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ESTADOS INTENCIONAIS NO FILME QUANTO VALE OU É POR QUILO? E NO CONTO MACHADIANO PAI CONTRA MÃE

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Academic year: 2021

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ESTADOS INTENCIONAIS NO FILME “QUANTO VALE OU É POR

QUILO?” E NO CONTO MACHADIANO “PAI CONTRA MÃE”

Adriana dos Reis Silva1 Maysa de Pádua Teixeira

RESUMO: Neste trabalho, propomos analisar aspectos do estudo da Intencionalidade, na

perspectiva de Searle, instaurada no filme “Quanto vale ou é por quilo?” de Sérgio Bianchi, em contraposição ao conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis. Consideramos neste estudo examinar questões de caráter intencional decorrentes do jogo da linguagem cuja significação se configura através das relações estabelecidas entre as personagens e o significado das sentenças. Utilizamos, então, os metapredicados crença e desejo segundo critério proposto por Searle (1995). Com essas análises podemos afirmar que os estados Intencionais de “Pai contra mãe” e “Quanto vale ou é por quilo?” são diferenciados quanto ao contexto, tempo e espaço narrativo em que estão inseridos. Podemos postular ainda que o ‘desejo’ que permeia as seqüências narrativas dessas duas obras é o de descrever as práticas utilizadas para reprimir os escravos negros, a fim de ironizar uma sociedade que legitima uma instituição tão cruel como a escravidão.

Palavras-chave: intencionalidade; linguagem; sentido.

ABSTRACT: In this paper we offer to analyze some aspects about the intentionality study

proposed by Searle within the film “Quanto vale ou é por quilo?”, by Sérgio Bianchi, in opposition of the short story “Pai contra mãe”, by Machado de Assis. We consider in this study to examine current question of language play of which meaning it install through of relations of the characters and sentence of meant. Then, we utilize concepts “belief” and “desire”, by Searle (1995). With this analyze we can to confirm that intentional states of “Pai contra mãe” and “Quanto vale ou é por quilo?” are different whatever the context, time and narrative space. We conclude that “desire” insert in the narrative sequence of the masterpiece are to describe practices to repress the blacks slaves, in order that to be ironic with the society that legitimate cruelness against slave.

Keywords: intentionality; language; sense.

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1 INTRODUÇÃO

Neste trabalho, propomos analisar aspectos do estudo da Intencionalidade instaurada no filme “Quanto vale ou é por quilo?”, de Sérgio Bianchi, em contraposição ao conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis. Nosso interesse é o de orientar essa discussão para o campo da análise lingüística, buscando uma dimensão da intencionalidade que envolva a questão da produção de sentido e da linguagem como seu espaço de manifestação.

Mesmo que não se possa afirmar que a mente tem um caráter funcional articulado somente a partir das categorias de crenças e desejos, Searle (1995) parece admitir que alguns fatos podem ser explicados através da combinação dessas categorias. É o que pretendemos demonstrar nesta análise em que descrevemos o funcionamento dos estados intencionais “crença” e “desejo”.

O filme “Quanto vale ou é por quilo?” é uma adaptação livre do conto machadiano “Pai contra mãe”. Assim, nos parece relevante examinar questões de caráter intencional decorrentes do jogo da linguagem cuja significação se configure através das relações estabelecidas entre o sentido dos falantes (nesse caso, as personagens) e o significado das sentenças. Afinal, de acordo com Metz (1972) o espaço constituído por um filme é circunscrito, tratando-se de um objeto completamente voltado para a significação. E o discurso literário, segundo Maingueneau (1995), pode ser compreendido como uma prática que se expressa formalmente num trabalho intencional com a linguagem. Ainda, de acordo com Rosenfeld (1974, p.15), pode-se verificar que todo texto, seja ele uma manifestação artística, ou mesmo ficcional, projeta contextos objectuais2 “puramente intencionais”, podendo ou não, fazer alusão a objetos onticamente autônomos.

Logo, examinar a realização das intenções intrínsecas nas ações discursivas propostas nesta abordagem é um modo relevante para se compreender as possibilidades de intencionalidade a partir das significações inscritas nas representações comunicativas surgidas sob a luz deste estudo.

2 De acordo com Anatol Rosenfeld (1974, p.13), compreendem-se como contextos objectuais unidades significativas de vários graus, constituídas pelas orações e que, devido a isto, são “projetadas” a partir de operações lógicas, “contextos objectuais” (Sachverhalte) – “certas relações atribuídas aos objetos e suas qualidades”.

