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A tortuosa eda do método: Gilberto Freyre – Literatura ou ciência sobre o Brasil?

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Academic year: 2018

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-A TORTUOS-A VERED-A DO MÉTODO:

GILBERTO FREYRE - LITERATURA OU CIÊNCIA

SOBRE O BRASIL?

I

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E

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muito comum nos

en-saios acadêmicos dedi-cados à compreensão do pensamento de determi-nado autor uma preocupa-ção do ensaísta com a construção de classificações relativas ao modelo teórico seguido ou estilo de apre-ensão da realidade habitu-almente praticado pelo autor analisado. Uma pri-meira leitura das obras de Gilberto Freyre, entretanto, causa angústia para aquele analista desavisado que bus-ca adjetivar seu estilo e sua

forma de apreensão da realidade de forma unívoca. Esta é uma tarefa difícil de ser implementada, principalmente quando direcio-nada a um autor que resvala em várias linhas de pensamento de sua época, sem se entregar total-mente a nenhuma delas; "escorrega" em diversos modelos de pensamento, sem cair completamen-te em suas "armadilhas"; evade a ortodoxia da práxis científica, sem fugir de seu rigor; e utiliza inúmeros subterfúgios "performáticos" e "artísti-cos" originais para passar sua mensagem em for-ma de texto, sem ser vago e pouco objetivo. Portanto, sua obra foge das classificações, ao mesmo tempo em que não as perde de vista.

Sua obra mais famosa, por exemplo, Casa-Grande & Senzala, comentada e analisada larga-mente por diversos autores, é exemplo de um texto construído artesanalmente. Construção essa, exe-cutada com todo cuidado e habilidade possível para sua época. É um "mosaico", fruto de uma

monta-gem que cria uma unidade entre técnicas distintas de

"desigri'

para construção de imagens textuais, aproximan-do-se dos livros de literatura. Ao mesmo tempo, preocupa-se em registrar de forma ri-gorosa e metódica a história social do Brasil. Ou seja, nes-se livro, cuja primeira

edi-ção data de 1933, estão presentes dentre outras coi-sas, uma singularidade e uma clareza própria de escritos li-terários, sem deixar de ser uma obra científica.

A qualidade de escri-tor estilisticamente típico do romance literário atri-buído ao autor é inclusive ressaltada por ele mesmo em um de seus textos (FREYRE, 1968). O título do capítulo que ressalta suas façanhas de escritor já sugere esta nuance de sua forma particular de pro-duzir textos: "Como e porque sou escritor, sem deixar de ser um tanto sociólogo". A dimensão "literária" de seu trabalho caracteriza, segundo ele próprio ressalta, um "escritor" curioso que usa como instrumental analítico a ciência sociológica. O au-tor, neste texto, não quer entrar no mérito se ele é ou não um bom escritor, e sim, compreender sua própria forma de construção textual. Para isso, primeiramente, aborda as características do escritor.

NILSON ALMINO DE FREITAS

R E S U M O

O p re s e n te e n s a io p re te n d e a c o m p a n h a r a s in u o s id a d e m e to d o ló g ic a d e G ilb e rto F re y re n a c o m p re e n s ã o d a re a lid a d e b ra s ile ira . D is c u te s e a q u i ta n to o e s tilo d a e s -c rita q u a n to a fo rm a p e -c u lia r d e fa z e r -c iê n -c ia d o a u to r p e rn a m b u c a n o , s e m p re c o n te x tu a liz a n d o s e u p e n s a -m e n to n o te -m p o e -m q u e e s c re v e . P re te n d e -s e ta -m b é -m re fle tir a s o c io lo g ia d o m o v im e n to h is tó ric o e la b o ra d a p o r F re y re q u e n ã o e s tá p a u ta d a e m g e n e ra liz a ç õ e s a rb itrá -ria s e c a ra c te riz a ç ã o im p o rta d a s , m a s s im e m d e ta lh a m e n to e e x p lic ita ç ã o d a p e c u lia rid a d e d a "c iv iliz a ç ã o b ra s ile ira ", s e m p e rd e r d e v is ta a s itu a ç ã o d o B ra -s il n o c o n ju n to d a -s re la ç õ e -s e n tre a -s d ife re n te -s n a ç õ e -s .

• P ro fe s s o r d e A n tro p o lo g ia d a U n iv e rs id a d e E s ta d u a l V a le d o A c a ra ú e D o u to ra n d o e m S o c io lo g ia p e la U n i-v e rs id a d e F e d e ra l d o C e a rá .

o

FAZER CIÊNCIA: A VISÃO DO "ESCRITOR" GILBERTO FREYRE

Para Freyre, o escritor é aquele que nada tem de burocrático. Sua atividade é de pura

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-

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tura, contrária a rotina metódica e tediosa de um

tipo de literato muito comum na academia, que não consegue de seus escritos senão reproduzir mecanicamente o que aprende. A distinção para a qual Freyre chama atenção, portanto, está entre o escritor e o "... beletrista livresco ou do homem de letras mesmo clássicas, que escreve livros ape-nas parasitários" CFREYRE, 1968: 167).

O escritor, segundo Freyre, está dentre os que vivem do ofício, das artes ou de profissões liberais, e, ao mesmo tempo, não pertence parti-cularmente a nenhum destes grupos. Sua ativida-de é incerta e insegura. Tenativida-de a ser inativida-depenativida-dente, não se associando especificamente a nenhuma classe, raça ou sistema ideológico exclusivo, sem abandona-los completamente. É múltiplo ou plu-ral na expressão de suas experiências, recriando o que vê. Seu estilo exprime "faculdades indisciplináveis" em forma de confidências de "im-pressões hiperagudas" que parecem expandir a força vital do assunto sobre o qual escreve.

