularmente, os boêmios são conhecidos como pessoas que apreciam a vida noturna, os bares e as bebidas alcoólicas. Segundo o dicionário de língua portuguesa, o boêmio é o sujeito despreocupado e farrista3. Entretanto, há uma frase de Oswald de Andrade que amplia o sentido do que é ser boêmio: “o oposto do burguês não é o proletário, é o boêmio”.

De acordo com Oliven (2010), a afirmativa de Oswald de Andrade, feita após uma viagem do escritor à França, revela um aspecto importante das relações de classe, o trabalho e o lazer na sociedade brasileira. O século XIX, no Brasil, foi marcado pela do exercício de direitos trabalhistas, sendo caracterizado pelas relações de favor entre os senhores e escravos. Com o fim da escravidão e início do processo de industrialização no país, maior parte da população necessitava de trabalho regular para sobreviver. Entretanto, os cidadãos que não se adaptavam

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27 às novas condições de trabalho impostas pelas relações de favor eram chamados de malandros ou “vida fácil”. De acordo com Vasconcellos (1977), a metáfora do malandro surge a partir do embate entre capital e trabalho. O malandro “se constitui simultaneamente em estratégia de sobrevivência e concepção de mundo através das quais alguns segmentos das classes subalternas se recusam a aceitar a disciplina e a monotonia associadas ao universo do trabalho assalariado” (OLIVEN, 2008, p. 30). O “descomprometimento” com mundo do trabalho do malandro se relacionava à imagem do boêmio (de farras e bebedeiras) pois ambos representavam a transgressão dos valores de uma cultura dominante: a ordem, a família e o trabalho. Os autores Mendes e Nunes (2008, p. 94) mostraram que “a postura principal que define os boêmios é a de resistência ao projeto social burguês, que se impunha vitoriosamente” no Brasil, mas que sofreu influência dos ideais franceses da revolução.

Nesse sentido, é importante compreender um pouco sobre o contexto histórico da boemia na França que influenciou os ideais do malandro boêmio no Brasil. Segundo Nunes e Mendes (2008), a boemia surge na França como um fenômeno contrário as mudanças trazidas pela revolução francesa e pelo crescimento das cidades. Os autores explicam que a Revolução fundou a burguesia como classe dominante, portanto, a partir disso, seus ideais e valores liberais prevaleceram sobre os demais:

O século XIX gerou a civilização burguesa e, com ela, consequentemente, seus ideais e valores. Os ideais da Revolução, baseados no lema “Liberté, Égalité, Fraternité”, que fundou a burguesia como classe dominante, não conseguiu cumprir as suas promessas. Talvez venha daí a postura de resistência dos boêmios em relação aos burgueses, ambos frutos da Revolução Francesa. Vale lembrar que a própria definição de “burguês” estava tomando corpo nessa época, início do século XIX, e de muitos modos, boêmio e burguês ajudavam a definir um ao outro (NUNES E MENDES, 2008, p. 84)

A boemia foi um estilo de vida representado em grande parte pelos artistas que negavam as novas mudanças sociais após a revolução burguesa (GRAÑA e GRAÑA, 1990). Isso porque os artistas que antes tinham suas obras patrocinadas pela aristocracia francesa não aceitavam os valores liberais que passaram a considerar a arte como mercadoria (NUNES e MENDES, 2008; BOURDIEU, 1996 e WILSON, 1999; 2000). Prisioneiros das lógicas de mercado, a sensação dos artistas era que a arte havia perdido sentido e se transformado apenas em comércio (WILSON, 2000).

Um dos livros mais famosos sobre a boemia foi Paris boemia: cultura, política e os limites da vida burguesa, escrito por Jerroid Seigel (1992). Na obra, o autor descreveu a boemia como um fenômeno social de jovens artistas intelectuais que surgiu no século XIX em oposição

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28 aos valores da burguesia. Nas palavras de Seigel “a boemia foi a apropriação dos estilos de vida marginais pelos burgueses jovens e não tão jovens, para a dramatização da ambivalência em relação às suas próprias identidades e destinos sociais” (Seigel, 1992, p. 19-20, tradução minha). O autor também caracterizou a boemia como pessoas que:

usavam roupas extravagantes, cabelos longos, vivem o momento como modo de vida, não têm residência fixa, praticam a liberdade sexual, possuem entusiasmos políticos radicais, consomem bebida, usam drogas, exibem padrões irregulares de trabalho e hábitos de vida noturna (SEIGEL apud MENDES e NUNES, 2008, p. 85)

O estilo de vida da boemia também se popularizou na França a partir do livro Scènes de la vie de bohème (1848) do escritor Henri Ruger sobre os artistas parisienses no contexto da Revolução Francesa. Na obra, Ruger conta a história de um pintor, um escritor, um músico e um filósofo que se unem pelo posicionamento anti-burguês.

