• Nenhum resultado encontrado

GÊNERO E CINEMA: DA PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES E PERFORMATIVIDADES À POLÍTICA E POÉTICA DAS IMAGENS, NO DOCUMENTÁRIO KÁTIA

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "GÊNERO E CINEMA: DA PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES E PERFORMATIVIDADES À POLÍTICA E POÉTICA DAS IMAGENS, NO DOCUMENTÁRIO KÁTIA"

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

GÊNERO E CINEMA: DA PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES E

PERFORMATIVIDADES À POLÍTICA E POÉTICA DAS IMAGENS, NO

DOCUMENTÁRIO “KÁTIA”

Marcelo Faria dos Anjos1

Resumo: A proposta é problematizar o encontro e a relação entre gênero e cinema, a partir de um olhar sobre o filme “Kátia”(2012). Dirigido pela cineasta Karla Holanda, o documentário acompanha a personagem Katia Tapety, primeira transexual eleita para um cargo político no Brasil. Tendo como base os Estudos Culturais, as perspectivas pós-estruturalistas, os Estudos de Cultura Visual, e particularmente, a construção dos Gêneros, das Sexualidades, das Diferenças e das Subjetividades nos últimos anos, o artigo toma as narrativas das trajetórias e das experiências vividas pela protagonista e reflete sobre possíveis enunciados performativos que indicam um lugar para a travestilidade e um modo de ser travesti (brasileira), além de revelar a potência da relação documentarista e personagem. Pensando no aspecto político e no aspecto poético das imagens cinematográficas em diálogo com Gênero e Sexualidade, questiona-se que tramas de possibilidades e de visibilidades, e que produções de sentidos e de verdades podem emergir da relação que se dá entre o nosso olhar e aquilo que olhamos – neste caso, o cinema – que também nos olha.

Palavras-chave: Chaves: Gênero – Cinema – Narrativa – Performatividade - Subjetividade

“A gente pensa que está indo num caminho e o caminho muda o tempo inteiro. Acho que é a marca do filme. Eu acordo pensando certo que a gente vai fazer isso e depois muda e muda sempre pra melhor”. O depoimento da cineasta Karla Holanda, no making off do seu documentário “Kátia” foi a lente pela qual foquei o meu olhar para o filme e fui me conduzindo para além dele para pensar na relação entre cinema, gênero, sexualidades, subjetividades e de modo especial a questão da travestilidade.

Kátia (2012) é um longa-metragem que documenta a história de Kátia Tapety, a primeira travesti a assumir um cargo político no Brasil. Foi vereadora três vezes e vice-prefeita no interior do Piauí. Estruturalmente, trata-se de um filme bastante simples. A equipe de filmagem conviveu durante 20 dias com a personagem, registrando seu dia-a-dia de forma próxima e afetiva. A câmera de Karla corre solta pelo entorno do mundo de Kátia, revelando tanto a precariedade como a espontaneidade de seu universo.

Este artigo procura acompanhar a trajetória da protagonista e sua tentativa de se reinventar diante das condições de possibilidades existentes em seu contexto. Os itinerários de gênero e sexualidade experimentados por Kátia ao longo da trama fílmica ocupam o centro desta reflexão.

1 Mestrando em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz

(2)

Para isso, tomo como perspectivas, os estudos culturais, os estudos de gênero e sexualidades, os estudos pós-estruturalistas e de um modo especial, os estudos foucaultianos em torno dos modos de subjetivação e os estudos de Judith Butler acerca do conceito de performatividade. Na leitura que faço, procuro dar ênfase aos possíveis enunciados performativos que indicam um lugar para a travestilidade e um modo de ser travesti (brasileira) e os possíveis enunciados que parecem subverter a ordem do gênero e da sexualidade.

Inicialmente é preciso dizer que este trabalho não é sobre cinema, mas com o cinema, problematizando como se pode pensar sobre o papel das imagens e dos discursos na produção de subjetividades e como se pode, ao tomar contato com um filme, questionar sobre as práticas culturais que educam o olhar e sobre os efeitos desse olhar sobre quem olha. Quando falo em práticas culturais, preocupo-me com as práticas discursivas e não-discursivas em jogo na maquinaria de produção que se opera entre criadores, personagens, técnicos de todos os níveis e os espectadores, nas mais distintas situações e condições de recepção.

