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A paisagem sanfranciscana: nuances e cenários de ontem e de hoje

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Academic year: 2020

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A PAISAGEM SANFRANCISCANA: NUANCES E

CENÁRIOS DE ONTEM E DE HOJE

1

THE SANFRANCISCAN LANDSCAPE: NUANCES

AND SCENARIOS OF TODAY AND TODAY

EL PAISAJE SANFRANCISCANA: NUANCES

Y ESCENARIOS DE AYER Y DE HOY

Angela Fagna Gomes Souza

Doutora em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Uberlândia (PPGEO/UFU). Professora adjunta do Instituto de Geografia/UFU. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Análise Regional (GEPAR/UFAL). E-mail: angelafagna@ufu.br

RESUMO

Neste artigo, objetivamos descrever a paisagem do rio São Francisco (Brasil) em seus aspectos naturais, culturais e sociais. Priorizamos os ciclos econômicos a fim de desvendar os principais registros ocorridos desde o início do século XVI, com o seu descobrimento; o século XVII, com a busca por pedras preciosas, ouro e prata; o período áureo, no século XVIII, com as barcas e os vapores; os últimos séculos, com a implantação de grandes empreendimentos; e, ainda, as projeções futuras. A paisagem sanfranciscana é entendida tendo como aporte teórico as colocações de Cosgrove (1998), que considera o sentido simbólico e cultural das paisagens humanas. Procuramos rememorar, neste artigo, nuances e cenários ímpares carregados de símbolos e significados expressos em descrições, relatos, narrativas e críticas.

Palavras-chave: rio São Francisco, ciclos econômicos, paisagem.

ABSTRACT

In this article we aim to describe the landscape of the São Francisco river (Brazil) in its natural, cultural and social aspects. We prioritize the economic cycles in order to uncover the main records that have occurred since the beginning of the sixteenth century with its discovery; the seventeenth century with the search for precious stones, gold and silver; the golden period, in the XVIII, with the boats and the vapors; the last centuries with the implantation of great enterprises; and also the future projections. The Sanfranciscan landscape is understood as having the theoretical contribution of Cosgrove (1998) that considers the symbolic and cultural sense of human landscapes. We attempt to recall in this article nuances and singular scenarios full of symbols and meanings expressed in descriptions, reports, narratives and criticisms.

Keywords: São Francisco river, economic cycles, landscape.

1 Este artigo faz parte da tese de doutorado intitulada Ser, estar, permanecer: vínculos territoriais das gentes que

povoam as margens e ilhas do rio São Francisco, defendida no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em 2013.

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RESUMEN

En este artículo pretendemos describir el paisaje del río São Francisco (Brasil) en sus aspectos naturales, culturales y sociales. Priorizamos los ciclos económicos, a fin de desentrañar los principales registros ocurridos desde el inicio del siglo XVI con su descubrimiento; el siglo XVII con la búsqueda de piedras preciosas, oro y plata; el período áureo, en el siglo XVIII, con las barcas y los vapores; los últimos siglos con la implantación de grandes emprendimientos; y aún, las proyecciones futuras. El paisaje sanfranciscana es entendida teniendo como aporte teórico las colocaciones de Cosgrove (1998), que considera el sentido simbólico y cultural de los paisajes humanos. Buscamos rememorar, en este artículo, nuances y escenarios impares cargados de símbolos y significados expresados en descripciones, relatos, narrativas y críticas.

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INTRODUÇÃO

Ao fazermos um levantamento dos estudos sobre o rio São Francisco, identificamos que tais análises foram iniciadas no século XVIII. Em 1800, José Vieira do Couto percorreu parte do rio São Francisco e fez importantes considerações acerca de suas paisagens, especialmente sobre a mineralogia. Já em 1862, o astrônomo francês Henrique Emmanuel Liais, a serviço do Império, realizou levantamentos no alto rio São Francisco e no rio das Velhas, publicando o seu relatório em 1865.

Mais tarde, o engenheiro Henrique Guilherme Fernando Halfed, a pedido de Dom Pedro II, percorreu quase que a totalidade da extensão geográfica do São Francisco avaliando sua viabilidade econômica para a navegação, desde Pirapora até a foz. Posteriormente, identificamos as investidas de inúmeros naturalistas que, já no século XVI, desbravavam lugares improváveis deste imenso rio, com relatos e anotações minuciosas, principalmente sobre a fauna e flora. Alguns deles percorreram caminhos que, ainda nos dias atuais, são praticamente desconhecidos à maioria dos pesquisadores.

Porém, dessas pesquisas pregressas, encontramos poucos estudos sobre a população que habitava o vale do rio São Francisco. Ao longo da história, as gentes sanfranciscanas passaram quase que despercebidas ao olhar do “estrangeiro”. O que identificamos, em algumas obras dos séculos passados, foram apenas trechos descrevendo um povo simples e rústico, peça fundamental nos desbravamentos de viajantes e naturalistas. Começando pelo índio, passando pelo vaqueiro e chegando ao marinheiro, toda esta “gente de pulso forte”, serviu aos “de fora” com toda sua presteza e simplicidade.

Cremos que nenhum desses estudiosos reservou parte de suas pesquisas ao “saber local”. Apesar dos extensos e incontáveis estudos sobre o rio São Francisco, sua vida ribeirinha nunca foi intensamente citada e estudada. Umas das poucas exceções foram os relatórios do sociólogo norte-americano Donald Pierson, que, por meio do Projeto São Francisco, promoveu um levantamento ao longo deste rio, feito no ano de 1950, e que, ainda nos dias atuais, é considerado uma das mais completas pesquisas sociais sobre o homem do vale do São Francisco.

Concordamos com Medeiros Neto (1941, p. 4), que escreveu: “Muito se tem escrito sobre o São Francisco, motivo de exploração. Nada se escreveu com a intenção de dar uma história a este rio”. Portanto, cabem-nos os seguintes questionamentos: como, ao longo da história do rio São Francisco, sua população foi retratada na maioria dos estudos? De que forma podemos estudar a realidade vivida por homens e mulheres que habitam as beiras

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do rio São Francisco? Como podemos analisar, de um lado, as singularidades de cada localidade e, de outro, a pluralidade de saberes e fazeres que acompanham suas gentes ao longo de todo o curso do rio?

Buscamos responder a esses questionamentos e a muitos outros elucidando, inicialmente, a nossa primeira pergunta. Para tanto, fez-se necessária uma volta ao passado, uma reconstrução histórica com levantamentos de escritos sobre o rio. Neste caso, o que nos interessou foram as descrições da paisagem, os relatos sobre a população, o trabalho, a moradia, enfim, os fatos, as fotografias e os lugares do rio São Francisco por onde muitos passaram e pesquisaram.

Sabemos que, ao contar a história oficial do rio São Francisco, surgem alguns questionamentos e críticas, começando pelo seu próprio descobrimento, passando pelo seu povoamento e chegando aos recentes e modernos empreendimentos capitalistas. A verdadeira história, em muitos casos, fica quase que pelo avesso, à margem. O contar dos fatos parece servir apenas aos que deles se beneficiam. Muito raramente, encontramos os “versos ocultos”, quase invisíveis, que brotam em pequenos fragmentos, escritos por homens audazes que desafiaram a lei dos “mais fortes” e se lançaram com o compromisso de reescrever a história.2

Seja qual for o ponto de vista que se estabelece, o que está em pauta é a história do rio São Francisco, seja ela real ou imaginária, oficial ou contraditória. Portanto, a partir de então, buscamos levantar o que o “foi dito” sobre o passado de um rio conhecido como “o rio da integração nacional”, e que, ocultamente, vive processos cada vez mais intensos de “segregação” ou, em outras palavras, um rio de todos servindo economicamente a poucos. Começamos por um mergulho pelas águas fluídas do rio São Francisco que nos levam às profundezas de sua própria história. O seu descobrimento; as primeiras pesquisas; os diversos viajantes que atravessaram suas margens de montante a jusante em busca de novos conhecimentos; os desbravadores à procura de diamantes, esmeraldas, ouro e prata; as caravanas de barcas e, mais tarde, de vapores, que subiram e desceram o rio, transportando gente em suas águas e praticando o comércio em suas margens. E, enfim, o período atual de um rio dinâmico, que abarca desde barreiras naturais e patrimônios culturais admiráveis até os diversos empreendimentos desenvolvimentistas com suas usinas hidrelétricas, seus muitos projetos de irrigação e, mais ainda, o polêmico “Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional”, popularmente conhecido como “Projeto de Transposição do São Francisco”.

2 Cardoso (1979) afirmou que os documentos mais importantes referentes à história do povoamento e penetração

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Buscaremos, a partir de agora, responder à seguinte indagação: que rio é este que carrega tantas histórias?

QUE RIO ESTAMOS ESTUDANDO?

Rio São Francisco. Pará.3 Opará! Rio-mar.4 Velho Chico. Rio dos Currais. Rio Lendário.

Rio Central.5 Rio Histórico. Rio da Pátria. Rio Santo. Rio de “Barbas Brancas”.6 Rio Estrada.

Rio do Sertão.7 Rio Moreno.8 Rio da Unidade Nacional.

