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REFLEXÕES SOBRE LINGUAGEM, SOCIEDADE E SURDEZ

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Academic year: 2020

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REFLEXÕES SOBRE LINGUAGEM, SOCIEDADE E SURDEZ

Marcele Pereira da Rosa Zucolotto1

Luciana Rodrigues Ruiz2 Najara Ferrari Pinheiro3 Resumo: Este artigo visa refletir sobre as relações entre linguagem, sociedade e surdez. O

desenvolvimento da linguagem irá induzir a criação do pensamento do indivíduo surdo, a identidade surda e suas relações na sociedade. Assim, por meio de um estudo de revisão teórica, será abordado, primeiramente, o surgimento da linguagem e a aquisição tardia desta pela pessoa surda. Enfoca-se a importância da linguagem tanto em sua dimensão psicológica como social, ou seja, a linguagem constitui subjetividades e também a própria cultura. Em seguida, realizam-se apontamentos sobre a relação entre o contexto social e a surdez, destacando as dificuldades enfrentadas pelo “povo surdo” (STROBEL, 2008) em nossa sociedade. Ao finalizar, discorre-se sobre a Língua Brasileira de Sinais e sua importância no processo de formação da identidade e cultura dos surdos. Também, chega-se à conclusão de que o contato precoce com a Língua de Sinais pode garantir ao surdo o desenvolvimento da linguagem, da identidade, a inserção em uma comunidade e em uma cultura que o valorize em suas diferenças.

Palavras-chave: Linguagem; Sociedade; Surdez.

REFLECTIONS ON LANGUAGE, SOCIETY AND DEAFNESS

Abstract: This article aims to reflect on the relations between language, society, and deafness.

The development of language will induce the creation of deaf individual thinking, deaf identity and their relationships in society. Thus, through a study of theoretical revision, will be approached, first, the emergence of language and the latter's acquisition by the deaf person. The importance of language is emphasized both in its psychological and social dimension, that is, language constitutes subjectivities and also the culture itself. Then, notes are made on the relationship between social context and deafness, highlighting the difficulties faced by the "deaf people" (STROBEL, 2008) in our society. In the end, the Brazilian Language of Signs and its importance in the process of formation of the identity and culture of the deaf are discussed. Also, it is concluded that early contact with the Sign Language can guarantee the deaf the development of language, identity, insertion into a community and a culture that values it in its differences.

Keywords: Language; Society; Deafness.

1 Psicóloga. Mestre e Doutora em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do

Sul. Professora Adjunta do Curso de Psicologia e do Mestrado em Ensino de Humanidades e Linguagens da Universidade Franciscana (UFN) de Santa Maria- RS

2 Especialista em Educação Infantil e Psicopedagogia Clínica e Institucional. Aluna do Mestrado em Ensino de

Humanidades e Linguagens da Universidade Franciscana.

3 Doutora em Ciências da Comunicação pela Unisinos. Professora do Mestrado em Ensino de Humanidades e

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1. INTRODUÇÃO

Este estudo propõe trazer reflexões sobre as relações entre os surdos e a sociedade, buscando revelar alguns laços entre linguagem, sociedade e surdez. Parte-se do importante pressuposto de entendimento de que, antes da existência da surdez como uma deficiência ou diferença, ela é uma condição no ser humano. Como diz Perlin (1998):

Muitos têm se ocupado em escrever o surdo tendo como ponto de partida a deficiência, propondo a correção da fala, a oralização. Questões como essa não remetem à temática da diferença, do sujeito, do poder. Fujo delas, elas, por si, revelam o poder ouvinte sobre o surdo (PERLIN, 1998, p. 52).

Por este viés, nas relações estabelecidas com os ouvintes, o indivíduo surdo precisa ser visto em sua humanidade a partir da valorização de sua língua própria. Afinal, isto garantirá o pertencimento a uma cultura e a uma comunidade, o que poderá assegurar a formação de sua identidade e, portanto, a construção de um sujeito social, pertencente e atuante na sociedade onde vive.

O mundo do surdo é repleto de incertezas, sonhos, dificuldades, desafios, persistências, fracassos, encantos e desencantos, alicerçados em questões linguísticas, comunicativas, culturais, inclusivas, de poder, de constituição de sujeitos etc. A pessoa surda, desde a mais tenra idade, acaba enfrentando barreiras às quais uma criança que não apresenta uma diferença em sua constituição física, psicológica ou emocional jamais irá vivenciar.