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2 APRESENTAÇÃO DO CORPUS: “QUANTO VALE OU É POR QUILO?” E “PAI CONTRA MÃE”

Conforme já se afirmou, o filme “Quanto vale ou é por quilo?”, de Bianchi, é uma livre adaptação do conto de Machado de Assis, “Pai contra mãe”.

O conto machadiano gira em torno da história de Cândido Neves que, por falta de opção melhor, torna-se caçador de escravos fujões. Ao se casar com Clara e concretizar o sonho de com ela ter um filho, suas despesas aumentam e a ameaça de ser despejado do imóvel em que vive com a família leva o protagonista a abandonar o filho recém nascido na Roda dos Expostos3, também conhecida como Roda dos Enjeitados. A situação se reverte quando Cândido Neves, imbuído do propósito de receber uma recompensa anunciada, segue o rastro de uma escrava fugitiva que está grávida, e por isso tratada como um objeto valioso. Ao ser capturada e entregue ao dono, a negra se desespera e sofre um aborto. Cândido Neves recebe a almejada recompensa, tornando-se assim capaz de sustentar o próprio filho.

Em seu filme, o diretor Sérgio Bianchi retoma, sob uma ótica intertextual, esse contexto abordado por Machado de Assis. O diretor de “Quanto vale ou é por quilo?” conduz sua narrativa para uma época atual, mostrando o incômodo moral e as contradições de um país que vivencia uma constante crise de valores. Nessa produção cinematográfica, percebe-se a construção de um espaço imagético onde há uma oscilação temporal: tomadas do século XVIII, que consistem em episódios retirados dos autos do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e adaptados para crônicas sobre a escravidão no Brasil, em justaposição a cenas que remetem ao momento atual, representado pelo marketing social promovido pela ONG Sorriso de Criança.

O filme inicia-se com os relatos extraídos dos Autos do Arquivo Nacional. Trata-se da história de uma negra forra que é julgada e condenada pelo fato de invadir a propriedade alheia para recuperar um escravo que o senhor havia lhe confiscado indevidamente. Essa imagem é congelada, tomando assim o aspecto de uma fotografia. O procedimento de

3 “Fundada para proteger a honra da família colonial e a vida da infância, a Casa dos Expostos terminou por obter um efeito oposto ao inicialmente previsto. Dispondo da roda, homens e mulheres passaram a contar com um apoio seguro para suas transgressões sexuais. Estavam certos de que podiam esconder os filhos ilegítimos em local onde seriam bem tratados. De protetora da honra, a Casa tornou-se incentivo à libertinagem.” (COSTA, J. F., 1989, p. 164.)

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congelamento das imagens é verificado também em outras tomadas, o que confere ao filme um caráter de documentário televisivo.

Apresentamos, em seguida, o referencial teórico que nos dará suporte para a análise lingüística aqui proposta.

3 CONSIDERAÇÕES SOBRE INTENCIONALIDADE

Entre aqueles que antecederam Searle em estudos sobre a intencionalidade, mencionaremos Brentano (1838-1917) e Husserl (1849-1938). Husserl foi o primeiro a postular que os fenômenos psíquicos diferem-se dos demais por sua propriedade de referir-se a um objeto a partir do processo de funcionamento mental. De Brentano, ele assumiu a noção de Intencionalidade, contribuindo, entretanto, para uma formulação mais sólida, cuja forma essencial dos processos da mente é: conduzir-se a, ou seja, a peculiaridade da consciência é a de sempre ser intencional, pois a consciência deve ser a consciência de alguma coisa e não a “própria coisa” de que se está consciente. Para Husserl, uma análise intencional e descritiva da consciência demarcaria as relações necessárias entre os atos mentais e o mundo externo.

Searle (1995, p. 01) conjectura, em sua exposição preliminar sobre Intencionalidade, que esta tem como característica a propriedade de muitos estados e eventos mentais serem dirigidos para, ou acerca de, objetos e estados de coisas no mundo. Logo, se há um estado mental com tal particularidade, ele será considerado como Intencional. É interessante salientar que nem todos os estados mentais são ditos Intencionais, como algumas formas de nervosismo, de ansiedade e de exaltação não direcionadas; já formas direcionadas têm a peculiaridade de serem intencionais.