Todos os substantivos acima citados nomeiam um rio carregado de adjetivos ímpares, perpassado por simbolismos, riquezas, belezas, histórias, memórias, segredos, encantos, sonhos, representações, cores, odores, perigos e melancolias. Rio que surpreende pela sua força, sua riqueza e suas gentes.

Rio que nasce tímido, nas entranhas da serra da Canastra, no estado de Minas Gerais, a mais de mil metros de altitude, e vai desbravando solos arenosos e pedregosos, percorrendo uma vegetação de gramíneas e se aproximando das matas densas de puro cerrado. Logo ao nascer, exibe toda a sua beleza e exuberância na cachoeira Casca D’Anta, um “véu de noiva” que embranquece o seu redor com sua caudalosa queda de quase duzentos metros de altura. Um verdadeiro “estrondo”, ouvido de longe, causado pela queda de suas águas (SAINT-HILAIRE, 1975, p. 104).

Muitas são as lembranças que perpassam suas águas, entremeando os sertões de Minas Gerais e da Bahia, perpassando o extremo sul de Pernambuco e sendo o divisor de águas entre os estados de Sergipe e Alagoas. Justamente ao contrário do fluxo migratório e colonizador, suas águas correm de sudeste para nordeste, do interior para o litoral. Um rio que une, tecendo com seus fios d’água estados diversos, ligando regiões e populações múltiplas. Rio natureza. Rio estrada. Rio agregador. Rio unificador.

A sua formação, tanto do ponto de vista histórico como do geográfico, deixa claro que os seus sertões retratam literalmente o seu verdadeiro significado: “Ora, o São Francisco é, para muitos brasileiros, o sertão por excelência: ele está situado no sertão no sentido estrito, sabe-se vagamente que ele corre em algum lugar lá no interior, no oeste” (THÈRY, 1980, p. 1015).

3 BURTON, 1977, p. 167.

4 Segundo Brasil (2005, p. 23), este nome foi dado pelas nações indígenas que habitavam suas margens. 5 ROCHA, 1940, p. 2.

6 SILVA, 1982, p. 24. 7 THÈRY, 1980. 8 MATOS et al., 2011.

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Sertão este que corta paisagens solitárias, de um longínquo mundo, distante dos grandes centros comerciais e industriais. Nessas terras remotas, o São Francisco é o traço da esperança e da fé na vida. Rio que leva a maior fonte de riqueza de um sertanejo: a água. Rio que desbrava solos pedregosos e pouco férteis, deixando um traço verdejante por onde passa. Rio que resiste, contrastando com os tons quase sempre nebulosos da caatinga em épocas de seca. Sertão sem fim, e o São Francisco coroando suas terras longínquas. Segundo Chagas (2014, p. 8), “tal acidente geográfico” toma o caminho dos sertões, “pois ali eu seria de maior serventia. Tenho minha origem nas alturas, mas curvo-me à humildade, como ocorre com todos os vocacionados para a grandeza”.

Rio que atende aos mais necessitados. Um rio santo, assim como São Francisco de Assis, que é conhecido como o acolhedor dos pobres e oprimidos. Um rio peregrino, que se conecta a muitos outros estados. Rio que liga sertões: “Para todos os lados o rio era o caminho: para o norte, Alagoas, Pernambuco, Piauí e sertões outros. Para o sul, Sergipe, Bahia, Minas Gerais e outros sertões. Para oeste, as intransponíveis elevações rochosas, onde os índios deixaram suas marcas da vida” (BARRETO, 1992, p. 48).

Outros rios o abarcam, tornando cada vez mais abundantes as suas águas. Identificamos muitos afluentes que nele depositam suas águas, tanto a montante quanto a jusante de seu leito:9 “Em toda a minha extensão recebo a contribuição de cento e sessenta e oito

rios, entre os perenes e temporários. No conjunto, formamos uma bacia hidrográfica que abrange mais de seiscentos e quarenta mil quilômetros quadrados, área maior do que a da França” (CHAGAS, 2014, p. 14).

De todos os seus tributários, são os perenes os mais significativos. Em sua margem esquerda, estão os seus principais contribuintes, com cerca de 70% de suas águas, sendo o Paracatu, o Urucuia, o Carinhanha, o Corrente e o Grande os mais expressivos. Na margem direita, o Paraopeba, o das Velhas, o Jequitaí e o Verde Grande são os de maior destaque. Estes são apenas alguns dos tributários que entregam ao São Francisco águas outras, contribuindo para a ampliação de sua bacia hidrográfica. Bacia esta que conta com uma área aproximada de 638.576 mil quilômetros quadrados (8% do território nacional), sendo a terceira em extensão e a única totalmente localizada em território brasileiro. Além dos cinco estados por onde o São Francisco passa, sua bacia abrange ainda o estado de Goiás e o Distrito Federal, compreendendo uma população de cerca de 14,2 milhões de habitantes distribuídos entre os 521 municípios que a abarcam.10

9 Segundo os dados do Ministério da Integração Nacional, o rio São Francisco recebe água de 168 afluentes, sendo

99 deles de rios perenes. Destes, 90 estão na sua margem direita e 78 na margem esquerda.

10 Informações retiradas do site da Agência Nacional de Águas. Disponível em: <http://www2.ana.gov.br/Paginas/

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Em função de sua grande extensão geográfica, houve a necessidade de divisão do curso do rio em trechos, tomando como princípios a localização de seus tributários e – o mais importante – o uso que o ser humano fazia do rio, considerando as seguintes partes: “1) a faixa das cabeceiras; 2) o verdadeiro coração do São Francisco; 3) a faixa das corredeiras e cataratas, quase contínuas; e 4) a faixa virtualmente ao nível do mar” (PIERSON, 1972a, p. 37). Essa divisão foi sendo alterada ao longo dos anos. Com o propósito de gerenciar de forma mais eficiente a bacia hidrográfica do rio, as instituições governamentais adotam, atualmente, quatro divisões: o alto São Francisco (desde as suas nascentes até a cidade de Pirapora, em Minas Gerais); o médio São Francisco (começando logo abaixo da cachoeira de Pirapora, com o início do seu trecho navegável e se estendendo até a cidade de Remanso, na Bahia); o submédio São Francisco (de Remanso até a cachoeira de Paulo Afonso, também na Bahia); e, finalmente, o baixo São Francisco (de Paulo Afonso até a sua foz, no oceano Atlântico, entre os estados de Sergipe e Alagoas).11

Esta atual divisão da bacia do rio São Francisco mostra claramente a posição do Estado como um agente segregador, capaz de regionalizar e classificar o rio por áreas e por interesses estratégicos de intervenção. Tal divisão acentua ainda mais o poder estatal frente às relações territoriais, na intenção de fomentar políticas públicas de desenvolvimento regional que, em sua seara, acarretam uma ruptura nas relações inter-regionais.

Se observarmos os aspectos físicos do rio São Francisco, percebemos uma multiplicidade geomorfológica, apresentando uma grande depressão em um extenso e profundo vale, com variadas formações rochosas entre terrenos cristalinos e planaltos sedimentares com “formações rochosas dos mais variados tipos, como quartzitos que calçam minhas cabeceiras, granitos, gnaisses, basaltos, arenitos, calcários, arcóseos, ardósias, siltitos e xistos, todos de períodos muito remotos” (CHAGAS, 2014, p. 19).

Em função da grande extensão do São Francisco, as condições pluviométricas, a temperatura e a umidade também são bastante diferenciadas ao longo de sua bacia, com clima tropical de altitude no seu alto curso, passando pelo tropical subúmido em seu alto médio curso, tropical semiárido no médio baixo curso e quente e úmido, nas imediações do Atlântico (CHAGAS, 2014).

Com uma variação climática considerável, em seu baixo curso, as águas aumentam geralmente no outono, entre maio e julho, seguido por um longo período de estiagem que castiga grande parte da população que depende de suas abundantes águas. Na seca, o tom

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cinza da vegetação da caatinga é encoberto pelo verde da esperança na chuva que chega e na confiança de sobrevivência graças às águas do rio. No alto e no médio curso, as chuvas começam entre os meses de novembro e março, trazendo a expectativa de fertilidade e fartura. Estas diferenciações pluviométricas ajudam a entender os muitos contrastes existentes ao longo de todo o rio São Francisco. As chuvas e as secas são o aporte das gentes do rio e beira-rio. Elas não são apenas ciclos da natureza, são também ciclos sociais que se projetam a partir da existência de um modo de vida próprio dos lugares do rio. São relações que se propagam de forma complementar entre estes dois ciclos, porém, com estratégias distintas de acordo com cada localidade.

Cortando cerrados e caatingas, o rio São Francisco atrai, para as suas margens exuberantes, espécies da fauna e da flora, algumas delas à procura de suas águas como refúgio. Suas lagoas marginais12 geram e propiciam a vida de muitas variedades de peixes,

que se lançam no rio na época das cheias. Muitos deles, no presente, se encontram em extinção em função da crescente pesca predatória. Restaram apenas as incontáveis histórias de pescadores sobre a farta pesca de surubins, dourados, pacamãs, piaus, curimatãs etc.

