UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO
IGOR BRANDÃO FEITOSA DE CARVALHO
HIERARQUIZAÇÃO IMPLÍCITA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
HIERARQUIZAÇÃO IMPLÍCITA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Monografia apresentada ao curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará como exigência parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito. Área de concentração: Direito Constitucional.
Orientador: Prof. Raul Carneiro Nepomuceno.
HIERARQUIZAÇÃO IMPLÍCITA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Monografia apresentada ao curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará como exigência parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito. Área de concentração: Direito Constitucional.
Aprovada em: ____/ ____/ ________.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Professor Raul Carneiro Nepomuceno (orientador)
Professor da Universidade Federal do Ceará (UFC)
________________________________________
Professor Doutor Hugo de Brito Machado Segundo
Professor da Universidade Federal do Ceará (UFC)
________________________________________
André Garcia Xerez Silva
À Adriana, Aninha e Mariana, minha família, sem as quais eu nada seria.
À Savinha, meu porto seguro, cujo apoio e amor me fazem acreditar que posso
realizar qualquer coisa.
À Jucá Advocacia, na pessoa de José Leite Jucá, mais amigo que chefe, pela
compreensão com minhas ausências e pelo apoio, que me permitiram terminar minha
pesquisa.
Ao Professor Raul Nepomuceno, por aceitar me orientar a despeito da exiguidade
do prazo, e pelas excelentes orientações bibliográficas.
Ao Professor Doutor Hugo de Brito Machado Segundo, por ser um exemplo de
inteligência, seriedade e simplicidade, qualidades que inspiram qualquer jovem acadêmico de
direito.
Ao amigo André Xerez, por todas as longas conversas e divagações, e pela
amizade que nos une.
Aos amigos Emanuel Linhares, Felipe Felix, Manuela Caldas, Álisson Melo,
Ricardo Florêncio, e muitos outros, que ao longo de muitas, muitas, conversas, viabilizaram
minha abordagem desse tema.
Aos amigos organizadores da SONU, projeto fruto de muitas mãos, que hoje
enche de orgulho a qualquer um que tenha participado de sua história.
el camino, y nada más; caminante, no hay camino, se hace camino al andar. Al andar se hace camino, y al volver la vista atrás se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar. Caminante, no hay camino, sino estelas en la mar.
A pesquisa analisa a existência de uma hierarquização implícita de direitos fundamentais no
ordenamento jurídico brasileiro, resultado da impossibilidade fática de dotar de plena eficácia,
ao tempo da elaboração da Carta Magna de 88, todo o rol de direitos fundamentais previstos
na texto constitucional. Analisa as características e os elementos definidores desta hierarquia,
bem como as principais críticas ao seu reconhecimento, para, ao final, determinar de forma
tentativa critérios de definição desta ordem hierárquica. Trata-se de tema de evidente
relevância para a hermenêutica constitucional, porém, cujo estudo na doutrina brasileira se dá
de forma fragmentada e escassa.
The research concerns the existence os an implicit hierarchy of fundamental rights on Brazil’s
juridic order, the result of the impossibily to give absolute eficacy, at the time of the
promulgation of Brasil’s 88 Constitution, the entire set of fundamental rights assecured in the
constitutional text. It analizes the characteristics and theelements that determine this
hierarchy, as well as the main objections to its acknowledgment, in order to, in the end,
determine tentatively a set of criteria of definition of this hierarchic order. It is a theme whose
relevance to the constitutional hermeneutics is evident, however, to which the studies
conducted by brazilian’s doctrine were few and far between.
1 INTRODUÇÃO... 09
2 A CRISE NA EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ... 12
2.1 Conceitos Fundamentais ... 13
2.1.1 Hierarquia Formal e Hierarquia Material... 16
2.1.2 Regras e princípios ... 18
2.1.3 Direitos Humanos e Direitos Fundamentais ... 20
2.1.4 Direitos Fundamentais e Garantias Fundamentais ... 23
2.2 O sincretismo metodológico como barreira à interpretação constitucional ... 24
3 HIERARQUIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS ... 31
3.1 Indicativos implícitos da hierarquia ... 34
3.1.1 Historicidade ... 35
3.1.2 Irrevogabilidade e Issuspendibilidade ... 37
3.1.3 Momento de exigibilidade ... 39
3.1.4 Conteúdo axiológico... 40
3.2 Críticas à Hierarquização ... 42
3.2.1 Esvaziamento de fato ... 42
3.2.2 Inexistência de critérios objetivos de aferição da ordem hierárquica ... 44
3.2.3 Possibilidade de normas constitucionais inconstitucionais ... 49
4 DEFINIÇÃO DA ORDEM HIERÁRQUICA ... 50
4.1 Princípios da hierarquização ... 50
4.1.1 Fluidez ... 51
4.1.2 Inafastabilidade da base ... 52
4.1.3 Reposicionamento casuístico ... 53
4.2 Consequências e aplicações práticas ... 53
5 CONCLUSÃO ... 56
1 INTRODUÇÃO
Formalmente, o ordenamento jurídico nacional trata dos direitos fundamentais
como hierarquicamente equivalentes, pois todos encontram fundamento no poder constituinte.
Em decorrência disso, o artigo 5ª, parágrafo 1ª da Constituição da República Federativa do
Brasil estabelece que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tem
aplicação imediata”, justamente por não se escalonarem quanto à sua validade.
Porém, verifica-se que, no Brasil, a efetividade dos direitos fundamentais previsto
na Carta Magna foi escalonada materialmente a partir da necessidade e urgência de sua
instauração. Além disso, outros fatos, dentre os quais a historicidade dos direitos humanos, a
irrevogabilidade e issuspendibilidade de certos direitos, o grau de exigibilidade e o conteúdo
axiológico dos direitos fundamentais, apontam para uma hierarquização de direitos
fundamentais no direito brasileiro.
Esta hierarquização não se mostra às escâncaras; é antes implícita, revelada pela
análise de fatores tangenciais ao cerne da questão. Estes indicativos, vistos isoladamente,
possuem conteúdo irrelevante para o deslinde da matéria, porém, se analisados
sistematicamente, levam à conclusão de que os direitos fundamentais são hierarquizados. Tal
hierarquia, diga-se de saída, se dá com relação ao caráter axiológico destes direitos, pois,
como mencionado, formalmente são iguais.
Há contudo inúmeras críticas ao reconhecimento desta hierarquia, dentre as quais
as mais importantes são a possibilidade de esvaziamento de fato dos direitos fundamentais, a
inexistência de critérios objetivos de aferição da ordem hierárquica, a possibilidade de que se
tenha normas constitucionais inconstitucionais, e a violação ao princípio da unidade da
constituição.