Essas características estilísticas, segundo Freyre, são típicas, principalmente, do escritor ibérico. Segundo ele, estes escritores são

con-trários a requintes que tornem sua criação "uma arte de escritor para escritores". O escritor his-pânico, muito mais que o português, é extre-mamente realista, intenso em sua interpretação da vida. Na caracterização de fatos, estes ga-nham vida e movimento em seus escritos, ga-nhando inclusive composições de frases inacadêmicas. Esse tipo de escritor passa a ser "... um intérprete da vida sentida, sofrida, ex-perimentada, interpretada, nos seus contrastes, através de uma mais ou menos intensa partici-pação do escritor nessa mesma vida" CFREYRE, 1968:174). a visão de G.F, neste aspecto, a obra escrita aproxima-se da obra produzida por um tipo de sociólogo que pratica a análise par-ticipante. Este tipo de cientista social, para Freyre, transparece em seu escrito uma possí-vel intensa participação compartilhada na vida cotidiana daqueles sobre os quais escreve, ten-tando mostrar a experiência deles como se tam-bém as tivesse experimentado.

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R E V IS T A D E C IÊ N C IA S S O C IA IS V.33 N . 1

O autor de Casa-Grande & Senzala, dizen-do-se modesto, e, ao mesmo tempo, afirmando sua postura estilística como escritor, ressalta que, o escritor pode correr o risco de ser criticado por reduzir seu texto a um amontoado caótico de imagens que tanto são inválidas cientifica-mente como não seriam sugestivas para uma

análise investigativa. Neste sentido, afirma:

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C o n c o r d o e m q u e h a j a , n o s m e u s t r a b a l h o s ,

o b j e t o s d e s s a s c r í t i c a s , a l é m d e d e s o r d e m e

r e p e t i ç õ e s , d e n e g a ç ã o d e v i r t u d e s c o n v e n

-c i o n a l m e n t e l i t e r á r i a s , p o r u m l a d o , e d e c o n

-v e n c i o n a l m e n t e c i e n t í f i c a s , p o r o u t r o , c o m o

v i r t u d e s p u r a s o u c a s t i ç a s e m s u a s f o r m a s

a c a d ê m i c a s o u o r t o d o x a s . N ã o s o u e s c r i t o r

-s e é q u e -s o u e -s c r i t o r - f á c i l d e c l a s s i f i c a r ; e

n i s t o t a l v e z s e j a c a r i c a t u r e s c a m e n t e i b é r i c o .

O e s t i l o q u e , s e g u n d o a l g u n s c r í t i c o s , c a r a c -t e r i z a o s m e u s t r a b a l h o s , r e c o n h e ç o n ã o s e r m o d e l o d e e s t i l o c i e n t í f i c o - a d m i t i n d o - s e q u e

f o s s e e s t i l o . a n t e s c i e n t í f i c o q u e l i t e r á r i o , q u e

e u p r o c u r a s s e a t i n g i r . M e s m o p o r q u e o i d e a l , e m t r a b a l h o s p u r a m e n t e c i e n t í f i c o s , p a r e c e s e r

a q u a s e a u s ê n c i a d e e s t i l o . C o n f e s s o m e a n á r

-q u i c o , u m t a n t o personalista, u m t a n t o i m

-p u r o , u m t a n t o c o n t r a d i t ó r i o , u m t a n t o

d e s o r d e n a d o e , n e s t e s d e f e i t o s , u m a c a r i c a

-t u r a d a q u e l e s e s c r i t o r e s i b é r i c o s a i n d a h o j e

i n c l a s s i f i c á v e i s . . . (FREYRE, 1968:179).

O fato é que, segundo sua própria auto-análise, ele procura ser escritor servindo-se de sua formação, principalmente a antropológica, somando-se a ela a formação de sociólogo, de historiador social e pensador vinculado ao meio acadêmico. Porém, ao mesmo tempo, não se preocupa em ser antropólogo, sociólogo, histo-riador social ou pensador institucional. Nesse sentido chega comparar-se a um Lawrence da Arábia, segundo ele "esse inglês parente de es-panhóis até no seu modo empático de ser moçárabe" CFREYRE, 1968:179), ou a Euclides da Cunha. Ele argumenta que sente total liber-dade em expressar-se como escritor literário sem ter que se afastar de sua condição de cientista. A espontaneidade é a chave para a inovação, crian-do algo novo que foge ao adestramento das

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pencias do cérebro do intelectual. Isso gera a autenticidade da obra.

Neste caso, Freyre, pensando na sua obra, ressalta que a independência também é uma característica estilística do escritor. Segundo ele próprio, como escritor, sempre tentou ser aves-so a sistemas fechados e tirânicos que tendem a cobrar do intelectual uma filiação quase que partidária. O escritor autêntico, para G.F., tem que fugir disso e nunca deve se submeter. A inclinação do escritor é pela angústia e desejo constante de inovação, da renovação e da críti-ca. A marca do estilo do escritor, para Freyre, é o inconformismo sugestivo, provocante, evocativo, interpretativo e até epifânico.

Levando-se em consideração suas auto-aná-lises estilísticas, pode G.F. ser incluído na listas das caracterizações apontadas por ele, principalmente

quando se lê Casa-Grande

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& Senzala produzido em 1933, a sua simplicidade e clareza na forma de

expressão textual, sem fugir totalmente dos ter-mos e expressões usuais do campo das ciências sociais de sua época. Suas análises são nítidas, trans-parentes, sem rancores, mas sempre colocadas em contraste com as diversas formas de apreensão da realidade social da época. Na evocação das obras de outros autores ele chega a ser exaustivo e até, em certos momentos, repetitivo.