Ao longo de todo o seu curso, o rio São Francisco banha fazendas, povoados e cidades. Muitas delas tiveram como berço as suas margens. De São Roque de Minas, o primeiro município do curso do São Francisco, até o Pontal do Peba, a última comunidade de suas paragens, são mais de 2.70013 quilômetros de história. Suas margens adensam cidades

importantes (Figura 1) que, com o passar dos séculos, formaram um importante fluxo econômico, social, político e cultural, tornando-as cada vez mais povoadas e atrativas. A forma de apropriação desses espaços envolve um complexo jogo de interesses territorial, material e também simbólico voltados para o desenvolvimento e a degradação, especialmente os grandes empreendimentos agropecuários e as grandes obras de infraestrutura.

12 Planícies de inundação, periodicamente inundadas pelos rios durante as cheias e essenciais para a reprodução de

peixes (POMPEU, 1997).

13 Tomamos como referência os dados disponíveis no site do Ministério da Integração Nacional, disponível em:

<http://www.integracao.gov.br/web/projeto-sao-francisco>. Acesso em 29 de maio de 2013. Pesquisadores da CODEVASF consideram 2.814 quilômetros, para o trecho tradicional do rio com nascentes na serra da Canastra, e 2.863 quilômetros, para o trecho dito geográfico, considerando as nascentes do rio Samburá. Consultar os anais do XI SBSR – Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto, em 2013. Disponível em: <http://marte.dpi.inpe.br/ col/ltid.inpe.br/sbsr/2002/11.20.18.39/doc/03_396.pdf>. Acesso em: 30 de maio de 2013.

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Figura 1: Algumas das principais cidades da bacia do rio São Francisco.

Fonte:

http://sosriosdobrasil.blogspot.com/2012/11/a-morte-anunciada-do-rio-sao-francisco.html

Como exceção, citamos as “gentes do São Francisco”, que, desde o berço, sabem conviver com este rio, respeitando os seus limites. O barranqueiro, o ribeirinho, o vazanteiro e o ilheiro vivem do rio e servem ao rio. Sua interdependência acontece de acordo com as regras da natureza. “Pessoas outras” que entendem que o rio é o sustento e o abrigo, a fortaleza e o refúgio, a perda e a reconquista, a dor e a salvação. As denominadas “outras gentes” foram e continuam sendo as responsáveis pelas grandes destruições sofridas pelo rio, em virtude das formas de apropriação de suas margens, não mais como o signo de uma cultura dinâmica e diversa, mas, sobretudo, como fonte de riquezas econômicas.

Portanto, até este momento, tratamos de uma breve descrição, “talvez a menos pretensiosa com a erudição, contudo a mais apaixonada pela experiência de quem saciou sua sede em suas águas, alimentou-se dos seus frutos e sentiu os bafejos mornos do seu sopro. E jamais o esquecerá” (SILVA, 1982, p. 20). Apresentamos um rio de gentes. Um rio que atravessa barreiras naturais, que apresenta belas cachoeiras, que corre suave e calmo,

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que se alarga, que forma grandes lagos, que atravessa sertões, que toca o mar. Rio que serve a seu povo, que alimenta, que abastece suas cidades e ilumina o Brasil.

Doravante, apresentaremos os principais ciclos econômicos do rio São Francisco ao longo dos séculos, na intenção de identificar e retratar as identidades e territorialidades das pessoas que vivem em suas margens e ilhas – tratadas, neste estudo, como as gentes sanfranciscanas.

PRIMEIRO CICLO:

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DO DESCOBRIMENTO AO POVOAMENTO DE SUAS MARGENS

Assim como no descobrimento do Brasil, com suas devidas contestações, data-se oficialmente em 4 de outubro de 1501 o descobrimento do rio São Francisco. Segundo Barreto, “o navegador florentino Américo Vespúcio descobriu, entre dunas escuras e as canafístulas, um grande rio que os índios chamavam de ‘Oparapitinga’. O nome dado ao rio foi o do santo do dia: São Francisco” (BARRETO, 1992, p. 48).15 Mas teria sido mesmo

a caravana comandada por Américo Vespúcio a primeira a adentrar as águas do rio São Francisco? Medeiros Neto (1941, p. 22) também questionou esta comprovação: “É a Portugal, incontestavelmente, que cabe fazer a expedição que, em 1501, teria descoberto o São Francisco, em meio o continente de Cabral”. Para outros pesquisadores, como Espindola (2001), foi o donatário da Capitania de Pernambuco, Duarte Coelho Pereira, o verdadeiro descobridor do São Francisco, dando início aos primeiros desbravamentos de suas margens.

Os primeiros mapas representando o rio São Francisco são datados do ano de 1599, e, neles, o rio aparece apenas com um pequeno risco, mostrando a visão da época perante o seu ainda desconhecido curso. Os escritos de Brandão e Borges (2013) trazem importantes mapas dos séculos passados mostrando como, ao longo dos anos, o rio São Francisco foi representado pelos cartógrafos.

Além do descobrimento, outros desbravadores foram responsáveis por descrever seus primeiros contatos com o rio São Francisco, como os aventureiros Spix e Martius, que chegaram ao Brasil em 1817, vindos da Europa. Planejaram uma expedição saindo da capital de Minas Gerais rumo ao Distrito Diamantino até chegar a Belém, três anos mais tarde. Durante a viagem pelo “remoto país estranho”, enfrentaram condições adversas e contaram com a ajuda de fazendeiros e nativos para completarem a missão. Cruzaram o São Francisco por diversas vezes, desde a capitania de Minas Gerais até a descida para o litoral. Esses autores

14 O conceito de ciclo econômico é utilizado, neste artigo, para enfatizar o tipo principal de atividade ocorrida ao

longo dos séculos. Salientamos que os fatos históricos não são tratados de forma linear, mas, sim, considerados em suas diferentes temporalidades e espacialidades.

15 Esse autor confirmou ainda que Vespúcio capturou dois pares de índios e os levou para a Europa como prova

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descreveram, com riqueza de detalhes, a paisagem que avistaram quando se depararam com o rio pela primeira vez: “Avistamos o rio São Francisco, correndo em majestosa calma diante de nós. O rio mede aqui quase meia hora na largura, apertado na margem oposta por uma orla de alagadiço, coberto de cerrado” (SPIX, MARTIUS, 1981, p. 94).

Junto à descrição do imenso rio, aparece também o espetáculo da natureza nas chamadas lagoas criadeiras, o berço da reprodução de todo grande rio (Figura 2). Este “quadro da criação do mundo” retrata as margens de um rio praticamente intocado, que ainda estava por ser descoberto, no século XVII. O que constatamos é que a chegada de Vespúcio, na foz do São Francisco, significou apenas um marco legal, pois os grandes “descobrimentos” aconteceram apenas séculos mais tarde. Expedições colonizadoras partiram em datas e rumos variados a fim de desbravarem um rio desconhecido que despertou a ambição dos portugueses e, mais tarde, dos holandeses e franceses.

Figura 2: Lagoa de aves, à margem do rio São Francisco.

Fonte: Spix, Martius (1981, s/p).16

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Outro “aventureiro” a desbravar o rio São Francisco foi o botânico francês Saint-Hilaire, que chegou ao Brasil em 1816 e permaneceu por seis anos, transpondo serras, matas fechadas, vales, vilas e cidades, abrindo verdadeiras trilhas na nossa história.17 Segundo

Saint-Hilaire (1975, p. 105), as cabeceiras do rio São Francisco reuniam em um só lugar todas as maravilhas da natureza, com “um céu de um azul puríssimo, montanhas coroadas de rochas, uma cachoeira majestosa, águas de uma limpidez sem par, o verde cintilante das folhagens e, finalmente, as matas virgens, que exibem todos os tipos de vegetação tropical”. Em outro relato, este mesmo autor atentou para a sutileza das águas do rio, descrevendo que “o céu era da mais bela cor de púrpura, o rio refletia essa cor brilhante, uma calma profunda reinava na natureza, algumas canoas pareciam voar sobre as águas e nem sequer enrugavam-lhe a superfície” (SAINT-HILAIRE, 1938, p. 328).

O britânico Richard Burton, numa expedição realizada a partir do Porto da Ponte Grande, em Sabará (MG), no dia 7 de agosto de 1867, alcançou o São Francisco em Gauicuí, na foz do rio das Velhas, em 15 de setembro deste mesmo ano, referenciando este momento como “o grande encontro das águas”: “Era impossível contemplar sem entusiasmo o encontro dos dois poderosos cursos de água. O rio das Velhas faz uma curva graciosa de nordeste quase que para oeste e, descendo por um trecho reto, com cerca de 183 metros de largura, mistura-se com o São Francisco, que vem de leste para recebê-lo” (BURTON, 1977, p. 158). Ao chegar à cachoeira de Pirapora, rio acima, confidenciou que “com alegria, vi-me sobre o leito daquele glorioso rio do futuro, cujas dimensões nestas paragens são, em média, cerca de 235 metros. Nada vira que pudesse ser comparado com ele, desde minha visita ao Congo, na África” (BURTON, 1977, p. 167).

