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A Beleza salvará o Mundo

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www.lusosofia.net

“A Beleza salvará o mundo”

J. Alves Pires, S.J.

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Covilhã, 2009

FICHATÉCNICA

Título:“A Beleza salvará o mundo” Autor: J. Alves Pires, S.J.

Colecção: Artigos LUSOSOFIA

Design da Capa: António Rodrigues Tomé Composição & Paginação: Filomena S. Matos Universidade da Beira Interior

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“A Beleza salvará o mundo”

J. Alves Pires, S.J.

Índice

Da evolução do conceito de beleza 5

Sobre a urgente necessidade dainútilbeleza 10

Um grande criador e proclamador da beleza salvadora 11

Um excelente leitor do artista Soljenitsine 17

Da arte como artifício ao serviço da beleza 18

A beleza como “esplendor da verdade” 20

Breve leitura da “Carta aos artistas” 26

À maneira de conclusão 32

Bibliografia 34

Em conversa de corredores, ainda não há longos dias, veio a conto rememorar acontecimentos, esses sim de tempos longínquos e que dá sempre gosto tentar reviver. Éramos estudantes de Filosofia Escolástica, de rigores e exigências pouco dados a contemporizar com os direitos da imaginação e da intuição – que os têm, e tão humanos ou mais do que os da humana razão.

Mas claro está, moços buliçosos, aprendizes ainda principian-tes da maiêutica socrática, nada nos tolhia de explorar novos mun-dos e momun-dos de pensamento. E fazíamo-lo com denodo e “cristãos atrevimentos”, como diria o Poeta.

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manuscrito de cerca de uma dúzia de páginas A4, acabadinho de redigir. Que o lesse atentamente, e opinasse.

Era todo um poema, escrito de um fôlego, sem descansos, de estrofação livre e amplos ritmos, muito à medida dos intuitos e dos alentos metafísicos inspirativos do poeta. Aqui e ali parecia-me ouvir o resfolegar do nietzscheano Zaratustra. Mas, tudo muito ao divino e cristão, já se deixa ver.

Pois foi lá por esses idos que no acaso da discreteação especu-lativa entre dois desses briosos e fogosos aprendizes de filósofos em determinado passo diz um deles:

“Toda a intuição é verdadeira.”

De imediato lhe responde o outro, num repente deflagrado e rimado:

“Pois tenho cá a intuição de que estás a dizer uma grande as-neira.”

Não recordo que vias tomou o prosseguir do diálogo nem qual a sequência das argumentações. Pouco importa.

Valeria a pena, isso com certeza, reflectir um nadinha sobre a questão em si mesma.

Porque a verdade é esta: intuitivamente percebemos que por ali anda assomada uma qualquer realidade humana, difícil de cingir mas existente. Ora perguntemo-nos: e se se desse o caso de am-bos terem razão? Sem o pretenderem, é claro, ao menos de forma reflexa.

Bem sei que ao admitirmos tal coisa estamos a enveredar pelos domínios do paradoxo. Mas, e se os campos do paradoxo forem os mais férteis em verdades permanentes? Os mais abertos à perscru-tação e descoberta das zonas fecundas e fecundantes do subconsci-ente individual e colectivo, donde brotam em toda as sua grandeza humana os veros conteúdos do símbolo e da metáfora?

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e seus comparsas da psicocrítica, e bem assim dos demais estudi-osos do fenómeno artístico-literário. São muito bem apetrechados no respeitante às técnicas de análise, e pelo geral sabem lastrar e enquadrar a utilização das técnicas a partir de uma noção bastante complexiva da humana realidade.

E entretanto fiquemo-nos com uma certeza, esta sim de há mui-to averiguada: é que entre o conhecimenmui-to meramente racional ou por conceitos claros e distintos, e o conhecimento poético-intuitivo medeia uma distância tão inumerável como um abismo cósmico.

E provavelmente era o que aqueles dois jovens aprendizes de Aristóteles e de Platão estavam a querer sugerir nesse diálogo de circunstância, e numa linguagem assim desvigiada, a arrumar, sem outros matizes, de um lado o Quixote e do outro o Sancho Pança.

Da evolução do conceito de beleza

Da evolução do conceito de beleza

Mas, noto agora que esta entrada se alongou bastante além do conveniente, pois não queria ser mais do que brevíssima introdução a uns comentos que aqui me proponho, acerca da bem conhecida expressão dostoievskiana acima transcrita a modos de título.

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Aos porventura deslembrados recordo que esta “intuição” apa-rece no romance O Idiota e é proferida pelo príncipe Mychkine, personagem central, mais precisamente, o “idiota” adentro da nar-rativa romanesca.

Ainda que apenas em seu contexto mínimo, interessa relermos o dito do príncipe, inserido no texto do romance. Transcrevo da tradução de Maria Franco, certamente a mais bem conseguida em português.

Estamos no cap. V da 3a

Parte :

Hippolytos, que adormecera durante a peroração de Lebedev, acordou de súbito, como se alguém o hou-vesse aguilhoado. Estremeceu, soergueu-se e, muito pálido, lançou olhares desvairados à direita e à es-querda. Quando se recordou, o rosto exprimiu uma espécie de terror.

– Que fazem? Vão-se embora? Acabou-se? O Sol já se levantou? – inquiriu com ansiedade, agarrando a mão do príncipe. – Que horas são? Por favor, diga-me as horas. Dormi! Foi por muito tempo? – acrescentou desesperado, como se perdesse qualquer coisa de que dependia a sua sorte.

– Dormiu ao todo sete ou oito minutos – respondeu Euguine Pavlovich.

Terentiev deitou-lhe um olhar ávido e pareceu não compreender.

– Ah, só isso... Então, eu...

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– Ah, contou os minutos enquanto eu dormia, Eu-guine Pavlovich – replicou irónico o doente. – Não despegou de mim a vista durante toda a noite, bem vi! Olha, Rogojine... – Fez-lhe um sinal e disse ao ouvido do príncipe : – Acabo de sonhar com ele. Ah – tornou a interromper-se –, onde está o orador, o Lebedev? Já teria acabado? De que é que falou? É verdade, prín-cipe, haver dito um dia que o mundo será salvo pela beleza? Meus senhores, o príncipe pretende que será a beleza a salvadora do mundo! Eu para mim tenho que a ele ocorrem pensamentos joviais por estar apaixo-nado. Meus senhores, está apaixonado! Percebi isso logo que entrou. Não core, príncipe. Senão, lastimá-lo-ia. Qual é essa beleza que há-de salvar o mundo? Foi Kolia quem me disse... É cristão praticante? Kolia alega que o senhor se intitula cristão...