No Brasil, o estilo de vida do boêmio e do malandro se propagam na música popular brasileira com letras que demonstram a recusa ao trabalho na sociedade urbano industrial (OLIVEN, 2010), como podemos observar nas letras dos cantores Ismael Silva; e Orestes Barbosa e Antônio Nássara, respectivamente:

Se eu precisar algum dia de ir pro batente não sei o que será, pois vivo na malandragem e vida melhor não há (Orestes Barbosa) Você diz que eu sou moleque porque não vou trabalhar, eu não sou livro de cheque

para você ir descontar (Antônio Nássara)

Além da música, no Brasil, segundo Nunes e Mendes (2008), o estilo de vida da boemia também esteve relacionado à valorização da arte e foi retratada no final do Século XIX nos romances A Conquista (1899) e Fogo-Fátuo (1929) do escrito brasileiro Coelho Neto influenciado pela boemia de Paris, mostrando a vida de escritores brasileiros em um contexto pós abolição da escravidão e início da República.

Em Natal, o estilo de vida da boemia tem relação com as transformações urbanas ocorridas na cidade. Durante a segunda metade do século XX, os bares da Cidade Alta eram os espaços onde os homens que preservavam uma vida noturna, o consumo de bebidas alcóolicas e a vida artística se reuniam para as reuniões boemias da cidade (FREITAS, 2013), assim como o principal espaço de sociabilidade e comensalidade da cidade. Estes espaços, que ao longo do tempo foram se tornando majoritariamente comerciais, são frequentados por integrantes dos movimentos culturais, militantes de esquerda, antigos boêmios, jovens e adultos que buscam

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29 suas “raízes” como uma maneira de preservar o antigo centro, tradicional reduto boêmio. Nesses espaços, as formas de sociabilidade festivas e do cotidiano, o consumo de comidas e bebidas parecem caracterizar um estilo de vida boêmio que resiste às transformações urbanas em Natal. Sabendo que a boemia é um estilo de vida que contradiz as condições de um projeto cultural burguês dominante, podemos nos perguntar que aspectos da comida e das formas de sociabilidade e comensalidade podem refletir este estilo de vida?

1.2. Das ruas para os bares, cafés e confeitarias, da Ribeira para a Cidade Alta.

Sendo luar, Manuel Joaquim gastava as horas lentas cantando, violão ao peito, doces queixas de amor e saudades amarguradas, com ceias finais de peixe-frito e aguardente, cujo aljofre perolava os copos bojudos de vidro grosso. (Luís da Câmara Cascudo) A Cidade Alta é o espaço da capital potiguar onde hoje estão os principais bares responsáveis pela comercialização de comidas e bebidas associados ao estilo de vida da boemia potiguar. Mas nem sempre foi assim. Para que esses botequins chegassem ao patamar de reduto da boemia foi necessária uma série de transformações sociais, culturais e urbanísticas que se iniciaram no século XIX na cidade de Natal, a partir de um contexto brasileiro influenciado pela cultura europeia e pelo fim da colonização portuguesa. Abaixo a imagem 01 traz o mapa de Natal. Os números 10 e 12 correspondem à Cidade Alta e a Ribeira, respectivamente.

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30 Imagem: Mapa de Natal. Fonte: <mapa da ribeira e cidade alta natal - Bing> Acesso em 09 de setembro de 2019.

Freitas (2013), em sua pesquisa sobre os espaços da boemia entre 1900 e 1960, apresenta as modificações ocorridas nos espaços de sociabilidade da boemia natalense. No final do século XIX, o espaço geográfico da cidade de Natal se resumia a Cidade Alta, bairro da Ribeira e pequenas regiões periféricas que abrigavam casas construídas com palhoças e grandes faixas de terrenos baldios separando os bairros. Neste período, os espaços de lazer dos moradores da cidade se resumiam às ruas, às praias e às pequenas praças.