A previsão quanto ao rio do futuro foi também projetada pelo naturalista Couto (1801, p. 76) ao escrever acerca de um formoso rio carregado de esperanças e perspectivas, almejando que “numerosas povoações branqueijaráõ por estas ribeiras, vozes alegres de afortunados habitantes retumbarão onde hoje só reina um profundo silêncio”. E complementou que “tu serás emfim conhecido e apreciado, o Triptolemo que deva chamar tuas afortunadas borbras gentes, que deva ahi ensinar a lavrar e embellezar a terra; crear o commercio, desterrar a ferocidade e fazer a vida deleitosa e feliz” (COUTO, 1801, p. 76). Decerto, o povoamento das barrancas do São Francisco tornou-se, ao passar dos séculos, cada vez mais, crescente e desordenado. Porém, a dita vida feliz almejada pelo referido autor foi colocada à prova justamente pela ocupação e exploração indevida de muitos que passaram a habitar suas ribeiras.

17 Durante esse tempo, redigiu relatórios importantes, como “Viagem às nascentes do rio São Francisco”, originalmente

publicado em francês, em 1848, e também o relatório “Viagens pelas províncias de Rio de Janeiro e Minas Gerais”, publicado em Paris, em 1830.

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A comparação com os rios Nilo, Congo e Niger, foi o que, inicialmente, em grande medida, despertou o interesse de desbravadores dispostos a se aventurar por suas águas e explorar suas incontáveis riquezas. Foi em 13 de outubro de 1859 que o imperador Pedro II chegou à foz do rio São Francisco e, navegando a bordo da Amazonas, iniciou uma viagem até Paulo Afonso que durou cerca de quinze dias. Segundo Barreto (1992, p. 49), “ao lado dos presidentes das então províncias de Sergipe e Alagoas e de outras autoridades, o imperador percorreu uma a uma as vilas e povoações das margens, anotando suas impressões”. Esta expedição, certamente, visava a descobrir novos caminhos para a exploração desse rio que, até então, era utilizado apenas pela população local que habitava as suas margens.

Devemos ressaltar que as expedições citadas até este momento eram, quase sempre, “encomendadas” pelos europeus (geralmente, os ingleses) dispostos a pagar altos valores aos viajantes na intenção de obter valiosas informações sobre as riquezas disponíveis no Brasil. Assim, o olhar do viajante atinha-se, quase que exclusivamente, aos possíveis recursos naturais que poderiam ser explorados pelos estrangeiros.

Para além das descrições sobre os recursos naturais feitas pelos viajantes, destacamos a importância dos diversos grupos indígenas que, milenarmente, povoavam o vale do rio São Francisco e afluentes, propagando-se por extensas áreas, desde a sua nascente até a chegada ao Atlântico. Como rara exceção, encontramos relatos em Donald Pierson (1972a, p. 228-234) de 58 grupos indígenas, tais como os Amoipira, Ocren, Sacragrinha, Caripó, Cariri, Chocó, Caxago, Caeté, Abatirá, Caiapó, Guaíba, Tupi, Ansu, Avi, Cajaú, Maquaru, Moriquito, Ponta, Prakió, Tacaruba e muitos outros. O botânico Gardner, que realizou expedições entre os anos de 1836 a 1841, também descreveu sua experiência vivida na Ilha de São Pedro, em Sergipe, com os índios Xocó, ao provar a garapa de tapioca e vinagre e tomar o remédio contra dor de barriga.

Segundo o mapeamento dos povos indígenas da bacia do rio São Francisco,18 na

ilha de São Pedro e na cidade de Porto Real do Colégio, em Alagoas, tribos Caiçaras e Kariri Xocó, respectivamente, ainda habitam estes territórios. Na Bahia, estudos apontam a existência da tribo Truká, em Sobradinho e Cabrobó, e Tupan, em Paulo Afonso, nas margens do rio São Francisco. Em Minas Gerais, não constatamos estudos que apontem a presença de tribos indígenas, exceto na região de Itacarambi, com os Xacriabás, e em Itaperecica, com os Pataxós.

18 Elaborado pela Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Governo da Bahia, publicado em 2007.

Disponível para consulta em: <http://www.meioambiente.ba.gov.br/mapas/Terras_indigenas_BHSF.pdf>. Acesso em: 20 de agosto de 2013.

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Geraldo Rocha (1940, p. 2) afirmou que os primeiros a povoarem a região do baixo rio São Francisco foram homens da comitiva de Thomé de Souza, que chegou à Bahia, em março de 1549, designado por Dom João III. Com ele, veio Garcia D’Ávilla, que passou a disseminar o gado trazido nas caravelas, e “penetrando o São Francisco em correrias contra os selvagens, lobrigou as vantagens de aproveitar os vargedos, vasantes e carnaúbaes para o desenvolvimento da pecuária no valle em questão” (ROCHA,1940, p. 2). Segundo este autor, os engenhos de açúcar serviam para aproveitar as possibilidades das terras férteis, e a pecuária foi sendo introduzida aos poucos, adentrando os sertões de terras pouco aproveitadas.

Garcia D’Ávilla e Guedes de Brito foram os primeiros grandes latifundiários responsáveis pela disseminação dos currais. Donos de grandes sesmarias, espalharam o gado pelas margens do São Francisco e de seus afluentes. No final do século XVI e no século XVII, as boiadas prevaleceram nos sertões nordestinos. Seus sucessores herdaram terras, foram adquirindo rebanhos e criando centros de atividade comercial. Assim começou o ciclo do gado – ou ciclo do couro, como prefere Abreu (1930) –, e alguns autores chegam a denominar o São Francisco como o “rio dos currais”. Como descreveu Pierson (1972a, p. 271), “à medida que os indígenas eram afastados das áreas intermediárias, a terra era dividida entre os europeus e seus descendentes, e fazendas de gado se estabeleceram por toda a parte.”

As expedições vindas do sul, excepcionalmente da capitania de São Paulo, chegavam ao São Francisco pelo seu alto curso, em busca de metais preciosos. A capitania da Bahia e, posteriormente, de Pernambuco, ao contrário, chegavam do norte, combatendo índios e buscando novas terras para a concretização da cana de açúcar como a principal atividade econômica da época. Tal divisão tornou-se “um dos grandes eixos de conquista do interior do continente e, desde o século XVIII, um ponto de encontro entre os homens vindos do norte e do sul, sendo que estes últimos já se mostravam mais empreendedores” (THÈRY, 1980, p. 1012).

A população indígena originária das barrancas do São Francisco foi, aos poucos, cedendo lugar aos currais. O homem branco saiu “plantando currais pelo ermo adentro” e substituindo “por boiadas as tribos que se encontravam no seu caminho” (LINS, 1983, p. 21). Esta dominação gerou grandes conflitos e acarretou mudanças bruscas no modo de vida da população do rio.

Com a instituição das sesmarias, a Casa da Torre (fundada por Garcia D’Ávila) e sua rival, a Casa da Ponte (de Guedes de Brito), estenderam seus domínios pelo São Francisco. A primeira ficou com grande parte das terras, chegando a alcançar a atual fronteira entre

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os estados da Bahia e Minas Gerais, já a segunda alcançou as nascentes do rio das Velhas, ficando o vale entregue quase que totalmente aos baianos. Os paulistas também procuraram avançar combatendo índios, escravizando-os e estabelecendo “pousadas fortificadas, que muitas vezes deram origem a cidades atuais, e fazendas onde encontravam ponto de apoio e de reabastecimento” (THÈRY, 1980, p. 1012).

As bandeiras avançavam, abrindo clarões pelos sertões, que foram, aos poucos, sendo povoados pelo gado, única atividade possível nestas áreas. Os europeus avançavam com o gado, desbravando matas e formando fazendas, perdendo inteiramente a sua estrutura social, própria de Portugal, em favor de uma experiência de socialização própria do sertão. Deixavam para trás as suas características herdadas do além-mar e adquiriam uma outra, mais genuinamente nacional, ligada ao seu novo modo de vida sertanejo (LINS, 1983).

Os polos iniciais de colonização foram distribuídos tendo as cidades de Penedo e Barra do Rio Grande como sedes principais, pois “estas ouvidorias centralizavam a vida judiciária do Baixo e Médio São Francisco. O Alto do rio esteve subordinado a Diamantina e depois a Sabará” (MEDEIROS NETO, 1941, p. 82). Mais tarde, as províncias do Império tornaram-se estados da federação, convergindo para Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, as cinco unidades da federação a abarcarem o rio São Francisco.

SEGUNDO CICLO: OS CURRAIS

À proporção que o gado avançava para o interior, crescia o povoamento do “sertão do Opará”. No final do século XVI, as margens do São Francisco já eram palco de grandes fazendas, inúmeras cabeças de gado e uma população crescente de boiadeiros e vaqueiros, tipos sociais adaptados à vida no vale do São Francisco. Esta população crescia, cada vez mais, nos rincões de Minas e da Bahia, em função das terras de pastagem e da parceria entre coronéis e fazendeiros para o trato de seus rebanhos.