Estas críticas, embora pertinentes, não esvaziam a realidade fática da questão:
materialmente, os direitos fundamentais se encontram hierarquizados de forma implícita. Na
verdade, todas as críticas se desenvolvem em torno do receio de que admitir hierarquia pode
implicar no enfraquecimento destes direitos. Nada obstante, este receio é infundado. O
reconhecimento de uma hierarquia de direitos fundamentais no Brasil efetivamente levará ao
fortalecimento de sua eficácia, pois forcará ao julgador, em sua interpretação, a levar em
reconhecimento desta hierarquia é incrementar a vinculação do julgador ao princípio do livre
convencimento motivado.
Para contornar as críticas feitas à hierarquização, o reconhecimento desta deve vir
atrelado a uma série de princípios a serem seguidos na definição do escalonamento:
hierárquico: fluidez, inafastabilidade da base e reposicionamento casuístico. Estes se prestam,
principalmente, a garantir a plena eficácia dos direitos fundamentais amplamente
considerados, incluindo aqueles que por ventura se posicionem na base da hierarquia.
A presente pesquisa monográfica, assim, tem por escopo, em primeiro lugar,
demonstrar a existência desta hierarquia implícita entre direitos fundamentais no ordenamento
jurídico brasileiro. Em segundo lugar, abordar as críticas mais contundentes acerca desta
hierarquização e aferir a eventual pertinência destas. Por fim, buscar-se-á analisar as
características desta hierarquização e sopesar possíveis mecanismos epistemológicos de
definição dos patamares hierárquicos dos direitos fundamentais, com o fito de demonstrar os
benefícios que a aplicação desta teoria pode trazer à efetivação dos direitos humanos no
Brasil. Não se abordará, contudo, a aferição precisa da hierarquia de direitos fundamentais no
ordenamento brasileiro, vez que tal denotaria uma análise pormenorizada de precedentes
judiciais atinentes a conflitos principiológicos entre garantias constitucionais, o que foge ao
propósito da presente pesquisa.
Para tanto, o capítulo 2 tratará de estabelecer conceitos úteis ao entendimento do
tema proposto. Nele, será definida a problemática em linhas gerais; se estabelecerá diferenças
conceituais relevantes entre regras e princípios, direitos humanos e direitos fundamentais, e
direitos e garantias fundamentais, e; abordar-se-á o sincretismo metodológico que envolve, no
Brasil, o estudo do princípio da Unidade da Constituição, principal obstáculo doutrinário à
ideia de uma hierarquia entre direitos fundamentais.
O capítulo 3 adentrará no problema propriamente dito, estabelecendo os traços e
principais características da hierarquia implícita de direitos fundamentais. Analisar-se-á os
elementos que apontam para a referida hierarquia e, por fim, serão sopesadas as principais
objeções a esta teoria, verificando sua pertinência, ou não, e analisando se estas, mesmo
contundentes, significam óbice à noção de hierarquia de direitos fundamentais.
Por fim, o capítulo 4 traçará linhas gerais no que tange à definição de critérios de
intérprete nesta definição, e se abordará as consequências que este reconhecimento pode
2 A CRISE NA EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
O direito é um mecanismo de perene e constante evolução. A fim de alcançar
os fins a que se propõe – resguardar a ordem social e garantir a observância dos direitos e
deveres dos cidadãos - deve os estudos jurídicos necessariamente acompanhar a evolução
social. Assim, na medida em que uma sociedade se transforme e se desenvolva, fazem-se
necessárias transformações compatíveis no ordenamento jurídico, sob pena de se tornar o
direito letra morta, sem nenhuma eficácia real.
Hodiernamente, vivencia-se o declínio das teorias positivistas puras e a
ascensão de novas formas de se pensar o direito, mais consentâneas com a realidade
contemporânea. Hoje, a doutrina se debruça sobre a principiologia dos direitos e garantias
fundamentais como vetores essenciais de uma sociedade equilibrada. Com isso, a aplicação
prática do direito sofreu uma revolução, cujas consequências práticas apenas começam a se
revelar.
O constituinte originário da Constituição Federal de 1988, refletindo esta nova
forma de pensar o direito, positivou um rol amplo de direitos e garantias fundamentais no
texto constitucional, levando-os ao topo do ordenamento jurídico brasileiro. A Carta Magna
de 88 prevê mecanismos que, em tese, possibilitariam uma aplicação imediata e irrestrita
desse rol positivado.
Contudo a realidade fática revela uma situação bastante diferente do previsto
no texto constitucional. O estado brasileiro, vinte e quatro anos após promulgada a
Constituição cidadã, ainda não logrou dotar de eficácia plena uma miríade de direitos e
garantias fundamentais positivadas constitucionalmente. As explanações para tanto
indubitavelmente variarão de acordo com o interlocutor e com a perspectiva que se adote.
Nada obstante, uma realidade desponta clara: alguns direitos e garantias fundamentais ainda
não possuem eficácia real no Brasil.
Isso pode ser compreendido pela análise do contexto histórico da evolução
destes direitos. É que a efetividade destes sempre pressupõe uma atuação subjetiva por parte
de seus titulares. Ainda se tratando dos direitos individuais, que dependem apenas de uma
prestação negativa por parte do estado para serem eficazes, deve esta corresponder a uma
contraprestação, na medida em que os titulares e destinatários deste direito devem respeitar
Não é por outra razão que, historicamente, a instauração destes direitos foi
fruto de muita luta. A história mostra que, se a compreensão da existência de direitos cujos
titulares são todo indivíduo que detenha da condição humana é árdua para os detentores do
poder estatal, a absorção da ideia de que são estes limitados em face dos demais titulares que
se beneficiam de sua existência é o maior obstáculo para sua eficácia plena.
Com efeito, das revoluções liberais que concretizaram os direitos individuais aos
esforços dos agentes de direito internacional para o reconhecimento universal dos direitos do
homem, sua introdução efetiva na realidade jurídica de um estado sempre dependeu de dois
fatores principais: primeiro, o reconhecimento estatal da existência de certo direito de
titularidade universal e inalienável, de forma a garantir sua proteção pelo ordenamento
jurídico; segundo, a constatação, tanto a nível estatal como a nível individual, de que sua
efetividade dependerá de uma contraprestação negativa, que consiste no respeito dos direitos
de terceiros.
A positivação dos direitos e garantias fundamentais, portanto, prestigia estes
dois fatores. Positiva-se estes direitos e garantias a fim de dotá-los de carga jurídica efetiva,
com o fito de forçar o estado a delinear mecanismos que garantam sua observância tanto a
nível vertical, entre estado e indivíduo, como a nível horizontal, entre particulares.
A Constituição Federal de 88 cumpriu o primeiro critério sobejamente bem.
Contudo, quando se trata de garantir o cumprimento do segundo critério, da contraprestação
individual, há ainda grandes dificuldades.