Mychkine observou-o atentamente, mas esqueceu-se de lhe responder.1

Não pretendendo, ao menos por agora, fazer qualquer comentá-rio ao texto, permito-me contudo sublinhar o facto de o dito/intui-ção do príncipe Mychkine lhe surgir em clima psíquico de paixão. Este dado, se o tivermos presente, projectará luz mais radiosa so-bre algumas situações de claroescuro que ao diante com certeza nos vão aparecer.

Entretanto, com Hippolytos, bem andaremos se deixarmos e-coar dentro de nós a magna questão: “Qual é essa beleza que há-de salvar o mundo?”

É absolutamente indispensável, na verdade, e antes de prosse-guir, cuidarmos de assentar em algum conceito de beleza. Não estou a dizer que nos vamos pôr aqui a assistir à evolução do con-ceito de beleza, dos diversos sentidos e conteúdos que o concon-ceito 1 Fiodor Dostoievski,O idiota. Trad. Maria Franco. Estúdios Cor, Lisboa,

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foi incorporando e desincorporando a partir de Homero, de Platão e Aristóteles até aos nossos dias. Longo e curioso e aliciante per-curso, não há dúvida; mas está feito e bem feito, por estudiosos de critério afinado e tão bem apetrechados como um David Estrada Herrero de Estética (Editorial Herder, Barcelona, 1988), ou um Raymond Bayer deHistoire de l’Esthetique(Armand Colin, Paris, 1961).

Encontrar uma definição essencial de beleza que possa conten-tar o comum dos humanos é conten-tarefa quase tão íngreme como achar um melro branco. Para tal concluirmos bastaria folhear com um mínimo de atenção Tratados como os referidos, sobretudo o de Da-vid Estrada Herrero, certamente mais circunstanciado e discernido no apresentar das várias fases da evolução doutrinal dos conceitos. Assim sendo, o melhor que temos a fazer, julgo, é tentar uma rapidíssima aproximação a um conceito de beleza, não tanto pelo lado essencial como pelo descritivo, e que possa de algum modo ir ao encontro da realidade integral e das humanas sensibilidades mais exigentes. Tarefa de enfesto, repita-se, mas, “não faltem cris-tãos atrevimentos”.

Como nota muito pertinentemente David Herrero, perante a pródiga abundância de definições de beleza dos Tratados de esté-tica, a tentação maior é a de assumirmos uma atitude de cepticismo, a desembocar em conclusões relativistas e/ou subjectivistas. Mas, como bem adverte o mesmo estudioso, a reflexão serena e equâ-nime facilmente nos levará a um estado de espírito mais construtivo e realista.

Na realidade, e agora falamos por conta própria, o que é im-portante e decisivo, neste como em tantos outros casos, é nunca perdermos de vista a humana natura, em sua realidade integral.

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incorporam em maior ou menor grau certos elementos comuns : a harmonia de proporções, a ordem e simetria, a unidade na varie-dade...

Com o andar dos anos, a reflexão filosófica foi sentindo a ne-cessidade de explicar, sobre tal base, a origem e o sentido não ape-nas dos cosmos mas de toda a humana realidade. Neste ponto, construindo sobre a herança grega e latina, mas muito principal-mente embebidos de perfeita mundividência de inspiração cristã, irão desempenhar papel de relevo único S. Agostinho e o Pseudo-Dionísio.

No que respeita ao pensamento medieval e escolástico, aí te-mos S. Tomás, também neste campo, não apenas a fazer a síntese e a dar coerência aos diversos aspectos da doutrinação anterior, mas a abrir caminhos novos, ou pelo menos mais decididos à estética do belo. Totalmente na linha do pensar dos estetas gregos que se sentiram na obrigação de cunhar um conceito abrangente da bon-dade e da beleza –kalón kai agathón = kalokagathón –também S. Tomás, sem incluir de forma directa, como o fizera S. Boaventura, o “pulchrum” nos transcendentais (i. é, o ser, para S. Boaventura. éunum, verum, bonum et pulchrum), o faz de maneira indirecta ao considerar que na realidade concreta,in re, obonume opulchrum

se identificam.

Fiquemo-nos pois com esta certeza, sem mais esmiuçar por agora: no ser em concreto, ou se quisermos, e melhor para o nosso tema, na obra de arte concretamente realizada, a bondade e a beleza identificam-se. Recorrendo à linguagem dos filósofos escolásticos:

bonum et pulchrum convertuntur. E o que se diz do bonum e do

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Sobre a urgente necessidade da

inútil

beleza

Os poetas, em geral, preferem fazer identificação entre beleza e verdade, beleza e alegria, beleza e mistério: “A thing of beauty is a joy for ever – um pedacinho de beleza é uma alegria para sempe” (Keats); ou ainda o mesmo poeta, na bem conhecida “Ode a uma urna grega”: “Beauty is truth, truth is beauty – that is all / Ye know on earth, and all ye need to know – A beleza é verdade, a verdade beleza – isso é tudo o que / Sabemos sobre a terra, e tudo o que precisamos saber.”

E ainda esta, inglesa igualmente oitocentista, Emily Dickin-son, no poema “Beleza e verdade”, muito bem trasladado para o português pelo grande Manuel Bandeira: “Morri pela beleza, mas apenas estava / Acomodada em meu túmulo, / Alguém que morrera pela verdade / Era depositado no carneiro contíguo. / Perguntou-me baixinho o que Perguntou-me matara: / – A beleza, respondi. / – A mim, a verdade, – é a mesma coisa, / Somos irmãos.”

A exemplificação sobre o pensar e sentir dos poetas sobre a be-leza muito longe nos levaria, e por caminhos tentadoramente belos, sem dúvida; mas exemplificação é isso mesmo, e urge terminar. Para tal, nada como recorrer a um poeta nosso, e bem nosso: Mi-guel Torga. No voluminhoOdes(1946), após ter dedicado sendas “odes” “À poesia”, “À terra”, “Ao mar”, “Ao vento”, “À música”..., dedica também uma “ode” “À beleza”. Vamos lê-la na íntegra, sa-boreadamente, que o merece:

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/ Ou em arte, / Ou em simples verdade. / És o cravo vermelho, / Ou a moça no espelho, / Que depois de te ver se persuade. // És um verso perfeito / Que traz con-sigo a chama do que diz. / És o jeito / Que tem. Antes de mestre, o aprendiz. // És a beleza, enfim! És o teu nome! / Um milagre, uma luz, uma harmonia, / Uma linha sem traço... / Mas sem corpo, sem pátria e sem família, / Tudo repousa em paz no teu regaço!”2

Embora um tanto por longe talvez, ou a passo demasiado lento, não custa no entanto a ver que nos vamos acercando, um pouco mais esclarecidos, ao vero alcance da intuição lançada pelo per-sonagem dostoievskiano – essa intuição que tão funda impressão havia de causar neste outro gigante da literatura russa que é Ale-xandre Soljenitsine, e que tão sabiamente João Paulo II iria apro-veitar no admirável Documento estético-espiritual que é a “Carta aos artistas”.