Conforme afirma Donald Pierson (1972a), a “civilização do boi” levou a colonização para o interior do Brasil, ao contrário do que aconteceu com as terras do litoral, historicamente ocupadas com a cana de açúcar e exploradas por brancos europeus e seus escravos. O gado foi o elemento principal da ocupação e do povoamento do interior do Brasil. Apesar de ter abastecido de carne e couro os engenhos do litoral, sua crescente expansão tomou rumos próprios, tornando-se uma atividade genuína e autossuficiente. Como alguns autores, Galvão (1986, p. 31) chega a afirmar que “a pecuária foi uma espécie de filha-pobre da economia colonial”. Porém, foi o gado o responsável por adentrar as terras ditas improdutivas e povoar os sertões, garantindo certa espacialização social das gentes do São Francisco.

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Foi no território sanfranciscano, “não economicamente aproveitável para o empreendimento principal que era o açúcar” (GALVÃO, 1986, p. 31), que fazendeiros e vaqueiros se fixaram, interessados em terras propícias para a consolidação dos currais. É importante mencionar alguns fatores que contribuíram para esta expansão, como as “vastas extensões de terras, onde a imensidão compensa o baixo valor alimentar das pastagens; também pede água, a do rio e de seus afluentes, e sal, que se encontra em vários lugares do vale à flor da terra” (THÈRY, 1980, p. 1012).

A cana de açúcar do litoral passou a ser dependente da carne e dos animais oriundos dos sertões, pois, graças a um decreto real firmado em 1701, ficou proibida a criação de gado a menos de cinquenta léguas da costa, o que fez do vale do São Francisco o responsável por abastecer os engenhos. Aliado a isto, lembramos também do baixo capital investido na criação do rebanho e na mão de obra. Esta última era constituída como um sistema de acordo mútuo entre o fazendeiro e o vaqueiro. A renda era dividida, mesmo que não igualitariamente, a partir da produção anual. O vaqueiro era a figura principal dessa atividade: era ele o responsável pelo rebanho. Normalmente, eram homens livres que buscavam no gado a sua fonte de renda. O vaqueiro recebia “determinada quota dos produtos da fazenda, isto é, um bezerro para quatro do proprietário” (RÊGO, 1945, p. 183-184).

Vale salientar que os grandes criadores de gado, detentores de vastos domínios de terra, não moraram integralmente nas fazendas, cabendo ao vaqueiro o trato com o gado, pagando a si próprio e “marcando com seu ferro um bezerro de cada 4 ou 5” (THÈRY, 1980, p. 1013). O gado era o principal suprimento alimentar, tanto para os criadores como para os cuidadores. Os donos das terras – os “donos do São Francisco” (PIERSON, 1972) – e os vaqueiros utilizavam a terra apenas como valor de uso.

A produção agrícola era suplementar, utilizada para a sobrevivência das famílias dos vaqueiros, que, de acordo com Mata-Machado (1991, p. 32), “plantavam uma pequena roça destinada ao seu próprio consumo. A mandioca, já conhecida dos índios, foi a principal componente da agricultura de subsistência, sendo seguida do milho e da cana de açúcar, esta transformada em rapadura e cachaça.” Alguns outros suplementos complementavam a alimentação, como “a carne de boi, a farinha de mandioca e outros produtos agrícolas, acrescentados de frutos, da caça e da pesca” (MATA-MACHADO, 1991, p. 32).

Esta estratégia de consorciar a criação de gado e a prática da pequena agricultura, herdada dos indígenas, garantiu a formação de um povo independente do litoral, que sobrevivia com os seus próprios meios. Surgiu, assim, uma gente adaptada às condições que a natureza impunha. Moldando técnicas, herdando culturas e fixando características

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próprias, esta gente sertaneja soube desbravar territórios nunca antes ocupados, a não ser pelos índios.

Aliada às fazendas de gado, surgiu uma agricultura de autoconsumo, sendo esta, portanto, uma atividade secundária, praticada pelos não possuidores de terras. Esta relação, normalmente, se dava entre “um trabalhador rural a quem o proprietário cede em geral o título gratuito em troca de uma espécie de vassalagem e prestação de pequenos serviços, o direito de se estabelecer e explorar uma parte inaproveitada do domínio” (PRADO JÚNIOR, 1981, p. 159).

Existiam, portanto, duas economias distintas: uma, “voltada para fora, através da exportação de gado para as regiões litorâneas”, e a outra, voltada “para dentro”, “fundada no aproveitamento dos recursos florestais, na agricultura, na caça” (MATA-MACHADO, 1991, p. 71). Ainda nos dias atuais, o vale do São Francisco é mais de pecuaristas do que de agricultores. A criação de gado é tida como uma atividade “forte”, praticada pelos detentores do poder, enquanto a agricultura é vista como atividade dos “fracos”, com pouco poder aquisitivo.

Um fator importante quanto à territorialização dessas terras é que “a agricultura é o elemento de sedentarização do homem, o gado é o da mobilidade para dentro de sertão, da mobilidade territorial, portanto” (MARTINS, 2011, p. 78). Esta mobilidade foi o que alargou as fronteiras, que criou novas territorialidades e implantou um sentimento de liberdade capaz de impulsionar novos deslocamentos. Enquanto a agricultura “prende” o homem à terra, a pecuária os liberta.

A expansão das fazendas se deu também pelo fato de o gado ser “um produto que se locomove por si, não necessitando de outro transporte se não os próprios pés, para atingir um mercado, mesmo distante” (PIERSON, 1970a, p. 268). Assim, o vaqueiro seguia os passos do gado e não se prendia à terra. Esta “errância” foi o que locomoveu muitos homens em busca de mercados e boas pastagens para o seu rebanho, expandindo, assim, seus limites territoriais.

Ainda no século XVII, as margens do rio São Francisco foram ficando cada vez mais povoadas, surgindo os primeiros núcleos. As famílias dos vaqueiros e dos agregados da fazenda eram compostas de uma considerável prole, formando uma pequena vila dentro da propriedade do patrão, que, aos poucos, ia crescendo, tanto em função do alargamento dos laços de parentesco, quanto devido ao comércio praticado, atraindo gente de outras terras. Apesar disto, “cada fazendeiro era chefe de sua gente, mantinha a ordem em suas terras, dispondo da vida e dos bens (quase nada) de seus agregados” (LINS, 1983, p. 38).

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Esta relação configurava-se no convívio local, estabelecendo relações de subordinação e de força entre o mais forte e o mais fraco, sendo que o fazendeiro – não raro, um “coronel” mais valente – impunha sua autoridade como chefe. Nessa época, a fazenda era uma instituição com poderes ilimitados. Todas as relações eram submetidas a uma autorização do fazendeiro, que mantinha o controle absoluto sobre os seus subordinados, desde a casa de moradia, as plantações, o comércio e a circulação.

Aliado ao ciclo do gado, o couro também foi um importante utensílio utilizado, uma vez que “da porta da casa de morada, da cama de dormir, passando pela cela e cangalhas das animálias, bem como a vestimenta do vaqueiro, incluindo o chapéu até o vasilhame para conduzir e guardar a água e grãos, tudo era feito de couro” (CHAGAS, 2014, p. 21). Com vastas pastagens ao longo de todo o vale do rio São Francisco, o gado foi tomando cada vez mais espaço, com o passar dos anos, seguindo sempre em direção às cabeceiras do rio. O povoamento seguiu os passos do gado, marchando do litoral para o interior do Brasil (CHAGAS, 2014).

Para Coelho (2005, p. 66), a expansão dessas “fronteiras móveis” foi responsável por formar a base da civilização barranqueira, composta de homens livres que dependiam exclusivamente de seu trabalho como estratégia para manter seus vínculos territoriais. Chagas (2014, p. 23) considera que “esta condição de igualdade no mover-se”, o senso de liberdade, mesmo diante das adversidades econômicas, não “podia limitar o seu ir e vir num mundo sem cercas e na maioria dos casos, sem dono”. Este imenso senso de liberdade, em grande parte, se deu em função do meio de locomoção utilizado, comum entre o patrão e o empregado.

“Senhor e vaqueiro andavam no mesmo cavalo. Quer dizer estavam na mesma altura das cabeças, não havia diferença no momento do trabalho, no momento da atividade que exerciam. Não tinha diferença entre patrão e o empregado, ou patrão e vaqueiro”.19

Essa condição de igualdade não impunha limites à mobilidade. Cada vez mais, as fronteiras iam se alargando e novas terras eram conquistadas. À medida que o gado avançava, o vaqueiro também avançava, em busca de novas terras. O gado tornou-se uma mercadoria móvel e independente, que caminhava com suas próprias pernas. A única dependência existente era entre o vaqueiro e o coronel dono da fazenda. Porém, ao longo do tempo, alguns vaqueiros adquiriram suas próprias fazendas e tornaram-se “coronéis”, propagando ainda mais o gado pelas terras interioranas da Bahia e de Minas Gerais.

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Se o gado foi a principal atividade de povoamento do vale, a mineração foi a atividade secundária. O ciclo minerador em busca do ouro e, sucessivamente, da prata integrou os negros escravos à população indígena e ao branco europeu, surgindo, assim, a miscigenação da população.