Que possíveis discursos podem ser percebidos no filme Kátia? Como as narrativas da protagonista, os depoimentos de familiares, de amigos e até de desconhecidos, e principalmente, a relação entre documentarista e documentados vai tecendo uma trama e um certo regime de “verdades”, que falam de um tempo e um espaço e de um modo pelo qual alguém se torna sujeito.

Esta questão – o modo pelo qual alguém se constitui sujeito – vem, ao longo da história e sob diferentes perspectivas, sendo debatida e problematizada. No documentário em questão, parece-me que, para a cineasta, essa questão ganhou relevância ao tomar contato com a história de Kátia Tapety e tentar entender como José Nogueira Tapety Sobrinho, nascido em Oeiras, uma pequena cidade no sertão do Piauí, aos 18 anos, tornou-se Kátia, e como, em meio a dureza do sertão nordestino, ela torna-se a primeira travesti eleita a um cargo político no Brasil e uma das mais respeitadas cidadãs de Colônia do Piauí, município emancipado de Oeiras. Assim, Karla Holanda conta no site oficial do documentário:

Embora eu seja do Piauí, a primeira vez em que ouvi falar em Kátia eu morava em São Paulo e foi através de jornais, internet. Ela já era uma figura midiaticamente conhecida por ter se tornado a primeira travesti a se eleger a um cargo político no Brasil. Seu sobrenome me chamou a atenção. Tapety é uma das mais tradicionais famílias ligadas à política do estado. O que mais me impactou foi o fato de uma forte história de ruptura com os modelos convencionais, que a trajetória de Kátia representa, vir justamente de um dos estados mais pobres do país e, precisamente, de uma pequena cidade cravada no sertão, geralmente associado a terra de “cabras machos”, como se ali os preconceitos, naturalmente, aflorassem mais e maiores. E não era nada disso. Surgia o desejo de fazer um documentário com ela. (Karla Holanda)

(3)

Numa entrevista concedida ao site Papo de Cinema em 15 de abril de 2013, Karla acrescenta:

“No roteiro que eu estruturei, dividiria em três partes: cada uma iria retratar a Kátia de uma maneira diferente e isso ia dizer que a realidade varia de acordo com a forma que ela é representada. Mas diante da Kátia e dos caminhos que ela estava me levando, eu vi que tudo era tão simples que o que eu tinha que fazer era me despir de qualquer pretensão intelectual. O que eu tinha de mais rico não era nada de conhecimento meu sobre documentário, era a Kátia a própria riqueza do documentário. Meu trabalho foi me deixar me levar por ela”, revela a diretora. Partindo desse encontro potente entre documentarista e personagem, entre cinema e produção de subjetividades, preocupei-me em olhar para o filme perguntando como estudar as imagens, textos e sons nele apresentados sem a pretensão de ver nessas imagens afirmações de representações prontas e acabadas, mas possibilidades de significações datadas e bem localizadas seja do ponto de vista de quem as produziu e as colocou em circulação, seja do ponto de vista de quem recebeu (ou receberá) essas imagens e com elas, interage de alguma forma. Como as imagens apresentadas no filme Kátia e os discursos que nascem dele e a partir dele produzem novos, múltiplos e diferentes sentidos para se pensar gênero e sexualidades? E que enunciados performativos são reiterados ao longo do documentário que nos permitem colocar em debate uma suposta identidade da travestilidade brasileira?

O filme inicia-se com uma estrada. A estrada, pode-se dizer que, remete a um caminho ou aponta um percurso e um lugar. Estrada sugere a movimentos, trânsitos, deslocamentos. Sugere também uma construção física e fixa. Mantem-se ali, mas não exatamente do mesmo jeito. Há os que ali transitam, movimentam-se e criam um dinamismo em seu trajeto. Cada sujeito, veículo ou animal que lhe percorre, o faz de um jeito. São inúmeras as formas de trafegar, transitar e viajar por uma via. Rotas, desvios, contornos, retornos, acostamentos, fronteiras...

É uma estrada marcada pelo tempo e pelo espaço. Os planos vão se fechando e vamos percebendo suas características: é danificada, esburacada e está inserida em meio ao sertão. A luz sugere, logo a princípio, um sol abrasador que penetra a natureza, criando um território que nos conduz ao “cenário” do filme: o semiárido nordestino, com seus contornos e suas nuances.