Segundo o autor, há que se fazer uma distinção entre Intencionalidade e consciência, pois podemos, por exemplo, obter consciência de nossa ansiedade sem que ela seja reconhecida como um direcionamento para algo, enfim, como possuidora de Intencionalidade. Assim, alguns estados Intencionais podem ser considerados inconscientes, no sentido de que “posso não estar pensando nisto no momento”, “tenho muitas crenças as quais não estou imaginando atualmente, mas que com certeza manifestam estados Intencionais que realmente possuo”. O autor apresenta a seguinte situação: “creio que meu pai jamais esteve em Tóquio e consigo expressar tal crença como resposta a uma pergunta de outrem, apesar de nunca ter pensado nisto antes”. (SEARLE, 1995, p. 02)

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Ainda conforme Searle (1995, p. 04-06), Intencionalidade é, fundamentalmente, “direcionalidade”. Por outro lado, o ato de “ter a intenção de fazer alguma coisa” pode ser considerado apenas uma forma de Intencionalidade. Logo, a Intencionalidade não vem a ser uma relação causal, como por exemplo, sentar-se sobre algo ou socar este algo, pois em um grande número de estados Intencionais, pode-se vivenciar o estado Intencional sem que o objeto ou estado de coisas a que ele está “direcionado” sequer exista. Portanto, um estado intencional funciona de modo indiferente da existência de um estado causal real, possibilitando, de certa forma, toda a manifestação expressiva4.

O referido autor faz uma abordagem sobre os estados intencionais para mostrá-los como uma forma de representação – os estados intencionais expressam objetos e estados de coisas, além da nossa relação com o mundo, e isto devido a nossa capacidade. Dessa forma, temos no funcionamento da intencionalidade uma maneira de nos habilitar a lidar com o mundo. Searle destaca quatro aspectos análogos entre intencionalidade e atos de fala:

(i) Distinção entre conteúdo proposicional e força ilocucional: F(P) = S(r), sendo que r é um conteúdo representativo e S um estado psicológico do falante, ou seja, uma atitude proposicional diante de um conteúdo.

(ii) Mudança da direção de ajustamento: Atos ilocucionários e estados Intencionais cujo conteúdo é uma proposição completa possuem também uma direção de ajuste. Descrições e asserções possuem, por exemplo, direção de ajuste mente-mundo (são satisfeitas quando a mente se ajusta ao mundo). Desejos e intenções possuem direção de ajuste mundo-mente, isto é, são realizados efetivamente quando o mundo se ajusta à mente. Nos atos ilocucionários ou nos estados Intencionais, o conteúdo determina suas condições de satisfação e o modo psicológico, ou ainda a força ilocucionária, determina a direção de ajuste.

(iii) Ligação entre os atos ilocucionários (estes tendo conteúdo proposicional) e o estado Intencional, sendo que esse último é a condição de sinceridade expressada por este tipo de ato de fala.

(iiii) Os estados Intencionais e Atos ilocucionários possuem condições de satisfação ou sucesso. Deste modo, um ato de fala será satisfeito se e somente se (a) o estado psicológico expresso for satisfeito e (b) as condições de satisfação do ato de fala e do estado psicológico expresso forem idênticas. As condições de satisfação de um estado Intencional são internas ao próprio estado.

4 Cf. Seminários de Estudos Avançados – Linguagem e Intencionalidade: discussão sobre as categorias significado da palavra e significado do falante, ministrada por Hugo Mari em 02/05/2007. Puc -Minas.

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Assim, os aspectos comuns apontados entre os estados Intencionais e os atos de fala criam uma imagem da Intencionalidade – “todo estado Intencional compõe-se de um conteúdo representativo em um certo modo psicológico.” (SEARLE, 1995, p.15)

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4 INTENCIONALIDADE E FICÇÃO

De acordo com Searle (1995), a enunciação ficcional corresponde a uma asserção fingida: o sujeito finge afirmar algo.

Para fundamentar a ficcionalidade do texto literário baseada no papel preponderante do autor e legitimá-la através do conceito de intencionalidade, argumenta o teórico que a intencionalidade distingue o texto ficcional do metafórico, considerando que a ficção não reside numa qualquer especificidade estilística ou numa qualquer função metafórica da linguagem, mas sim numa intenção de comunicação que é da inteira responsabilidade do autor, enquanto sujeito da enunciação. Não se trataria, assim, de uma questão de conteúdo, mas da posição enunciativa do sujeito. A ficcionalidade adquire então um perfil pragmático e lógico a determinar. Como tal, é um valor ilocutório do enunciado.