O seu texto também apresenta uma conti-nuidade "rítmica" próxima da oralidade evocan-do imagens e sentidos, como diria Thomaz retomando a afirmação do antropólogo Ricardo

Benzaquen de Araújo (THOMAZ, 2001):

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. . .é a p a r t i r d e u m a e s c r i t a c u j o r e f e r e n c i a l s ã o

o st e r m o s d a v i d a c o t i d i a n a q u e F r e y r e d i a l o g a c o m ol e i t o r , t r a n s j o r m a n d o - o n u m p a r t i c i p e d o d r a m a n a c i o n a l ; a s s i m , F r e y r e n o s i n t r o d u z

n u m u n i v e r s o p r o f u n d a m e n t e s e n s o r i a l , p o v o

-a d o d e c h e i r o s , s o n s , s a b o r e s e i m a g e n s q u e ,

i n e v i t a v e l m e n t e , e v o c a m a m e m ó r i a d o l e i t o r .

M e m ó r i a n ã o d a e x p e r i ê n c i a i n d i v i d u a l , m a s

a q u e l a q u e d i z r e s p e i t o a o m i t o , à s h i s t ó r i a s q u e

e s c u t a m o s u m a e o u t r a v e z n a infância e a d o

-l e s c ê n c i a , q u e n ã o n o s -l e v a m a u m t e m p o p r e

-c i s o , m a s a q u a l q u e r é p o c a d a n o s s a h i s t ó r i a

c o l e t i v a e i n d i v i d u a l C T H O M A Z , 2 0 0 1 : 1 3 - 1 4 ) .

Desta forma, o ritmo imposto por Freyre favorece um alcance visual que vai além da constataçào pura e simples dos fatos. O predo-mínio e a insistência no aprofundamento senso-rial imposto ao leitor faz do seu texto uma extensão ou um suporte das reminiscências de quem lê, prendendo sua atenção. Sua obra agu-ça os sentimentos e desejos fazendo com que o leitor, principalmente o brasileiro, se veja no tex-to. Neste sentido, em alguns momentos o ritmo parece dispersar-se sobre coisas que parecem divagações caleidoscópicas com apologias nos-tálgicas e observações folclóricas dos tempos da casa-grande.

Além disso, principalmente no livro

Casa-grande & Senzala, percebe-se em sua obra uma clareza de junção das partes que compõem um grande "quebra-cabeça" montado pelo autor para entender o que é o Brasil. Há uma diferenciação direcional nítida quando o autor tenta se repor-tar a temas adjacentes, mas o tema central conti-nua sustentando a obra, sem que o leitor perca uma consciência de movimento. As mudanças de direção constantes, pelo contrário, fazem com que o leitor tenha um "alcance visual" privilegi-ado sobre o assunto tratado. Ou seja, ele faz com que o leitor brasileiro, principalmente, se torne sensível ao seu próprio movimento real ou potencial no contexto da cultura de que faz parte. Isso porque está marcada uma série tem-poral que tende a estimular a compreensão nes-te sentido. O passado é evocado como fundante do mundo vivido no presente, e não como uma coisa "velha", "antiquada" e "obsoleta" que deve ser esquecida por ser "um tempo que passou".

As séries temporais marcadas no texto de Casa-Grande & Senzala, por exemplo, que em um primeiro momento parecem ilógicas, de-marcam de forma significativa uma existência e experiência entre pessoas e entre pessoas e

objetos, sejam materiais ou imateriais (fantas-mas, mitos, lendas, fantasias, dentre outros) que estimulam uma entrada do leitor no tempo des-crito, fazendo com que este que lê, principal-mente o brasileiro, sinta-se como se estivesse

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A R T 1 :fr j,G ~ 'tO

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falando dele próprio e de sua experiência no mundo. Isso porque os nomes e significados enunciados, exaustivamente descritos e defini-dos, ainda estão muito vivos na memória dos que hoje vivem no Brasil.

A

PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS DE GILBERTO FREYRE PARA A COMPREENSÃO DA REALIDADE BRASILEIRA

Diante dessas características estilísticas do "escritor" Gilberto Freyre, pode-se também aqui apontar algumas reflexões metodológicas com relação a sua forma típica de compreensão da história brasileira, demonstrando que além de todos os recursos estilísticos do escritor literá-rio, o cientista também está presente em sua obra. O próprio Freyre (968) considera que o seu trabalho diferencia-se do exercício analítico do historiador mais "cioso da pureza de seu ofício". Procurando ser pouco ortodoxo em suas refle-xões sobre a história, G.F. ressalta que à sua condição como historiador tem que ser acres-centado o substantivo "social", que tem como fundamento os complexos socioculturais que vão além dos "grandes fatos", dos "grandes heróis" e da história dos governos.

Como lembra Bastos (986), a sua propos-ta metodológica é a de desenvolver uma "história sociológica" da realidade brasileira, na qual a for-ma for-mais eficiente é a da abordagem por "empatia".

Ou seja, a idéia de Freyre é a de construir uma história na qual o autor apresente uma imagem textual que dê a idéia de uma participação do autor nas vidas, não só materialmente, mas sim-bolicamente também, de pessoas já desapareci-das que encarnavam modos particulares de percepções, de práticas, de idealizações míticas, característicos de uma época ou de sua cultura.