Convenço-me até, que, neste intento de colher a integral ver-dade e ampla ressonância desse dito de Mychkine, o caminho mais breve e mais esclarecedor será o de nos cingirmos de perto às su-gestões luminosas que nos oferecem aqueles dois leitores tão qua-lificados, tão lúcidos e sensíveis.

Um grande criador e proclamador da beleza

salvadora

Comecemos por ouvir o Nobel de Literatura de 1970, A. Soljenit-sine, quando nos fala da sua própria convicção de que “a beleza salvará o mundo”.

Permita-se-me breve advertência prévia, algo necessária, mes-mo para tornar mais sensível e atento o nosso ouvido para o que ele tem a dizer-nos sobre o tema em análise.

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Em primeiro lugar: o Sojenitsine que aqui nos interessa, mais do que o afamadíssimo e mais ou menos politizado Autor de O arquipélago do GULAG, é o grande Escritor de O pavilhão dos cancerosos,deO primeiro círculo, deUm dia na vida de Ivan De-nisovitch... Por outras palavras, muito mais do que o polemista que também foi, e de mui nobre estatura, aqui importa-nos é conviver um nadinha com o grande espiritual da Literatura, não apenas russa mas universal.

Com fazer semelhante animadvertência, não gostaria de ser in-terpretado como alguém que minimiza a restante actividade inte-lectual e interventiva do Escritor nos vários quadrantes: no da polí-tica, da sociologia e mesmo nas tomadas de posição frente à hierar-quia religiosa ortodoxa russa. Não custa reconhecer que subjacente a todos esses escritos está sempre a voz vibrante e autorizadíssima de alguém que, sobrevivente algo miraculoso não apenas do GU-LAG mas de um cancro, decidiu empenhar a própria vida na luta pelos direitos humanos. A todo o transe e assumindo todas as con-sequências Respeitabilíssimo como os que mais, por conseguinte. Sucede é que para o caso vertente, como agora se diz, vale e basta-nos o Escritor como grande espiritual da Literatura. Muito sim-plesmente, e para tudo dizermos em duas palavras, porque a ajuda que aqui nos faz falta é a queper priusnos pode supeditar o artista, como privilegiado vivenciador e criador da beleza.

No entanto, – e talvez esteja de sobra dizê-lo, mas por causa dos mais desatentos... – o que aqui vamos chamar ao nosso convívio não é o Soljenitsine criador de beleza, enquanto tal; não é o A. de

O primeiro círculoou deO pavilhão dos cancerosos, mas essa voz particularmente sonora e autorizada que em diversos momentos se levantou a proclamar a transcendente importância do livre cultivo da arte e da beleza, não apenas em ordem a tornar um pouco mais habitável o nosso mundo, mas para impedir que se desmorone e apodreça. “A beleza salvará o mundo”.

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literatura, é o espelho e o grande veículo da vivência humana. Tem o poder prodigioso de transmitir de uma língua para outra, de um país para outro, toda a experiência vital de um povo. Por outras palavras, é capaz de condensar e transmitir toda a história humana vivenciada.

“A literatura é a memória vivente de uma nação. Conserva e reaviva a sua história esquecida sob uma forma inviolável e refrac-tária a qualquer entorse infligida à autenticidade dos factos. Por isso a literatura digna deste nome preserva a língua e a alma de um povo”.3

E logo na pág. seguinte, na sequência e a complementar o pen-samento anterior: a riqueza da humanidade constitui-se pela diver-sidade dos povos com suas personalidades colectivas. Porque em cada, por pequeno que seja, há um reflexo particular da intenção criadora de Deus.

Assim sendo, qualquer tentativa de abafar a expressão e a ex-pansão da grande literatura de um povo, pela intervenção do poder político, não é apenas violar a “liberdade de imprensa”, mas é con-denar à asfixia o coração desse povo, a sua memória viva. ( p. 106) Não vem tão directo ao nosso assunto, mas não se levará a mal refira este judicioso considerando que vem um pouco adiante (p. 110): Soljenitsine vê na ONU, não propriamente uma Organiza-ção das Nações Unidas, mas sim de Governos Unidos, e por isso mesmo imoral. Porquê? Porque isso tem como consequência goza-rem aí de direitos iguais os governos que provêm de eleições livres e os que foram impostos pela força ou que tomaram o poder pela violência das armas. Deste modo a ONU, ao mesmo tempo que defende com denodo a liberdade de certas nações está a desprezar

3André Martin,Soljenitsyne – Le croyant. Lettres, Discours, Témoignages,

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sistematicamente a de outras. E o discursante bem sabia do que falava.

Seja como for, conforte-nos o sentimento íntimo de que existe uma literatura universal, coração imenso a bater ao ritmo das ale-grias e sobretudo das angústias do nosso mundo de sombras e tra-gédia. Uma literatura que é fruto sazonado de sensibilidades bem moduladas e por isso dotada de finas antenas, capazes de captar, penetrar e fazer sua a unidade crescente do género humano.

Porque em última análise, e continuo a seguir de perto o pen-samento do grande espiritual da literatura, esta é na sua essência a vocação do Escritor : ao serviço da língua materna que é força uni-ficadora e sinal de unidade para o povo e para a terra que ele habita, tem o poder, mormente nas horas privilegiadas, de dar expressão aos anseios da alma nacional, e mesmo universal. (pp. 112-114)

Mas parece-lhe no momento estar a ouvir a objecção: “assim sendo, que pode a literatura, face à pressão impiedosa, implacável, da violência?”

E a resposta surge com a interior vibração e a credibilidade que merece alguém que sofreu na carne, na alma, essa mesma violência implacável e descomiserada :

“Não esqueçamos que a violência nunca está só, que não pode viver sozinha. Está unida à mentira por laços indissolúveis. Entre uma e outra existe uma aliança orgânica, um profundo parentesco de sangue. A violência não tem outro recurso que não seja a men-tira, e a mentira só pode sobreviver ao abrigo da violência”. Por isso “o dever elementar do homem humilde, mas não de todo des-provido de coragem, é recusar a cumplicidade, não colaborar com a mentira. Que ela tome conta do mundo, que o domine, mas sem a minha colaboração.”