A favor dessa tese, Searle (1995) aponta algumas características do texto ficcional que justificariam essa afirmação, tais como: em primeiro lugar, o autor de ficção finge cumprir uma asserção e este fingimento é puramente intencional. Por outro lado, o caráter ficcional não é inerente à língua, às suas estruturas semânticas ou sintáticas, mas à natureza pragmática do ato, à relação que se institui entre os interlocutores. Finalmente, essa ficcionalidade é possível na medida em que está fundamentada em um conjunto de convenções comunicacionais que a distinguem claramente da mentira, como asserção falsa5.

Quanto ao modo de representação, é possível verificar que há distinções entre a linguagem literária e a linguagem cinematográfica: na linguagem literária, a representação do universo ficcional é estática e vinculada à linearidade do discurso e ao seu suporte. Já na linguagem cinematográfica, a representação se realiza a partir do movimento e do suporte – a tela grande. Tanto o cinema quanto a literatura concorrem para um mesmo ponto discursivo – o de contar uma história, e ambos buscam edificar um enredo.

5 ESTADOS INTENCIONAIS CRENÇA E DESEJO NO CONTO MACHADIANO “PAI CONTRA MÃE” E NO FILME “QUANTO VALE OU É POR QUILO?”

5 Ressalvamos que, no tocante à concepção de ficcionalidade, a posição de Searle (1995) não é pacífica e deve ser vista com certa desconfiança. Em contraponto ao entendimento desse teórico, pensamos com apoio em Trindade (2001), que a ficção está vinculada à criação, sendo então um ato de linguagem marcado pela verossimilhança com a realidade, que se apresenta a partir da subjetividade vivenciada.

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Estamos considerando nesta análise a Intencionalidade sob a dimensão dos metapredicados “crença” e “desejo”, sob a perspectiva aventada por Searle (2005). A partir desta proposta, verificaremos os estados Intencionais instaurados em “Pai contra mãe” e “Quanto vale ou é por quilo?”, contemplando para isso, além dos estudos de Searle (1995), as considerações formuladas por Hugo Mari6.

É interessante apresentar, inicialmente, a seguinte a organização algorítmica de acordo proposta Searle (1995), a qual serviu de norte para nossas análises:

# E # → Expressão lingüística.

E → EM + EC (Enunciado implica um estado mental juntamente com um estado de coisas)

EC → p → Estado de coisas implica uma proposição.

EM → [ M ] CRE EM → (Estado mental implica uma modalização a partir de

DES EM uma crença e um desejo que são intrínsecos a um estado mental.)

No conto “Pai contra mãe”, temos inicialmente uma cena em que são descritos instrumentos clássicos de tortura usados para conter os escravos:

“(1) A Escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres.(...) (2) Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. [...]. Mas não cuidemos de máscaras. O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave.”7 (ASSIS, 2007, grifo nosso)

No excerto acima, observa-se que há um narrador onisciente em terceira pessoa, construindo um discurso descritivo e tecendo comentários a esse respeito. Segundo Scarpelli8,

“(...) o Machado implícito neste conto avulta como ficcionista social, que, sem eufemismo e de forma contundente, examina as cruéis relações de dominação que reificam homens,

6 Cf. Seminários de Estudos Avançados – Linguagem e Intencionalidade: discussão sobre as categorias significado da palavra e significado do falante, ministrada por Hugo Mari em 02/05/2007. Puc -Minas.

7 (Machado, NUPILL - Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

http://www.cce.ufsc.br/~alckmar/literatura/literat.html Universidade Federal de Santa Catarina. p. 1)

8 Scarpelli, M. “Pai contra mãe”, de Machado de Assis: A negativa das negativas. In: Via Atlântica, v. 06, out,

2003. Portal: MF Scarpelli - fflch.usp.br. Disponível em:

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os mercadoria escrava, reflexo brutal da ordem escravocrata ainda vigente, sob as expensas de traficantes de escravos.”

Seguindo a proposta de Searle (1995, p. 02), ao considerarmos as proposições (p) grifadas acima como Intencionais, faremos os seguintes questionamentos: a que se refere (p)? Em que consiste (p)? O que é (p) tal que? Poderemos então, de uma forma geral, obter as seguintes respostas: (p) se refere a narrar fatos decorrentes do período da escravidão; (p) consiste em descrever os objetos utilizados no ‘ofício’ escravagista; (p) é uma asserção descritiva permeada pela ironia.