A principal barreira que o indivíduo surdo encontrará desde que nasce é a da comunicação, isto é, a da aquisição da linguagem, o de ser atendido e de atenderem suas necessidades em diferentes contextos, e isso se estenderá no decorrer de sua vida, pois é a partir de uma língua que as demais aprendizagens se constituem. Ou seja, ao adquirir uma língua, poderá haver o pertencimento a uma comunidade, a constituição de identidades e aquisição de uma cultura, que possa valorizar a sua diferença e não sua deficiência.

Assim, no intuito de refletir sobre as relações entre linguagem, sociedade e surdez, este estudo de revisão teórica aborda, primeiramente, o surgimento da linguagem e a aquisição tardia da linguagem pela pessoa surda. Enfoca-se a importância da linguagem tanto em sua dimensão psicológica como social, ou seja, a linguagem constitui subjetividades e também a própria cultura.

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Em seguida, realizam-se apontamentos sobre a relação entre o contexto social e a surdez, destacando as dificuldades enfrentadas pelo “povo surdo” (STROBEL, 2008) em nossa sociedade. Para finalizar, discorre-se sobre a Língua Brasileira de Sinais e sua importância no processo de formação da identidade e cultura dos surdos. Também, chega-se à conclusão de que o contato precoce com a Língua de Sinais pode garantir ao surdo o desenvolvimento da linguagem, da identidade e da valorização de sua diferença., a inserção em uma comunidade e em uma cultura que o valorize em suas diferenças.

Essa reflexão tem como base teórica os fundamentos de Vygotsky (1995) e Bakhtin (1988), além de estudiosos da área da surdez como diferença, como Dalcin (2006), Perlin (1998), Fernandes (2003), Skliar (1998) e Strobel (2008). A contribuição de cada um deles converge na ideia de que o contexto social, as relações e as interações com os pares envolvidos são o ponto de partida para a aquisição da linguagem. Espera-se que este estudo possa contribuir para as reflexões sobre o sujeito surdo em suas vivências em um mundo de ouvintes, bem como para a valorização da cultura do povo surdo.

2.LINGUAGEM: DIMENSÕES SOCIAIS E PSICOLÓGICAS

A espécie humana evoluiu muito desde sua origem e o estopim para isso foi a capacidade de se comunicar através da linguagem, visto que ela é a chave para a criação do pensamento. De acordo com Harari (2016):

Podemos conectar uma série limitada de sons e sinais para produzir um número infinito de frases, cada uma delas com um significado diferente. Podemos, assim, consumir, armazenar e comunicar uma quantidade extraordinária de informação sobre o mundo à nossa volta (HARARI, 2016, p. 31).

Isto acontece através das vivências, experiências e interação com o meio em que o indivíduo está inserido. As relações estabelecidas socialmente fazem os seres humanos adquirirem a linguagem, aprenderem e se desenvolverem. Com efeito, a importância da sociedade e das interações sociais para a aquisição da linguagem é, de fato, fundamental, visto que elas se constituem em conjunto e se retroalimentam a todo momento.

Harari (2016) aborda a questão referindo-se ao homem como um animal social. Assim, uma das questões apresentadas por ele é que a evolução da linguagem

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teria acontecido por meio da fofoca, pois era preciso saber do que os integrantes do bando precisavam ter medo, receios, quais os perigos que corriam, ou ainda, com quem se relacionavam. Outra hipótese que Harari (2016) traz é que a comunicação de hoje também se alimenta da fofoca para se construir e se instaurar. Ele relata isso da seguinte forma:

A fofoca normalmente gira em torno de comportamentos inadequados. Os que fomentam os rumores são o quarto poder original, jornalistas que informam a sociedade sobre trapaceiros e aproveitadores e, desse modo, a protegem (HARARI, 2016, p. 32).

Portanto, hábitos e comportamentos nocivos são disseminados em diversos contextos sociais por meio da linguagem. Percebe-se, com isso, que a origem da linguagem está vinculada ao estilo de vida em grupo e, consequentemente, à formação da sociedade.