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palavra em muitas zonas da vida humana,mas nunca no duelo com a arte.

Quando a mentira for desmascarada, a violência desvendar-se-á em toda a sua repugnante nudez e a sua malévola sedução desapa-recerá.”

E o apelo final chega-nos com a sonoridade profunda de um clamor de esperança e, mais do que isso, de vésperas de ressurrei-ção:

“Amigos! Esta a razão por que julgo podermos prestar ajuda eficaz a este nosso mundo angustiado e entregue às chamas. Não nos desculpemos com julgarmo-nos de mãos desarmadas! Não nos refugiemos na segurança beata de uma vida sem preocupações. En-frentemos a adversidade!

A língua russa gosta muito de certos provérbios que, referentes à verdade, exprimem por vezes de forma percuciente o duro destino do nosso povo.

“Uma palavra de verdade tem maior peso do que o universo inteiro.”

Este princípio, a abrir brechas na lei de conservação da massa-energia, constitui o fundamento de tudo o que faço e inspira-me o apelo que daqui dirijo aos escritores do mundo inteiro.” (pp. 115-116)

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pre-cisou de longos dias de experiência e observação, no convívio com essa multidão de humilhados e ofendidos, para que uma tal certeza se lhe impusesse como conclusão insofismável.

Mais ainda: doravante algumas outras obscuridades se irão dis-sipando, ou pelo menos vão ganhando maior claridade.

Entra a compreender, por ex., que afinal o mundo não é cria-ção do homem, mas simplesmente é-lhe oferecido como que ina-cabado, informe, à maneira de um material, para ser moldado, sem dúvida, mas sobretudo como uma realidade que leva em si mesma fundamente inscrito um sentido secreto, misterioso talvez, mas que urge decifrar. E é então que este intelectual sensível e perscrutador entra a compreender – e o que é muito mais, entra a saber (“sa-pere”) – que afinal o trabalho humano, por mais humilde e quotidi-ano que seja, tem sempre algo de criação artística, a exigir contínua transcensão e a abrir sobre a consciência espiritual.

Porque afinal, vistas de perto as coisas, o universo mundo e o trabalho humano que o vai moldando têm um sentido, e o agente imediato do desvelamento desse sentido, a pessoa humana, age sob impulso interior tal que, no mais profundo de si mesmo, só pode ir desembocar na beleza e no mistério.

Na realidade, este grande espiritual da literatura – como já um século antes acontecera ao seu genial compatriota Dostoievski, por igual quando concentracionário na Sibéria – em meio aos trági-cos acontecimentos que houve de viver durante a sua travessia, foi compreendendo, e “sabendo” existencialmente, que em última aná-lise, todo o ser humano é artista, e por isso mesmo criador de be-leza, isto é, participa analogicamente do poder do Supremo Artista Criador.

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Um excelente leitor do artista Soljenitsine

Mas no Discurso do Nobel que vimos lendo encontramos mais al-guns tópicos de reflexão muito ao nosso caso e que nos podem ser de ajuda não pequena ao pretendermos decifrar um nadinha do mistério daquela frase, sem dúvida enigmática do sibilino perso-nagem de Dostoievski . “A beleza salvará o mundo”. Curarei de utilizar um estilo com seu quê de telegráfico ou cifrado, para bons entendedores, com o fito tentar dizer no mínimo de espaço/tempo o máximo de conteúdo e sugestividade.

Felizmente, além das obras de Soljenitsine – todas elas, mor-mente as de ficção, impregnadas de belos apontamentos orientáveis ao nosso intuito – tenho aqui à mão, lido e relido, um precioso es-tudo intitulado L’esprit de Soljenitsyne( Éd. Stock, Paris, 1974), de Olivier Clément. Trata-se de um cristão “ortodoxo”, ocidental, Autor de vários e valiosos estudos sobre a história da literatura es-piritual do Oriente cristão, e que no presente volume, pondo como que entre parênteses a faceta política/polémica, chamemos-lhe as-sim, do A. de O arquipélago do GULAG, nos oferece, quase em tom meditativo, uma excelente literário-espiritual do grande escri-tor de obras comoO primeiro círculo, O pavilhão dos cancerosos, Um dia na vida de Ivan Denissovitch,e diversas outras.

Dispensado que me sinto de apresentar uma interpretação por inteiro original do tema em análise, de bom grado me valerei, ad-mirador e grato, das propostas e sugestões que o seu estudo esplen-didamente por vezes influi, sempre que válidas ao intuito que me move.

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recolhe sugestões e as entretece ao sabor dos seus próprios intuitos. Cuidando de evitar divagações dispensáveis, naturalmente.

Da arte como artifício ao serviço da beleza

Ao dizermos que a arte implica artifício e está ao serviço da beleza estamos simplesmente a dizer algo de parecido com um truísmo. Outra coisa é que todo o artista, em sua actividade artística, tenha verdadeira consciência dessa realidade e lhe assuma os parâmetros de exigência.

O artista Soljenitsine possui como poucos uma consciência bem reflexa e assumida de uma tal realidade: conforme insinua em di-versos teclados, o artista que se preza tende sempre a pôr a sua arte ao serviço do mistério da verdadeira beleza, isto é, ao ser-viço dessa beleza que é capaz de colher o homem todo inteiro, sacudindo-o desde as profundezas e empolgando-o a caminho da contínua transcensão de si mesmo. A arte arranca o homem de um certo clima de sonambulismo e letargia espiritual, que o quotidiano propende a influir-lhe, e lança-o nos caminhos do que Dionísio o Areopagita chama de “tensão para uma vida mais alta”.

Por outro lado, a beleza assim compreendida é sempre reflexo dessa luz profunda e misteriosa que, pela visão fugidia, abre sobre realidades inacessíveis à secura da razão.

Na realidade, considera o Nobel de 70, a própria arte se encar-rega de nos demonstrar que, embora nem tudo esteja ao alcance da palavra humana, a linguagem da arte tem o condão de em certo modo ultrapassar o meramente humano e, pelo esplendor e pelo horror, franquear portas sobre o mistério da existência, interpre-tando o silêncio dos corações e a infinda sugestividade dos rostos.

