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Academic year: 2021

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Baleia na Rede

ISSN: 1808-8473

Revista online do Grupo de Pesquisa e Estudos em Cinema e Literatura

A aspereza da vida nas secas: estética e ritmo em Vidas Secas

Thien Spinelli FERRAZ1

1 - Esclarecimentos metodológicos sobre a discursividade cinematográfica.

Em teoria cinematográfica nos referimos ao ritmo como sendo a forma pela qual a narrativa constrói a fluidez de seu discurso audiovisual. Esta fluidez pode ser percebida na mensuração de uma espécie de dinâmica espaço-temporal pela qual o filme nos representa suas idéias. Isto é, apreendida no sentido de se interpretar sob quais formas e tempos específicos as imagens e sons se articulam no decorrer da representação audiovisual.

O crítico cinematográfico Terence Marner nos aponta basicamente três eixos discursivos na construção do ritmo da narrativa cinematográfica: o argumento, se o filme é uma comédia, um drama, um western e etc; os atores, pensando na força interpretativa com que eles podem nos transmitir determinada tensão dramática em uma dada seqüência de cenas; e a arquitetura da cena, que é a plasticidade visual de determinada cena estando conforme a intenção original de seu realizador.

Em princípio, acreditamos que é radical a sintetização de Marner na definição dos componentes do ritmo cinematográfico. Nela falta a essencial dimensão do som como constituinte da dinâmica de enunciação sígnea do filme. Pois, na medida em que determinado espaço é enquadrado em uma imagem (um signo visual) e esta tem sua continuidade dada por uma seqüência de imagens, temos que validar os aspectos sonoros na sustentação deste encadeamento. Isto porque uma seqüência de cenas sem qualquer contrapartida sonora, como no cinema mudo, seria menos eficaz em seu processo gerador de sentido para a estética cinematográfica contemporânea, de modo que entendemos que tanto a fotografia do filme como a estruturação de sua dimensão sonora, estabelecem entre si uma reciprocidade fundamental à fluidez da narrativa.

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Considerando estes mecanismos poéticos com os quais o filme tem de trabalhar sua discursividade estética, entendemos ser necessária uma melhor explicitação de suas respectivas qualidades. Partindo do último item (arquitetura da cena), que preferimos chamar de fotografia fílmica, vemos que esta diz respeito à forma pela qual determinada idéia foi transformada esteticamente em imagens. A saber: se os enquadramentos das imagens, por suas perspectivas e profundidades, são capazes de transmitir o sentido intentado por seu realizador; se a cor está de acordo com esta proposta inicial; ou, ainda, se o conjunto de elementos que compõe a cena estão justapostos de acordo com a coerência interna intentada para a narrativa.

Associada à fotografia e à dimensão sonora do filme existe a interpretação dos atores, que devem conseguir manifestar em seus olhares, fisionomias, gestos e falas, o sentido que determinada cena comporta no conjunto da narrativa. O modo como eles comunicam os textos que lhes são entregues (entendidos aqui como diretrizes de comportamento e não somente como palavras) deve estar de acordo com a tensão dramática que a narrativa procura construir.

Por fim, temos o argumento fílmico, que até aqui chamamos de idéia central, intenção original do roteirista e/ou do diretor cinematográfico – que não necessariamente precisam ser a mesma pessoa. Muitas vezes, as idéias contidas na narrativa cinematográfica nos são expostas como histórias, relatos visuais e sonoros de acontecimentos que se articulam a uma história geral. Tendo em vista o fato de que nenhuma história contada – seja ela de caráter memorial, realista ou fantástico – é despretensiosa, ou seja, sem qualquer interesse na apresentação de um ponto de vista e não de outro, nomearemos aqui esta história geral como sendo o argumento fílmico, ou a estruturação ideológica que orienta os sentidos tencionados pela narrativa:

A essência do argumento será o assunto escolhido pelo realizador ou pelo argumentista. Este será comunicado ao espectador por intermédio de um fluxo de imagens visuais que possuirão um significado, tanto individualmente como no seu conjunto. O realizador (ou diretor) terá de selecionar as imagens que, juntamente com outras, proporcionem a melhor forma de comunicar o assunto. Cada imagem é uma idéia; cada cena é uma sucessão de idéias que, uma vez montadas, dão à narração cinematográfica uma fluidez lógica e harmoniosa. (MARNER, 2003, p. 83)

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Pelo fato de estarmos lidando com a linguagem audiovisual do cinema, entendemos que a forma pela qual este argumento central nos é transmitido, opera com recursos expressivos diferentes dos de outras linguagens, como é o caso da literária, em que por mais ricas de significação que sejam, são somente as palavras e seus muitos estilos de encadeamento que dão o suporte às significações intentadas por seu criador. Dito isto, passemos a interpretar o ritmo em que um argumento é materializado pelo filme, isto é, transformado artisticamente de idéia para representação audiovisual.