O acontecimento de viver em grupos fez com que surgissem os sistemas linguísticos, os quais chamamos de línguas. Eles têm por objetivo estabelecer uma comunicação sistematizada e estruturada entre os seres humanos que formam as comunidades e povos, dando início, também, às mais variadas identidades e culturas. Nesta direção, Chauí (2000) acrescenta:

[...] a linguagem como capacidade de expressão dos seres humanos é natural, isto é, os humanos nascem com uma aparelhagem física, anatômica, nervosa e cerebral que lhes permite expressarem-se pela palavra; mas as línguas são convencionais, isto é, surgem de condições históricas, geográficas, econômicas e políticas determinadas, ou, em outros termos, são fatos culturais (CHAUÍ, 2000, p. 176).

Deste modo, pode-se dizer que a linguagem se coloca como constitutiva e organizadora da própria sociedade e, por outro lado, também individualmente, a linguagem se torna fundamental. Portanto, a dimensão social da linguagem desdobra-se em sua dimensão psicológica. É possível afirmar, a partir disso, que, em qualquer ser humano, a capacidade de linguagem resultará na constituição da subjetividade do sujeito. Segundo Molon (2010), foi Vygostky quem

[...] introduziu, na análise psicológica, a dimensão semiótica, em que a linguagem e os signos constituem os fenômenos psicológicos. Neste sentido, contribuiu significativamente para o debate central na psicologia sobre a relação com o outro e o papel do outro na

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constituição da subjetividade (MOLON, 2010, p. 19).

Vê-se, portanto, que a linguagem se torna imprescindível tanto para o sujeito quanto para as interações entre os sujeitos nos mais variados contextos da sociedade. Importante destacar que, para Vygotsky (1995), a dimensão psicológica ou o desenvolvimento cognitivo do sujeito só se dá pela interiorização de sistemas de signos culturalmente produzidos. Isto é, para que haja um sujeito, é preciso que este esteja em sociedade e que ele tenha condições de interiorizar as produções socioculturais como a linguagem. Para o autor, o desenvolvimento cognitivo e a subjetividade não podem ser entendidos sem a referência ao meio social. Nesta direção, corrobora Bakhtin (1988):

[...] o centro organizador e formador não se situa no interior, mas no exterior. Não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua orientação (BAKHTIN, 1988, p. 112).

Assim, o pensamento e o desenvolvimento cognitivo, para Vygotsky (1995), estão diretamente ligados à construção da linguagem, pois à medida que ela evolui, a criança irá entrar em contato com experiências e situações diferenciadas de aprendizagem num movimento crescente de evolução global. Considerando o pensamento de Vygotsky, Moreira (2015, p. 107) acrescenta: “o desenvolvimento não pode ser entendido sem referência ao contexto social e cultural no qual ele ocorre”. Quer dizer, o desenvolvimento psicológico e cognitivo não ocorre independente do contexto social, histórico e cultural.

Neste sentido, o ser humano é um ser social e, como tal, busca interação e aprovação constantemente. O fato de interagir em diferentes contextos faz com que homens e mulheres aprendam e evoluam diariamente. Isso acontece porque fazem uso da linguagem para interagir com seus pares. Utilizam-se de uma linguagem alicerçada em uma língua, numa estrutura linguística que dará condições para pensar, criar, se transformar e se relacionar com seus pares. Para Gomes (2009):

A linguagem, que antes era entendida como instrumento de comunicação, torna-se agora condição de possibilidade e de validade da compreensão do pensamento conceitual, do conhecimento objetivo e da ação. [...] Isso significa dizer que não existe mundo independente da linguagem e que o conhecimento emerge da própria linguagem (GOMES, 2009, p. 236).

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As diferentes relações e interações que se mantêm com os outros indivíduos estimulam a criação e a organização mental necessária para que se possa desenvolver a linguagem a ponto de surgirem discursos, que atendam às realidades e às necessidades relacionadas aos contextos em que estão inseridos.

Para finalizar este ponto, torna-se relevante acrescentar que o contexto social e as relações sociais vividas pelo surdo, na maioria das vezes, são constituídos por pessoas ouvintes, cujo olhar geralmente está baseado na deficiência, na falta e não na diferença, na potencialidade como anseiam os membros da comunidade surda. Daí a importância de serem discutidas as relações sociais estabelecidas com os surdos. Esse assunto será tratado na sequência.