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Discurso do Nobel, que “toda a obra-prima autêntica traz consigo uma força de convicção irresistível, capaz de subjugar os corações mais rebeldes”. Mais: a arte, por sua natureza tende a ser vitória sobre as forças da morte, mesmo, e sobretudo, quando as explora; porque a beleza que cria prova que a descida aos infernos não pode ser a última etapa. Assim, a força de ressurreição que a arte traz consigo é tal que “é capaz de abrasar mesmo a alma que morre de frio e se debate nas trevas, para a lançar nas vertiginosas vias da demanda espiritual”. (ibid.)

Por mor da clareza, forçoso é dizer que estes raciocínios têm subjacente a concepção soljenitsineana do chamado romance “sin-fónico”, a que neste passo apenas podemos aludir, e para sublinhar a densidade humana que o A. deO pavilhão dos cancerosos intro-duz no conceito de arte “verdadeira”.

Em duas palavras, e sigo de perto a leitura de O. Clément: se toda a arte é por definição “incarnativa” da realidade, a grande arte, ou, na linguagem de Soljenitsine, a arte “verdadeira”, é-o na exacta medida em que for incarnativa da realidade integral. Explicitando: a arte romanesca “verdadeira” é a que procura e consegue dar-nos, por um lado a densidade mais incarnada, o peso de história e de universo das existências pessoais, e por outro lado, ou em simultâ-neo, aquilo que podemos chamar o seu peso de eternidade. É in-carnando a densidade da história, mediante os personagens e suas inter-relações, que o romancista logra alcançar as raízes da meta-história.

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descrevendo a totalidade humana e cósmica representada ou quali-ficada por essa pessoa. Por outro lado, conclui o grande escritor, o artista “verdadeiro” intuiu e deixou pressentir “o centro para onde convergem todas as linhas”.

A beleza como “esplendor da verdade”

Com certeza que a estas horas há muito tirámos por conclusão, sem esforço de maior, que a “verdade” da obra artística, de que nos vem falando Soljenitsine, se não identifica, de modo nenhum, com uma qualquer verdade ideológica. Não cabe dentro de nenhuma ideologia ou sistema, pois bole com a realidade última dos seres e das coisas, com o seu mistério.

A essa verdade gosta de chamar-lhe “verdade-justiça”, infun-dindo no conceito uma breve tonalidade bíblica. E assim proce-dendo, conforme anotam os estudiosos, Soljenitsine limita-se a re-cuperar, para lá das deturpações do regime, o poderoso vocábulo “pravda” (“justiça-verdade”), em toda a sua força e suculência ori-ginária.

Todo o seu combate, nas diversas frentes, é por esse teor de verdade, e procede bem à maneira daquele guerrilheiro lúcido que encontramos em O pavilhão dos cancerosos, que se declara inca-paz de lutar sem saber os motivos últimos por que luta.

Escritor cristão que é, sabe que esse combate vale a pena quan-do em favor da “verdade” assim entendida; porque então estará ao serviço, não de uma qualquer abstracção ideológica, mas sim da pessoa humana concreta, da pessoa integralmente olhada – de todas as realidades criadas a que verdadeiramente reflecte em si o absoluto.

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que souber pôr a sua arte ao serviço da “verdade” da pessoa hu-mana. E como, segundo a bela expressão platónica, “a beleza é o esplendor da verdade”, sempre que assim proceder estará a criar beleza, ou seja, a desvelar diante dos nossos olhos e da nossa sen-sibilidade maravilhados a verdade, quanto possível em todo o seu esplendor.

Daí, a vital e transcendente importância da missão do artista. E nós captamos também um pouco melhor o alcance e a amplís-sima ressonância do apelo feito aos artistas, e concretamente aos escritores, no final do Discurso do Nobel: porque “uma palavra de verdade tem maior peso do que o universo inteiro”, mormente quando proferida em timbre artístico. Na realidade a linguagem própria da arte é a linguagem simbólica, por sua própria natureza voltada para o mistério da beleza e sua celebração.

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pressen-timos cúmplices. Só a história, assim liturgicamente restabelecida, nos pode abrir à comunhão dos viventes.”

A citação foi algo extensa, mas creio que estou desculpado, porque na verdade alude a aspectos vários e abre para fecundas su-gestões respeitantes ao nosso tema, e que naturalmente podemos e devemos dispensar-nos de aqui desenvolver ou sequer referir, fa-lando como falamos para entendedores excelentes.

Não será de todo deslocado nem ocioso, ainda na linha inter-pretativa de O. Clément, dizermos mais uma palavra, em comple-mento do que fomos escrevendo, sobre a génese profunda e a seiva vital de que se alimenta a escrita artística soljenitsineana, e que de facto acaba por nela imprimir tamanha amplitude de sonoridade e vibração humana.

Vale recordar que o engenheiro Alexander Soljenitsine foi alto graduado do exército soviético, e o que lhe “mereceu” os oito anos (a que se somaram mais três) de trabalhos forçados na Sibéria – sob temperaturas que atingem os 50 graus negativos, e alimentação de mera sobrevivência – foi o “crime” de um dia em carta a um amigo ter escrito que Estaline em questões de estratégia militar era nulo. Isto acontece na década de quarenta.

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trágica documentação histórica hoje ao nosso alcance, em toda a sua fidedignidade original.

Não precisamos de grandes dotes de intuição para entender-mos que a partir da revelação desse terrível corpus documental muita coisa iria mudar, no respeitante à concepção mirífica oci-dental do que era o paraíso soviético. O muro de silêncios cúmpli-ces e protectores não só entrou a abrir fenda mas começou a ruir com estrondo impossível de abafar. Mas enfim, estes fragmentos de história, não vindo directamenteao nosso tema, deixemo-los a desbanda.

O que certamente não seria de bom conselho era o pôr de banda aqueles outros dados informativos de feição biográfica acerca do Nobel de 70, ao decidirmo-nos a conviver com este homem, em qualquer das vertentes da sua actividade de escritor – actividade multifacetada, como de há muito nos foi dado perceber.

Para o momento presente da nossa análise, o que mais importa sublinhar nesse período tão “fértil” da vida do concentracionário, ou se quisermos em linguagem bíblica, da sua travessia do deserto, é o facto de se ter operado na existência deste homem uma espécie de iluminação a nível profundo da psique : uma quase convulsão interior que levou a profunda alteração na sua escala de valores e a olhar o mundo das coisas e dos humanos sob luz muito outra, rejuvenescida, no melhor sentido da palavra. Qualquer coisa de se-melhante ao que acontecera com Dostoievski, por igual degredado na Sibéria, embora em condições menos cruéis e degradantes.