A descoberta das primeiras minas de ouro, no alto vale do rio das Velhas, em 1670, fez surgir uma constante rota de passagem, atraindo garimpeiros e escravos que passaram a explorar grande quantidade de ouro. Por ser um caminho de fácil acesso para o escoamento, de difícil organização para a cobrança de impostos e “talvez por causa das queixas dos senhores de engenho, privados de seus escravos, o comércio pelo vale do São Francisco foi proibido por decreto real em 1701” (THÈRY, 1980, p. 1012). Esta proibição, restrita apenas à circulação regional, acabou sendo um grande entrave para o desenvolvimento do vale.

A única exceção a esse decreto foi o comércio do gado, que continuou abastecendo as minas. Houve apenas a inversão da sua rota de comercialização, restrita, anteriormente, apenas às províncias do norte. Segundo Thèry (1980, p. 1012), “as fazendas ganharam, portanto, um segundo mercado para a carne e o couro, o que reforçou a sua prosperidade e a especialização da região. Com as novas ‘boiadas’, as rotas do gado foram abertas, desta vez em direção ao sul”. Houve, portanto, uma crescente expansão tanto dos rebanhos quanto do povoamento, chegando esta a ser a segunda maior concentração populacional do Brasil, perdendo apenas para o litoral.

Na década de 1970, com a chegada das frentes agrícolas do agronegócio, impulsionadas pelos incentivos governamentais visando à ocupação e modernização do cerrado, novas lógicas de produção foram incorporadas ao campo. As mudanças no cenário rural, anteriormente movido pelas relações de trocas e reciprocidades, cederam lugar às máquinas, aos insumos e aos inovadores sistemas de produção baseados em constantes investimentos em pesquisa e tecnologia. Porém, na contramão dos grandes empreendimentos agroindustriais, está a maioria dos trabalhadores, considerados pequenos e médios produtores que, ainda na atualidade, habitam o vale, denominados por alguns autores como camponeses e/ou agricultores familiares.

TERCEIRO CICLO: AS BARCAS E OS VAPORES

Apesar de, historicamente, o rio São Francisco ter sido ocupado essencialmente por indígenas, bandeirantes e fazendeiros vindos do norte e do sul à procura de terras férteis, especiarias e diversidade natural, foi ao longo do seu leito que se desenvolveram os eixos de comunicação entre o interior e o litoral. A população ribeirinha que obtinha

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do rio suas fontes de sobrevivência praticava a agricultura e a pesca e adotava técnicas muitas vezes primitivas de navegação pelas águas do rio. Faziam, inicialmente, pequenas travessias de uma margem a outra em canoas improvisadas, construídas em troncos de árvores, escavadas a fogo. Até 1823, “a navegação no rio São Francisco era feita em canoas primitivas, desenvolvidas pelos índios, e em ajoujos que não passavam da junção de várias canoas amarradas umas às outras, com um tabuado por cima, servindo de piso” (LINS, 1983, p. 88). Assim se desenvolveu o que, mais tarde, se tornaria o principal meio de transporte e de comércio pelas águas desse rio.

As canoas eram construídas, segundo Matta Machado (2002, p. 48), em “um só tronco das árvores tamboril, vinhático e cedro”, e eram geralmente conduzidas “por dois remadores e por um tripulante que servia na popa de piloto operando o leme ou, alternativamente, um remo curto e largo”, sendo que, para o transporte dos alimentos e mercadorias, havia “no interior das bordas das canoas um engradamento em forma de abóbada coberta com palha de carnaúba ou outros materiais”.

Devem-se ressaltar ainda os ajoujos que eram construídos com “duas ou três canoas unidas por paus roliços e a estes atadas com tiras estreitas de couro cru” (MATTA MACHADO 2002, p. 48). Para sua descida, bastava apenas o piloto e três remadores, mas, já na subida, eram necessários seis bons remadores. Por cima das “canoas ajoujadas”, colocava-se um estrado de tábuas que servia para o transporte de animais e cargas maiores, “ficando os espaços laterais (coxias) da embarcação livre para o trabalho dos tripulantes nas viagens rio acima, quando se faz necessário o recurso às varas (ou varas ferradas, varejão) destinadas a impulsioná-la” (NEVES, 1998, p. 33).

Os ajoujos e as canoas foram embarcações típicas do São Francisco, criadas a partir dos conhecimentos indígenas, ao contrário das barcas, que eram de origem europeia. O saber fazer do barranqueiro, herdado dos indígenas, permitiu-lhe adaptar técnicas, entender os cursos navegáveis do rio e aprender a sobreviver com os recursos que o São Francisco oferecia, especialmente a pesca e a agricultura.

De acordo com Neves (1998, p. 42), “na segunda metade do século XVIII, foram introduzidas as barcas no transporte de cargas entre povoados. Até então, este transporte esteve a cargo dos ajoujos”. Aos poucos, o comércio aumentou e a circulação foi ficando cada vez mais intensa, e as distâncias foram se estreitando.

O ir e vir de pessoas entre uma comunidade e outra eram realizados pelas águas do rio. Muitas famílias migravam, carregando toda a sua mudança dentro das barcas, buscando

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novos locais de trabalho em terras mais produtivas para o plantio. Surgiu, assim, uma atividade flutuante que se intensificava cada vez mais, uma vez que as barcas ofereciam melhores condições de navegação e eram excepcionalmente mais rápidas do que os ajoujos. Segundo Lins (1983, p. 88), “desde o começo, a barca vem sendo usada como um misto de casa comercial flutuante e meio de transporte”, sendo o barqueiro “um comerciante ambulante que sai vendendo suas mercadorias de vila em vila, de fazenda em fazenda”.

Nesse período, a figura dos barqueiros era de extrema importância, uma vez que “eles unificaram a bacia do São Francisco”, ele era “o médico, ele era o advogado, ele era o banqueiro, ele era o comerciante, era o homem que levava e trazia os recados, as cartas, as novidades. Então, a meu ver, foi um ciclo socioeconômico muito importante”.20 O barqueiro exemplar

era um homem “sossegado, inteligente, razoavelmente forte, muito respeitador do patrão, o proprietário ou possuidor da embarcação. Habitualmente, evita beber em companhia de outros, receando as brigas que as bebedeiras acarretam” (BURTON, 1977, p. 173).

As barcas eram diferenciadas por serem construídas de fundo raso, o que garantia uma maior proteção das cargas e dos passageiros, e “a tripulação variava de 6 a 12 pessoas para o manejo dos remos ou varas, além de um piloto” (MACHADO, 2002, p. 49). Além disso, as barcas que navegavam abaixo de Paulo Afonso (BA) eram movidas a vela, aproveitando as correntes de vento vindas do Atlântico, que facilitavam consideravelmente a subida pelo rio, “mas nem sempre o vento ajuda, e o certo é que a barca, via de regra, faz sua viagem rio acima levada pelos braços hercúleos dos caibras, remeiros” (LINS, 1983, p. 89). A Fotografia 1, a seguir, evidencia uma barca movida a vela e a vara.

Fotografia 1: A barca e o remeiro

Fonte: Marcel Gautherot (1995).

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As antigas barcas que navegavam pelo rio São Francisco tinham na figura do remeiro o traço de um homem lutador, acostumado às intempéries do tempo, da vida áspera, da comida regrada, da dormida ao relento, do pé-pubo e do peito calejado pela vara, brigador. Para Lins (1983, p. 90), o remeiro é “um caibra forte, de pele avermelhada pelo sol de todos os verões e pelo vento frio de todos os invernos. Traz no peito, como uma condecoração de sangue, na própria carne, um calo do tamanho de um bolachão”. Ele conduz a barca guiando-a com uma vara que deixa marcas (o “calo da vara”) em alto relevo. “De tempo em tempo, aquilo sangra, abre em ferida, e o caibra remeiro ‘acalma’ o calo colocando sobre ele sebo quente ou toucinho derretido”. Literalmente, “ele carrega a barca nos braços, rio acima, rio abaixo, cantando toadas, fazendo humor, soltando gostosas gargalhadas pelo vale afora” (LINS, 1983, p. 90). E “criam-lhe grandes calos ao mergulharem e emergirem, vinte, trinta vezes com a tora apoiada no ombro. Até conseguirem fazer com que a barca se mova”, e, assim, “cada vez que se levantam da água, que lhes bate quase na cintura, os homens lançam uma espécie de grito, ritmado como um canto de guerra, que uniformiza os esforços de todos” (CAVALCANTI, 1998, p. 95).

A forma desumana como eram tratados os trabalhadores das embarcações, largados a própria sorte e com “longa jornada de trabalho que inclusive estava sujeita à ampliação”, foi retratada por Neves (1998, p. 183).21 Seguiam à própria sorte, navegando, por meses

ininterruptos, de barranco em barranco, lutando e resistindo dia após dia: “A vida deles é um lutar sem trégua, uma luta corporal e diária com a morte. Nadando de pedra em pedra, levando nos dentes o cabo da proa, o remeiro enfrenta a morte com destemor” (LINS, 1983, p. 90).