A ironia que permeia esse conto machadiano é ressaltada por Scarpelli (2003):

“Um exemplo contundente é o ferro ao pescoço, descrito no conto como “uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave”. Ironicamente, essa coleira era menos castigo do que estigma de reincidência”.

Outras inúmeras proposições podem ser apontadas como irônicas. Assim, a ironia aparece através de significantes que sugerem um “tipo de significante” que se traduz por um estado de coisas diferentes. Com isto, consideramos que os estados Intencionais instaurados nas proposições em destaque no conto Machadiano são:

Em (1) percebemos:

(i) Crença: i.1 de que a escravidão acabou; i.2 de que determinados ofícios (profissões como, por exemplo, capitão do mato, etc.) e aparelhos (objetos como a máscara de flandres) eram próprios da escravidão; i.3 de que com o fim legal da escravidão, esses ofícios e aparelhos perderam sua função e deixaram de ser usados.

(ii) Desejo: ironizar os aparatos utilizados pela prática escravagista. Formalmente9, temos as seguintes representações:

Estado Mental Intencional ∩ (EC) → Estado Mental Intencional: certeza ∩ (EC/p: fim da escravidão/e de objetos usados pelo “ofício” escravagista) → {=Crença ( p i.1,i.2, i.3) ∩ Desejo ( p)} → Estado Mental = certeza → Crença ( p): fim da escravidão/ e dos objetos

9 Tabela de símbolos. Cf. Hugo Mari, aula proferida em 09/05/07:

Símbolo Leitura Símbolo Leitura Necessidade → Implicação Possibilidade ∩ Interseção

¬ Negação ∨ Disjunção

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usados pelo “ofício” escravagista ∧ Desejo( p): ironizar os objetos utilizados pelos escravocratas.

Já no grifo (2), notamos:

(i) Crença: i.1 de que a máscara de folha-de-flandres era abominável/ridícula; i.2 de que a máscara era um mal necessário para se manter a ordem; i.3 de que a ordem social e humana é também grotesca e cruel.

(ii) Desejo: ironizar/denunciar a crueldade e o grotesco que envolvem a manutenção da ordem social.

Representação formal:

Estado Mental Intencional ∩ (EC) → Estado Mental Intencional: certeza do abominável/ridículo e doloroso que seria o uso da máscara ∩ (EC/p: uma máscara grotesca cuja finalidade também era, de certa forma, impor uma “ordem social e humana” através de sua imagem ridícula/cruel. → {=FORTE Crença ( p i.1,i.2,i.3) ∧ FRACA Crença ( p) ∩ Desejo ( p)} → EM = certeza do abominável/ridículo → FORTE CRENÇA ( p): a máscara de folha-de-flandres é abominável/ridícula / um mal necessário para manter a ordem ∧ FRACA CRENÇA ( p) de que a ordem social e humana é cruel e grotesca ∧ DESEJO( p): ironizar/denunciar a crueldade e o grotesco que envolvem a manutenção da ordem social

A partir da transcrição da fala do narrador e da investigação das cenas mostradas no filme “Quanto vale ou é por quilo?”, observamos que ele apresenta um início semelhante ao prólogo do conto machadiano. O discurso fílmico apresenta-se inicialmente com o narrador descrevendo os objetos ou “utensílios” usados para conter a “imoralidade” cometida pelos escravos:

“A máscara de folha de flandres é um instrumento de ferro. Fechada atrás da cabeça por um cadeado, na frente tem vários buracos para ver e respirar. Por tapar a boca, a máscara faz com que os escravos percam o vício pelo álcool. Sem o vicio de beber, os escravos não têm a tentação de furtar. Desta forma, ficam extintos dois pecados. A sobriedade e a honestidade estão assim garantidas” (BIANCHI, 2005)

A partir da proposição em destaque, observamos:

(i) Crença: de que a máscara de folha de flandres é um objeto de tortura;

(ii) Desejo: descrever o objeto “máscara de folha de flandres” e os mecanismos de seu funcionamento.