Um e outro, mediante essa como que descida aos infernos, al-cançaram foi passar de cultuadores de uma tal ou qual utopia polí-tica para o culto misteriosamente fecundo de um certo visionarismo profético.

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quase unânime, de o maior romancista de todos os tempos – aquele que até hoje, sobretudo com essa pentalogia bem conhecida (Crime e castigo, O adolescente, Os demónios, O Idiota, Os irmãos Kara-mazov) elevou ao mais alto grau de realização o ideal artístico-romanesco; Soljenitsine, alguém que, sem abdicar em momento algum das exigências e prerrogativas da arte literária, soube utilizá-la com terrível eficácia no combate denodado peutilizá-la dignificação da pessoa humana e da sociedade. Ao ponto de hoje podermos re-ferenciar à sua própria obra literária esse dito seu, tão feliz como verdadeiro: a palavra de um grande escritor, dentro de uma nação, vale por muitos exércitos.

Resumindo e concluindo esta que apesar das aparências gosta-ria não fosse tomada por simples divagação ociosa: também es-tes dois profetas dos tempos modernos, Dostoievski e Soljenitsine, – muito à semelhança dos dos tempos antigos, desde Moisés e Elias, passando por João Baptista e o próprio Cristo – houveram de retirar-se ao deserto, fazer a sua travessia dolorosa e catártica, para depois, de olhar purificado, poderem aceder a essabeleza se-creta dos seres e das coisas, ou seja do “esplendor da verdade”.

Depois sim, acharam-se preparados e disponíveis para departi-rem, construtivamente, salvadoramente, com os companheiros de viagem que são todos os humanos, as grandezas humanas apreen-didas e as belezas vivenciadas.

Não duvidemos, a beleza salvará o mundo, e tudo está em que o número destes sentidores e departidores da beleza vá crescendo em ritmo cada vez mais acelerado, até ao dia em que a secreta e misteriosa beleza, sempre libertadora e salvífica, nos pervada em corpo e espírito.

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de Soljenitsine, cuja obra tinha tanto a dizer-nos ainda, em ordem a esclarecer-nos, nestes terrenos permeados de obscuridade – não apenas da obscuridade do enigma mas do mistério. E recordo que as palavras “mistério” e “misterioso” são das mais recorrentes na escrita artística soljenitsineana.

Para concluir com chave de oiro o nosso encontro com o admi-rável conquistador e pregoeiro da beleza, Soljenitsine, nada melhor do que transcrever aqui a oração por ele um dia escrita no reverso de uma estampa iconográfica enviada a um amigo:

“Como é fácil para mim viver convosco, Senhor meu Deus!

Como me é fácil crer em Vós!

Quando os meus pensamentos vacilam, assediados pela dúvida, e o meu espírito desfalece,

Quando os mais inteligentes não vêem nada para lá deste entardecer e não sabem o que os espera amanhã, É então que Vós, Senhor, me enviais a clara certe-za: Vós existis e Vós mesmo cuidareis de que nem todos os caminhos da Beleza se nos fechem!

Do alto da celebridade terrena contemplo maravi-lhado o caminho sem esperança que aqui me trouxe,

De tal modo que até eu pude transmitir ao longe, no meio dos homens, o reflexo da Vossa glória!

Enquanto o julgardes necessário, Vós mesmo me haveis de dar os meios,

E quando eu já nada puder fazer,

É porque então já confiastes a outros esta missão...”4

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Breve leitura da “Carta aos artistas”

Não há dúvida que tudo parece encaminhado para deixarmos cair aqui o ponto final sobre estas reflexões, pese embora a sua escassa valia. Mas dá-se o caso de não termos satisfeito uma parte do que prometemos logo de início: uma referência ao enquadramento em que João Paulo II, na “Carta aos artistas” datada da Páscoa de 1999, reassume o famoso dito do personagem dostoievskiano. E como o prometido é devido...

Ultrapassei já o espaço que de começo me propunha utilizar nestas minhas cogitações, e por isso sinto ainda mais premente agora a obrigação de condensar. E no entanto a “Carta aos artistas”, no que diz respeito ao nosso tema, é tão densa de verdade estética e de sugestões que mal se compadece com afloramentos apressados. Entre parêntesis, mas, no contexto, quase como obrigação, mui-to convém advertir que o “epismui-tológrafo” aqui invocado, mais do que o Papa João Paulo II, é o escritor Karol Wojtyla, autor de uma obra artístico-literária consistente e significativa a vários níveis, e que não terá sido até hoje bastantemente estudada pela razão óbvia de que os vectores da sua actividade cultural das duas últimas dé-cadas – marcante em definitiva neste nosso mundo, e aquela que, como é normal, concita as atenções – escapa aos enquadramentos e qualificações do mero plano do artístico-imaginário.

Nos parágrafos a seguir, que tentarei reduzir ao mínimo, quero apenas pôr algum sublinhado em dois ou três tópicos de maior al-cance na “Carta aos artistas” e julgo virem de facto acrescentar algo de substancial ao que vimos dizendo.

Já se percebeu de há muito que o conceito da beleza é um con-ceito analógico; que por conseguinte pressupõe o que os filósofos chamam oanalogatum princeps, ou, no caso, a Beleza com maiús-cula, e depois diversos graus de aproximação a esse conceito de conteúdo integral, globalizante.

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poder dizer que o conceito de beleza utilizado por este escritor é mais denso de conteúdo do que o utilizado por aqueloutro escritor? Qual é o referente?

A resposta é clara: é o ser humano. É evidente que no subsolo de toda a criação artística, de toda a produção de beleza, estará sempre uma tal ou qual noção de homem. Se essa noção é abran-gente, isto é, se envolve a humana realidade integral, por parte do artista, naturalmente a arte, e portanto a beleza, que produzir ten-derá a ser por igual incarnativa da humana realidade global.

Bem sei que este raciocínio, mormente quando olhado em suas consequências, tem seu quê de linear, e estaria a pedir matização circunspecta. Mas há a premência do tempo e do espaço, e valha-nos também de escusa o facto de, em relação aos valha-nossos intentos, essa matização cair um tanto a deslado.

Na “Carta”, João Paulo II dirige-se aos “artistas, construtores geniais de beleza”, “a quem me sinto ligado por experiências dos meus tempos passados e que marcaram indelevelmente a minha vida.”5 Depois, muito oportunamente, com a clareza e agudeza de

excelente filósofo, explica a diferença entre “criador” e “artífice”, para esclarecer que em sentido estrito “criador” só existe um: Deus, o único a poder tirar do nada – produzir ex nihilo sui et subiecti. O ser humano, o “artífice”, esse “utiliza algo já existente, a que dá forma e significado.”