Neste sentido, Bastos (986) chama aten-ção que o autor recorre a elaboraaten-ção de símbo-los quase míticos de diferentes períodos da realidade brasileira. Estes símbolos compõem a cena histórica da realidade nacional e são

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sados enquanto tipos de estilos sociologicamente e historicamente distintos que aparentemente parecem se contrapor, mas concorrem para uma estabilidade sociológica que caracteriza a pecu-liaridade social brasileira. Segundo Bastos (986), este recurso aproxima-se muito do "tipo ideal" weberiano, só que na obra de Freyre, os tipos compõem dualidades que se apresentam não como personagens, mas símbolos espaciais nos quais os personagens vivem e criam o seu coti-diano. Em obras como Casa-Grade & Senzala, Sobrados & Mucambos ou Ordem & Progresso, o " & " sugere uma interpenetração, aglutínação

ou hibridação de termos que ilusoriamente pa-recem se contrapor. Os espaços representam mais do que edificações ou idéias. Representam con-dutas, práticas cotidianas, relação entre sujeitos sociais distintos e percepções ou mentalidades que parecem se opor, mas, ao contrário, se in-fluenciam mutuamente.

Para perceber esta influência que se apro-xima de uma aglutínação, Freyre recorre a um estudo detalhado e minucioso do cotidiano. Ele procura apreender a historicidade do social, descrevendo expressões da vivência e da convi-vência entre diferentes sujeitos no dia-a-dia. Para

Bastos (986), G.F. desenvolve uma

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. . . S o c i o l o g i a G e n é t i c a q u e s e e s p e c i a l i z a n o

e s t u d o d a s o r i g e n s e d o d e s e n v o l v i m e n t o n o

t e m p o s o c i a l , d a s i n s t i t u i ç õ e s , s o b r e t u d o d o s e s

-t i l o s d e v i d a e d e f o r m a s d e c o n v i v ê n c i a q u e s e

t e n h a m t o r n a d o c a r a c t e r í s t i c a s d o c o m p o r t a

-m e n t o d e u -m g r u p o h u -m a n o (Bastos, 1986:69)

[g rifo d a a u to ra ).

Esta Sociologia Genética parece partir do pressuposto de que os acontecimentos não são apenas vividos na realidade concreta, mas tam-bém pensados, assim sendo, a ciência não pode aprendê-Ios apenas pela sua exterioridade ou concretude material, mas também pela maneira como são interiorizados pelos indivíduos. O sim-bólico passa ser fundamental na compreensão da realidade nesta postura metodológica apon-tada por Freyre.

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Para G.F. (968) o cotidiano deve ser apre-endido situado no espaço e no tempo. Dessa forma é imprescindível a utilização de dois mé-todos simultaneamente: o ecológico e o genéti-co. Assim, a análise sociológica fugiria do campo da especulação e da generalização não ancora-da na realiancora-dade. A análise, portanto, não pode fugir do campo da existência. Assim como, a realidade social não pode ser explicada apenas por argumentos causais ou abstrações genera-lizantes. O real demanda uma interpretação dos significados atribuídos a ele pelos indivíduos.

Bastos (986) argumenta que, através des-se método, Freyre busca captar o essencial atra-vés do existencial, negando a possibilidade de uma aplicabilidade legítima de um método evolutivo que nega a diversidade, as diferenças, ou interpreta a história como linear e genérica sem levar em conta as nuanças e particularida-des do cotidiano que são cambiantes e ambí-guas. Ao contrário, a Sociologia genética de Freyre considera as particularidades e ambigüi-dades do cotidiano, contextualizando no tempo e no espaço.

Diante desses pressupostos, não há como definir precisamente a disciplina na qual Freyre está ancorado de forma precisa e definitiva. Não havendo unidade disciplinar em seu trabalho, ele incorpora em seu pensamento formas de "olhar" plurais, construindo um trabalho, ao mesmo tempo, antropológico, sociológico, psi-cológico e psicanalítico, com reflexões inspira-das também na estética, na arquitetura, na literatura e até na arte culinária brasileira. Seus textos seguem um movimento pendular entre as várias disciplinas das ciências humanas, subsi-diadas inclusive pela Biologia, principalmente quando critica a visão dominante da época so-bre a questão das raças.

Na obra Casa-Grande

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& Senzala, em alguns momentos, apesar de considerar o contexto

sociocultural como fundante do caráter de um

povo, aceita explicações climáticas para o com-portamento típico do brasileiro, principalmente no que se refere a moral sexual. Porém, ressalta

não ser este o determinante principal (FREYRE, s/d). Para ele, o que ocorre no Brasil é uma plástica contemporização entre as duas tendências. O meio físico e bioquímica tende a "recriar à sua imagem os indivíduos", porém a implementação de re-cursos técnicos importados impõe formas aces-sórias estranhas de cultura. Ou seja, a imposição de formas européias ao meio tropical foi readaptada a novas condições de vida e de ambiente nos trópicos. O aspecto sociológico e cultural, no caso brasileiro, foi adaptado às novas condições relativas ao meio ambiente.

Neste aspecto percebe-se a influência da obra de Franz Boas no pensamento do autor brasileiro. O próprio Freyre (s/d) chama atenção dessa influência. O autor pernambucano consi-dera como fundamental as contribuições da obra do antropólogo alemão, principalmente no que se refere à diferenciação entre os efeitos de rela-ções genéticas e de influências sociais. Para Boas, um aspecto influencia o outro, não são excludentes, devem ser compreendidos de for-ma contextualizada como relação.

Coerente com esta influência, Freyre apon-ta para a necessidade de articulação entre uma Sociologia Genética e uma Ecologia Social. Apoi-ado em Boas, Freyre em seus textos sugere a sua não satisfação com a explicação que coloca a proeminência na diferenciação cultural entre os povos, o fator racial na acepção biológica ou genética. Além desta insatisfação, o autor apon-ta a estreiteza da explicação do determinismo geográfico. Ao mesmo tempo, revela que não dá para compreender qualquer cultura sem le-var em questão a relação homem e natureza, não mais como pensavam a tradição "socio-biológica" que opõe natureza humana e cultura, priorizando a dimensão da raça ou da herança genética, nem como oposição entre homem es-paço. Ensina o pensador brasileiro que só po-demos entender a cultura como relação

contextualizada entre todas estas dimensões.