É neste tempo e neste espaço que Kátia é apresentada. Caminha firme num espaço aberto e amplo, cheio de luminosidade puxando um jumento. A luz do sol reflete-se nos corpos e na natureza em harmonia com este mesmo espaço-tempo. Acompanhamos o movimento de Kátia. Ela veste uma bermuda de estampas e um blusão listrado. Tem os cabelos presos. Adorna-se com brincos e pulseiras. Os chinelos nos pés vão marcando seu rumo pelo asfalto quente. Caminha apressada para

(4)

realizar um de seus trabalhos cotidianos: a colheita de capim para o trato dos animais. E, de imediato, vamos percebendo a sintonia entre a personagem e o sertão seco. Ela enquadra-se nesse cenário, faz parte dele. Com-vive e relaciona-se com a rudeza, o calor, o suor, o trabalho pesado e, em meio a isso, interage e adapta-se com as normas e contingências deste lugar.

Numa metáfora utilizada num livro sobre teoria queer2, sobre caminhos e itinerários

constituídos e empreendidos na esfera dos gêneros e das sexualidades, Guacira Louro (2010) aponta que “nos filmes tal como nos livros, a estrada é muitas vezes apresentadas como via de redenção. Mas, também muitas vezes, isso não se realiza, é claro. O fato é que, de um modo ou de outro, ao se deslocarem, os sujeitos se transformam.” (LOURO, 2010, p. 204). E acrescenta que: “ao longo da vida, alguns sujeitos deixam-se tocar profundamente pelas possibilidades de toda ordem que o caminho oferece.” Entregam-se a essas aventuras que parecem arriscadas e assustadoras à medida que mexem com “dimensões tidas como ´essenciais`, ´seguras` e ´universais` (LOURO, 2004, p. 23).

O caminho de constituição de sujeitos e subjetividades é marcado por diversas perspectivas. Numa delas, a sexualidade toma um foco importante. É pensada como um dispositivo que diz de um modo pelo qual nos tornamos o que somos, e como afirma Foucault (2006) está envolvida nos

processos de subjetivação3. Não há como separar as implicações da construção das sexualidades

2 Nos anos 90, a partir do surgimento da Queer Theory, a palavra de ordem é des-ontologização. Para Preciado, a

aparição da noção de gênero implicou no rompimento do regime disciplinar no sexo. Pela primeira vez, e com as feministas, vai se começar a pensar que a masculinidade não é monopólio de quem tem pênis e a feminilidade não é monopólio de quem tem vagina. Destaca-se que a emergência do conceito de gênero foi uma das causas principais da desontologização do sujeito da política sexual e ocorreu quando uma nova geração saída dos próprios movimentos identitários tomou para si a empreita de e definir a luta e os limites do sujeito político “feminista” e “homossexual”. No plano teórico, essa ruptura primeiramente tomou a forma de um retorno crítico sobre o feminismo operado pelas lésbicas e as pós-feministas americanas, apoiando-se em Foucault, Derrida e Deleuze. Assim, Judith Butler nos Estados Unidos e Marie-Helene Bourcier e Beatriz Preciado na França vão se contrapor à naturalização da noção de feminilidade que inicialmente foi a força de coação do sujeito do feminismo. O posicionamento queer resulta de uma desconstrução das identidades sexuais. Tal termo define uma pós-identidade distinta das categorias « gay » e « lésbica », julgados demasiadamente estáticos e englobantes. Queer se opõe a normal, e não simplesmente a heterossexualidade. O termo visa romper, ou pelo menos perturbar categorias como aquelas que opõem heterossexualidade e homossexualidade. A identidade queer não tem portanto limites hermêticos e definidos, e se caracteriza, ao contrário, por sua fluidez, o que constitui um desafio à identidade.