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Estado Mental Intencional ∩ (EC) → Estado Mental Intencional: descrever ∩ (EC/p: que a máscara é um instrumento/artefato feito de ferro/e suas formas) → {=Crença ( p) ∩ Desejo ( p)} → EM = descrever → CRENÇA ( p): descrição objeto/máscara de folha de flandres/e suas formas ∧ DESEJO(p): mostrar/relatar descritivamente o objeto “máscara de folha de flandres” e os mecanismos de seu funcionamento.

Nas obras aqui analisadas, o metapredicado “crença” parece variar de acordo com a cena representada e o contexto que a envolve, podendo ser caracterizado como uma necessidade. Já o metapredicado “desejo” apresenta-se de forma semelhante tanto no conto machadiano quanto no filme de Bianchi: em ambos os discursos ficcionais, os aparelhos e ofícios próprios da escravidão são detalhadamente descritos com a finalidade de, por meio do efeito de ironia, denunciar uma sociedade que permite e legitima essas práticas cruéis e desumanas. Esse metapredicado constituiria-se, então, como uma possibilidade.

Fórmula:

{=EMs → VÁRIAS CRENÇAS ( p) ∩ ÚNICO DESEJO ( p): mostrar/relatar a forma como eram tratados os escravos e ironizar a sociedade que legitimava tais práticas}

Analisamos acima o início do conto de Machado de Assis e do filme de Sérgio Bianchi, a partir do foco de um narrador em terceira pessoa. Nesta segunda etapa de investigação, enfocaremos os estados Intencionais sob a ótica das personagens ficcionais Cândido Neves e Arminda. No extrato final de “Pai contra mãe”, quando Candinho encontra a escrava fujona que há tempos vinha perseguindo, temos:

“Era a mesma, era a mulata fujona. -Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio.(...) Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar,(...) -Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço! - Siga! repetiu Cândido Neves.(...) Aqui está a fujona, disse Cândido Neves. - É ela mesma. -Meu senhor! -Anda, entra... Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.” (ASSIS, 2007)

Verificamos que o estado Intencional presente neste excerto a partir dos enunciados da personagem Cândido Neves é:

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(i) Crença: i.1 a certeza de que era mesmo a negra fugitiva; i.2 de que a captura da negra fugitiva renderia uma gratificação; i.3 de que a gratificação obtida poderia garantir ao personagem uma vida mais tranqüila.

(ii) Desejo: de capturar a fujona para receber a gratificação prometida. Representação formal:

Estado Mental Intencional ∩ (EC) → EMI: certeza de que era mesmo a negra procurada/ de que capturar a escrava fugitiva renderia lucro/ e que o dinheiro traria uma vida mais tranqüila ∩ (EC/p: o personagem Cândido reconhece a escrava fugitiva conforme anunciado, ele a captura e recebe uma gratificação) → {=Crença ( p i.1,i.2,i.3) ∩ Desejo ( p)} → EM = certeza de que era a escrava fugitiva, que isto lhe renderia um bônus e uma vida mais tranqüila → CRENÇA ( p): a certeza de que Arminda era escrava fugitiva/ de que sua captura renderia lucro/ e uma vida melhor ∧ DESEJO( p): capturar a escrava e receber a gratificação

Já o estado Intencional decorrente da personagem Arminda pode ser considerado como:

(i) Crença: i.1 de que ser capturada nesse momento seria fatal para o filho que estava esperando; i.2 de que os senhores impunham castigos cruéis aos escravos fujões; i.3 de que poderia se safar dessa situação.

(ii) Desejo: de se manter livre. Representação formal:

Estado Mental Intencional ∩ (EC) → Estado Mental Intencional: possibilidade e/ou desespero de ser capturada ∩ (EC/p: Cândido Neves reconhece Arminda, ela pede por sua liberdade, usando como argumento o filho que leva no ventre, mas de nada adianta, a escrava é capturada) → {=Crença ( p i.1,i.2,i.3) ∩ Desejo ( p)} → EM = desespero pela possível captura → CRENÇA ( p n1,n2,n3): ser capturada poderia ser fatal para o filho que leva no ventre/ o castigo imposto a escravos fujões é muito cruel/ de fugir ∧ DESEJO(¬ p): de não ser capturada novamente.