Com a Proclamação da República em 1889, os estados brasileiros passaram a ter autonomia econômica. A consequência disso foi o investimento na “modernização” da cidade. Esta ideia partia das “elites” locais, que tinham contato com os países europeus e almejavam um espaço urbano nos moldes da cultura europeia. É importante ressaltar que o final do século XIX foi marcado, na Europa, pela expansão da industrialização e pelo desenvolvimento tecnológico (COSTA E SCHWARCZ, 2000), e esse processo representava a chegada à “civilização”.

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31 Portanto, a “modernização” e o processo “civilizatório” na cidade se refletiram na construção de redes de distribuição de água, saneamento, energia elétrica e sistema de transporte público (bondes) no bairro da Ribeira e na Cidade Alta. Além disso, novos espaços de sociabilidade, dentre eles os cafés, bares e clubs, foram construídos, onde as famílias, políticos e boêmios das classes altas pudessem circular. Segundo Freitas (2013, p. 29), “para os intelectuais que escreviam nos principais jornais, o hábito de frequentar cafés ajudaria Natal a avançar em direção aos padrões de elegância e civilidade essenciais para que a cidade adquirisse características de uma capital moderna”.

Os lugares onde se pudesse comer e beber ganhavam destaque, pois representavam a início da “civilização” (ELIAS, 1994). O restaurante é um tipo de comércio que surgiu com os mercados e as feiras, que obrigavam camponeses e artesãos a deixarem seus domicílios durante um ou vários dias, e, portanto, a parar para se alimentarem nas estradas, onde consumiam os

restaurateurs, caldos restauradores, ao mesmo tempo que estabeleciam relações sociais4

(PITTE, 1998).

Na França, os restaurantes representavam o requinte e o luxo dos grandes boulevards frequentados pela aristocracia, portanto um espaço de diferenciação social para a aristocracia (BORDIEU, 2013). A revolução francesa abriu as possibilidades para que a burguesia tivesse acesso aos restaurantes, que agora passara ser um comércio. O Brasil, influenciado pelo ideal de cultura europeia, observava os grandes cafés, bares e restaurantes como espaços da “modernidade”.

Portanto, em Natal, se no século XIX a boemia utilizava as ruas e as praias como espaços de sociabilidade, no século XX os bares e os cafés passaram a ser os novos lugares para esses encontros. As reuniões boêmias costumavam acontecer durante as noites e nas madrugadas, nas quais intelectuais e artistas faziam tertúlias literárias, acompanhadas de modinhas5 e serenatas. Nestes bares, enquanto as apresentações de música e poesia aconteciam, eram vendidos bebidas alcóolicas e comidas que faziam parte do universo de diversão e prazer da boemia natalense (FREITAS, 2013).

4 Sobre a história dos restaurantes buscar PITTE, J.R. Nascimento e expansão dos restaurantes. In. FLANDRIN,

J.L. MONATARI, M. A história da alimentação. Tradução de Luciano Vieira Machado e Guilheme J. F. Teixeira. São Paulo: Estação Liberdade, 1998; e SPANG, R. L. A invenção do restaurante. Rio de Janeiro: Record, 2003.

5 A modinha é uma canção, uma obra composta de melodia e versos, harmoniosamente combinados para serem

cantados. Serenata do pescador, de autoria de Othoniel de Menezes, foi musicado e tornou-se a modinha mais conhecida na cidade de Natal. Serenata do pescador tornou-se uma canção popular, tocada nas serenatas durante a madrugada (FREITAS, 2013, p. 52).

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32 O crescimento de espaços de sociabilidade da boemia das classes mais abastadas em Natal se concentrava no bairro da Ribeira. Como exemplos têm-se o Café Socialista, o Café Chile, o Café Cova da Onça, o Bar Antártica, o Bar Delícia e a Rotisserie Natal (Imagem 01). O bairro de Cidade Alta, predominantemente residencial, abrigava alguns bares frequentados pela boemia, a exemplo do Bar do Oco, do Bar Grande Ponto e do Café Magestic (Imagem 02), este último, por sua vez, referenciado como um espaço de encontro dos poetas, jornalistas e escritores potiguares, a exemplo de Luís da Câmara Cascudo, Henrique Castriciano, Othoniel Menezes, Jorge Fernandes, Ezequiel Wanderley e Carlos Siqueira (FREITAS, 2013).

Cascudo (2002) menciona alguns dos espaços frequentados pela sua geração de boêmios:

[...] o Bar Majestic, antes chamado de Potiguarânia, o grande bar da minha geração, situado na Rua Ulisses Caldas, e frequentado por jornalistas, professores, literatos. Também frequentamos o Bar Delícia, na Praça Augusto Severo. Estes eram os dois pontos mais frequentados em Natal, na época. A minha geração toda passou por lá: Othoniel Menezes, Jorge Fernandes etc.; era o bar — o Majestic — da bebida, da classe média, da intelectualidade (CASCUDO, 2002, p. 42).