3 Michel Foucault chega a três modos que chama de “modos de subjetivação” ou “modos de objetivação” que atuam nos

processos de constituição do sujeito. No primeiro modo, que chama de arqueologia, Foucault estuda como os saberes sobre o sujeito – no discurso da gramática, da filologia e da linguística, da economia, da história natural ou da biologia – podem objetivá-lo. Os conhecimentos construídos sobre o ser humano nesses âmbitos, por serem resultados de investigações que tentam “atingir o estatuto de ciência”, vão construindo verdades às quais ele se submete, se subjetivando a partir delas. No segundo modo, a genealogia, Foucault estuda as relações de poder e suas “práticas divisoras” na objetivação do sujeito. “O sujeito é dividido no seu interior e em relação aos outros”) e daí surge, por exemplo, o são e o louco, o doente e o sadio, o forte e o fraco. No terceiro modo, nos traz a ética, processo pelo qual a

(5)

dos sujeitos e tampouco daquelas ligadas às relações de gênero. No Brasil, especialmente, mais do que relações de gênero e sexualidades, há certo embaralhamento entre elas, de forma que não é possível falar de uma sem tratar da outra.

Nesta encruzilhada, Judith Butler (2003, p. 33) nos indica que: “gênero é a repetida estilização do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de um quadro regulatório altamente rígido que se cristaliza ao longo do tempo para produzir a aparência de substância, de um tipo de ser natural”. Gênero é compreendido como um processo que acontece por meio de um emaranhado de práticas reguladoras que impõe um padrão demarcado com ordem e coerência para os corpos e desejos.

Ainda com Butler (2003,195-196), problematiza-se que a verdade interna do gênero é uma fabricação. O gênero verdadeiro é uma fantasia instituída e inscrita sobre a superfície dos corpos. Não pode ser nem verdadeiro nem falso, mas somente produzido como efeito da verdade de um discurso sobre uma identidade primária e estável.

Persistindo na imagem da estrada, quando se constrói uma “cartografia” de gênero, observa-se que essa fabricação tem sido feita sob o terreno de uma heteronormatividade. Nesobserva-se observa-sentido, há uma lógica normatizadora que constrói uma pretensa coerência entre o sexo, o gênero ´correspondente` e a heterossexualidade (compulsória). A partir da declaração “É uma menina” ou “É um menino” desencadeia-se “uma espécie de caminho que se desenvolve ao longo de toda a existência do sujeito, (...) a nomeação inaugura um processo de masculinização ou de feminização com o qual o sujeito se compromete.” (LOURO, 2010, p. 205).

Mas como nos caminhos existem diferentes rumos, diferentes rotas, atalhos e fronteiras que podem ser atravessadas, cruzadas e deslocadas, nos processos de subjetivação que vão se constituindo em verdades, nas quais os sujeitos se submetem, há sempre um escape, uma linha de fuga, uma contra-conduta.

É nesta fronteira e nessa contramão que o documentário de Karla transita. As imagens iniciais já apontam aquilo que, no decorrer da narrativa, vai se afirmando: o deslocamento no itinerário do gênero e da sexualidade da protagonista. Itinerário marcado por um impulso de querer ir além, de desejar outras formas de estar no mundo. De criar um corpo-outro, um desejo-outro e um

subjetivação se dá a partir das práticas do sujeito sobre si mesmo e sobre os outros, “o modo pelo qual um ser humano torna-se um sujeito” . Esses três modos, no entanto, não acontecem em separado, mas estão imbricados, concorrem entre si, se completam, se articulam nos processos de subjetivação. Em suma, “nos tornamos sujeitos pelos modos de investigação, pelas práticas divisórias e pelos modos de transformação que os outros aplicam e que nós aplicamos sobre nós mesmos”

(6)

prazer-outro que transite entre os efeitos-consequências dos discursos normativos e das singularidades.

No universo da dureza do sertão, com seus códigos e normas é que o corpo masculino de José Nogueira Tapety Sobrinho – apelidado de Zezão – subverte a ordem, e torna-se o corpo travestilizado de Kátia. Assim como aponta Butler (2003), a personagem subverte inteiramente a distinção entre os espaços psíquicos interno e externo, e zomba efetivamente do modelo expressivo do gênero e da ideia de uma verdadeira identidade do gênero.

Mas, afinal, quem é Kátia?

Kátia é aquilo que dizem que ela é, aquilo que querem que ela seja e aquilo que ela faz de si mesma. Há um caminho marcado Há um espaço, demarcado por biopolíticas regulatórias que, através de discursos morais e assépticos, produzem os espaços possíveis, normatizados, esquadrinhados. Há também outros caminhos, outros espaços sempre possíveis que se processam através de resistências, enfrentamentos, contra condutas das lógicas normativas que constroem possíveis. Multiplicidades. Descontinuidades. Diferenças. Devires. E, desse modo, começamos a conhecer o universo de Kátia.

