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PORTUGUES DO BRASIL:UM ESTUDO NO CAMPO LEXICO DA CACHAC;A
ABSTRACT: the purpose of this paper is to present an analysis of some lexical unities belonging to the semantic field of "beverages" dialectally classified as Brazilianisms in Dicionario AUrf?lio(l994), in an electronic version, in order to ver(fy the incidence of extralinguistic factors illthe nomination process of these lexical unities.
Esta comunica~ao, parte de uma pesquisa mais ampla acerca de brasileirismos, tern como objetivo 0 exame de unidades vocabulares Ireunidas no campo lexico das bebidas, subcampo da cachar;a, para verificar a incidencia de fatores extralingiiisticos, interagindo na configura~ao do lexico da lingua portuguesa, na variante brasileira. Para tanto, foram examinadas e analisadas seis (06) lexias classificadas como brasileirismos por Aurelio Buarque de Holanda Ferreira (1994), no Novo Dicionario da Lingua Portuguesa, versao informatizada. Pela analise das unidades vocabulares sin6nimas da cachar;a, selecionadas para este estudo, pudemos evidenciar a presen~a de elementos de natureza social, historica e cultural proprios da sociedade brasileira, que se mostraram responsaveis por toda esta vasta sinonimia, com marca social de carMer popular, atribuida a esta bebida.
Esses elementos nao-lingiiisticos em muito tern contribuido para explicitar a motiva~ao ocorrida no processo de nomea~ao ou renomea~ao deste referente da cultura brasileira, a cacha~a. Toda a sinonimia empregada para identificar a "agua ardente", em terms brasileiras, deve-se, certamente, ao fato de ser essa uma bebida bastante apreciada e consumida, sobretudo por grande parcela da popula~ao mais carente de nossa sociedade.
A analise das lexias pertencentes ao campo lexico das bebidas, subcampo da cachar;a, mostra-nos que as unidades que 0compoem sao constituidas, em sua maioria, por vocabulos girios ou populares, distribuidos regionalmente. Antes de iniciarmos a anlilise das unidades reunidas nesse campo lexico, trataremos de duas lexias - cachar;a e aguardente - que, a nosso ver, representam a unanime aceita~ao e a popularidade da bebida na sociedade brasileira. 0 Dicionario Aurelio registra a lexia cacha~a, com 0
significado de "aguardellte que se obtem mediante a fermentar;iio e destilar;iio do mel(2), ou borras do melar;o" e elenca urn grande numero de sin6nimos de uso geral ou regional. 1a Antenor Nascentes (1981 :52) , no Dicionario de Sinonimos, explica que cachar;a "e propria mente a espuma grossa que, na primeira fervura, se tira do caldo de cana, na caldeira ".
Alguns apreciadores da cacha~a que tambem se cmpenham em conhecer a origem do nome dessa bebida, contam que 0vocabulo cacha~a teve origem no costume
I Neste estudo, estamos empregando os vocabulos unidades vocabulares, unidades lexicas. unidades lexicais, itens lexicais. itens lexicos. vocilbulos e lexias como sinonimos.
bastante comum entre os escravos de utilizar a garapa azeda (vinho de cana-de-ayucar) para amaciar a came do cachayo, 0 porco macho. Dai 0 emprego ja consagrado do vocabulo para cachaya para denominar 0 liquido extraido apos a destilayao da bebida que sera destinada ao consumo humano. No que se refere
it
lexia aguardente, Nascentes (1981:52) explica que esse nome e empregado para os produtos da destilayao do vinho, do caldo da cana, de cereais, de varias plantas e frutos, susceptive is de fermenta/yao e que esse vocabulo, aguardente, e aplicado em especialit
aguardente de cana. Ja em Portugal, a "agua ardente ", destilada do baga/yo da uva com equipamento de destila/yao, na epoca desenvolvido pelos arabes, fez nascer a bagaceira, vocabulo tambem registrado no Dicionario Aurelio como brasileirismo, sinonimo popular de cacha/Ya, extraida, no Brasil, do baga/yo da cana de a/yucar. Importa assinalar que 0matiz regional, no caso especifico de bagaceira, e tao insignificante, que acreditamos injustificado 0qualificativo brasileirismo atribuido a essa lexia por mestre Aurelio.