Imagem 02: Boêmios no Café Rotisserie, em Natal, no ano de 1929. Fonte: Cigarra, Natal, ano 2, n. 3, abr.

1929, p. 37.

O fato de a Ribeira ter uma quantidade de bares e cafés superior à Cidade Alta se justifica pelo destaque econômico que o bairro adquiriu durante o século XIX. Segundo Costa (2000), a Ribeira se tornou o principal centro comercial nessa época devido à construção do Cais em 1869. Dessa forma, a região ao redor do cais, por conta do fluxo de brasileiros, estrangeiros e

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33 produtos importados, era o centro das decisões comerciais, do turismo, das sociabilidades, do lazer e dos grandes armazéns (FREITAS, 2013).

Entretanto, com a entrada de Natal como ponto de apoio para os Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial6 (1939-1945), essa realidade começou a se modificar. Primeiro, a população urbana cresceu aceleradamente em pouco tempo, tanto pela chegada dos estrangeiros como pelos migrantes do interior do estado que vinham para a capital em busca de oportunidades de trabalho. A guerra foi um impulso para o comércio local, pois era necessário espaços de lazer onde os novos moradores pudessem circular. Portanto, esse cenário resultou na construção de novos espaços de lazer e sociabilidade (bares, cafés, restaurantes, casas de meretrício, hotéis etc.), tanto na Ribeira como na Cidade Alta. Natal passou por um crescimento urbano e econômico tão acelerado, que mesmo com a crise econômica entre 1924 e 1945, a cidade não sofreu efeitos significativos por isso (FREITAS, 2013).

Com o fim da guerra e retorno dos norte-americanos para os Estados Unidos, a Ribeira passou a perder o posto de centro econômico e espaço de sociabilidades natalenses para a Cidade Alta. Cordeiro (2012) aponta dois motivos principais para este fato. Primeiro, os moradores locais já não tinham condições econômicas para frequentar os espaços de sociabilidade da Ribeira, que eram destinados sobretudo aos turistas e norte-americanos, que utilizavam o dólar. O segundo motivo é que durante a guerra houve muitos conflitos entre norte-americanos e natalenses nesses bares, o que levou a Ribeira à fama de espaço lascivo e violento. As páginas policiais do jornal A República noticiavam, com frequência, brigas e confusões em bares e casas de meretrício do bairro (FREITAS, 2013).

Nesse cenário, em meados da década de 1940 os bares da Cidade Alta ganharam substancial importância, sobretudo aqueles situados no trecho da Rua João Pessoa entre as Ruas Princesa Isabel e Avenida Rio Branco, conhecido como Grande Ponto (Imagem 03). Este espaço aos poucos passou a ser a nova referência para a boemia literária potiguar. Segundo Medeiros (2014), a Cidade Alta, depois do fim da Segunda Guerra Mundial até os anos 1960, era o espaço de lazer da maior parte da população natalense e onde se podiam encontrar os melhores lugares para comer e beber.

O Grande Ponto foi um dos mais importantes espaços de sociabilidade natalense e da boemia em Natal na década de 1950. Um outro fator importante foi o crescimento do comércio

6 Natal foi um ponto estratégico para os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), por isso

nesse período houve uma migração intensa de norte-americanos para Natal. Para conhecer a história consultar: SOUSA, I. Nova História da Natal. 2 ed. Natal (RN). Departamento Estadual de Imprensa, 2008 e PEDEIRA, F.S. Chiclete eu misturo com banana: carnaval e cotidiano de guerra em Natal. (1920-1945). Natal: EDUFRN, 2005.

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34 na Cidade Alta, que atraía a população local. Dentre os estabelecimentos frequentados pela boemia nesse período no Grande Ponto estão: a Confeitaria Helvética, o Bar e Confeitaria Cisne, o Granada Bar e Confeitaria, o Bar e Café Expresso, o Restaurante Prato de Ouro, o Bar Dia e Noite e o posto de degustação do Café São Luís.

Imagem 03: O Grande Ponto na década de 1950. Autor: Jaeci E. Galvão. Disponível em <:: O GRANDE PONTO :: (overmundo.com.br)> Acesso em 01 de abril de 2019.