Além disso, os remeiros e os canoeiros estabeleciam ainda o papel de difusores da cultura sanfranciscana, formando o “encontro de culturas, ou melhor, de variantes de uma mesma cultura”, ou seja, promoviam, no São Francisco, o encontro de “grupos sociais do Sudeste e do Nordeste”, constituídos basicamente de índios, negros e mestiços, consolidando assim uma “unidade cultural” (NEVES, 1998, p. 41).Os “remeiros levando as barcas a todos os trechos navegáveis do rio e de seus afluentes contribuíam para uma maior integração cultural. É verdade que não se pode perder de vista também a importância dos movimentos migratórios” (NEVES, 1998, p. 86-87), sendo a migração outro importante fator de dispersão e integração entre as regiões do vale do São Francisco.

Foi em meados de 1850 que a navegação pelo rio São Francisco começou a dar sinais de progresso. O então imperador, Dom Pedro II, almejando explorar o rio para

21 Esse autor fez um importante levantamento histórico e sociológico sobre a importância dos vapores na vida e na

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fins econômicos, convidou o engenheiro naturalizado brasileiro Henrique Guilherme Fernando Halfeld para realizar um minucioso estudo, partindo da cachoeira de Pirapora até o oceano Atlântico, verificando essencialmente a possibilidade de navegação neste trecho. Esta pesquisa foi realizada de setembro de 1852 a fevereiro de 1854.22 Nesta época, “disse

Halfeld que as embarcações utilizadas em 1854 no São Francisco eram canoas, ajouros e barcas” (MACHADO, 2002, p. 48).

Posteriormente, em 1862, Emmanuel Liais realizou estudos no rio das Velhas,23 de

Sabará (MG) até a sua foz, no rio São Francisco, constatando sua viabilidade para a navegação, o que oferecia uma importante via de ligação do Rio de Janeiro com o Norte. Aliado a isso, existiam ainda os fatores população e comércio, que também eram consideráveis ao longo do curso do rio das Velhas. Esta região era bastante habitada, com importantes cidades como Diamantina, Ouro Preto (a então capital de Minas Gerais) e Curvelo, além de possuir grande produção agrícola e extração de minério.24

Em 1868, o engenheiro Carlos Krauss procedeu a estudos de Sobradinho (BA) a Piranhas (AL), em toda a extensão onde Halfeld havia constatado a inviabilidade da navegação, a fim de analisar a construção de uma possível via de comunicação terrestre que interligasse o São Francisco ao mar, e propondo a construção de uma ferrovia contornando a cachoeira de Paulo Afonso, partindo de Jatobá (PE) até Piranhas (AL). Além disso, foi proposta a construção da ferrovia D. Pedro II, interligando o São Francisco (partindo de Guaicuí (MG) até o Rio de Janeiro), e possibilitando, portanto, duas saídas para o mar: uma ao norte, pela ferrovia Paulo Afonso, e outra ao sul, pela ferrovia D. Pedro II (MACHADO, 2002).

Baseado nos estudos de Halfeld, em 1879, o engenheiro norte-americano William Milnor Roberts também examinou as condições de navegabilidade do São Francisco, de Pirapora (MG) até a sua foz. Tanto Halfeld como Roberts concluíram haver perfeitas condições para a navegação de Pirapora a Juazeiro (BA), com a exceção apenas do trecho da cachoeira de Sobradinho, que necessitava de obras de desobstrução.

Após esses detalhados estudos, o rio das Velhas e o São Francisco não eram mais desconhecidos. O governo passou a ter maiores interesses em investir em projetos de desobstrução de seus leitos, com a abertura de canais nas áreas apontadas nos relatórios

22 Foi publicado um genuíno atlas contendo todos os detalhes do rio em seus médio e baixo cursos. Ainda nos dias

atuais, este trabalho é citado como um dos mais completos mapeamentos sobre o São Francisco (HALFELD, 1860).

23 Suas nascentes estão localizadas na Cachoeira das Andorinhas, município de Ouro Preto (MG), desaguando

em Barra do Guaicuí, no município de Várzea da Palma (MG). É considerado o maior afluente em extensão do rio São Francisco.

24 Segundo Machado (2002, p. 38), o engenheiro Benjamim Franklin de Albuquerque Lima também realizou estudos

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como propícias para a navegação. Surgiu, portanto, um interesse real do Estado em investir nesta atividade. O controle e a manutenção dos trechos navegáveis foram detalhadamente estudados, na intenção de firmar com a empresa interessada a concessão de uso, cobrando, para tanto, altíssimas taxas e impostos.

Data de agosto de 1833 o começo oficial da navegação do rio São Francisco por meio dos vapores, com a concessão, por dez anos, para Guilherme Kopke percorrer o rio das Velhas e o São Francisco. Contudo, suas embarcações não tinham regularidade a ponto de torná-las comerciais, objetivando viagens experimentais apenas pelo rio das Velhas. Em junho de 1867, Henrique Drumond25 firmou contrato com o então presidente

de Minas Gerais, Joaquim Saldanha Marinho, para construir, transportar, armar e fazer navegar um vapor de grande porte pelo rio das Velhas, começando suas atividades em dois anos. O navio era propriedade de Minas, vindo a se chamar Conselheiro Saldanha, nome posteriormente alterado para Saldanha Marinho. Oficialmente, foi o Saldanha Marinho o primeiro vapor a percorrer o São Francisco, sendo um dos mais importantes da história da navegação fluvial brasileira.26

O primeiro-tenente da Armada Brasileira, Francisco Manoel Alvares de Araújo, partiu de Jaguara (MG), no dia 17 de janeiro de 1871, pelo rio das Velhas, adentrando as águas do São Francisco, na barra do Guaicuí, no dia 3 de fevereiro de 1871. Machado (2002, p. 106) ressaltou que “coube a Minas Gerais iniciar a navegação do rio São Francisco, isto é, ser a primeira que lançou nas águas do São Francisco um navio movido a vapor”. Esta viagem inaugural, partindo de Sabará (MG) e adentrando o São Francisco, indo até Boa Vista (PE) e retornando até Guaicuí (MG), durou cerca de um ano e quatro meses, sendo finalizada no dia 21 de maio de 1872.

No estado da Bahia, foram lançados alguns projetos para a construção de vapores, constando apenas a construção de barcas até o ano de 1849. O Presidente Dantas foi o primeiro vapor de ferro a ser construído nessa província, com elevados custos gastos com o transporte das peças e sua montagem, chegando a ser questionada a sua viabilidade econômica.

Somente em dezembro de 1872, foi realizada, pelo engenheiro catarinense Emílio Augusto de Mello e Alvim,27 a primeira viagem pelo São Francisco, partindo de Juazeiro

(BA) e chegando a Salgado (Januária /MG), em janeiro de 1873. Relatos apontam que

25 “Convém dizer que Henrique Dumont, o homem que dirigia o navio, foi pai de Alberto Santos Dumont, o homem

que dirigia avião” (MACHADO, 2002, p. 103).

26 Este vapor encontra-se, atualmente, na orla da cidade de Juazeiro (BA), e é exibido como atrativo turístico. 27 O engenheiro era então o diretor das oficinas de máquinas do Arsenal de Marinha da Bahia, cargo que exerceu até

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“quando o Presidente Dantas ali chegou, perto de mil pessoas com banda de música à frente, em exclamações de viva e soltando milhares de fogos, acompanharam o navio durante seu trajeto para alcançar o ancoradouro” (MACHADO, 2002, p. 165). A viagem terminou no dia 23 de janeiro de 1873, em Santana (BA), sendo o Presidente Dantas, portanto, o segundo navio a vapor a navegar pelas águas do São Francisco.

Em 1860, o governo imperial assinou um contrato para promover a navegação no baixo São Francisco, entre Penedo e Pão de Açúcar, em Alagoas. Com a criação da Comissão de Melhoramentos do Rio São Francisco, em 1883, foram feitas obras de desobstrução do canal, especialmente nas cachoeiras de Sobradinho (BA) e do Vau, tornando a navegação ali ainda mais viável. Com o fim das obras na cachoeira, em 1986, “efetuaram-se 731 viagens pelo canal de Sobradinho” (MACHADO 2002, p. 158).

Em junho de 1889, foi criada a Companhia Viação Central do Brasil,28 a primeira

empresa privada a administrar a navegação regular a vapor pelo rio São Francisco. O governo concedeu a Cícero de Pontes, Benjamim Franklin de Albuquerque Lima e Francisco Freire de Brito autorização para explorar comercialmente o rio das Velhas e o médio São Francisco. A partir de 1890, foram feitas as primeiras viagens experimentais, não oficiais, pelas águas do São Francisco. Porém, foi somente em janeiro de 1894 que começou efetivamente o transporte de cargas e passageiros pelo rio (MACHADO, 2002).

Com as obras de desobstrução do leito do rio, “os dois vaporzinhos iniciais foram tendo, com os anos, novos companheiros, que, de naufrágio em naufrágio, iam desaparecendo, enquanto outros novos eram comprados para seguir o mesmo destino” (LINS, 1983, p. 139). Com o passar dos anos, essa atividade foi sendo cada vez mais indispensável, em função de o rio ser um importante eixo de ligação tanto para o oceano Atlântico como para as províncias do sul do país, sendo, portanto, uma via imprescindível para a circulação e para o escoamento da produção.