Os estudos realizados por Camara Cascudo(1986:14-22) remetem-nos
it
vasta documenta/yao que testemunha a presen/ya da cacha/ya em terras portuguesas. Para este pesquisador da cultura brasileira, a mais antiga referenciait
cacha/ya em Portugal foi encontrada na Carta II de Sa de Miranda (1481-1558), dedicada a urn amigo da regiao do Minho, onde era fabricada e consumida essa bebida. Informa, tambem, esse estudioso que, na Espanha, de onde poderia ter vindo no nome, a cacha/ya era uma "especie de aguardente obtida com as borras, residuos das pisas de uvas no lagar ", Camara Cascudo menciona, ainda, que, entre 1638 e 1644, os naturalistas Guilherme Piso e Jorge Marcgrave, ao descreverem a fabricayao do a/yucar em Pernambuco, fizeram referenciait
cacha/ya, bebida ainda bastante diferente da que conhecemos atualmente. Noticiaram esses viajantes que "deste sumo, a coagular-se num primeiro tacho, com pouco fogo, tira-se uma espuma um tanto feculenta e abundante, chamada cagassa, que serve de comida e bebida somente para 0gada ", Para Camara Cascudo,sao esses os registros iniciais da cacha/Yano Brasil.
Ao que parece, mesmo sendo conhecidas e empregadas entre nos as duas formas - aguardente e cachar;a -, e sendo a forma cachar;a a mais popular, informa Camara Cascudo que, nos textos impressos, foi mantida, na epoca, a denominayao portuguesa aguardente que, passou a ser diferenciada, conforme sua procedencia, em aguardente do reino e aguardente da terra,
Passemos, a seguir,
it
analise das unidades lexicais reunidas no campo lexico bebidas, subcampo cachar;a, as quais se configuram ou como sinonimos ou como variantes lexicas de cachar;a:abrideira. agua-que-passarinho-niio-bebe, arrebenta-peito, canha, marafo, mata-bicho.
A unidade vocabular abrideira que 0Dicionario Aurelio classifica como urn brasileirismo geral, foi empregada para designar 0 consumo de pequena dose de "bebida alcoDlica, em geral aguardente, que se toma antes da refeir;iio, em pequena quantidade, como aperitivo." Aurelio marca, tambem, este item lexical, como urn brasileirismo popular, na acep/yao de cachar;a. Encontramos tambem em outros autores como Clerot (1959:13) e Bariani Ortencio (1983:02) 0registro desta unidade lexical em analise a qual, para 0 primeiro autor, refere-se a urn aperitivo ingerido "antes das
refei~oes, pois abre
0apetite," ao passo que, para
0segundo, trata-se da "guia: a
primeira bebida numa bebedeira."
Temos em abrideira urn substantivo deverbal, formado atraves de deriva~ilo
por meio de sufixo, denotando acentuado sabor popular. Essa unidade, devido a seu
modo transparente, revela, de pronto, a motiva~ilo que permeou
0processo de
nomea~ilodeste referente da cultura brasileira.
Outra unidade vocabular que se refere
itcacha~a,
agua-que-passarinho-nao-bebe, foi classificada por Aurelio como urn brasileirismo geral, sinonimo popular de
cacha~a. Tambem Nascentes (1983:52) registrou a unidade lexical em analise como
sinonimo regional de cacha~a, cujo emprego circunscreve-se
itregiilo NE e ao Rio de
Janeiro. Acrescenta esse lexic6grafo que alexia
complexa em questilo pertence ao
vocabulario girio.
Neste item lexico em analise, pudemos perceber
0modo transparente de
forma~iloe, tambem, verificar a substantiva~ilode todo urn elo sintlitico, ao se proceder
a renomea~ilodeste referente.
A exemplo da unidade lexica acima analisada, tambem, a forma complexa
agua-que-gato-nao-bebe configura-se como urn brasileirismo, outro sinonimo de
cacha~a.
Cabe mencionar a freqiiencia com que a unidade vocabular "agua" aparece
como e1emento de composi~ilo, na forma~ilo de lexias compostas que remetem
itcacha~a.
E
a agua-benta, a agua-de-briga, a agua-bruta, a agua-de-cana, a
agua-que-passarinho-nao-bebe, a agua-que-gato-nao-bebe, mais a expressilo do tipo "estar nas
aguas", no sentido de "estar alcoolizado, bebado." Acreditamos que
0emprego
freqiiente do vocabulo agua, nas forma~oes compostas apontadas acima seja procedente
de "agua ardente," primeira manifesta~iloda bebida, ainda que sob a 6tica de remedio.