Se é certo que nem todos são chamados a ser artistas, no sentido específico do termo, não é menos certo que “todo o homem recebeu a tarefa de ser artífice da própria vida : de certa forma, deve fazer dela uma obra de arte, uma obra-prima.”

Sublinha-se de seguida a estreita conexão entre as duas ver-tentes e/ou predisposições do ser humano: a moral e a artística. “Ambas se condicionam de forma recíproca e profunda.” O que equivale a dizer que “o artista, quando modela uma obra,

exprime-5“Carta do Papa João Paulo II aos Artistas”. Secretariado Geral do

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se de tal modo a si mesmo que o resultado constitui um reflexo singular do próprio ser, daquilo que ele é e de como o é.” Todo o artista, na medida em que o é, tende a transfundir-se na obra de arte que cria, a incarnar nela a sua mundividência e a sua personalidade. Logo a seguir a “Carta” põe em relevo a íntima relação entre arte e beleza: “O tema da beleza é qualificante, ao falar de arte”. E muito a preceito invoca-se o livro do Génesis, onde diz que Deus olhando tudo o que tinha criado viu que tudo era “ belo” – o vocá-bulo grego da versão dos Setenta, mais apropriado que o de “bom” da Vulgata, para a tradução do correspondente vocábulo do original hebraico. E depois a alusão, inevitável, ao convívio dos dois con-ceitos, “bom” e “belo”, que na filosofia grega, como atrás referido, desembocaria no conceito unificante e unificado: “kalokagathón”. Isso, porque, vistas bem de perto as coisas, pode dizer-se que “a beleza é a expressão visível do bem, do mesmo modo que o bem é a condição metafísica da beleza”.

Tudo isso expressou vigorosamente Platão quando no Filebo

escreveu que “a força do Bem se refugiou na natureza do Belo”. Pouco adiante, em sequência lógica e admiravelmente lúcida de raciocínio, a “Carta” põe em igual plano de urgência para a sociedade do nosso tempo a necessidade de artistas e a necessidade dos demais intervenientes na construção da sociedade onde valha a pena viver: pais, professores, cientistas, técnicos, testemunhas da fé, enfim, todos esses que garantem o crescimento sadio da pessoa e o progresso sólido da comunidade, “através daquela forma sublime de arte que é a ‘arte de educar”’.

Como de esperar, alude a “Carta” ao monumento de grandeza artístico-humana absolutamente único – a Bíblia ou o Livro por excelência – quer pela beleza que contém em si mesmo, quer, e talvez mais ainda, pela que ao longo de milénios foi inspirando a artistas de todos os quadrantes e crenças.

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realiza-ções artísticas inspiradas na Sagrada Escritura continuam a ser um reflexo do mistério insondável que abraça e habita o mundo.”

Mesmo sob o aperreio do tempo não me eximo a citar a for-mulação feliz de uma ideia, que nem por muito repetida deixa de parecer inédita para não poucos: “toda a intuição artística autên-tica ultrapassa o que os sentidos captam e, penetrando na realidade, esforça-se por interpretar o seu mistério escondido. Ela brota das profundidades da alma humana, lá onde a aspiração de dar um sen-tido à própria vida se une com a percepção fugaz da beleza e da unidade misteriosa das coisas. Uma experiência partilhada por to-dos os artistas é a da distância incomensurável que existe entre a obra das suas mãos, mesmo quando bem sucedida, e a perfeição fulgurante da beleza vislumbrada no ardor do momento criativo : tudo o que conseguem exprimir naquilo que pintam, modelam, criam, não passa de um pálido reflexo daquele esplendor que bri-lhou por instantes diante dos olhos do seu espírito.”

É extensa a citação, e peço escusas, mas seria impossível con-densar-lhe, sem traição, o conteúdo. De resto é fácil concluir, a uma leitura não de todo ligeira, que toda a “Carta” está redigida numa linguagem de admirável poder condensativo, como se pre-tendesse, mais do que informar, sugerir tópicos de meditação no dilatado horizonte das questões humanas em análise. Atitude que pelo mais subtende todos os grandes escritos do Papa.

A “Carta” elabora de seguida poderosa síntese, percorrendo a traço grosso mas essencial os momentos cimeiros do que podería-mos chamar a história da humana criação da beleza artística, tendo sempre, como seria de esperar, a referência inalienável que é a da plena interpretação da existência humana.

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escusar-me de aduzir, sublinhando, a introdução a esse recorrido histórico:

“Toda a forma autêntica de arte é, a seu modo, um caminho de acesso à realidade mais profunda do homem e do seu mundo. E, como tal, constitui um meio muito válido de aproximação ao horizonte da fé, onde a existência humana encontra a sua plena interpretação. Por isso é que a plenitude evangélica da verdade não podia deixar de suscitar, logo desde os primórdios, o interesse dos artistas, sensíveis por natureza a todas as manifestações da beleza íntima da realidade.”

A arte, sendo por sua natureza transfigurativa do real concreto, prolongadora do real no sentido da vida possível, tende por isso mesmo a ser apelo do insondável e do mistério, ou melhor dizendo, do Mistério, com maiúscula. É assim que na “Carta” se nos diz com toda a razão que “mesmo quando perscruta as profundezas mais obscuras da alma ou os aspectos mais desconcertantes do mal, o artista torna-se de qualquer modo voz da esperança universal de redenção.”

A invocação, na “Carta”, da Constituição pastoralGaudium et spes do Vaticano II tem enquadramento e ressonância muito pró-prios quando sabemos do papel que Karol Wojtyla desempenhou na elaboração do documento. É assim particularmente grada e so-nora a voz que aqui se faz ouvir ao citar o Vaticano II, pois arranca de convicções antigas e bem sazonadas: “os Padres Conciliares su-blinharam a “grande importância “ da literatura e das artes na vida do homem”. E cita o no

62 do Documento: “Elas procuram dar ex-pressão à natureza do homem, aos seus problemas e à experiência das suas tentativas para conhecer-se e aperfeiçoar-se a si mesmo e ao mundo; e tentam identificar a sua situação na história e no uni-verso, dar a conhecer as suas misérias e alegrias, necessidades e energias, e desvendar um futuro melhor”.

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mundo em que vivemos tem necessidade de beleza para não cair no desespero. A beleza, como a verdade, é a que traz alegria ao coração dos homens, é este fruto precioso que resiste ao passar do tempo, que une as gerações e as faz comungar no deslumbra-mento.”