É que esta delineação de mecanismos é necessariamente limitada por diversas
variáveis. Sobre o direito ou garantia fundamental positivado incidirá uma série de fatores, de
ordem social, política econômica e cultural, que podem chegar a impedir sua eficácia. Ao
final, a previsão constitucional pode não ser cumprida, seja por falta de condições estruturais
do estado em dotar-lhe de efetividade, seja pela inobservância deliberada de seus limites.
Na prática, a consequência deste quadro é que, no Brasil, há um esvaziamento
do texto constitucional referente aos direitos e garantias fundamentais, diante de
descumprimentos sistemáticos levados a cabo tanto pelo estado como pelos cidadãos em
decorrência de fatores tangenciais ao próprio direito. Embora não se negue tenha havido
evoluções, esta obviamente ainda não encontrou um padrão ótimo de efetivação.
Em face desse déficit entre o texto da norma e sua eficácia real, o ordenamento
findou por, implicitamente, levando em conta a urgência e abrangência da instauração de um
direito frente a outro, hierarquizar a aplicação prática dos direitos fundamentais.
Nada obstante, é bem verdade que falar de hierarquia entre direitos e garantias
fundamentais rotineiramente horroriza ativistas dos direitos humanos
,
em virtude da crença equivocada de que reconhecer uma hierarquização esvaziaria o conteúdo dos direitoshierarquicamente inferiores, que se veriam preteridos diante daqueles que a sociedade
declarar como superiores.
Com efeito esta realidade, que pode ser percebida como uma violação aos
princípios da universalidade e indivisibilidade, contudo, tem por consequência justamente o
oposto, na medida em que acaba por prestigiar a eficácia real do rol de direitos e garantias
fundamentais enquanto garante sua existência continuada no ordenamento jurídico.
Na verdade, o receio que boa parte da doutrina brasileira assume quanto a ideia de
reconhecer uma hierarquia entre direitos fundamentais se dá em virtude da divergência
conceitual entre o que significa hierarquia, princípios e direitos fundamentais. Muito embora
esteja claro não existir qualquer escalonamento normativo formal entre normas
constitucionais, dentre as quais se incluem os direitos fundamentais, o mesmo não pode se
dizer no que tange à sua axiologia.
Em adição, entende-se tradicionalmente que a ideia de hierarquia entre direitos
fundamentais encontra óbice no princípio da unidade da constituição, por entender a doutrina
brasileira majoritária que este representa inafastável obstáculo a admitir a existência de norma
constitucional superior a outra norma constitucional.
Contudo, a própria ideia de unidade da constituição adotada pela doutrina
brasileira parte de premissa falha, devido em grande parte ao espírito nacional de adotar o
estrangeiro como elemento da mais lídima pertinência. Com efeito, no Brasil, a ciência
jurídica apresenta uma dicotomia interessante, especialmente no que tange ao estudo do
direito constitucional. Busca-se constantemente uma ruptura entre as teses consideradas
“clássicas” e as teses “modernas”. Criticando esta realidade, Vírgilio Afonso da Silva expõe:
Moderno é, aliás, um adjetivo usado quase sempre como sinônimo de
‘argumento de autoridade’. Opinião abalizada é aquela que segue a ‘doutrina
mais moderna’, que nada mais é do que aquela defendida por quem usa essa
moderna interpretação constitucional’ é, assim, uma forma de se
autolegitimar. 1
O resultado deste fenômeno é que, no Brasil, o estudo do direito constitucional e,
principalmente, da interpretação constitucional se vê engessado pela observância compulsória
de uma série de teorias estrangeiras, recebidas pela doutrina nacional como dogmas da mais
absoluta relevância, ainda que as teorias adotadas, por vezes, sequer se comuniquem entre si.
O exemplo claro disso é a aplicação, no Brasil, da teoria de Konrad Hesse2
referentes aos princípios da interpretação constitucional. O princípio da unidade da
constituição pensado por Hesse, na forma como é tradicionalmente apresentado no
ordenamento brasileiro, é entendido como mecanismo que coíbe a interpretação de norma
constitucional de forma isolada. Ato seguido, entende que desta proibição decorre
naturalmente a ideia de que é impossível haver uma hierarquia entre normas constitucionais,
pois se assim o fosse facultar-se-ia o estudo isolado da norma constitucional hierarquicamente
superior.
Porém, este entendimento só se mantém em uma análise rasteira. É que a doutrina
brasileira busca a unidade da constituição segundo Hesse ao tempo em que se propõe aplicar o
sopesamento principiológico da teoria de Robert Alexy, teorias as quais não só não se
comunicam como, conforme será demonstrado adiante, são conflitantes em diversos pontos.
Isto considerado, tem-se a necessidade de, primeiramente, abordar as duas
questões aqui colocadas: estabelecer alguns conceitos úteis à compreensão do tema, e tratar da
aplicação sincrética do princípio da unidade da constituição pelo ordenamento brasileiro.
Assim, se verá que o receio dos supracitados ativistas é infundado. Não só não há
óbice algum ao reconhecimento desta hierarquia com base em princípios de interpretação
constitucional, como, na prática, a hierarquia entre direitos fundamentais tem justamente o
efeito oposto do que receiam. A hierarquização serve para garantir a eficácia dos direitos
fundamentais, ao tempo em que seu conjunto, considerado sistematicamente, mantém seu
conteúdo inalterado.
1
SILVA, Vírgilio Afonso da. Interpretação Constitucional e Sincretismo Metodológico, 2005. In: Silva, Virgílio Afonso da (Org.) . Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 116..
2
2.1 Conceitos Fundamentais
Convém inicialmente, a título de incrementar o entendimento do tema aqui
proposto, relembrar alguns conceitos básicos, porém de fundamental importância para o
desenvolvimento da presente pesquisa monográfica.
2.1.1 Hierarquia Formal e Hierarquia Material
Há que, em primeiro lugar, delimitar o que se entenderá por hierarquia na presente
pesquisa. Para isso, convém remeter-se aos ensinamentos de Hans Kelsen, doutrinador no
qual se baseia a ideia de hierarquia formal.
A teoria pura do direito, na clássica formulação de Kelsen, traduz-se basicamente
na ideia de um sistema hierárquico de normas dentro de um ordenamento jurídico. O
fundamento de validade de cada norma, assim, será na visão kelseniana uma norma
imediatamente superior. Consequentemente, o conjunto normativo retiraria sua validade de
uma mesma norma hipotética fundamental.
A Constituição, enquanto representação material desta norma fundamental, teria
na visão kelseniana o papel de conferir a necessária coesão ao ordenamento jurídico o qual
integra. Deve ser entendida como um sistema normativo, que tem a função de orientar o
aparelho jurídico de um estado.
A teoria de Kelsen tratou do direito puramente, extirpando fatores a ele tangentes.
Um dos argumentos mais relevantes em contraponto ao doutrinador em comento, assim, diz
respeito ao fato de que a ignorância a estes fatores tangenciais (de ordem social, econômica e
política) desconsidera a inegável influência destes na aplicação da norma jurídica. Kelsen, no
entanto, não nega esta influência na criação da norma. Afirma, isso sim, que a lei positivada
não sofre influência destes fatores no que tange à sua validade. A lei seria válida pelo próprio
fato de estar positivada.