Portanto, com relação às barreiras

disci-plinares, Freyre transparece em seus escritos que não dá para compreender a realidade brasileira

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somente privilegiando uma disciplina acadêmi-ca como instrumento de análise. Em um de seus livros de 1968, já citado e comentado acima, ele chega a ironizar as barreiras disciplinares. O pró-prio título do livro: "Como e porque sou e não sou sociólogo", sugere esta idéia. os capítulos do livro, alguns deles seguem este movimento pendular que imprime em seus trabalhos, nos quais, em cada um deles, assume uma postura disciplinar, variando entre o antropólogo, o his-toriador social, o sociólogo e, como forma de sintetizar sua mensagem, finaliza como escritor.

Seu estilo oscilante é também ressaltado por Menezes (2000). Para ele, Freyre é multidisciplinar, constituindo um discurso intencionalmente sinu-oso.

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É autor de um texto que não tenta encontrar uma fórmula matemática explicativa e exata da realidade, mas uma interpretação sinuosa, não pejorativa, exprimindo uma tortuosa história de

um povo. Para Menezes (2000),

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S e u e s t i l o c o g n i t i o o é d o m i n a n t e m e n t e e s t é t i c o

e s e e l a b o r a n u m m o v i m e n t o m e t o d o l ó g i c o d o

q u a s e , d o t a / v e z e s o b r e t u d o d o s e m i , i n c l i

-n a ç ã o m e t o d o l ó g i c a q u e s e e x p r e s s a n a c o n s

-t â n c i a c o m q u e e m p r e g a e s s e s t e r m o s , q u e s ã o

o s m a i s f r e q ü e n t e s d e s e u d i s c u r s o i n t e n c i o -n a l m e -n t e o s c i l a n t e , s i n u o s o , n i e t z s c b i a n o e

t a l v e z d i a l é t i c o . U m a d i a / é t i c a d a m e d i a n i z ,

p o i s , c o m o s a b e m o s , a m e d i a n i z éoe s p a ç o e m b r a n c o e n t r e d u a s l i n h a s o u d u a s p á g i n a s

i m p r e s s a s , a q u e l e e s p a ç o e m t o r n o d a c o s t u r a .

T o m o p o i s a s u g e s t ã o m e t a f ó r i c a d a c o s t u r a

d o s e x t r e m o s p a r a i l u s t r a r e s t a c a p a c i d a d e d e

G i l b e r t o F r e y r e d e s e a p r o p r i a r d o s i n t e r s t i c i o s

d o p e n s a m e n t o p a r a c o n s t r u i r s u a p r ó p r i a i n

-t e r p r e -t a ç ã o (M E N E Z E S , 2 0 0 0 :6 )[g rifo d o a u to r].

Esta sinuosidade expressa na obra de G.F. causa incômodo na intelectualidade de sua épo-ca, "bagunçando" os territórios ideológicos deli-mitados na academia. Até então, a historiografia brasileira, com algumas exceções, ao contrário da perspectiva freyriana, era marcada por regis-tros de "grandes fatos", "grandes heróis" e datas precisas, além de apresentar trabalhos caracteris-ticamente céticos, buscando sempre encontrar o

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V.33

N .1

motivo pelo qual "o Brasil não deu certo". Freyre busca, ao contrário, demarcar a posição singular que o país ocupa no cenário mundial, tendo em vista sua particular síntese de antíteses culturais que se cruzam e se misturam formando uma na-ção "tupinizada", "africanizada", "orientalizada" e "ocidentalizada", ao mesmo tempo, diferencian-do-se inclusive dos "latíno-amerícanos'" .

o método utilizado para expressar sua compreensão sobre a singularidade cultural do Brasil, a vida cotidiana, a vida íntima das famíli-as, as técnicas de higiene corporal, a culinária, as brincadeiras de criança, a sexualidade, den-tre outras características culturais vinculadas à

vida íntima e privadas do povo brasileiro de dis-tintos segmentos sociais, são amplamente usa-das para construir um retrato de uma "nova nação" que permite um tipo ainda imperfeito de "democracia social". Imperfeito na sua base po-lítica e econômica. Ou seja, para Freyre, quan-do a experiência brasileira é comparada a de habitantes de nações como, por exemplo, os Estados Unidos que, do ponto de vista econô-mico, vivenciaram uma situação semelhante, com a escravidão, a monocultura agrícola e o latifún-dio, percebe-se no Brasil uma tendência à aco-modação de grupos humanos que aparentemente deveriam ser contrários e opostos. Oposição esta que aconteceu de fato no caso norte-americano, consubstanciando-se em espaços segmentados e a formalização de um lugar social definido entre dominante e dominado.

No caso americano, culturalmente falan-do, ou o sujeito se define como negro ou bran-co. Já no caso brasileiro, e Freyre já chama atenção deste aspecto em Casa-grande & Senza-la, percebe-se no cotidiano uma dificuldade ou indefinição na auto-classificação dos sujeitos sociais que se relacionam em distintos espaços sociais, institucionais ou não (escola, programas em veículos de comunicação, trabalho, dentre outros), surgindo termos não muito precisos que servem como marca de auto-caracterização como: pardo, mulato, caboclo, etc. Este fato, para o autor pernambucano sugere uma forma

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renciada de relação entre culturas que aparente-mente parecem opostas, mas se cruzam forman-do, não só uma nova cultura, mas também uma nova civilização.