É interessante salientar que no filme “Quanto vale ou é por quilo?” há dois desfechos. Examinaremos apenas o primeiro deles, pois se trata de uma analogia ao conto Machadiano. Como já mencionamos, o diretor Sérgio Bianchi retrata em seu contexto ficcional o trabalho de uma ONG que inaugura um projeto de Informática numa comunidade carente. A personagem Arminda é uma mulata que trabalha nesse projeto e descobre que há indícios de

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corrupção por parte da ONG. Quando ela confirma sua suspeita – os computadores comprados foram superfaturados – passa a ser perseguida e ameaçada de morte. O jovem Candinho, por outro lado, não tem emprego, sua esposa está grávida e ele acaba se tornando um matador de aluguel para obter dinheiro e sobreviver com sua família.

A cena inicia-se com Arminda chegando a sua casa (há um fundo musical com um ritmo dinâmico). Candinho está escondido atrás de um muro à espera de Arminda. E no decorrer desta passagem surge o narrador dizendo:

- O pessoal lá do distrito tá complicando, mais ainda tem gente fora da policia que pode resolver esta situação.[Candinho pula o muro, vai atrás de Arminda, ele a agarra, luta com ela. Candinho tem um revolver a mão. Ele atira em Arminda. Candinho vai para sua casa e chama a tia Mônica, e lhe diz que arrumou emprego]. Ela o responde:

Tia Mônica- E tu acha que esse teu serviço vai durar até o moleque crescer... sem poder

trabalhar? Esse é confete de malandro fajuto.

Candinho: - Até lá, eu não sei.[Candinho tira um pacote de dinheiro e dá para sua tia. Assim,

ele, a tia e a esposa vão comemorar o dinheiro adquirido. Essa cena é congelada como se fosse uma fotografia].

Narrador:“Com a recompensa pela escrava fugida ...o capitão-do-mato pode agora criar seu

filho... alimentá-lo e educá-lo com dignidade e liberdade.” (BIANCHI, 2005)

O estado mental Intencional mostrado por Candinho nesta cena é: (i) Crença: de que trabalho é um bem necessário, seja qual for o ofício. (ii) Desejo: de ter uma vida digna

Representação formal: Estado Mental Intencional ∩ (EC)

Estado Mental Intencional: trabalho como um bem necessário, independente de sua legalidade ∩ (EC/p: O ataque de Candinho a Arminda, a morte dela, o encontro de Candinho com a Tia e a esposa) → {=Crença ( p) ∩ Desejo ( p)} → EM = certeza de que trabalho é um bem necessário → CRENÇA ( p): trabalho como um bem necessário ∧ DESEJO ( p): de ter uma vida digna

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo da Intencionalidade a partir dos discursos ficcionais “Pai contra mãe” e “Quanto vale ou é por quilo?”, pareceu-nos relevante abordar a Intencionalidade em sua

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manifestação lingüística, considerando-se os metapredicados “crença” e “desejo” segundo o critério proposto por Searle (1995).

As análises aqui elaboradas nos permitiram afirmar que os estados Intencionais de “Pai contra mãe” e “Quanto vale ou é por quilo?” são diferenciados quanto ao contexto, tempo e espaço narrativo em que estão inseridos. Ainda assim, podemos postular que o ‘desejo’ que permeia as seqüências narrativas dessas duas obras é o de descrever as práticas e os aparelhos utilizados para reprimir os escravos negros, a fim de ironizar uma sociedade que legitima uma instituição tão cruel como a escravidão.

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REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: Biblioteca Digital de Literatura. Santa Catarina,

2007. Disponível em: <http://www.cce.ufsc.br/~alckmar/literatura/literat.html>. Acesso em: 09 jun. 2007.

BIANCHI, Sergio. Quanto vale ou é por quilo?. Agravo Prod. Cinematográficas S/C Ltda,

São Paulo, 2005. Disponível em: http://www.quantovaleoueporquilo.com.br/>. Acesso em 15 mai.2007

COSTA, J. F. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro, Graal. 1989. p. 164. MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo, Perspectiva, 1972.

Portal Quanto vale ou é por quilo, São Paulo, 2005. Disponível em: <http://www.quantovaleoueporquilo.com.br/>. Acesso em: 10 jun. 2007.

ROSENFELD, A. Literatura e personagem. In: A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 9-49.

SEARLE, J. R. Intencionalidade: um ensaio em filosofia da mente. Trad. Julio Fisher e

Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

TRINDADE, Eneus. Telenovelas e Publicidade: o Ritual de Ver TV e Alguns Aspectos na Relação Ficção/Realidade. Palestra apresentada no Núcleo de Pesquisa 14 - Ficção Seriada, evento componente do XXIV Congresso Anual em Ciência da Comunicação, Campo Grande,

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