Além dos bares e cafés da boemia, o Centro de Natal também concentrava movimentações políticas, exposições artísticas e cortejos religiosos. As ruas João Pessoa e Princesa Isabel eram palco para os comícios políticos e para os movimentos estudantis (MEDEIROS, 2013). Sobretudo para os movimentos políticos de esquerda. Por isso, muitos sindicatos de partidos de esquerda ainda hoje se encontram no Centro da Cidade, e a maior parte de suas reuniões acontecem nos bares da boemia atuais. Na foto abaixo, é possível observar Djalma Maranhão, político do Partido Comunista brasileiro em discurso no Grande Ponto. Foi neste espaço que o político realizou passeatas políticas dos movimentos de esquerda, apresentações folclóricas e eventos culturais em geral (MARANHÃO, 1984).

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35 Imagem 04: Fotografia do político Djalma Maranhão em discurso no Grande Ponto. Autor: Desconhecido.

Disponível em: < :: O GRANDE PONTO :: (overmundo.com.br)> Acesso em 01 de abril de 2019.

Entretanto, na década de 1970, a Cidade Alta perdeu o status de principal espaço de sociabilidade dos natalenses. Iniciava-se o processo de “esquecimento” do lugar. Segundo Medeiros (2013), três fatores foram primordiais para que isso ocorresse: o crescimento dos limites urbanos através da construção de conjuntos habitacionais em regiões afastadas do centro; as políticas públicas fomentadas pelo governo militar para desenvolver o turismo litorâneo; e, por último, o aumento da quantidade de camelôs e moradores de rua.

Assim, sobre o primeiro fator, Medeiros (2013) observa que no período da Ditadura militar, a partir do final dos anos 1960 e início dos anos 1970, a política de implementação da SUDENE7, com o crescimento do parque industrial da cidade e a consequente viabilização das obras dos conjuntos habitacionais, culminou na migração de pessoas dos centros para regiões afastadas.

Sobre o segundo fator, que corresponde à intensificação do turismo litorâneo nos anos 1980, é importante notar que o governo militar havia destinado verbas para a construção de projetos turísticos em várias capitais brasileiras e, em Natal, esse investimento foi usado para a construção da Via Costeira (hotéis de luxo, restaurantes, centro de convenções, calçadões nas

7 SUDENE é a sigla para Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste, criada no ano de 1959 com o

objetivo de estimular o processo de industrialização da região e a superação da desigualdade social (FURTADO, 2006).

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36 praias e o Parque das Dunas), que ligava a praia de Ponta Negra à Praia do Pinto (FURTADO, 2008).

Assim, Medeiros (2013) mostra em seu trabalho que o crescimento populacional na década de 1980 e a falta de oportunidades de emprego levaram ao aumento do comércio informal (camelôs) e de moradores de rua na Cidade Alta. Os lojistas e moradores antigos temiam a transformação do “prestigioso” bairro em um espaço voltado para o comércio informal e dominado pela violência. Esse receio era fomentado sobretudo pelo jornalismo local, que reforçava a imagem de violência urbana e “desordem”. Este trecho presente no trabalho de Medeiros (2013) mostra o discurso elaborado pela imprensa local sobre a transformação do centro nos anos 1980: “Vendedores de Literatura de Cordel, camelôs, viciados em maconha, traficantes, ventríloquos e palhaços misturam-se, diariamente, aos simples transeuntes”. Para uma cidade que cresceu sob uma perspectiva higienista, todos esses “desvios” precisavam ser excluídos do antigo centro das classes favorecidas. O Grande Ponto, que fora espaço para grandes eventos na cidade e para os encontros dos intelectuais potiguares, agora era visto como um camelódromo, lugar de “pobreza e violência”.

Neste contexto, no início do século XX, os espaços de lazer surgem e a proposta é de “modernizar” a cidade e atender a necessidade da população que crescia. Mas, por trás desse processo, existe uma lógica de privatização dos espaços que é fomentada pelos discursos de violência urbana e de “atraso” social. Assim, neste mesmo período houve a construção dos shopping centers, com lojas e cinemas, sobretudo na zona sul, que seriam os novos espaços “seguros” para a circulação da população.

Diante deste cenário, o sentimento compartilhado entre os grupos da boemia era de que os seus espaços de consumo e lazer, o antigo centro boêmio, estavam se “perdendo” diante da violência e degradação, perdendo importância ante os espaços de turismo dos shoppings e do litoral. A partir deste contexto, surge uma crise identitária entre esses grupos e a necessidade da boemia de recuperar seu reduto perdido.