O sentido do termo democracia em Freyre parece ser definido como sinônimo de tolerân-cia, apesar de apontar em sua obra uma relação violenta sempre presente entre dominantes e dominados, típica do regime escravocrata.

Vio-lência e intimidade, apesar de parecer oposições corriam juntas na formação do povo brasileiro, como sugere a obra do autor pernambucano. As fontes organizadas e analisadas demonstram esta proximidade violenta e, ao mesmo tempo íntima dos grupos sociais que compõem a formação his-tórica e social do brasileiro.

Apesar de muitas vezes os confessionári-os terem absolvido os segredos pessoais e de família, Freyre consegue encontrar, em fontes não convencionais para a sua época, uma forma para entender a história íntima da realidade bra-sileira que deu origem a suas principais obras, particularmente Casa-Grande & Senzala. As con-fissões e denúncias registradas pelo Santo Ofí-cio, em visitas ao Brasil, servem como material precioso para compreender, dentre outras coi-sas, a idade das moças casarem, os jogos, a pom-pa das procissões, a vida doméstica e moral cristã das famílias, homens casados que se casam ou-tra vez, inclusive com mulatas, técnicas relativas ao ato sexual consideradas pela igreja como pecado, como a "felação" por exemplo, ete.

Outra fonte preciosa usada por Freyre em Casa-Grande & Senzala, são os registros escritos dos "recolhedores de fatos". Estes eram perso-nagens componentes da realidade social brasi-leira dos séculos XVIII e XIX, e se preocupavam em colecionar em cadernos, mexericos e casos vergonhosos que poderiam depor contra as fa-mílias mais ricas do Brasil na época. Conta Freyre (s/d) que consegue encontrar alguns destes ca-dernos na Bahia, Pernambuco e Minas Gerais. Além destes documentos, G.F. recorre a inven-tários, cartas de semarias, testamentos, corres-pondências da corte e ordens reais; relatórios

de bispos e pastorais; atas de sessões de Ordens

Terceiras, confrarias, santas casas; atas e o

regis-tro geral da Câmara de São Paulo;

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D o c u m e n t o s

i n t e r e s s a n t e s p a r a a h i s t ó r i a e c o s t u m e s d e S ã o

P a u l o de Afonso de Taunay, livros de assento

de batismo, óbitos e casamentos de livres e es-cravos e os de rol de famílias; autos de proces-sos matrimoniais; estudos de genealogia de diversos autores; relatórios de juntas de higiene; documentos parlamentares; estudos e teses mé-dicas; documentos do Arquivo Nacional, da Bi-blioteca Nacional, do Instituto Histórico Brasileiro, além de cartas pessoais de famílias, livros de viagem de estrangeiros, cartas dos je-suítas, crônicas, romances, livros de etiqueta, de receita, coleções de jornais, folhetins e iconografia da escravidão e vida patriarcal, den-tre desenhos, gravuras, aquarela e pinturas.

Segundo o autor, a riqueza do material é tanta que não deu para organizá-lo em uma só obra. Desta forma o autor compõe outras obras que viriam a dar continuidade ao famoso e tão comentado livro Casa-Grande & Senzala, como Sobrados & Mucambos, Ordem & Progresso, dentre outros. Todos eles tendo como eixo cen-tral a tentativa de compreensão da formação social e cultural do povo brasileiro.

Este ecletismo do autor pernambucano romperia as barreiras do que se considerava fonte de pesquisa na época, incluindo nesse rol inclu-sive sua memória pessoal e histórias que lhe haviam contado quando criança, transformando tudo em fonte de pesquisa.

A

SOCIOLOGIA GENÉTICA E A ECOLOGIA SOCIAL APLICADAS

À

COMPREENSÃO DA REALIDADE BRASILEIRA

É comum nos dias de hoje leitores, que não costumam situar a obra do autor no tempo em que foi produzida, acusarem Freyre de "ra-cista" quando se deparam com essa idéia da "democracia social" construída pelo autor pernambucano. O "assombro" destes leitores

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"distraídos", encontra-se na constatação da

gri-tante diferença no acesso de bens de consumo, dos cargos eletivos no campo da política institucional, do emprego bem remunerado, sem falar das piadas e termos pejorativos usados con-tra os "negros" ou índios, ressaltando sempre a idéia da superioridade do "branco" no Brasil.

Diante desta constatação nos dias de hoje, a idéia da "democracia social" parece despropositada.

O problema deste tipo de leitura é que sua obra passa a não ser contextualizada no tem-po e no espaço em que G.F. a produziu. Grande parte da produção intelectual brasileira do final do século XIX e início do século XX, respeitan-do as diferenças e particularidades dos vários autores da época, além de serem presas a res-saltar grandes fatos e heróis, como dito antes, ancoravam seus argumentos na idéia de o país não ter dado certo por causa da "irracionalídade" dos povos "não civilizados" que fizeram parte da formação do povo brasileiro, como é o caso das obras de Nina Rodrigues, de Oliveira Viana

dentre outras. Casa-Grande

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& Senzala surge como contraponto desta idéia geral, levando ao

extre-mo a sua crítica, apontando inclusive aspectos positivos na forma particular em que se deu a colonização no Brasil.

Nesse aspecto G.F. deixa de buscar aquilo que aponta para as carências da sociedade bra-sileira, e passa a tentar chamar atenção para a especificidade da nova civilização nascida nos trópicos. Portanto, não se pode fazer uma

leitu-ra de sua obleitu-ra transpondo automaticamente o seu pensamento para a nossa época em que o anti-racismo passa a ser considerado uma atitu-de atitu-de bom senso. Na época em que Casa-Gran-de & Senzala foi lançado, apesar de já existirem alguns autores que trabalhavam na mesma pers-pectiva, como Manoel Bonfim, Joaquim Nabuco, Paulo Prado, dentre outros, a ideologia do "bran-queamento" era dominante na intelectualidade brasileira. Ideologia esta muita bem descrita em sua formação na obra Sobrados & Mucambos.