Já para o final, feito o percurso das razões fundamentadoras, a “Carta” exorta os artistas “a descobrir a profundeza da dimensão espiritual e religiosa que sempre caracterizou a arte nas suas formas expressivas mais nobres.”

E passadas duas páginas aí estão os parágrafos conclusivos, como de despedida muito familiar e afectuosa, em tom prodigi-osamente entusiasta e vibrante, de molde a causar assombro, so-bretudo se temos presente que a mão que escreve estas palavras é a de alguém que após uma vida de realização e plenitude sem pa-ralelo neste nosso século, se encontra hoje tão debilitada, no corpo enfermo – embora com uma clarividência porventura só explicável pela força daquele Espírito que sopra onde quer.

Vários outros parágrafos da “Carta” estariam a pedir aqui re-ferência sublinhada, porque em perfeita sintonia e sem dúvida a irradiarem luz esclarecedora e forte sobre um tema que, já o fomos percebendo, se apresenta com tanto de nobre como de enigmático e misterioso – “a beleza salvará o mundo”. Não me sendo permi-tido no entanto, sem abuso, protelar por mais tempo a conclusão destas mal cerzidas reflexões, reduzo-me a transcrever, evitando comentar, ainda mais dois ou três incisos

“A beleza que transmitireis às gerações futuras seja tal que avive nelas a admiração deslumbrada. Diante da sacralidade da vida e do ser humano, diante das maravilhas do universo, essa ad-miração é a única atitude condigna.”

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cami-nho. Precisamente neste sentido foi dito, com profunda intuição, que “a beleza salvará o mundo”.

Porque, “A beleza é chave do mistério e apelo ao transcendente. É convite a saborear a vida e a sonhar o futuro. Por isso, a beleza das coisas criadas não pode saciar, e suscita aquela arcana saudade de Deus que um enamorado do belo, como S. Agostinho, soube interpretar com expressões incomparáveis: “Tarde Vos amei, ó Be-leza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei!”.(Confissões, 10, 27)

À maneira de conclusão

Têm cabimento, ao que julgo, duas rápidos anotações finais que de algum modo ajudem um nadinha a ver mais de perto a coesão de pensamento que apesar de tudo pervive nos raciocínios e nos vários testemunhos, nestas páginas aduzidos no intuito de iluminarmos um pouco o enigma da proposição dostoievskiana, através do seu príncipe “idiota”, e segundo a qual “a beleza salvará o mundo”.

Vou reduzir-me à indicação semitelegráfica de dois ou três tópi-cos ao leitor, capazes de lhe facilitarem a tarefa de melhor perceber a convergência e o alcance dos elementos aparentemente descosi-dos, incorporados no discurso que acabou de ler.

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Ber-diaeff de O espírito de Dostoievski, o George Steiner de Tolstoi ou Dostoievski,o L. Chestov deA filosofia da tragédia, o Jacques Rolland deDostoievski – a questão do outro.

– Seria talvez de bom aviso – recordo que, durante os anos de exilado na Sibéria, Dostoievski teve praticamente como única bi-blioteca uma Bíblia – e de não pequena valia pelo poder sugeridor, aproximarmos aquele personagem de O idiotaao Menino da pro-fecia de Isaías (cc. 9-11). Como estamos lembrados, esse Menino misterioso, messiânico, é o ser incontaminado, capaz de ver as ma-ravilhas do mundo todos os dias como se fosse a primeira vez e ensinar poesia aos adultos; esse Menino será o apaziguador univer-sal, e sob o seu mando não mais haverá guerras: o lobo e o cabrito pastarão juntos, o leão e a pantera hão-de viver em harmonia, e o Menino poderá meter a mão na toca da víbora que nada de mal lhe acontecerá.

Dir-se-ia que a intuição do príncipe “idiota” nasce da antevisão dessa universal harmonia futura.

– Apesar de bastantemente aludida atrás esta ideia, gostaria de a sublinhar – tanto mais que, a darmos ouvido à oportuna adver-tência de Nélson Rodrigues, uma ideia que não se repete morre inédita. Os três guias que mais assiduamente nos foram orientando na penosa viagem em demanda de alguma luz sobre o misterioso significado da intuição do personagem de O idiota– o próprio A. do romance, o Nobel da Literatura em 1970 e o A. da “Carta aos artistas” – todos eles, embora por vias diferenciadas, antes de apa-recerem como profetas da alegria e da beleza, precisaram de fazer a dolorosa travessia do deserto quaresmal. Só depois puderam avis-tar, desnubladamente, a terra prometida, e tiveram o irreprimível impulso de audácia para a anunciarem, como enviados urgentes em missão salvadora.

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su-bentendidos facilmente se entregam a quem tiver seguido com um mínimo de atenção e relacionado os principais elementos do dis-curso das páginas anteriores.

Metaforicamente falando, tudo se poderia fazer convergir para aquele versículo do 4o Evangelho:

Nisi granum frumenti cadens in terram, mortuum fuerit; ipsum solum manet; si autem mortuum fuerit, multum fructum affert. (Jo., XII, 24) Isto é, o grão de trigo, lançado à terra, só passando pela morte produzirá abundância de fruto. Sapientemente o compreendeu, com um saber de experi-ência feito, o nosso Dostoievski, ao tomar este preciso versículo do Evangelho como epígrafe daquele que muitos, com muito boas razões, têm como o maior dos seus romances: Os irmãos Karama-zov.

É que, em linguagem absolutamente católica, universal, o es-plendor e a beleza, isto é, a glória, da manhã de domingo da res-surreição só se são possíveis depois da tarde de sexta-feira santa.

Em Dostoievski, em Soljenitsine, em João Paulo II, o abismo do sofrimento faz-se história, sim, mas para, no final, ir desembo-car na alegria e na beleza.

Bibliografia

– Obras mais presentes na elaboração do texto, para lá das citadas.

Ch. Mauron, Des métaphores obsédantes au mythe personnel. José Corti, Paris, 1962.

Ch. Durand, Les structures anthropologiques de l’imaginaire. P.U.F., Paris, 1963

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João Mendes,Teoria da literatura. Ed. Verbo, Lisboa, 1980.

Estética literária. Ibid., 1982.

Serge Doubrovsky, Pourquoi la nouvelle critique. Mercure de France, 1970.

Carlos Bousoño, Teoría de la expresión poética. 7a

ed., 2 vols.. Gredos, Madrid, 1985.

Referências

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