Ja
0item lexical arrebenta-peito, lexia composta, sinonimo de cacha~a, foi
classificado no Dicionario Aurelio como brasileirismo popular, usado em Santa
Catarina. Esta denomina~ilo faz referencia
itaguardente extremamente forte, bastante
curtida que, ao ser ingerida rapidamente, desce queimando a garganta, ardendo no peito.
Importa mencionar que os substantivos formados por meio de COl1iposi~ilo
vocabular apresentam teor acentuadamente popular, como se pode verificar, por
exemplo, em unidades como desmancha-samba, corta-bainha, engasga-gato,
esquenta-por-dentro, entre outros brasileirismos empregados como sinonimos de cacha~a. Nessc
processo de forma~iloe que se pode vislumbrar, com maior nitidez,
0espirito criador da
Iil'lgua.Imimeras dessas forma~oes evidenciam um acentuado sentido de observa~ilo por
parte do usuario da lingua que, nesse caso, demonstra
0modo como a bebida atua no
organismo, denotando grande expressividade. No que se refere a seu aspecto formal,
arrebenta-peito constituiu-se a partir de uma base verbal mais urn substantivo.
Ja alexia
canha,variante lexica de cacha~a, que
0Dicionario Aurelio
classifica como brasileirismo do Rio Grande do SuI, e procedente do espanhol platino
"cana", urn americanismo, forma abreviada de "cana de azucar". Esse item lexical,
cana, encontra-se registrado em Neves (1973:108), no Diccionario de Americanismos,
com sentido de "aguardiente de cana de azucar". Encontramos, tambem, essa lexia
registrada em Nunes
&Nunes (1996:88), no Dicionario de Regionalismos do Rio
Grande do SuI, como sinonimo de cana, cacha~a, aguardente, canguara. Como
brasileirismo de uso geral, temos
0vocabulo correspondente - cana - forma reduzida da
tambem serve de base para a constituiyao da forma diminutiva - caninha - e da expressao pe-de-cana, usada para se referir a individuo dado ao vieio do alcoolismo.
Do ponto de vista formal, alexia canha configura-se como urn estrangeirismo, que sofreu alterayao fonetica, a partir de cana, ajustando-se, assim, it fonetica e it ortografia brasileira.
A unidade lexical marafo que, segundo 0 Diciomirio Aurelio, tern etimo africano, foi classificada por mestre Aurelio como urn brasileirismo girio, sinonimo de cachQ(;a. Entre os autores que registraram essa unidade lexica em analise, temos Nascentes (1981:53), no Dicionario de Sinonimos e Fonseca Jr.(1995:445), no Dicionlirio Antol6gico da Cultura Afro-Brasileira, que mencionam ser marafo uma lexia procedente do ioruba, significando "aguardente, cachac;a."
Ha que se mencionar que, na linguagem do candomble, a unidade marafo e empregada, quando 0Pai-de-Santo manifesta desejo de ingerir cachaya. Essa bebida - 0
marafo -penetrou no cerimonial religioso, integrando-se ao patrimonio africano das oferendas. Importa assinalar a importante contribuiyao que os povos africanos deixaram registrada na familia brasileira que se formava, Essa contribuiyao foi testemunhada nao apenas como forya de trabalho nas senzalas, mas principalmente no ambito da familia que pode contar com a lide domestica das mucamas que transmitiram, por gerayoes sucessivas, toda a cultura do povo africano, bem como seus hlibitos, costumes e crenyas religiosas.
Ja a unidade vocabular mata-bicho, registrada no Dicionario Aurelio, como urn brasileirismo geral e, tambem, empregada como forma sinonima de cachaya. Essa lexia foi assinalada por Nascentes (1981 :53) para se referir it aguardente.
Camara Cascudo (1986:47), na obra Preludio da Cachaya menciona que, na epoca das Missoes, a cachaya era tolerada apenas como mata-bicho, ou seja, empregada somente para fms medicinais, considerada como a agua-da-vida. Esse estudioso relata que era costume entre os escravos que trabalhavam em locais alagados, ingerir urn gole de cachac;a pel a manhii. e it noite para ''fechar 0 corpo contra os miasmas ".