3. A SOCIEDADE E AS RELAÇÕES COM O POVO SURDO

Considerando a importância da linguagem para a construção subjetiva e cultural discutida no tópico anterior, remete-se agora à questão da surdez ou, ainda, do “Povo Surdo” (STROBEL, 2008). Este enfoque considera o fato de que a maioria de seus integrantes encontraram e encontram, em suas experiências de vida, obstáculos ou dificuldades provenientes da aquisição tardia da linguagem. Logo, experimentando muitos entraves na inserção em um ambiente linguístico adequado que lhes possibilitasse adquirir significados ao que estava sendo vivenciado. Isso, muitas vezes, gera entraves, atrasos ou dificuldades relacionadas a seus desenvolvimentos psicológicos, cognitivos e sociais.

Quanto ao conceito de Povo Surdo, Strobel (2008, p. 30) define como “o grupo de sujeitos surdos que usam a mesma língua, que tem costumes, história, tradições comuns e interesses semelhantes”. Povo Surdo, portanto, é composto apenas por surdos, ligados por um traço em comum, que é a surdez. A autora (STROBEL, 2008) difere este conceito de “povo” ao conceito de “comunidade surda”, no sentido de que esta abrangeria, além dos próprios surdos, também os ouvintes participantes da causa surda, como pais, amigos, intérpretes e professores.

Acrescenta-se que, para o povo surdo, as referências fundamentais que constituem os laços entre seus integrantes surdos são a língua de sinais e a cultura surda. A cultura surda é definida como:

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[...] o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e modificá-lo a fim de torná-lo acessível e habitável ajustando-o com suas percepções visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas. [...] Isso significa que [a cultura] abrange a língua, as ideias, as crenças, os costumes e os hábitos do povo surdo (STROBEL, 2008, p. 27). Perlin (1998) acrescenta, ainda, a diferença como importante questão a definir a cultura surda:

A cultura surda como diferença se constitui numa atividade criadora. Símbolos e práticas jamais conseguidos, jamais aproximados da cultura ouvinte. Ela é disciplinada por uma forma de ação e atuação visual. Já afirmei que ser surdo é pertencer a um mundo de experiência visual e não auditiva (PERLIN, 1998, p. 56).

Fica salientada, desta maneira, a importância da interação entre os pares surdos, porque, além da transmissão de conhecimentos e aspectos culturais entre eles, há também, nesses encontros, a construção da identidade surda. A cultura surda, portanto, constitui importante vínculo entre os surdos, sendo considerada uma cultura única e singularmente diferente da cultura ouvinte.

Entretanto, a maioria das famílias ouvintes, ao receberem em seu seio familiar um bebê surdo, não sabe como proceder, afinal, ninguém foi ou está preparado para enfrentar o diferente. Nossa cultura prepara as pessoas para conviverem com o “normal”, com aquele que não foge à regra, e se, porventura, acontecer a diferença, ele será tratado como o anormal, o estranho no ninho. Isso pode gerar uma gama de emoções e sentimentos contraditórios nos integrantes da família.

No caso específico da pessoa surda, a situação é ainda mais delicada porque, quase sempre, o (a) filho (a) é “perfeito (a) ” visualmente, pois a deficiência auditiva não é evidente. Então, o deficit poderá ser escondido, omitido facilmente, sendo que a negação do problema pode ser alimentada até o fim da vida por não se aceitar a diferença do outro. Assim, a ânsia por cura ou normatização do surdo (STROBEL, 2008) em uma família não surda acaba, muitas vezes, implicando situações cotidianas de inacessibilidade, de olhares de estranhamento, de preconceito e ignorância sobre sua diferença.

A realidade dos surdos no seio familiar é difícil desde bebê porque eles não conseguem interagir significativamente com seus pais, já que a comunicação é comprometida, logo, a aquisição da linguagem, de uma língua, será tardia. Strobel

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(2008) exemplifica essa situação:

Quando um bebê nasce surdo, ele desenvolve inicialmente as mesmas fases de linguagem que o bebê ouvinte: grito de satisfação, choro de dor e fome, emite sons sem significados até mais ou menos seis meses de idade e quando chega à fase do balbucio é que começa a ser diferenciado um do outro. Porque o bebê ouvinte, podendo ouvir os sons do ambiente ao redor de si tenta se comunicar emitindo sons, enquanto o bebê surdo, não ouve sons do ambiente e, por isto, as primeiras “palavras” não surgem.Consequentemente, fica com a aquisição de linguagem atrasada e limitada por falta de continuidade e acesso aos conhecimentos e informações externas (STROBEL, 2008, p. 45).