A visão kelseniana, dessarte, trata a norma como enunciado puro com uma
colocação definida dentro do escalonamento. Por consequência, adotando este prisma não
[...] entre uma norma de escalão superior e uma norma de escalão inferior,
quer dizer, entre uma norma que determina a criação de uma outra e essa
outra, não pode existir qualquer conflito, pois a norma do escalão inferior
tem o seu fundamento de validade na norma do escalão superior. Se a norma
do escalão inferior é considerada como válida, tem de considerar-se como
estando de harmonia com a norma do escalão superior.3
Essa inexistência de conflito normativo se dá pois, na visão kelseniana, no que tange à
relação formal entre normas, a noção de hierarquia implica uma relação de validade entre a
norma superior e a inferior. A norma inferior não pode contrariar a superior, assim, pois se o
fizer estará questionando seu próprio fundamento de validade e, por conseguinte, será ela
própria inválida.
Esta noção rotineiramente vem à lume quando se trata de hierarquia de normas. Por
esta, ademais, não pode haver hierarquia entre normas constitucionais, já que todas estas
buscam validade na mesma fonte: o poder constituinte. Contudo, o objeto deste trabalho não
se debruça sobre uma hierarquização formal de normas constitucionais. Com efeito, esta não
existe, justamente com base no argumento acima. Nada obstante, a existência de hierarquia
material de normas constitucionais, inequivocamente, existe.
É evidente que, ao menos em se tratando de normas constitucionais amplamente
consideradas, há hierarquia. Neste último sentido, Vírgilio Afonso da Silva argumenta:
[...] ninguém contestaria a tese de que a norma contida no art. 5º, II, da CF –
segundo a qual ‘ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude da lei” – é mais importante e está, portanto, em um nível
hierárquivo materialmente superior ao da norma contida no art. 242, § 2º,
que prevê a manutenção do Colégio Pedro II na órbita federal4.
A pesquisa aqui se debruça, portanto, em uma hierarquia material em oposição a
uma hierarquia formal. As normas constitucionais em geral se hierarquizam em nível
axiológico, pois embora o poder constituinte tenha dado a todas força constitucional, tal não
significa tenham todas a mesma importância, ou mesmo iguais condições de efetivação. No
que tange aos direitos fundamentais, eles próprios normas constitucionais, a argumentação se
mantém.
3
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Coimbra: Armênio Amado, 1979, p. 289.
4
2.1.2 Regras e Princípios
A análise da presente pesquisa monográfica, no que tange à diferenciação entre
regras e princípios, se baseará essencialmente nas teorias desenvolvidas por Robert Alexy em
torno da interpretação e argumentação constitucional. Isso, sob a justificativa de que é a tese
do autor supracitado amplamente utilizada pela doutrina brasileira para tratar da ponderação
de normas constitucionais, estudo essencial para a presente presquisa.
Alexy5
assevera três possibilidades de entendimento acerca da distinção entre
regras e princípios. A primeira é que ambas são indistinguíveis, entendimento predominante
até princípios do século XX. A segunda é que se distinguem apenas quanto ao grau de
abstração;os princípios trariam preceitos de abrangência muito maior que as regras, porém, a
diferença se resumiria a isto. A terceira, sua posição, indica que a diferença entre ambas, mais
que gradual, é também qualitativa.
O autor supracitado dá conta de que esta distinção foi formulada a partir da teoria
de Dworkin, para quem a diferença entre regras e princípios tem natureza lógica e pode ser
definida pela natureza da orientação que oferecem para o caso. Em relação às regras, aduz
Dworkin que “[...] dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste
caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada
contribui para a decisão6
”. Não descarta a hipótese de que uma regra possa ser excepcionada,
porém, a exceção deve estar prevista pela própria regra.
Já em relação aos princípios, afirma Dworkin que possuem uma dimensão do peso
ou importância, é dizer, o conflito entre princípios é solucionado de sorte a que nenhum deles
seja retirado do ordenamento, apenas restingido em relação ao outro em relação à sua
importância relativa no caso concreto.
Alexy se baseia na distinção proposta por Dworkin para fundamentar sua teoria,
porém afirma que este último não chegou ao núcleo da distinção. Apresenta, então, para sanar
esta deficiência, o que denomina critério qualitativo, fator determinante da diferenciação entre
regras e princípios. Este critério qualitativo, na visão de Alexy, define os princípios como
“mandamentos de otimização”, assim definidos como normas que exigem que algo seja
5
ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. 2ed. Madrid: Centro de Estudios Políticos e Constitucionales, 2002, p. 21.
6
realizado na maior medida possível diante das possibilidades fáticas e jurídicas existentes.
Consequência desta definição é que a aplicação de princípios, conquanto deva sempre
buscar-se a máxima efetividade material, comporta diversos graus, em contraste com regras, que ou
se aplicam, ou não. Afirma, em suma, que os princípios não encerram mandamentos
definitivos, mas ordenam que algo seja feito na maior medida possível. Não possuem, assim,
conteúdo de determinação; sua carga normativa será definida pelo caso concreto, podendo
mesmo ser substituídas por razões opostas7
. No caso das regras, estas devem ser cumpridas
exatamente como determinados, à maneira do tudo-ou-nada8
.
Sobre este ponto, Vírgilio Afonso da Silva afirma que:
[...] no caso dos princípios não se pode falar em realização sempre total
daquilo que a norma exige. Ao contrário: em geral essa realização é apenas
parcial. Isso, porque no caso dos princípios há uma diferença entre aquilo
que é garantido (ou imposto) prima facie e aquilo que é garantido (ou
imposto) definitivamente. 9
Essa característica se deve ao fato de que sói ocorrer que um princípio encontra
barreiras, consistente na proteção de outro princípio que a conjuntura material torna
antagônico ao primeiro. Nesta situação, Alexy pondera que deve ocorrer um sopesamento
normativo, sendo um princípio afastado em benefício do outro de acordo com o resultado de
uma ponderação, pelo intérprete, dos valores involucrados nas normas. As regras, de outro
passo, guardam uma relação de subsunção. Em outras palavras, não dependem de condições
jurídicas do caso concreto, havendo o intérprete de aplicar, em caso de conflito entre duas
regras, um dos critérios de solução de antinomias previstos no próprio ordenamento jurídico
(dentre os quais os mais clássicos são aqueles estabelecidos por Bobbio10
: hierárquico,
cronológico, especialidade)11
.
Assim, a evolução do pensamento jurídico a partir de Alexy reconheceu a
existência de normas de conteúdo amplo que devem ser observadas prima facie pelo aplicador
7 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. 2ed. Madrid: Centro de Estudios Políticos e
Constitucionales, 2002, p. 99.