“Meu pai sempre dizia: homem que vai ser viado tem que morrer”. Esta é a primeira fala de Kátia. Fala dura, seca, sem meias palavras. Um discurso que faz pensar sobre as relações de poder que se configuram na trama da personagem. É no ponto de encontro entre poder e resistência, entre norma e subversão, que o documentário começa a revelar as possibilidades de existencialização de Kátia Tapety. Para sobreviver, ela aprende a se reinventar. Nasceu José, mas torna-se Kátia. Ela não suporta permanecer num lugar e recria um inusitado modo de existir. Travestiliza-se. Performatiza-se. Rompe com uma identidade e transita por um percurso de diferença.Trata-se de alguém que tem a coragem de dizer sobre si, de expressar uma posição social e política diante do mundo, das pessoas e de si mesma, assumindo um lugar que lhe permita sentir-se bem, satisfazer seus desejos e construir uma estilística da existência que expresse sua singularidade humana, mesmo que isso tenha como desdobramento sofrer violações e violências e até mesmo correr riscos de vida.

No último curso ministrado na Universidade de Berkeley, que pode ser traduzido como “Coragem e Verdade”, em 1984, Foucault coloca em discussão o conceito de “parrhesia”:

(...) quem usa a parresia, o parresiasta é alguém que diz tudo o que tem em mente, não oculta, nada, senão, que abre completamente seu coração e sua mente a outras pessoas mediante o discurso (...) na parresia, o parresiasta atua em consideração dos demais, mostrando-lhes tão diretamente como é possível aquilo que realmente acredita (...) a específica “atividade discursiva” da enunciação parresiástica, portanto, toma a forma: sou quem pensa isto e isso, sou quem pensa isto e o outro.”

(7)

Pode-se pensar, ao olhar para a personagem Kátia, que a constituição de sua travestilidade se apresenta nesse devir e nessa processualidade em trânsito, situados entre a afirmação de suas verdades, ousadas, corajosas e afirmativas diante de determinações de um sistema de

sexo/gênero/desejo/práticas sexuais, que, como instrumento de conservação da

heteronormatividade, institui moldes e paradigmas de verdades absolutas e universais.

Os momentos iniciais nos aponta esse movimento. Em meio à aspereza da seca, Kátia se apresenta (“Essa é a vida de camponesa”), apresenta seu território (“Oh Calor! Aí é puxado...Sete

meses de verão, como é que se aguenta?...estrada ruim pro governador ver...só buraco...”), seus gostos (“Eu cheiro...Quando a gente gosta, cheira...o suor é que é bom...”), seu espaço de fronteira (“sou mulher mas faço o serviço de homem, tudo o que os machos fazem, eu faço”), seus questionamentos existenciais (“Sou pau pra toda obra, sou mulher, sou macho, sou tudo, não sei

que diacho eu sou”).

Nestes encontros e desencontros e nestas narrativas de si, Kátia Tapety vai se revelando, definindo uma maneira de se constituir sujeito e uma atitude que vai mostrando um certo modo de encarar as coisas, de estar no mundo, de praticar ações, de ter relações com os outros e com o mundo. (FOUCAULT, 2010, p. 11). E nesse ponto, o cinema documental, como uma prática significadora que combina uma série de elementos significadores, funciona em conjunto para dar sentido àquilo que vemos e ouvimos: câmera, iluminação, som, mise-en-scéne, edição, entre outros. Como afirma Filipe Matzembacher:

“É nesse momento que o filme de Karla torna-se uma pérola dentre desse “subgênero queer”: apresenta uma travesti, nascida no interior do Piauí, escondida pela família, trabalhadora rural, ex-vereadora e vice-prefeita, não sobre a ótica do passado e sim sobre a seu dia-a-dia, seu universo. A câmera se aproveita das tarefas do campo, dos vizinhos “figuras”, das opiniões políticas da cidade e das intenções amorosas da personagem, e trazendo momentos únicos, dificilmente afastando o espectador. Existe um olhar muito cuidadoso, baseado em planos extremamente trabalhados e uma montagem sugestiva, criando momentos narrativos quase ficcionais (...) O documentário expõe sua personagem, através de diversos assuntos de maneira tangente como adoção, vida no sertão, família, transexualidade, trabalho rural, religião, política e vida amorosa… São diversos focos compondo essa personagem, sem medo de expor Kátia.”