A paisagem do rio São Francisco foi sendo preenchida por mais vapores. A presença de investimentos governamentais e o interesse crescente das empresas em obter lucros com essa atividade tornou-se um grande atrativo, mobilizando um acelerado processo de produção e circulação de vapores. Em setembro de 1892, o banco Viação possuía, no São Francisco e no rio das Velhas, “quatro grandes navios a vapor de ferro, roda à popa, construídos em Londres pela empresa Yarrow; dois navios de madeira, providos de máquinas para reboque, construídos no Brasil, e o Saldanha Marinho totalmente reformado, o qual já efetuara doze viagens redondas de Juazeiro a Pirapora” (MACHADO, 2002, p. 239).

28 Posteriormente denominada Banco Viação do Brasil, em setembro de 1890, e Empresa Viação do Brasil, em janeiro

(26)

Em 1893, o Amaro Cavalcante e o Monsenhor Augusto começavam suas atividades pelo rio das Velhas. No ano seguinte, o vapor Matta Machado fez sua viagem inaugural, desde a barra do rio Parauná (MG), afluente do rio das Velhas, até Juazeiro (BA), inaugurando oficialmente o tráfego de vapores pelo rio São Francisco. Em 1894, o estaleiro da Empresa Viação, do governo da Bahia, instalado em Juazeiro, terminou a montagem do vapor Rodrigues Silva, que naufragou em abril de 1898. Em 1895, o Alves Linhares terminou de ser construído, e, em 1896, o Antônio Olinto e o Presidente Dantas começaram suas atividades. Em maio de 1897, a Empresa Viação colocou em funcionamento o vapor São Francisco, que naufragou em sua primeira viagem, e, posteriormente, começou a construção do Santa Cruz. Pertenciam ao governo baiano também o Conselheiro Viana, o Prudente de Morais e o Severino Vieira. Formara-se, assim, uma frota considerável, capaz de mudar os rumos da navegação até então praticada no São Francisco.

No final do século XIX, havia 35 vapores circulando pelo São Francisco. Além destas embarcações, outras navegavam pelos seus tributários,29 fazendo a ligação das regiões.

Com o avanço das tecnologias, houve uma maior disponibilidade de vapores cada vez mais rápidos. As distâncias foram se encurtando, e a modernidade e o desenvolvimento chegavam de forma cada vez mais rápida às águas do São Francisco.

O ciclo da navegação foi o auge das transformações econômicas do vale do São Francisco, trazendo o desenvolvimento econômico e comercial, facilitando a exportação e a importação dos produtos da lavoura, beneficiando o deslocamento das pessoas, criando novos empregos e melhorando o padrão geral de vida da população. “Por todos esses motivos, a navegação fazia aflorar a alegria do povo baiano e mineiro” (MACHADO, 2002, p. 266). Para além dos benefícios e da alegria advinda com a circulação das barcas e dos vapores, chamamos a atenção para as condições adversas vividas por essa gente durante as viagens pelo rio.30 De acordo com Oliveira,

São eles os representantes vivos de um passado não tão remoto assim, em que se vivia o São Francisco como um rio-estrada. Uma estrada de águas por onde, rio abaixo e rio acima, eram transportadas gentes, bichos e cargas. [...] [Eram eles que] muitas vezes cansados, sustentavam a viagem do grande barco, entre tempos de céu aberto e fechado, de rio bravo e rio manso, lá estavam eles, tentando fazer a travessia (OLIVEIRA, 2009, p. 73).

29 O rio das Velhas, Paracatu, rio Grande, Correntes e rio Preto foram os principais tributários navegáveis do São Francisco. 30 A obra de Diniz (2009) contém importantes registros dos vapozeiros a respeito desse período.

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Alguns autores chegam a considerar esse período como um ciclo socioeconômico, “pois comandaram completamente a vida dos habitantes de minhas barrancas e de meus sertões. Assim, não é ato falho falar-se num ‘ciclo das barcas e dos barqueiros’ e dos ‘vapores e vapozeiros’” (CHAGAS, 2014, p. 27). Podemos afirmar, portanto, que esse ciclo foi um dos grandes responsáveis pelo visível – porém, contraditório – desenvolvimento local e regional. Toda a circulação de pessoas, o comércio, as trocas, a busca por novas terras e os passeios giravam em torno das barcas e, posteriormente, dos vapores. A locomoção fluvial de nordestinos e mineiros tinha como caminho obrigatório as águas do rio São Francisco. Foi um período de crescentes movimentos de mercadorias e pessoas, de subida e descida, levando e trazendo gente de montante para jusante, do norte para o sul, da nascente para a foz, do litoral para o interior. Os vapores “tiveram uma importância fundamental, porque, a partir destes vapores, nós tivemos o trânsito e a ligação do povo do sul com o povo do norte. [...]. Aí começou a haver uma miscigenação de culturas, de culturas completamente diferentes”.31

Esta mistura aflorou novos elementos presentes, atualmente, na cultura ribeirinha.

Apesar do constante movimento de vapores pelo São Francisco, foi somente no final do século XIX que este sistema começou a dar sinais de integração, em função da construção da estrada de ferro do São Francisco. Ligando Juazeiro a Salvador, na Bahia, foi inaugurada em 1896, passando a escoar grande parte da produção do vale do São Francisco. Esta ferrovia “permitiu maior integração entre o sistema econômico regional e as regiões adjacentes, intensificando também as relações da região com os pólos hegemônicos do mercado interno brasileiro” (NEVES, 2006, p. 41), mantendo o intercâmbio entre a capital baiana e os estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Além disso, intensificou ainda mais o comércio internacional com a exportação de borracha, couros, peles etc.

Aliada à crise econômica e comercial que enfrentou o Brasil, “em 1901, a receita bruta oriunda do transporte de cargas tinha sido menor do que a despesa total por causa da diminuição da quantidade de carga” (MACHADO, 2002, p. 371). Houve também a separação entre a Empresa Viação do Brasil e o governo da Bahia, enfraquecendo ainda mais as relações comerciais. Assim, em dezembro de 1902, foi decretada a liquidação forçada dessa empresa, que consistia na venda dos bens em hasta pública para o pagamento das dívidas adquiridas e a posterior extinção da sociedade. O governo da Bahia comprou os bens da empresa em leilão e criou a Empresa Viação do São Francisco, assumindo, posteriormente, a responsabilidade pelos serviços de navegação (MACHADO, 2002).

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Atravessado o período de crise, em 1910, outra importante via férrea foi inaugurada, a estrada de ferro Central do Brasil, ligando as cidades mineiras de Belo Horizonte e Pirapora, sendo esta última a primeira cidade do trecho navegável do médio São Francisco. Pirapora passou a ser o principal porto de partida e de chegada das embarcações, e, então, um importante “núcleo de articulação regional e inter-regional” de Minas Gerais (NEVES, 2006).

Foi, porém, em meados de 1925 que o serviço de navegação começou a se expandir ainda mais com a chegada de novas empresas, tanto particulares quanto pertencentes aos governos de Minas Gerais e da Bahia, interessadas em explorar comercialmente o trecho navegável do São Francisco. Em 1930, estava instituída a companhia estatal responsável pela navegação em Minas Gerais, denominada Navegação Mineira do Rio São Francisco (NMRSF). Tal companhia adquiriu, na década seguinte, um número considerável de embarcações, atraindo trabalhadores para seus vapores, escritórios e oficinas com sede na cidade de Pirapora, em Minas Gerais (NEVES, 2006).

Segundo Lacerda (1964, p. 118), em 1937, o tráfego no rio São Francisco pertencia a “quatro companhias de vapores, duas estaduais (Bahia e Minas), com subvenção federal, e duas particulares: ao todo, 25 navios, algumas centenas de barcaças e balsas, e inúmeras canoas/“paquetes” dos barqueiros”. Já em meados de 1940, a estimativa era de 30 vapores no rio São Francisco, porém, nem todos faziam viagens contínuas, ficando parados no período da seca, época em que as águas diminuíam e a navegação tornava-se extremamente arriscada, conforme aponta Neves (2006).

Temos que ressaltar que a navegação sempre esteve à mercê dos interesses políticos, passando por períodos de altos investimentos em obras de desobstrução de canais e construções de embarcações e períodos de total abandono, com a descontinuidade do gerenciamento administrativo. Segundo Neves (2006, p. 53), “através das leis e decretos que começaram a ser promulgados em 1940, a União centralizou as ações visando o ‘desenvolvimento regional’, inclusive a ‘modernização’ e ‘melhoria’ dos serviços de navegação”. A partir de tal premissa, foram criadas várias empresas estatais visando ao maior desenvolvimento, a exemplo da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF), em 1948, a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), em 1959, e a Companhia de Navegação do São Francisco (CNSF), em 1963 (posteriormente denominada de FRANAVE).

Além do crescente aumento da frota de vapores, “‘as barcaças’ (barcas de figura) impulsionadas pela força física dos remeiros continuavam de fato prestando serviços à população ribeirinha” (NEVES, 2006, p. 49), cumprindo importante papel tanto no comércio quanto no transporte de pessoas, sendo que o seu desaparecimento ocorreu somente nos anos 1950.

Imagem

Figura 1: Algumas das principais cidades da bacia do rio São Francisco.
Figura 2:  Lagoa de aves, à margem do rio São Francisco.

Referências

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