Considerando estas dificuldades, percebe-se que as relações da sociedade com o povo surdo são baseadas na normalização e não na aceitação de sua diferença. Está claro que os ouvintes tentam, em primeiro lugar, normalizar (PERLIN, 1998), ou seja, adequar os surdos a seus moldes e, quando percebem que isso não suscita os efeitos esperados, começam um processo de descrença na capacidade da pessoa surda.

Em nossa sociedade, portanto, não são raras as reiteradas tentativas de normalização da pessoa surda, ou seja, são usadas várias ações e estratégias de recuperação do deficit da audição, como a colocação de aparelhos auditivos, infinidades de terapias fonoaudiológicas, implantes cocleares etc. Tudo isso com o objetivo de fazer com que o indivíduo se adapte aos moldes de quem ouve, da comunidade ouvinte.

No entanto, além destes aparelhos não serem garantia de plena audição, podem fazer com que os surdos passem por frustrações e sofrimentos que poderão gerar sentimentos de menos valia e inadequação ao mundo. Daí, por vezes, surge a premissa que o surdo é agressivo, inquieto, hiperativo, nervoso etc. Por outro lado, é preciso levar em consideração que, segundo Laborit (1994), para muitos membros da comunidade surda, ouvir é bom para quem ouve, para quem se utiliza do som e, para aqueles que não ouvem, o som não tem sentido algum.

Para Strobel (2008), é demonstrado claramente pela comunidade ouvinte (incluindo aí os profissionais da área médica, os familiares, professores etc.) que se relaciona com as pessoas surdas, um certo “abuso de poder”, quando falam por elas ou quando escolhem o que é melhor para elas, enfim, quando não dão voz para quem

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detém a diferença e possui o direito de decidir sobre si mesmo. No momento em que isso acontece, lança-se um olhar de cunho negativo e fortemente vinculado à deficiência e, assim, o sujeito se constitui como tal, isto é, deficiente. Perlin (1998) aborda estes contextos sob a ótica de Foucault:

As relações sociais onde se realizam as representações da alteridade surda são relações onde imperam poderes. No interior das relações sociais, sempre estão presentes relações de poder. Foucault ensinou a ver relações de poder como internas, comuns, misturadas na praticidade dos encontros. É interessante notar como os ouvintes tecem redes de poderes e como elas vêm disfarçadas sobre o discurso da fala, da integração e do colonialismo (PERLIN, 1998, p. 67). O olhar para este outro, que está presente nos diferentes ambientes, é primordial e, ao mesmo tempo, o mais difícil de se fazer, porque frequentemente o olhar que é lançado ao diferente ainda é o de preconceito, de discriminação, de caráter negativo. Teske (2015) reflete sobre as diferenças dizendo:

Pensar nas diferenças sugere que ultrapassemos nossas fronteiras. Isso significa que o sujeito, ao cruzar alguma fronteira, é percebido pelos outros como um estrangeiro, por mais que ele não queira ser considerado assim. Os ouvintes sempre serão ouvintes, assim como os surdos sempre serão surdos. Isso não impede que o diálogo e a busca de um entendimento, objetive a reconstrução do Estado Social, o que deve acontecer em conjunto (TESKE, 2015, p. 43).

A importância do diálogo e não das relações de normatização ou enquadramento entre surdos e ouvintes se coloca como fundamental em nossa sociedade. Crucial, portanto, a importância de entender a surdez como diferença e não como deficiência, de entender que o indivíduo surdo possui uma língua própria, uma comunidade e uma cultura singular e que através delas o surdo pode construir sua cultura, uma identidade e sua própria subjetividade.

Afinal, de acordo com Dalcin (2006, p. 210), “a comunidade surda possibilita ao surdo um suporte para a constituição de sua subjetividade. Através da língua de sinais, o sujeito surdo passa a nomear e é inserido na cultura surda”. Assim, é perceptível a importância da linguagem nas diversas relações que construímos no meio, no contexto social em que estamos inseridos.