A narrativa da experiência de travestilidade de Kátia nos dá indicação sobre a maneira como a relação entre a identificação primária – isto é, os significados originais atribuídos aos gêneros – e as experiências posteriores do gênero podem ser reformuladas. Por esse viés, estabelece-se uma relação de intimidade e liberdade que nos possibilita compreender o jogo de que

(8)

não há verdades ocultas nem visibilidades tão plenamente expostas nem tão evidentes. Jogo este no qual tanto Kátia e seus conterrâneos, quanto a documentarista Karla Holanda e sua equipe e cada um que se torna espectador se dispõe a participar e constituir também novos e múltiplos processos e de subjetivação.

A constituição dessa subjetividade, como disse David Le Breton (2007, p. 28) é um “vasto campo de experimentação”. Nele, a categoria sexual do masculino é profundamente colocada em questão. Masculinidade e feminilidade, longe de serem evidências da relação ao mundo, são objeto de uma produção permanente de si pelo uso apropriado de determinados signos: técnicas corporais, expressões de sentimentos, produção simbólica do corpo.

Nessa produção que se opera nos corpos, mergulha-se no cotidiano de Kátia. Gestos soltos, descontraídos vão se misturando a performances diante da câmera. Num misto de apuração do olhar da cineasta e sorte improvisada de alguns momentos, imagens vão construindo discursos políticos e poéticos que possibilitam pensar o mundo de Kátia, o mundo que nos cerca e pensar em nós mesmos em nossas posições de sujeitos. Tão óbvio quanto perceber que existe compreensão e aceitação ainda é óbvio perceber também o preconceito acerca da travestilidade.

Exemplo desse conflito é o fato de perceber uma dificuldade de se falar com/sobre travestis quando se trata de denomina-los ou atribuir-lhes pronomes. O filme mostra essa tensão o tempo inteiro. Num dado momento, a protagonista nos mostra uma foto sua junto com a transformista Laura de Vison e é interrompida por sua filha adotiva que lhe pergunta: “Quem é essa aí? É uma

viada?” Imediatamente ela responde: “Larga de discriminação! É uma travesti e pronto. Não é uma

viada. Tem que aceitar as pessoas como são”. Em outro momento, num depoimento de seu irmão Benedito Tapety, percebe-se também uma dificuldade de nomeá-la enquanto travesti: “Eu tive a

oportunidade de estudar um pouco mais e nisso eu busquei a compreensão, o entendimento de que ele tem a preferência dele e a gente não pode condená-lo por isso. Apesar de ter alguns irmãos que não gostam, eu sempre aceitei e todas as vezes que os amigos se referiam a ele como homossexual, eu sempre dizia: ele é meu irmão.”

Esse “estar na fronteira” e não se constituir numa identidade única e sólida. vai criando um processo de movimento e um constante “devir kátia” nas narrativas que vão sendo apresentadas : travesti, nascida no interior do Piauí, escondida pela família, trabalhadora rural, ex-vereadora, vice-prefeita, mãe, religiosa, “arrancadora” de dentes, parteira, agente de saúde, médium...

No discurso de Kátia sobre si mesma, na fala de seu irmão, de familiares, vizinhos, amigos e até mesmo de desconhecidos, vai se compondo um universo de saberes e verdades que nos indicam

(9)

um modo de ser travesti. Aos poucos, documentarista, documentados e espectadores vão se apropriando de particularidades, de coisas comuns e das diferenças, dos sentimentos, dos acontecimentos e das interpretações deles como parte da história que vai sendo apresentada. A experiência travesti de Kátia, pensada como margem, situação liminar, linha de fuga, constitui um lugar privilegiado para a compreensão desse campo articulado pelas tensões, ambigüidades e indeterminações próprias do sistema de relações da qual faz parte. Quase tudo na alteridade da travestilidade a liminaridade

Como problematiza Butler:

“(o travesti) é uma dupla inversão que diz que a ‘aparência é uma ilusão’. O travesti diz ‘minha aparência ‘externa’ é feminina, mas minhas essência interna (o corpo) é masculina’. Ao mesmo tempo, simboliza a inversão oposta: ‘minha aparência ‘externa’ (meu corpo, meu gênero) é masculina, mas minha essência ‘interna’ (meu eu) é feminina” (203, p. 202)