2 - Desigualdades e sobrevivência: a aspereza da vida nas secas

Em 1938, Graciliano Ramos escreveu seu romance sobre o cotidiano de uma

família de retirantes que fugiam da seca no nordeste brasileiro, entre eles: o pai Fabiano, a esposa Sinha Vitória, os dois filhos e a cachorra Baleia. Seu romance é considerado um dos inaugurais do moderno estilo brasileiro do regionalismo – romances que discutiam as realidades psico-sócio-culturais de determinadas localidades, sem com isto perder, mas pelo contrário reforçando, o caráter universal de suas argumentações literárias.

Em 1963, Nelson Pereira dos Santos transpôs esta obra prima da literatura regionalista para o cinema, indo de acordo com a ideologia estética proposta pelo movimento cultural do Cinema Novo. Ideologia esta que prezava pela explicitação da realidade vivenciada pelos indivíduos dos países subdesenvolvidos e que, como afirmou certa vez Glauber Rocha, não deveria produzir um cinema “culturalmente subdesenvolvido” por supostamente deter uma economia com esta qualificação.

Assim, com base nesta procura por uma estética autêntica, Nelson P. dos Santos filmou Vidas Secas. A respeito do filme, em um debate de novembro de 1964, com Paulo Emilio Salles Gomes, Pompeu de Souza, Ruy Mourão e outros intelectuais e críticos cinematográficos, Nelson demonstrou ter consciência de uma essencial questão a ele proposta sobre a tradução cinematográfica de um discurso literário: a de que ninguém jamais saberá a intenção original de Graciliano Ramos ao escrever determinadas palavras, de modo que a filmagem não deve procurar uma reprodução fiel

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do que ali está dito, mas sim reinterpretar o escrito de forma a não perder de vista os sentidos globais que a argumentação literária propôs e consensualmente concretizou com seu texto.

Neste sentido, entendemos que da mesma forma que o livro somente pode ser interpretado pelo que nele está escrito, o filme deve ser compreendido pelo que está representado por suas imagens e sons. Com efeito, acreditamos que o argumento central tencionado por Graciliano Ramos, os sofrimentos, necessidades, questionamentos e contradições sociais existentes no ambiente extremamente precário das secas, conseguiu ser autenticamente expresso pelo filme de Nelson Pereira.

Deste modo, o ritmo que ele imprime a sua narrativa cinematográfica é compatível com aquele proposto pela literariedade de Graciliano. As imagens que o filme nos oferece carregam a significação de um ambiente físico e humano brutalmente áspero. Isto porque a proposital despreocupação com a limpeza das imagens – vista na forte incidência da luz natural do sol e na negação de qualquer ajustamento nas tonalidades das cores –, nos sugerem a idéia de um espaço social onde existe pouca leveza, frescor ou ironias. Mas sim de um ambiente de desigualdades onde lutam cotidianamente contra a falta de alimentos, de trabalho e do elemento primordial à vida, a água.

Nelson Pereira é influenciado pela estética do neo-realismo italiano, que procurava expressar cinematograficamente o ritmo real da vida das pessoas que representava. Em

Vidas Secas, não há a intenção de se apresentar uma fotografia depurada, com

tonalidades vibrantes que nos transmitam a idéia de um local agradável. Pelo contrário, sua fotografia super exposta, áspera, rude e naturalmente bruta, nos indica um colorido (ainda que em preto e branco) apático, que pela forte incidência da luz solar, simboliza uma agressão visual semelhante à sofrida no sertão, este ressecado ambiente humano de complexa luta pela sobrevivência .

No entanto, somente as imagens não nos representam este estado de coisas, e, sendo a narrativa uma história, existem nela personagens. Estas são dadas pelos atores que Nelson fez questão de que fossem indivíduos sem formação teatral ou algo que o valha. São pessoas do povo, que, por exemplo, no caso de Maria Ribeiro (Sinha Vitória), viveram realmente este difícil cotidiano das secas.