1.3.O Beco da Lama e adjacências.

Neste cenário de degradação dos espaços da boemia no Grande Ponto, outros espaços no centro da cidade, embora de menor “prestígio” social, se fizeram presentes na vida da boemia natalense e hoje são um emblema para este grupo: os bares do Beco da Lama e adjacências.

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37 O Beco da Lama é o nome dado à passagem da Rua Vaz Godim perpendicular às ruas João Pessoa e Ulisses Caldas, e as adjacências são as ruas paralelas e perpendiculares a ele. A justificativa para o nome está no poema de Alderico Leandro, poeta potiguar: “Vem dos primórdios do tempo em que a Cidade acabava ali. Lama era porque pelo Beco escorria lama ou de chuva ou de lavagem de roupa e de banho. A lama descia pelo local até chegar a um terreno próximo do Mercado da Cidade e ali ficava [...]”8. A imagem 05 mostra as feições do

Beco da Lama na década de 1970.

O Beco está com uma aparência diferente atualmente, pois a lama já não se acumula mais, seu chão é de concreto e há barreiras que impedem a passagem dos carros. Devido aos bares e restaurantes, o Beco exala cheiro de comida durante o dia. Também há uma senhora que vende ervas naturais, um depósito de bebidas e uma loja de artigos religiosos. A foto do Beco no ano de 2017 está representada na imagem 06.

Imagem 05: Beco da Lama nos anos 1970. Fonte:

<http://substantivoplural.com.br/esses-loucos-fotografos-beco-da-lama/>.

8 Texto do Blog de Alderico Leandro. Disponível em:

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38 Imagem 06: Beco da Lama durante festa no ano de 2017. Foto da autora.

Na literatura acadêmica há poucas referências sobre a boemia do Beco da Lama no passado. Excetuando-se o trabalho de Freitas (2013), no qual a autora menciona o Beco da Lama a partir das andanças de Newton Navarro:

Newton Navarro também poderia ser encontrado no Beco da Lama, logradouro estreito entre as ruas João Pessoa e Ulisses Caldas, localizado nas proximidades do Grande Ponto [...]. No Beco da Lama, estavam as casas comerciais simples, frequentadas por homens pobres que bebiam meladinha (mistura de cachaça com mel) e cachaça acompanhada de frutas como cajus, laranjas e abacaxis. Nos botequins do Beco da Lama, o cronista conversava com os boêmios frequentadores do lugar, escutava anedotas e versos recitados por eles. (FREITAS, grifos meus. 2013, p. 79)

O fato de haver poucas referências sobre o Beco pode ser explicado pelo registro da história da cidade ter sido feito a partir da experiência da elite local, que frequentavam os bares e cafés trazidos pela “modernidade” e sinônimos de civilização. Em contrapartida, os becos e seus bares eram destinados às classes pobres. Segundo Pesavento (1999), os becos são os espaços da contraordem habitados pelos pobres, sobretudo pelos negros, nos centros urbanos. “Símbolos do atraso, os becos seriam ao mesmo tempo alvo de um discurso técnico, higienista, estético e moralista que visava varrer os pobres da cidade” (sic, p. 05, 1999).

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39 Então surge um questionamento mais elaborado: por que o Beco da Lama e suas adjacências, uma vez espaços dos pobres e da “desordem”, se tornaram uma referência para a boemia de hoje? Peter Fry (1982), ao escrever sobre a manipulação de símbolos étnicos nacionais, traz uma discussão que pode ser útil para responder a essa pergunta. O autor explica como os elementos “produzidos” e elaborados pelos negros em situação de repressão são apropriados pelos “produtores” da “cultura de massa” e incluídos em filmes, livros, guias turísticos etc. Na visão do autor essa reapropriação é uma forma desses grupos desenvolverem uma narrativa segundo a qual a colonização fora um processo harmônico, sem preconceito racial.

De forma semelhante, grupos de classe média (entre eles produtores culturais) e políticos locais, com o discurso de resgatar “a cultura das raízes natalenses e brasileiras” e o estilo de vida boêmio “perdido” com as transformações urbanas, vão colocar o Beco da Lama na rota dos “espaços culturais” da cidade de Natal. Além disso, o Beco e suas adjacências sugerem a ideia de liberdade e resistência em um espaço degradado pelo discurso da violência urbana e outrora estigmatizado pela sensação de proximidade do “povo” e das “raízes” natalenses.