Outros autores tambem fizeram referencia ao mata-bicho, como assinalaram Lima e Barroso (1948:801) que a registram com 0 significado de "uma dose de aguardente ou outra bebida alc06lica"; tambem Costa e Melo (1995:1171), no Dicionario da Lingua Portuguesa, da Porto Editora, registrou a expressao matar 0 bicho, no sentido de "tomar uma bebida alc06lica de manha, em jejum ".
a
uso das expressoes populares "matar 0 bicho" ou "mata-bicho" reitera 0trayo semantico que conferindo it cachac;a 0 estatuto de remedio que esteriliza, que limpa, prevenindo 0organismo de possiveis males. Remete it cachaya como "eau-de-vie", a agua da vida tao empregada para fins medicinais, como ocorrera nas missoes cristas do periodo colonial.
Alexia mata-bicho configura-se como uma formayao composta de base verbal
+
substantivo.A analise das unidades pertencentes ao campo lexico da cachac;a, bem como a freqtiencia de uso que apresentam nas diferentes regioes do pais, deixa transparecer a grande importfmcia desta bebida no cotidiano da populayao brasileira.
E
a abrideira ingerida para abrir 0 apetite ou para aquecer urna reuniao de amigos e desfazer constrangimentos; e0marafo iorubano para saudar os orixlis, nos terreiros de urnbanda; e a limpa, 0 mata-bicho, 0 remedio que, no fundao deste imenso pais, esteriliza e, por vezes, cura 0 caboclo, 0sertanejo, 0 vaqueiro, garantindo-lhes a saude; e a saideira, 0gole derradeiro que melhor identifica a hora da volta a casa.
Estas unidades vocabulares por nos examinadas, em sua grande malOfla,
configuram-se como brasileirismos semanticos, vocabulos pertencentes
a
lingua
portuguesa que, entre nos, assumiram acepl;ao diferente, cor local. Foi possivel,
tambem, resgatar, atraves das imimeras variantes lexicas referentes
a
cachal;a, marcas da
identidade cultural de urn povo sintonizado com seu espal;o geografico, com sua cultura,
tral;os esses reveladores de uma valorizal;ao grupal, manifestos nas unidades lexicais
aqui examinadas.
A analise realizada fomeceu-nos dados que permitem apontar algumas causas
responsaveis pelo emprego de unidades pertencentes
a
lingua portuguesa que, no Brasil,
revestiram-se de matizes semanticos proprios ou mesmo lexias constituidas em solo
brasileiro. Cabe assinalar que a separal;ao geografica existentes entre os dois paises
falantes da lingua portuguesa, distribuidos em territorios isolados, deterrninou uma
desigual evolul;ao. Por fun, podemos acrescentar que
0ambiente fisico e cultural
brasileiro, bastante peculiar, precisou ser traduzido na lingua, demonstrando, assim, a
influencia da diversidade cultural e da estrutura social existente entre os povos, que, na
epoca da colonizal;ao, aqui conviveram. Esses fatos muito contribuiram para a deriva da
lingua e, cOQsequentemente,para a fixal;ao de novos significados em vocabulos que
Aurelio Buarque de Holanda Ferreira classificou como brasileirismos, no Novo
Dicionario da Lingua Portuguesa.
RESUMO: este trabalho objetiva a analise de algumas unidades lexicais pertencentes ao
campo lexico das
bebidas,subcampo da
cacha9a,classificadas dialetalmente como
brasileirismos, no Dicionlirio Aurelio (1994), versao infonnatizada, com
0intuito de
verificar a incidencia de fatores extralingiiisticos atuando no processo destas lexias.
CAMARA CASCUDO, Luiz da.
Preludio da cacha9a.Belo Horizonte: Itatiaia, 1986.
COSTA E MELO.
Pequeno dicionario da linguaportuguesaPorto: Porto Ed., 1995.
FERREIRA, Aurelio Buarque de Holanda.
Novo dicionario da lingua portuguesa.Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.(versao informatizada)
LIMA, Hildebrando e BARROSO, Gustavo.
Pequeno dicionario brasileiro da lingua . portuguesa.Rio de Janeiro: Civilizal;ao Brasileira Ed., 1949.
NASCENTES, Antenor.
Dicionario de sinonimos.Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1981.
__ . Dicionario da lingua portuguesa.