8
Neste ponto, Alexy e Dworkin convergem seus entendimentos.
9 DA SILVA, Vírgilio Afonso. Direitos Fundamentais: Conteúdo Essencial, Restrições e Eficácia. São Paulo:
Malheiros, 2011, p. 45.
10
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: campus, 1992, p. 81.
11
Ainda que fuja ao objetivo deste trabalho, convém fazer menção à crítica de Humberto Ávila respeito à possibilidade de ponderação de regras no artigo “A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever
de proporcionalidade” (Revista de Direito Administrativo 215 (1999), p. 151-179). O doutrinador supracitado
do direito. Distingue-se assim, o gênero norma jurídica entre duas espécies: normas-regras,
que guardam uma prescrição deontológica definitiva de um direito ou dever, e
normas-princípios, que guardam um mandato de otimização a observar enquanto fundamento de uma
prescrição jurídica.
Para os propósitos da presente tese monográfica, dessarte, trata-se de princípios na
visão proposta por Alexy, é dizer, enquanto mandamentos de otimização que, se contrários na
espécie, são sopesados de forma a garantir a máxima aplicabilidade de ambos.
2.1.3 Direitos Humanos e Direitos Fundamentais
Hodiernamente, tem os direitos humanos adquirido papel preponderante na
organização constitucional dos integrantes da comunidade internacional.
A evolução social contemporânea deu vazão ao nascimento12
de uma série de
direitos atrelados à própria pessoa humana. Tais direitos, verdadeiros pontos luminosos em
uma sequencia histórica de arbitrariedades e abusos à condição humana, findaram por serem,
pouco a pouco, reconhecidos e protegidos internacionalmente.
Contudo é fato inegável que as diversas declarações dos direitos humanos, a
despeito de sua vocação universal, possuem efeitos limitadíssimos no plano interno de cada
estado sem que se organizem mecanismos de concreção no ordenamento jurídico nacional.
Sem esta organização interna, a alternativa de efetivação tende a ser a imposição do direito de
forma alienígena à nação, que na melhor das hipóteses forçará o estado a reconhecer a
aplicação dos direitos humanos pela via do diálogo, e, na pior, incutirá em grave perturbação
do princípio da livre determinação dos povos.
Assim, a segunda metade do século XX experimentou a positivação progressiva
destes direitos em diversas constituições nacionais. Revestidos da denominação de direitos
fundamentais, estes, afastando-se do idealismo de sua concepção original, passaram a ter
maior eficácia nos diferentes ordenamentos jurídicos que os adotaram, é dizer, passaram a ter
aptidão para produzir efeitos concretos.
12 Alguns doutrinadores, dentre os quais se destaca Pontes de Miranda (segundo citado por José Afonso da Silva,
Willis Santiago Guerra Filho estabelece lucidamente a distinção terminológica
entre direitos humanos e direitos fundamentais.
Uma primeira dessas distinções é aquela entre “direitos humanos” e “direitos
fundamentais”. De um ponto de vista histórico, ou seja, na dimensão
empírica, os direitos fundamentais são, originalmente, direitos humanos.
Contudo, estabelecendo um corte epistemológico, para estudar
sincronicamente os direitos fundamentais, devemos distingui-los, enquanto
manifestações positivas do direito, com aptidão para a produção de efeitos
no plano jurídico, do que de um modo geral é chamado de “direitos
humanos”, enquanto pautas ético-políticas, situados em uma dimensão
suprapositiva, deonticamente diversa daquela em que se situam as normas
jurídicas – especialmente aquelas de direito interno13.
Os direitos fundamentais, assim, podem ser considerados direitos humanos
constitucionalizados. Tal constitucionalização leva o direito a ter aptidão para ter efeitos
concretos dentro do ordenamento. Assim, a efetivação dos direitos humanos deixa, em teoria,
de ser mera obrigação moral, pois seu descumprimento trará implicações jurídicas concretas
ao eventual violador. Sua introdução no ordenamento os reveste, ademais, de uma série de
características a eles imanentes, dentre as quais despontam a historicidade, inalienabilidade,
imprescritibilidade e irrenunciabilidade como as mais importantes.
São históricos os direitos fundamentais, na medida em que nascem, modificam-se
e desaparecem. Isto traduz a ideia de que não são imanentes à natureza, mas sim, como
qualquer direito, fruto da racionalidade humana. São inalienáveis, posto que intransferíveis e
inegociáveis, em outras palavras, indisponíveis. São ainda imprescritíveis, é dizer, não deixam
nunca de ser exigíveis. São, por fim, irrenunciáveis, pois seus titulares deles não podem
voluntariamente desfazer-se, eis que são atinentes à sua própria condição enquanto ser
humano. Podem até deixar de ser exercidos, porém, não podem ser renunciados.
Não é raro ouvir falar ainda da universalidade e do caráter absoluto dos direitos
fundamentais, sob o argumento de que, por figurar no ápice do ordenamento jurídico, não
comportariam estes restrições de qualquer ordem. Nesse sentido, Pontes de Miranda14
,
reconhecendo o caráter supranacional e supraconstitucional dos direitos fundamentais,
13
SANTIAGO GUERRA FILHO, Willis. Dimensões dos Direitos Fundamentais e Teoria Processual da
Constituição. In “Estudos de Direito Constitucional em homenagem a Paulo Bonavides”. São Paulo: LTr, 2001.
p. 402.
14
afirmava que estes se dividiam entre aqueles de caráter absoluto (liberdade pessoal,
inviolabilidade do domicílio, etc.) e relativos (direitos contratuais, de propriedade, etc.), na
medida em que os primeiros existiriam a despeito de lei que os estatuísse ou regulasse.
A atual doutrina, contudo, reconhece que o caráter histórico dos direitos
fundamentais afasta naturalmente a ideia de que sejam estes também universais e absolutos.
Como poderiam ser universais, se seu surgimento está condicionado à evolução histórica de
uma sociedade? Como podem ser absolutos, se no sopesamento entre direitos conflitantes será
um limitado pelo outro?
Vale dizer que os direitos fundamentais possuem notável carga principiológica.
Na hipótese de conflitos entre dois direitos fundamentais, deverá um necessariamente ser
restringido em prestígio ao outro. Esta realidade afasta por si só a noção dos direitos
fundamentais como absolutos, pois o conflito entre dois direitos findará pelo sopesamento de
um sobre o outro sem que isso implique no esvaziamento do direito preterido, em virtude de
sua inafastabilidade.
No Brasil há, inclusive, previsões constitucionais expressas que trazem limitações
a preceitos fundamentais. Como exemplo, tem-se que “até o elementar direito à vida tem
limitação explícita no inciso XLVII, a, do art. 5º, em que se contempla a pena de morte em
caso de guerra formalmente declarada” 15
. Cite-se ainda a restrição do direito a propriedade
em face de sua função social, ou mesmo em face da proteção ambiental.