Por fim, é importante lembrar o quanto os contextos sociais (familiares, culturais, comunicativos, entre outros), nos quais o surdo se insere cotidianamente, ainda deixam a desejar no que se refere à acessibilidade, visto que em muitos locais

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públicos de frequente acesso não são oferecidos intérpretes, como, por exemplo, postos de saúde, delegacias ou museus. Coloca-se, então, a necessidade de construção de um ambiente linguístico acessível às necessidades da pessoa surda em nossa sociedade, e isso requer o aprendizado da Língua Brasileira de Sinais pela comunidade majoritária, ou seja, os ouvintes.

4. LÍNGUA DE SINAIS E A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE SURDA

O ato de se comunicar depende dos sentidos e de um canal emissor e um receptor que, em ouvintes, é a audição e a visão juntamente com a oralização. Nos surdos, a audição está comprometida, eles utilizarão a visão e o espaço para se comunicar. Por isso, é que a Língua Brasileira de Sinais (Libras) possui características visual e espacial, enquanto a Língua Portuguesa apresenta aspectos orais e auditivos. Portanto, os canais comunicativos das duas línguas são diferentes. Fernandes (2003) esclarece:

As línguas podem ser orais-auditivas ou espaço-visuais. As línguas são denominadas orais-auditivas quando a forma de recepção não grafada (não escrita) é a audição e a forma de reprodução (não escrita) é a oralização. É o caso do português, por exemplo, e de todas as línguas realizáveis; as línguas espaço-visuais são naturalmente reproduzidas por sinais manuais e sua recepção é visual. Neste segundo caso, citamos todas as línguas de sinais usadas, principalmente, pelos surdos (FERNANDES, 2003, p. 17).

Carlos Skliar (1998), fonoaudiólogo argentino e um dos principais estudiosos das questões da surdez como diferença no Brasil, afirma que

[...] a linguagem possui uma estrutura subjacente independente da modalidade, seja esta auditivo-oral ou viso-gestual. Deste modo, a língua oral e a língua de sinais não constituem uma oposição, mas, sim, canais diferentes para a transmissão e a recepção da capacidade – mental – da linguagem (SKLIAR, 1998, p. 24).

Então, a realidade da chegada de um surdo em uma família de ouvintes, mostra claramente que será necessário o aprendizado das duas línguas por seus integrantes para que o sujeito em questão possa ter suas carências comunicativas e de linguagem sanadas. A linguagem é a chave de todas as questões referentes ao

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sujeito surdo, já que é através dela que construímos relações, significados e adquirimos conceitos; é com ela que interagimos em diferentes contextos sociais.

A experiência visual é fundamental para a pessoa surda, pois é com ela que os surdos compreenderão o mundo. Comprovando essa afirmação, Laborit (1994) descreve o primeiro contato com a Língua de Sinais Francesa, momento em que aprendeu que aspessoas têm um nome:

Emmanuelle: ‘O sol que parte do coração’. Emmanuelle para os ouvintes, o sol que parte do coração para os surdos. Era a primeira vez que aprendia que podemos dar um nome às pessoas. Era formidável. Não sabia que havia nomes em minha família, a não ser o de papai e mamãe. [...] Estava muito surpresa em descobrir que um se chama Alfredo, o outro Bill... E acima de tudo que eu me chamava Emmanuelle. Compreendia por fim que tinha uma identidade. Eu: Emmanuelle (LABORIT, 1994, p. 51).

A situação expressa anteriormente por Laborit (1994) mostra o processo de identificação da pessoa surda quando encontra seus pares, os que vivenciam a surdez. Ela traz este relato, em um dos capítulos de seu livro O Voo da Gaivota (1994), em que escreve sobre o seu ingresso em uma instituição francesa destinada aos surdos, onde a Língua de Sinais era reconhecida, utilizada, ensinada e valorizada. A experiência dela aconteceu em uma aula da referida língua que Emmanuelle frequentava juntamente com seus pais.

Desta forma, pode-se afirmar que a constituição da identidade do sujeito surdo só é efetivada no momento em que ele encontra com outro surdo. Um outro que lhe direciona um olhar de acolhimento, de empatia, de quem sabe o que é a surdez, de quem vive o ser diferente em sua totalidade. Este outro terá como forma de expressão linguística de seus enunciados e discursos a Língua de Sinais, uma língua que será expressa e compreendida por canais diferentes dos utilizados pelas línguas orais e que não se utiliza da audição para existir.