A partir das conversas informais que tive com os militantes culturais de Cidade Alta, me foi relatado a história da primeira associação criada para a preservação da “alma boemia” do lugar. Assim, a história compartilhada é que em 1994, um grupo de boêmios pertencentes à uma elite intelectual (médicos, advogados, jornalistas) que ouvira falar do passado boêmio da Cidade Alta fundou a SAMBA - Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências, inspirado da Sociedade dos Amigos do Largo do Carioca, no Rio de Janeiro. Esta entidade, que funciona até hoje, é formada por pessoas que apreciam as lembranças boêmias da cidade e, através da propagação dos eventos culturais (dentre eles o Festival Gastronômico Prato do Mundo), anseia reviver a “alma boêmia” de Natal.

Além da SAMBA, muitos frequentadores antigos do antigo Centro tentam resgatar as memórias da Cidade boemia. Este quadro, produzido por Chiquinho, frequentador do Centro desde 1964, mostra um grupo de boêmios ao redor de uma mesa representando a Santa Ceia. A personagem central do quadro é Chiquinho e as outras são seus amigos antigos.

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40 Imagem 07: Quadro com o desenho de boêmios no bar. Acervo da Autora, 2018.

No final de 2018, um outro projeto fomentado por políticos e empresários locais, chamado “Viva o Centro”, começou a se estruturar. A proposta era a “revitalização” do Centro da Cidade, sobretudo do Beco da Lama, visando “recuperar” a imagem do local. A imagem 08 mostra foto do Beco da Lama após as pinturas de “revitalização”. Esta ideia também corresponde, em parte, a vontade política da prefeitura de organizar eventos durante o carnaval, fenômeno que se observa desde 20069

9 Dados obtidos em <http://www.viagemdeferias.com/natal/passeios/carnaval.php> Acesso em 18 de agosto de

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41 Imagem 08: Visão do Beco da Lama após a revitalização. Fonte: Acervo da autora, 2019.

De forma análoga, podemos fazer um paralelo com a Rua Professor Zuza, também na Cidade Alta. Um projeto de lei, de autoria do vereador Fernando Lucena, do partido dos trabalhadores, transformou o beco ocupado por moradores de rua, “sujo e violento”, em Espaço Cultural Ruy Pereira. A ideia do projeto partiu dos estudantes do curso de Produção Cultural do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), abraçada pelos políticos locais, que deram consistência à proposta. Atualmente a rua é fechada para a passagem de carros e frequentemente acontecem festas e eventos, tanto promovidos pelo IFRN como pelo Bar do Zé Reeira. Junto com o Beco da Lama, o Espaço Ruy Pereira também foi revitalizado em 2018.

Nesse sentido, diante da sensação de “perda” do centro para a violência e para as classes pobres, a revitalização e ocupação dos becos e seus bares “degradados” são maneiras que os natalenses engajados na preservação da história da cidade encontraram para poder continuar circulando nesses espaços e se apropriar da cidade.

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42 No Beco da Lama e adjacências estão localizados os bares da boêmia. Dentre eles, elegi alguns para compor o cenário desta pesquisa. Inicialmente comecei a observar o Bar de Nazaré e Bar do Zé Reeira, porque eram aqueles que eu já conhecia e tinha uma maior proximidade. No entanto, no decorrer deste trabalho, sempre escutava entre os meus interlocutores sobre a comida do Bar do Pedrinho e os prêmios que ele havia ganhado no festival Prato do Mundo, então decidi incluí-lo nesta pesquisa. Vale ressaltar que na Cidade Alta há outros bares apreciados pela boemia; portanto elegi aqui somente aqueles que, na minha percepção, são os mais famosos. Na imagem 09 estão as localizações de cada bar.

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43 Imagem 09: Croqui do bairro de Cidade Alta. Acervo da autora, 2019 Legenda: 1- Rua Apodi; 2- IFRN 3- Bar

do Zé Reeira e Espaço Cultural Ruy Barbosa; 4- Rua Princesa Isabel; 5- Avenida Deodoro da Fonseca; 6- Nova Catedral de Natal; 7- Avenida Rio Branco; 8- Rua João Pessoa; 9- Beco da Lama; 10- Bar de Nazaré; 11- Centro administrativo; 12- Prefeitura; 13- Praça Vermelha; 14- Amarelinho e Metropolitana; 15- Rua Ulisses Caldas; 16- Bar do Pedrinho; 17- Camelódromo 18- Banco do Brasil; 19- SESC.