O presente trabalho tem como objeto os direitos fundamentais, é dizer, pertine ao
rol de direitos humanos ao qual o ordenamento jurídico conferiu caráter constitucional. A
limitação se deve ao fato de que, analisados enquanto inseridos no ordenamento jurídico,
percebe-se facilmente a existência de hierarquia implícita entre os diversos direitos e garantias
fundamentais.
2.1.4 Direitos Fundamentais e Garantias Fundamentais
É de bom tom ainda definir a diferença entre direitos fundamentais e garantias
constitucionais. Isso, porque a Constituição brasileira de 88 por vezes, introduz em um
15
FERREIRA MENDES, Gilmar; MÁRTIRES COELHO, Inocêncio; GONET BRANCO, Paulo Gustavo.
mesmo preceito normativo, concomitantemente, um direito e uma garantia, fato que torna
difícil a separação de ambas pelo intérprete. Nada obstante, são inconfundíveis.
Os direitos fundamentais encerram preceitos de aplicabilidade imediata, com o
fim de assegurar um direito a seu titular. As garantias, por sua vez, servem como elemento
limitador da conduta estatal, com o fim de justamente garantir a aplicabilidade dos direitos
fundamentais. São, em outras palavras, mecanismos a serem utilizados pelo titular para forçar
o estado a garantir a eficácia do direito ao qual faça jus.
José Afonso da Silva aduz que:
[...] as garantias constitucionais em conjunto caracterizam-se como
imposições, positivas ou negativas, aos órgãos do Poder Público, limitativas
de sua conduta, para assegurar a observância ou, no caso de violação, a
reintegração dos direitos fundamentais16.
Em seguida, afirma:
As garantias constitucionais especiais são normas constitucionais que
conferem, aos titulares dos direitos fundamentais, meios técnicas,
instrumentos ou procedimentos para impor o respeito e a exigibilidade de
seus direitos. Nesse sentido, essas garantias não são um fim em si mesmas,
mas instrumentos para a tutela de um direito principal. Estão a serviço dos
direitos humanos fundamentais, que, ao contrário, são um fim em si, na
medida em que constituem um conjunto de faculdades e prerrogativas que
asseguram vantagens e benefícios diretos e imediatos a seu titular17.
Na visão de José Afonso, assim, percebe-se nitidamente tanto o caráter
instrumental das garantias como a natureza teleológica dos direitos fundamentais. Ambos,
assim, não se confundem.
Esta diferenciação é pertinente pois, como se verá, levando-se em conta a
hierarquia implícita de direitos fundamentais, aqueles que dispõem da proteção de uma
garantia tiveram maior cuidado pelo constituinte originário. Conquanto possa haver uma série
de razões para tanto, tal é um evidente indício de um sopesamento pré-interpretativo que
findou por colocar estes direitos garantidos em um patamar superior aos que foram
meramente prescritos “a descoberto” pelo poder constituinte.
16 DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 22ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p.
188.
17
2.2 O Sincretismo Metodológico como Barreira à Interpretação Constitucional
Ao tratar da interpretação constitucional hodiernamente aceita no Brasil, Vírgilio
Afonso da Silva critica a subordinação do pensamento jurídico brasileiro à idéia de que os
princípios hermeneutas tradicionais foram totalmente superados. Argumenta:
Uma das certeza mais difundidas no direito constitucional brasileiro atual
está ligada à forma de interpretação da constituição. Nesse campo há uma
divisão facilmente perceptível entre o arcaico e o moderno. Arcaico é crer
que a interpretação da constituição deve ser feita segundo os cânones
sistematizados por Savigny ainda na metade do século XIX. Moderno é
condenar os métodos tradicionais e dizer que eles, por terem caráter
exclusivamente privatista, não são as ferramentas adequadas para a
interpretação da constituição. Ser moderno é, em suma, falar em métodos e
princípios de interpretação exclusivamente constitucional18.
É que, como já se sopesou anteriormente, a doutrina brasileira reconhece de forma
praticamente dogmática a incidência no nosso ordenamento dos métodos e princípios de
interpretação constitucional adotados pelo sistema alemão, como fruto da mais abalizada e
moderna corrente doutrinária. O problema é que não há este referido “sistema alemão” de
interpretação constitucional. Nesse sentido, argumenta o professor Vírgilio Afonso da Silva:
É possível que se suponha que os ‘novos’ métodos de interpretação
constitucional sejam métodos longamente desenvolvidos pela doutrina
jurídica alemã e aplicados sistematicamente pelo Tribunal Constitucional
daquele país. Não o são. Nesse caso, não se pode falar de uma ‘importação’
de um modelo alemão de interpretação constitucional. E por uma razão
óbvia: um tal modelo não existe. Os princípios de interpretação
constitucional a que a doutrina brasileira, de forma praticamente uniforme,
faz referência são aqueles referidos por Konrad Hesse em seu manual de
direito constitucional. No caso dos métodos a referência baseia-se no famoso
artigo de Ernest- Wolfgang Böckenförde sobre métodos de interpretação
constitucional19.
18 DA SILVA, Vírgilio Afonso. Interpretação Constitucional e Sincretismo Metodológico In: Silva, Virgílio
Afonso da (Org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 116.
19
Convém abordar previamente esta questão, pois ela é de essencial relevância para
o estudo da problemática objeto desta tese monográfica. Os princípios da interpretação
constitucional adotados pela doutrina brasileira contrariam a idéia de que possa haver uma
hierarquia entre direitos fundamentais, sob o argumento de que tal violaria o princípio da
unidade da constituição, pensado por Konrad Hesse em sua obra Grundzünge des
Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Contudo, isso também é válido, por
exemplo, ao sopesamento de mandamentos de otimização proposto por Alexy, teoria na qual
se lastreia grande parte do decisório jurisprudencial brasileiro em torno de conflito
principiológicos.
Este paradoxo ocorre porque no Brasil há, às escancaras, um verdadeiro
sincretismo metodológico quando se trata da aplicação das teorias da hermenêutica
constitucional no Brasil. Aplicam-se teorias díspares como se fossem consentâneas,
lastreando-se em argumento que só se pode tachar de “argumento de autoridade”: as mais
modernas teorias alemãs. O estudo comparado destas teorias e, principalmente, de sua
alocação no ordenamento nacional, permite vislumbrar a inexistência de mácula à unidade da
constituição por uma possível hierarquia de direitos fundamentais.
A teoria de Hesse se desenvolve em torno da idéia de força normativa da
Constituição. Este, ao delinear sua problemática, assim a define:
A questão que se apresenta diz respeito à força normativa da Constituição.
Existiria, ao lado do poder determinante das relações fáticas, expressas pelas
forças políticas e sociais, também uma força determinante do Direito
Constitucional? Qual o fundamento e o alcance dessa força do Direito
Constitucional? Não seria essa força uma ficção necessária para o
constitucionalista, que tenta criar a suposição de que o direito domina a vida
do Estado, quando, na realidade, outras forças mostram-se determinantes?