Em seus argumentos, direcionados para a crítica do ceticismo, "branqueamento" ou

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R E V IS T A D E C IÊ N C IA S S O C IA IS v .3 3 N . 1

europeização da cultura brasileira, como lembra bem Thomaz (2001), Freyre analisa o processo de formação social do Brasil chamando a aten-ção que os diferentes grupos presentes na dinâ-mica social do país não se isolam formando guetos, mas formam um amálgama como se es-tivesse sendo orientado por uma eficiente polí-tica social de assimilação. Essa assimilação não se dava no plano jurídico, religioso, administra-tivo ou a partir das instituições escolares, mas sim no ato sexual.

Freyre chama atenção em Casa Grande & Senzala, que as relações entre brancos e os "de cor" no Brasil, desde a primeira metade do sé-culo XVI, foram condicionadas pelo sistema eco-nômico da monocultura latifundiária e pela escassez de mulheres brancas entre os conquis-tadores. Vencedores do ponto de vista militar e técnico sobre os índios nativos e povos africa-nos - povos estes forçados a sair de suas terras e trabalhar como escravos para o português co-lonizador - o europeu e seus descendentes tive-ram de condescender, criando zonas de confraternização compostas por relações sexu-ais e socisexu-ais, com seus dominados que não abo-liam completamente a condição de escravo do índio e depois do negro, mas criava brechas que faziam com que indivíduos encravos se tornas-sem não escravos quando os donos da Casa-grande assumiam, tanto a aliança com mulatas e caboclas, quanto a paternidade de crianças que nasciam da relação.

O fator preponderante para esta transigên-cia do europeu foi a falta de mulheres brancas, aproximando senhores e escravas. Aproximação esta não muito ortodoxa com relação aos dogmas católicos. A poligamia, apesar de não ser oficial, era comum dentre os donos da casa-grande. Além disso, o patriarcalismo era o regime político do-minante, favorecido pela escravidão e a econo-mia da monocultura agrícola, aproximando, segundo o autor pernambucano, nossa econo-mia do feudalismo, '0 que é contestável nos

modelos de explicação da formação econômica do Brasil produzida nos tempo atuais.

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Para Freyre, a casa-grande venceu a igreja no Brasil. Vencido os Jesuítas que dominaram a colônia até meados do século XVII, quem passa a dominar logo após é o senhor de engenho. O autor demonstra esta passagem com detalhes em

Casa-Grande

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& Senzala. O livro Sobrados & Mucambos, como sugere Thomaz (2001),

intro-duz a mudança e o movimento da urbanização, do ciclo do ouro e da vida da corte para o Bra-sil, favorecendo novas ambigüidades e novos antagonismos criando um novo processo civilizatório que tende à "europeização" do bran-co no sobrado e a "reafricanizar" o negro no mucambo. O mulato, produzido por nossa his-tória social, constrói um movimento plástico onde no mucambo se africaniza e o no sobrado se europeiza, repondo a tendência para a constru-ção de uma "harmonia" entre os contrários que passam por um processo de mestiçagem. Ten-dência esta já presente no período colonial.

A mulher, principalmente as negras e mu-latas, apesar das mudanças históricas apontadas em Sobrados & Mucambos, ainda desempenham nesta obra um papel fundamental. Como cozi-nheiras, amas de leite ou mucamas, trazem para o sobrado as histórias do mucambo, amenizan-do o antagonismo, sem dissipá-lo totalmente.

A mestiçagem que resulta na assimilação e criação de uma nova civilização, para Freyre, é uma peculiaridade luso-brasileira. A soma de amor e servidão, para o autor, no Brasil é forma-dora de uma sociabilidade específica que tende a evitar conflitos, aproximando a casa-grande da mata tropical e da senzala. Aqui no tempo da colonização, segundo G.F., o mestiço ocupava um lugar social, sendo muitas vezes reconheci-do como filho do dono da casa grande, o que não acontecia em outros países com as mesmas características do Brasil, do ponto de vista eco-nômico e das relações de trabalho. Para ele, a história privada transcorrida na casa-grande coin-cide com a história social de cada brasileiro.

A idéia da compreensão de quem é colo-nizador no Brasil, também é relativizada pelas reflexões de Freyre. Como lembra Bastos (s/d) ,

o argumento do autor só pode ser entendido quando se analisa primeiramente a sua compre-ensão sobre a formação do povo ibérico. Para ele, o processo de fusão e acomodação que acon-tece no Brasil é fruto da importação de um mo-delo que pode ser mais bem entendido quando se analisa a formação histórica do colonizador (civilização ibérica). Para ele, tanto Portugal como Espanha, apesar de estarem situados geografi-camente na Europa, não se caracterizam como países tipicamente europeus ou até mesmo se diferenciam da doutrina cristã ortodoxa. Apre-sentam-se de forma diferenciada parecendo um misto de Europa e África.

Portanto, a especificidade da sociedade brasileira, segundo Freyre, é herança do não europeísmo da sociedade ibérica. Bastos (s/d) lembra vários autores espanhóis que apontam suas reflexões nesta perspectiva, chamando a atenção do fato de a Península Ibérica ser um ponto de transição entre ocidente e oriente como Ortega y Gasset ou Unamuno.