Ou como afirma Wiliam Siqueira Peres:

As travestis são pessoas que se constituem através de processos de subjetivação que oscilam entre discursos e figurações normatizadores que tentam disciplinar seus corpos e regular seus prazeres, inaugurando um campo por meio de movimentos de resistência e de enfrentamentos ao biopoder (...) As travestis são produzidas através de uma ordem dos discursos que se efetuam pelas resistências às lógicas binárias e universalizantes, assim como heteronormativa e falocêntrica, que expressam singularidades e inauguram nova estética da existência, apesar de muitas das travestis e transexuais ainda se situarem dentro do modelo heteronormativo e falocêntrico, logo binário e moral, que impõe como modelos de identificação relacional (afetivo, sexual e amoroso) os determinados pelo sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais. (PERES, 2012, p. 2)

É interessante observar que todo o movimento de resistência e subversão de Kátia Tapety não é um movimento de rompimento do sistema em que vive. Se de um modo geral, no processo de travestilidade, há uma ruptura do mundo da casa e um apego ao universo da rua como forma de sobrevivência e potencialização de um processo de transformação, a personagem faz um caminho inverso: é dentro de seu pequeno munícipio com oito mil habitantes no sertão do Piauí, marcado por uma cultura tradicional, machista e religiosa que Kátia constitui sua subjetividade e sua travestilidade. Seu modo de ser, mesmo enredado aos moldes de uma cultura local, é um modo de ser tido como “estranho”, “bizarro”.

Essa estranheza ou bizarrice aponta para um desdobramento: a relativização das afirmações e verdades feitas em nome de uma vida sexual normal. É a estranheza de Kátia que dá a quem com ela se relaciona (seja no encontro real ou ficcional) a indicação de como se constitui o mundo corriqueiro, presumido e compulsório dos significados sexuais. É somente a partir de uma posição

(10)

conscientemente desnaturalizada que podemos ver como a aparência de naturalidade é, ela própria, construída.

Parece que um paradoxo se abre. Se considero, aqui, que a experiência da travestilidade de Kátia constitui um lugar privilegiado para indagar a precariedade das definições naturalizantes da moral identitária e da violência das normas de gênero, não desconheço que ela também indica uma possibilidade de manter inalteradas as assimetrias do gênero.

“Tem homem muito macho no Piauí, mas todos me veem como uma senhora, não me veem

como “ó o veado!”. Eles me respeitam: “ali é dona Kátia, a vice-prefeita, é casada, é mãe de filho.”

De acordo com Butler, a produção dos gêneros é da ordem do performativo, no sentido de “performance” ou “performatividade”. Butler vai falar assim de identidades que se teatralizam, efeitos de paródia, enfim, da identidade como uma prática e não como uma essência.

“compreender a identidade como uma prática, e uma prática significante. [Compreender a identidade nesses termos] é compreender sujeitos culturalmente inteligíveis como efeitos resultantes de um discurso amarrado por regras, e que se insere nos atos disseminados e corriqueiros da vida linguística. Abstratamente considerada, a linguagem se refere a um sistema aberto de sinais, por meio dos quais a inteligibilidade é insistentemente criada e contestada. Como organizações historicamente específicas da linguagem, os discursos se apresentam no plural, coexistindo em contextos temporais e instituindo convergências imprevisíveis e inadvertidas, a partir das quais são geradas modalidades específicas de possibilidades discursivas”(BUTLER, 2003, p. 208)

Quando Butler enfatiza que “gênero” implica em significados culturais que são, sobretudo, performativos, ela não está querendo dizer que se trata de um voluntarismo, o gênero como uma máscara, uma fantasia que se coloca, ou uma “identidade” que muda de um dia para o outro. Trata-se da “repetição ritualizada” através da qual normas sociais são reproduzidas e estabilizadas; no entanto, também implica na criação de um espaço para sua transgressão ou modificação.

É nessa transitoriedade que Kátia se constitui...e nos faz pensar sobre modos de existência de uma travestilidade brasileira. A narrativa dos processos históricos, práticas e valores que envolvem a experiência da travestilidade compõe um mosaico de enunciações da sexualidade que podem ser descritas a partir das flutuações de um jogo permanente que se estabelece nos espaços e territórios do visível e do invisível, do interior e do exterior, do pessoal e do social, do público e do privado, da publicidade e da intimidade, da confissão e do segredo. Essa noção pressupõe uma concepção de sujeito, segundo a qual este último não é pensado enquanto sujeito unitário, “mas enquanto segmentado, fendido por segmentações binárias e por fluxos moleculares..., um mesmo

(11)

sujeito “individual” que, superficial e empiricamente participa, ao mesmo tempo, de redes de sociabilidade múltiplas e diferenciadas.