Essas questões surgem particularmente no âmbito da Constituição, uma vez
que aqui inexiste, ao contrário do que ocorre em outras esferas da ordem
jurídica, uma garantia externa para a execução de seus preceitos20.
Hesse teorizou que uma Constituição encontraria sua força normativa a partir da
observância a três condicionantes: um condicionamento recíproco entre Constituição e a
realidade político-social do estado, a identificação dos limites constitucionais e o atendimento
a seus pressupostos de eficácia. Presentes estas, a normatização do texto constitucional se
20
faria patente. A Constituição enquanto pensada por Hesse se encontra, portanto, sempre
ancorada à realidade. Deve estar numa constante referência às condições históricas e naturais
de cada situação concreta, embora não possa extrapolá-las. A norma constitucional, assim,
não teria eficácia autônoma em face da realidade. Sua essência residiria na situação real na
qual ela atua.
Hesse21
afirma, porém, que “a pretensão de eficácia de uma norma constitucional
não se confunde com as condições de sua realização; a pretensão de eficácia associa-se a essas
condições como elemento autônomo”. Com isso, Hesse indica que a Constituição busca sua
eficácia a fim de imprimir ordem e conformação à realidade política e social. A força
normativa, por sua vez, seria consequencia da realização desta busca. É dizer, na visão de
Hesse, uma Constituição tem força normativa porque é eficaz, e não o contrário. Sua teoria
siginifica um contraponto às correntes puramente positivistas, amplamente aceitas à época,
que buscavam o fundamento da constituição em sua própria normatividade (Jellinek, Laband)
ou na evolução social (Carl Schmitt, Lassale).
É a incidência da norma constitucional no fato que garantirá a força normativa da
Constituição. Em decorrência deste pressuposto, o método de interpretação de Hesse
naturalmente dá primazia à norma constitucional diante do problema. Parte da necessidade de
pré-compreensão do conteúdo da norma constitucional a ser concretizada, apenas em seguida
relacionando-a com a compreensão do problema concreto a resolver. Vislumbra o problema,
mas, antes deste, deve vislumbrar a norma constitucional como vetor hermenêutico para a
solução a ser adotada no caso concreto.
Assim, a fim de garantir a escorreita incidência na espécie, é dizer, em
conformidade com os parâmetros condicionantes da eficácia constitucional, Hesse enumera
uma série de princípios de intepretação constitucional a serem observados pelo intérprete da
norma. Vírgilio Afonso da Silva critica o uso exagerado destes na interpretação constitucional
brasileira, aduzindo sua pouca relevância em seu país de origem ao afirmar que:
[...] procurar por estes princípios nos manuais alemães pode ser considerada
tarefa frustrante, e apenas contribuirá para solidificar a ideia de que esses
princípios de interpretação constitucional, que no Brasil são recebidos como
se fossem moeda corrente na Alemanha, são apenas a sistematização das
ideias de um único autor: Konrad Hesse22.
21
A crítica feita pelo doutrinador supracitado se concentra, porém, não na pouca
aplicação desta teoria em seu país de origem – este fato não é, por si, danoso, considerando
que seja enquadrável no ordenamento brasileiro – mas na pouca importância prática destes
princípios para a interpretação constitucional. Pondera que nada são senão nova roupagem
que pouco se diferenciam dos métodos clássicos da interpretação constitucional.
Essa flerte com o inovador, paradoxalmente ponto tradicional na doutrina
brasileira, findou por aplicar os princípios de Hesse de forma indiscriminada, sem atentar à
sua pertinência ou mesmo à sua necessidade diante dos métodos de interpretação tradicionais.
Em outras palavras, a introdução destes princípios no ordenamento brasileiro se deu de forma
forçada, “abrasileirando-a” no caminho sem atentar à sua adequação prática com outros
métodos utilizados pelo direito nacional.
Sob este prisma, adquire essencial relevância para este trabalho, dentre os
princípios teorizados por Hesse, a unidade da constituição. Nesse sentido, o professor Vírgilio
conceitua:
[...] nem sempre se quer dizer a mesma coisa quando se fala em unidade da
constituição. Normalmente se quer dizer simplesmente que o intérprete deve
considerar as normas constitucionais não como isoladas e dispersas, mas
como preceitos integrados – evitando-se, assim, contradições internas no
seio da constituição. Sentido diverso pode ser encontrado na formulação de
Luís Roberto Barroso, que confere ao conceito “unidade da constituição” um
outro significado: a inexistência de hierarquia entre as normas
constitucionais23.
Nada há de contradita à primeira concepção, por ser esta nada menos que a
interpretação sistemática aplicada à hermenutica constitucional. Contudo, quanto à concepção
aferida por Luís Roberto Barroso, vê-se que esta fere de morte o sopesamento utilizado pelo
ordenamento brasileiro segundo a teoria de Alexy. Admitindo a unidade da constituição
como princípio que proíbe a hierarquização de normas constitucionais, não haveria como
fundamentar a prevalência de uma sobre outra em casos de colisão normativa. O sopesamento
como elemento de resolusão de conflitos normativos nada mais é senão uma declaração, para
o caso concreto, de que uma norma é superior à outra. Em outras palavras:
22 DA SILVA, Vírgilio Afonso. Interpretação Constitucional e Sincretismo Metodológico In: Silva, Virgílio
Afonso da (Org.) . Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 118.
23
[...] para aqueles que sustentam não poder haver hierarquia material entre as
normas constitucionais parece haver somente uma saída: a rejeição do
sopesamento como método de interpretação e aplicação do direito e a
consequente rejeição da possibilidade de um direito prevalecer sobre outro
em alguns casos24.
Não é, no entanto, o que ocorre no Brasil. Tanto a unidade da constituição como o
sopesamento são utilizados como métodos válidos, até mesmo complementares, ainda que, se
aceita a unidade constitucional na acepção disposta acima, são ambos claramente antagônicos.
É visão que se aproxima muito mais do concretismo de Lassale que dos princípios de Hesse,
contudo, é sob o fundamento de autoridade deste último que a unidade da constituição é
pensada.
No que tange à hierarquização, o principal óbice a seu reconhecimento é
justamente esta concepção do princípio da unidade da constituição. Se não há hierarquia entre
normas constitucionais, como pode haver hierarquia entre direitos fundamentais? Contudo, tal
afirmação não resiste a uma análise detida das normas constitucionais.
No Brasil, o sincretismo exposto acima traz a lume uma consequencia séria: a
interpretação constitucional se vê engessada. A aceitação irrestrita “do mais moderno”, ainda
que moderno aqui sejam teorias introduzidas com vinte anos de atraso desde sua concepção,
faz com que o estudo jurídico brasileiro rechace veementemente qualquer ruptura com o
pensamento jurídico tradicional.