Partindo deste ponto de vista, Freyre pre-tende demonstrar outra transição em sua obra: entre Europa e América. Ou seja, o b

i-continentalismo étnico e cultural, que começa em Portugal, ganha nova dimensão no Brasil. O que permite, por exemplo, ao africano assumir também o papel de colonizador, pois muitos deles vieram de regiões que eram mais avança-das do ponto de vista tecnológico e cultural, o que repercutia na formação, principalmente, do filho do dono da Casa-Grande. Freyre aponta vários fatores que demonstram a influência da cultura negra e até da indígena na cultura brasi-leira no que se refere aos costumes, higiene do corpo, culinária, lendas e histórias contadas às crianças, dentre outros aspectos.

Aqui se percebe uma tentativa do autor de afastamento da sensação de dualidade pro-duzida por boa parte dos autores de sua época. A idéia da tensão entre dois termos é refutada pela da acomodação. Acomodação que não passa só pela relação entre três povos diferentes, mas também entre o homem e natureza, formando

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um complexo único que justifica a afirmativa da

formação de uma nova civilização.

A dimensão do conflito na obra de Freyre não é substituída, mas vista com outros olhos. Não há na reflexão de Freyre a formação de blocos mais ou menos homogêneos, onde um caracteriza-se por ser o "bem" e outro o "mal". O que ele cria é uma leitura que apresenta uma descrição densa e detalhada das peculiaridades e diferenças próprias de uma cultura que se for-ma, não pela estratégia da desconfiança e sepa-ração dos corpos e espaços sociais destinados a cada segmento, mas da mistura, mesmo que imperfeita do ponto de vista econômico e polí-tico. A intimidade passa a ser central em sua reflexão. O percurso não aponta para uma aná-lise que pode ser concluída por uma simplifica-ção descritiva e explicativa dualista, mas sim, uma interpretação de uma realidade complexa, quase existencial ou até impressionista. Ou seja, a busca não é por um conceito final, mas uma impressão sensual que nos apresenta de forma comovente e envolvente, tentando sempre en-contrar a justa medida entre o pensamento me-tódico e a sensibilidade.

Mais uma vez, neste aspecto impressio-nista, Bastos (s/d) encontra uma aproximação entre o autor brasileiro e autores espanhóis. Ortega é citado por ela como um dos exemplos. Preocupado em compreender a cultura mediter-rânea, particularmente a espanhola, Ortega ten-ta demonstrar que não existe uma configuração cultural pura, e sim, um ecletismo historicamen-te definido por misturas entre povos distintos. Esta mistura, segundo a compreensão de Bastos do autor espanhol, cria uma forma particular de apreensão do mundo que é o sensualismo. Esta forma sensual rompe com as cadeias que man-tém a cultura ibérica escrava de uma ética e es-tética rígidas, declarando-se independente. Esta atitude constrói uma cultura fronteiriça ou para-doxal que tende ao equilíbrio entre o particular e o universal.

No caso do autor brasileiro, Bastos (s/d) encontra aproximação com relação aos

pressu-108

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postos do autor espanhol e distanciamentos. Para ela o método sensual superando a rigidez racio-nal e o encontro entre ocidente e oriente,

mar-cam o pensamento dos dois autores. Mas, os dois distanciam-se quando apontam as conse-qüência desta constatação analítica. Ortega pensa na manutenção de uma cultura aberta sujeita a transformações de seu caráter, enquanto Freyre afirma que a cultura brasileira crescerá consoli-dando seus próprios elementos internos, o que segundo Bastos (s/d), o aproxima de Unamuno, outro autor espanhol.

Fugindo da compreensão da percepção de Freyre sobre a política e a democracia, que não é objeto de estudo neste trabalho, percebe-se que esta idéia da tendência a consolidação en-quanto civilização através do movimento e cru-zamento cultural entre elementos particulares que constituem a realidade cultural brasileira, tem uma conseqüência metodológica importante. Para Freyre, os sujeitos da história passam a ser exatamente aqueles que aparentemente situam-se fora da história: o homem comum que atra-vés de suas práticas cotidianas criam o mundo em que vivem. Estes são os verdadeiros cons-trutores da civilização brasileira, juntamente com a elite social. Ou seja, na articulação e conver-gência tipicamente brasileira entre o negro, o branco e o índio, é que se pode compreender o Brasil. A explicação, portanto, não está na sepa-ração, e sim, na convergência entre os três ter-mos. Não dá para separar. Um se explica pela convergência com o outro. Desta forma em cada região e em cada tempo, a convergência se complexifica, ao mesmo tempo em que se parti-culariza. E esta é a grande contribuição do pen-sador pernambucano: a compreensão da cultura enquanto movimento, se contrapondo a visões estáticas, essencialistas, que buscam uma expli-cação absoluta e definitiva.

Assim, respondendo à pergunta inicial, percebe-se que sua obra é metódica, mas não rígida. Ou seja, sua leitura do Brasil é rigorosa, mas não é presa a modelos predefinidos que devem ser seguidos de forma estritamente tensa

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e inteiriça.

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É sinuoso, tortuoso, as vezes até

des-compassado, apesar de coerente, aproximando-se de um tipo de literatura que libera a criatividade. É também um texto em aberto e não conclusivo, como deve ser todo e qualquer trabalho que pretende ser científico, pois, a ci-ência se faz com perguntas, e não com repostas definitivas demonstradas como fatos pretensamente comprovados. O trabalho cientí-fico deve sugerir continuidades e não se fechar em si mesmo. E isso Freyre faz com muita com-petência, fugindo da estreiteza de uma concep-ção de ciência rija e resistente à criatividade do pensamento livre e estimulante típico de uma boa obra de literatura.

NOTA

1 Os termos aqui usados para caracterizar o que

re-presenta a formação da nação brasileira foram to-mados de empréstimo de uma citação de José Honório RODRIGUES feita por Menezes (2000), por expressar um pensamento presente nas análi-ses de Gilberto Freyre.

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Referências

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