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44 Os bares abordados nesta pesquisa estão localizados nas adjacências do Beco da Lama. O Bar do Pedrinho está na Rua Vigário Bartolomeu, nº 540. Nos arredores do botequim estão um restaurante de “cozinha paulista”, uma loja de ferragens, algumas lanchonetes e, em frente, o camelódromo da cidade. A fachada do bar é de cor vermelha, com duas portas de rolo e, entre elas, o símbolo da marca de uma cachaça, como é mostrado na imagem 10.

As portas dos bares são de rolo, abertas pela manhã, o que dá acesso à rua durante todo o dia. As mesas e cadeiras de plástico e madeira remetem a um “verdadeiro” botequim.

No Bar do Pedrinho há mesas de plástico e madeira, que ficam encostadas nas paredes, e nestas um mural onde são feitas exposições de arte, como mostra a figura x. Para ele, é uma maneira de valorizar os artistas locais, permitindo que possam expor suas pinturas e fotografias. Do lado esquerdo fica o balcão e a prateleira com as bebidas, como é mostrado nas imagens 11 e 12. Do lado oposto ao balcão estão duas mesas e uma pia para lavar as mãos. Para decorar o bar, há várias fotos do Botafogo, time de futebol carioca; e algumas placas com anedotas como “pega o beco” e um relógio somente com o número 10 e a frase “só bebo depois das 10”.

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45 Imagem 11: Cadeiras e mural de exposição no Bar do Pedrinho. Foto da autora, 2019.

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46 Imagem 13: Pintura de Pedro Faustino da Costa. Fonte:

Acervo da autora, 2019.

O Bar do Pedrinho foi fundado em 1970 por Pedro Faustino da Costa, conhecido pelos frequentadores como Pedrinho, que, além de proprietário, era o cozinheiro. Natural de Serra Caiada, no interior do Rio Grande do Norte, ele veio para Natal nos anos 1960 para trabalhar como balconista em uma confeitaria na Cidade Alta chamada Royal. Depois de adquirir experiência como balconista, Pedro viu a possibilidade de abrir seu próprio negócio no atual prédio que, na época, estava para alugar.

A proposta de Pedrinho para o seu novo negócio era vender bebidas alcoólicas e alguns petiscos para os trabalhadores do centro da cidade. Ele trabalhou em seu bar até 2008, ano do seu falecimento. A imagem 13 mostra a pintura do rosto de Pedrinho que foi colocada no bar em sua homenagem.

Após a morte de Pedro, o seu filho, Francinélio Pedro da Costa, conhecido como Nélio ou Ladrão, “tomou conta” do bar. O apelido “Ladrão”10 vem de uma brincadeira entre os

frequentadores assíduos do botequim. Júnior, amigo de Nélio, me explicou a razão: “Você já

10 A brincadeira é apenas entre amigos e bem aceita por Nélio. Houve permissão por parte dele em colocar este

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47 viu o cardápio do bar? Você já viu o preço das coisas? Sabe por que ninguém sabe? Ele cobra o preço que quer porque ele é um ladrão, não sei nem o preço da cerveja”.

Atualmente, as pessoas se referem ao Bar do Pedrinho como Bar de Nélio, ou Bar do Ladrão. Entretanto, Nélio relatou que nunca modificou o nome do bar, pois, para ele, o pai foi o pioneiro e “verdadeiro” cozinheiro do bar. Hoje, Nélio trabalha sozinho e seu bar é sua única fonte de renda. Nélio continuou com o negócio do pai porque em sua visão é importante manter viva a memória do pai em Cidade Alta. Segundo ele, Pedrinho era uma figura importante para a boemia e o seu bar é bastante apreciado pelos grupos que tentam resgatar a vida boemia de Cidade Alta.

Na Rua Coronel Cascudo, no prédio de nº 130, está o Bar da Nazaré. A fachada do bar é coberta por pastilhas de azulejo brancas, como mostra a imagem 14. Em frente ao bar há uma loja de eletrodomésticos, um cabeleireiro e, ao lado, uma lanchonete.

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48 Imagem 15: Parte interna do Bar de Nazaré. Acervo da autora. 2018.

Imagem 16: Pintura do rosto de Nazaré na parede do bar: Acervo da autora. 2018.

Assim como Pedrinho, Nazaré também sempre trabalhou com bares e restaurantes. Ela relatou que aprendeu a cozinhar por ser “dona de casa”. Por trás da lógica de Nazaré repousa um imaginário de que toda mulher que trabalha em casa deve saber cozinhar11.

Referências

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