Ao se perceber como usuária de uma língua, a pessoa surda terá a seu dispor a inserção a uma comunidade e uma cultura surda. Essa, por sua vez, é adquirida na convivência com seus pares, aqueles que possuem também, a vivência da surdez como diferença. Dalcin (2006), afirma que:

Com isso, os surdos mais velhos acabam exercendo uma liderança na comunidade e são reconhecidos como aqueles que lhes abriram as portas para um mundo cheio de significação, que os tiraram do

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ostracismo, empurrando-os, em alguma medida, para dentro da cultura. Em consequência disso, acabam ocupando um lugar privilegiado e preenchem o ideal das identificações, exercendo a função do pai simbólico na sua comunidade (DALCIN, 2006, p. 210).

Novamente, a interação que acontece através da linguagem, do uso de uma língua estruturada linguisticamente, é trazida como essencial para as relações humanas. Ou seja, é fundamental para obtenção de conhecimentos, construção de identidades e subjetividades, já que me constituo a partir de como o outro me vê e das vivências que tenho com ele. Daí a importância da comunicação entre o sujeito surdo e as pessoas com as quais convive nos mais diferentes contextos sociais, começando pela família, pela área da saúde (médicos, fonoaudiólogos, enfermeiros etc.) e pela escola e demais ambientes pelos quais circula.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta discussão, foi possível refletir sobre as relações entre a linguagem, a sociedade e a surdez. Destaca-se, a partir desta investigação, que é extremamente importante verificar a essencialidade de se olhar a pessoa surda pelo viés da diferença e não da deficiência, mostrando, que a linguagem constituída, a partir de uma língua estruturada, irá desenvolver o pensamento e a inserção na cultura. Para isso, foi necessário buscar estudos sobre a origem da linguagem e suas contribuições cognitivas e sociais no desenvolvimento do ser humano e em seus contextos.

Este estudo apontou para as inúmeras dificuldades e barreiras existentes na relação entre a sociedade e a surdez, mostrando o quanto nossa sociedade acaba dispondo de mecanismos de normatização, de adequação, de ajustamento do surdo a uma cultura ouvinte. No limite, tais mecanismos acabam se convertendo em mecanismos de abuso de um poder ouvinte sobre os surdos.

A importância em se considerar a relação entre o contexto social e a surdez, destacando as dificuldades enfrentadas pelo “Povo Surdo” (STROBEL, 2008) em nossa sociedade, se mostra pela necessidade de que a sociedade possa construir um ambiente linguístico acessível a todos. E, por este viés, se coloca a necessidade de que a Língua de Sinais possa ser mais compartilhada e valorizada socialmente.

Este estudo destaca, portanto, a Língua de Sinais como fundamental para o processo de formação da identidade e da cultura dos surdos, sendo que o contato

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precoce com a Língua de Sinais pode vir a garantir ao surdo o desenvolvimento da linguagem, da identidade, a apropriação de significados e a aquisição de conhecimentos. Além disso, a Língua de Sinais permite a inserção em uma comunidade e a aquisição de uma cultura que o valorize em suas diferenças e, portanto, pode fortalecer a inclusão dos surdos no mundo social.

É fundamental lembrar que os indivíduos surdos, antes mesmo de apresentarem uma deficiência, são humanos que também carecem de um sistema linguístico que lhes permita ter seu pensamento, subjetividades e cultura constituídos. Para concluir, Perlin e Quadros (2006, p. 184) dizem que “os surdos precisam ocupar seus espaços, precisam conhecer sua diferença desde o nascimento”. Isso significa que os surdos precisam expressar suas formas de ser por meio da cultura, da língua e do conhecimento. Assim, este artigo aponta para a urgente necessidade de olhar para o sujeito surdo como um ser em potencial que, com sua diferença, tem muito a compartilhar com a sociedade.

REFERÊNCIAS

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HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. 14. ed. Porto Alegre: L&PM, 2016.

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STROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda.Florianopolis: Ed. UFSC, 2008.

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Submetido em: 07 de agosto de 2018 Aceito em: 16 de outubro de 2018

Referências

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