Referências:

BUTLER, Judith.Questões de gênero. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.

Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

______. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires: Editorial Paidós, 2002.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I. A Vontade de Saber. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1980.

______. Coraje y verdad”. In: ABRAHAM, Tomás. El último Foucault. Buenos Aires: Editorial Sudamericano, 2003. p. 265-406.

______. Hermenêutica do Sujeito: curso dado no College de France (1981-1982). Tradução de Marcio Alves Fonseca, Salma annus Muchail. 3ª. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

_______. Michel Foucault entrevistado por Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Trad. Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993b. p. 253-278.

_______. O sujeito e o poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault, uma

trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Trad. Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993a. p. 231-249.

_

LE BRETON, David. A Sociologia do Corpo. Petrópolis, Vozes, 2007.

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. Ensaio sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte, Autêntica. 2004.

______.Viajantes Pós-Modernos II. In: LOPES, Luis Paulo da Motta; BASTOS, Liliana Cabral. (Org.). Para além da Identidade. Fluxos, movimentos e trânsitos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, v. 01, p. 203 – 213.

PERES, Wiliam Siqueira. Travestilidades Nômades. A explosão dos binarismos e a emergência queering. Estudos Feministas, Florianópolis, 20 (2) 256. Maio/agosto 2012. 539 – 547. Disponível

em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2012000200014&script=sci_arttext>.

Acesso em 05/07/2013. Referências fílmicas:

KÁTIA. Direção e Roteiro de Karla Holanda. Produção Petrobrás Cultural, 2012, 73 min. Gênero: Documentário

(12)

http://katiaofilme.com/

Cinema and gender: From production subjectivities and performativies, politics and poetics of images in the documentary "Katia"

Abstract: The proposal is to discuss the meeting and the relationship between gender and film, from a look at the film "Katia" (2012). Directed by filmmaker Karla Holanda, the documentary follows the character Katia Tapety, first transsexual elected to political office in Brazil. Based on cultural studies, poststructuralist perspectives, the Visual Culture Studies, and particularly the construction of Gender, of Sexualities, Diversities and Subjectivities in recent years, the article takes the narrative trajectories and experiences and the protagonist reflects on possible performative utterances that indicate a place to transsexuality and a way of being transsexual (Brazilian), besides showing the relationship of power and documentary character. Thinking about the political aspect and the poetic aspect of cinematic images in dialogue with Gender and Sexuality, questions that webs of possibilities and visibilities, and production of meanings and truths can emerge from the relationship that exists between our eyes and what we look - in this case, the film - which also looks at us.

Referências

Documentos relacionados

LISTA DE ABREVIATURAS SDFP: Síndrome da dor femoropatelar CCF: Cadeia cinética fechada THT: triplo hop test FRS:Força de reação do solo sEMG: Eletromiografia de superfície STROBE

Para entender o supermercado como possível espaço de exercício cidadão, ainda, é importante retomar alguns pontos tratados anteriormente: (a) as compras entendidas como

MELO NETO e FROES (1999, p.81) transcreveram a opinião de um empresário sobre responsabilidade social: “Há algumas décadas, na Europa, expandiu-se seu uso para fins.. sociais,

Por outro lado, o modelo de integração não seguiu o caminho, natural e coerente com o patrimônio constitucional europeu, de construção constitucional da Europa, mas desabilitou em

Este trabalho tem como finalidade mostrar o que é JavaScript Isomórfico, quais suas finalidades, quais as características que o diferem de uma abordagem de desenvolvimento

O conjunto de variáveis oriundo da combinação das técnicas de dinamometria isocinética e de eletromio- grafia de superfície mostrou algumas tendências de

Após a implantação consistente da metodologia inicial do TPM que consiste em eliminar a condição básica dos equipamentos, a empresa conseguiu construir de forma

A variável em causa pretende representar o elemento do modelo que se associa às competências TIC. Ainda que o Plano Tecnológico da Educação preveja a conclusão da