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Esta peculiar escolha de Nelson não foi à toa, mas serviu como um modo de se conquistar na interpretação dos personagens uma maior intensidade dramática requerida pela narrativa. Nela os personagens falam pouco e, quando o fazem, é de uma forma naturalmente rude, sem o polimento de uma educação (escolar) formal, tão reproduzida nas cidades que se consolidavam no país.

Segundo José Carlos Avelar, a obra de Nelson Pereira acabaria oferecendo paradigma para uma estética da fome, tal como reclamaria Glauber Rocha nos anos seguintes:

O ruído constante de um roda de um carro de bois se converte na música minimalista da seca, acompanha o trabalho árduo nos campos áridos do sertão. Uma cachorra só pele, ossos e lealdade se transforma na crua metáfora da condição humana. Motivos únicos no filme em que Nelson Pereira dos Santos mostra a pobreza e o sofrimento dos habitantes do Nordeste brasileiro.(...) Violência e injustiça vistas de um modo realista e direto, no que se chamaria adiante de Estética da Fome. Personagens fisicamente derrotados pelo calor, num ambiente de insolação, num clima insuportável construído por uma fotografia em preto e principalmente branco. Imagens implacáveis que se bastam em si mesmas e que se conjugam com o uso de diálogos breves.[1]

Com base nestas colocações quanto às perspectivas ideológicas, quanto às argumentações que a estética de Vidas Secas trabalha, é interessante percebermos como Nelson Pereira conseguiu integrar perspectivas estéticas distintas em seu filme. Logo no início vemos os planos de Fabiano, Sinha Vitória, o menino mais velho e o mais novo caminhando no leito de um rio totalmente seco. Por um lado isto nos expressa uma perspectiva neo-realista, da observação direta do cotidiano destes indivíduos, ao mesmo tempo em que constrói uma montagem intelectual (como a pensada por Serguei Eisenstein) onde nos sentimos próximos e distantes do que é mostrado. Ou seja, a significação não se encontra “objetivamente” na verossimilhança entre o que é filmado e alguma realidade, mas sim na forma estética que é elaborada para a apresentação destes eventos.

As imagens de Sinha Vitória andando com um baú na cabeça e com o menino mais novo no colo, seguida pelos passos arrastados do menino mais velho e diante do ímpeto para prosseguir que a sombra do andar de Fabiano lhe transmite logo à frente, não mostram somente aquilo que vemos. A câmera na mão treme e perde muitas vezes o

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foco em razão da forte incidência da luz, o que faz com que o espectador se veja ao mesmo tempo imerso no áspero ambiente da caatinga e distante destes eventos em razão dos “impotentes” movimentos da câmera, que nada pode fazer para transformar a situação, mas somente olhar e deixar que a interpretação se faça no outro destinatário do discurso, ou seja, nós espectadores.

O que vemos é uma família incessantemente pressionada à fuga – da seca, dos donos da terra, das autoridades, da dificuldade de transformar o sofrimento em revolta, em ação. Neste sentido, estamos perto porque solidários com o sofrimento deles e distante porque conscientes de que as condições dali são resultantes de uma questão social, e não somente de um determinismo geográfico. Assim, podemos dizer que esta família vive uma tragédia e o olhar cinematográfico outra. Isto porque sentimos a câmera indignada com aquilo que presencia e insegura por saber que seu conhecimento e expressividade não conseguem inventar uma forma de acabar com a pobreza humana que registra.

Como discutido por nós acima, os mecanismos poéticos, ou as formas estéticas criadas pelo filme em sua discursividade, não são aleatórias ou dissociadas de suas temáticas centrais, mas necessitam estarem integradas a elas para que uma diretriz estética seja estabelecida no decorre do filme. Por suas vezes, estes argumentos sozinhos também não expressam a significação que o roteiro original (baseado no livro) quis imprimir à narrativa, sendo necessária uma articulação entre os estilos estéticos e estas temáticas éticas desenvolvidas para que o ritmo intentado pelo discurso cinematográfica seja conquistado.

E isto acreditamos que Nelson conseguiu fazer, nos apresentando uma perspectiva profundamente crítica sobre a complicada sobrevivência e estruturação social das vidas destes indivíduos que enfrentam o vil cotidiano das secas e do esquecimento político.

[1]

A desinvenção da fronteira, José Carlos Avellar. Texto retirado de :

Referências

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