Ora, o próprio Hesse afirma que a Constituição deve estar apta a se adequar a
eventuais mudanças de seus elementos condicionantes (sociais, políticos, econômicos), ou
seja, deve ter mecanismos que viabilizem esta adequação. Afirma ainda que deve limitar-se,
se possível, ao estabelecimento de alguns poucos princípios fundamentais, cujo conteúdo
específico, ainda que apresente características novas em virtude das céleres mudanças na
realidade sócio-política, mostre-se em condições de ser desenvolvido. Ele informa também a
importância destes princípios para a interpretação dos direitos fundamentais, principalmente
pelo Tribunal Constitucional Alemão. Ademais, a Constituição não deve se fundar numa
estrutura unilateral. Nesse sentido, destaca Hesse que:
Se pretende preservar a força normativa dos seus princípios fundamentais,
deve ela incorporar, mediante meticulosa ponderação, parte da estrutura
24
contrária. Direitos fundamentais não podem existir sem os deveres, a divisão
de poderes há de pressupor a possibilidade de concentração de poder, o
federalismo não pode subsistir sem uma certa dose de unitarismo. Se a
Constituição tentasse concretizar um desses princípios de forma
absolutamente pura, ter-se-ia de constatar, inevitavelmente – no mais tardar
em momento de acentuada crise – que ela ultrapassou os limites de sua força
normativa. A realidade haveria de pôr termo à sua normatividade; os
princípios que ela buscava concretizar estariam irremediavelmente
derrogados25.
Considerando-se a afirmação de Hesse de que a Constituição deve conformar-se a
seus elementos condicionantes, perceber-se-á a aplicação de seus princípios no Brasil deveria
ser de reduzidíssima abrangência, eis que os elementos condicionantes da Constituição
brasileira são notadamente distintos dos elementos condicionantes da Carta Magna alemã,
especialmente no que tange à quantidade de princípios e direitos fundamentais acobertados
por cada uma, muito mais numerosos no Brasil que na Alemanha. Como já dito, nada está
mais longe da realidade.
Em adição, é o próprio Hesse, que primeiro pensou a unidade da constituição,
quem afirma a necessidade de limitação dos direitos fundamentais diante uns dos outros:
A limitação de direitos fundamentais deve, por conseguinte, ser adequada
para produzir a proteção do bem jurídico, por cujo motivo ela é efetuada. Ela
deve ser necessária para isso, o que não é o caso, quando um meio mais
ameno bastaria. Ela deve, finalmente, ser proporcional em sentido restrito,
isto é, guardar relação adequada com o peso e o significado do direito
fundamental26.
A conclusão a ser tirada aqui é que a unidade da constituição não é óbice a
uma hierarquização de normas constitucionais. Se considerado o princípio supracitado em sua
acepção ampla, é dizer, enquanto preceito que proíbe interpretação constitucional isolada e
não sistematizada, a hierarquização se enquadrará perfeitamente. Ainda considerando a
sincrética concepção de que unidade da constituição indica inexistência de hierarquia, uma
análise perfunctória do texto constitucional demonstrará que, implicitamente, há hierarquia
entre normas constitucionais.
25
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Die Normative Kraft der Verfassung. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991, p. 21.
26
Feitas estas considerações, tem-se a seguinte indagação: há hierarquia entre
normas constitucionais em sentido amplo, porém, existe hierarquia entre direitos
fundamentais?
3 HIERARQUIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
O capítulo anterior demonstra que a aplicação do princípio da unidade da
constituição, na forma como se dá no Brasil, é falho. Isso porque este, ao tratar dos princípios
fundamentais como valores absolutos e inafastáveis, na verdade retira sua eficácia real quando
do conflito entre princípios antagônicos. Buscando contornar tal realidade, as Cortes
brasileiras aplicam a teoria do sopesamento principiológico de Alexy, ignorando que ambas as
teorias são elas mesmas conflitantes.
Resta estabelecido, portanto, o caráter não absoluto dos princípios constitucionais.
positivações destes princípios que se aplicam aos indivíduos e obrigam sejam observados por
estado e indivíduos. Em consequência, descabe falar de direitos fundamentais absolutos, pois
estes podem sofrer restrições diante de outros direitos e princípios constitucionais, muito
embora seu conteúdo essencial deva permanecer inalterado.
Isso posto, chega-se à indagação motivadora desta pesquisa monográfica: Há
hierarquia entre direitos fundamentais? Para responder tal questão, cabe debruçar-se sobre a
instauração concreta destes direitos através da promulgação da Constituição da República
Federativa do Brasil, em 1988. Percebe-se então um curioso fenômeno. A instauração do
amplo rol de direitos fundamentais pela Carta Magna brasileira – diga-se de passagem, até
hoje uma das mais avançadas do mundo em termos de garantias constitucionais referentes a
direitos humanos – não foi acompanhada por um esforço compatível com sua efetivação no
plano fático.
Isso se deve às próprias limitações do estado e da sociedade que promulga a
constituição, os quais, embora positivem constitucionalmente todos os direitos que creiam
serem indispensáveis, obviamente não disporão imediatamente de condições sócio-políticas
para efetivá-los plenamente. Tal fato, vale mencionar, não é exclusivo do direito brasileiro,
mas inerente à própria efetivação positiva dos direitos humanos na sociedade ocidental. O
doutrinador espanhol Rafael de Assis, ao tratar deste assunto, destaca o seguinte:
A través de las ‘paradojas del limitado límite’, señalé como los derechos, a
pesar de ser concebidos como verdaderos límites al poder, necesitaban para
su configuración jurídica el reconocimiento de éste. No se trataba así de unas
figuras que planteasen de forma absoluta una barrera a la actuación del poder
ya que dependía de este su realización. Así, la paradoja de la positivación
llamaba la atención sobre la necesidad de plantearse el problema de las
obligaciones del Estado, también llamadas autoobligaciones. Pero también,
esta paradoja incidía en el importante papel que para la realización de la
fórmula tiene el tipo de Estado en el que se plantee, concluyendo que sólo un
poder democrático permitía hablar propiamente de límites27.
O Professor de Asís traz o argumento de que, uma vez que é o estado que, ao
estabelecer um rol de direitos fundamentais, se autolimita, é a um tempo partícipe das duas
facetas dos direitos fundamentais: se obriga a cumpri-los ao passo em que,
concomitantemente, deve provê-los de mecanismos que garantam o seu cumprimento.
27
Planteia-se assim um paradoxo que deve ser sanado na medida em que estes mecanismos de
cumprimento se estabeleçam e se tornem eficazes.
Contudo, o saneamento deste paradoxo não se dá de uma vez, pois a conjuntura
sócio-econômica estatal incide na instauração destes mecanismos. Mendes, Coelho e Branco
trazem o lúcido argumento de que a positivação de um direito fundamental, para fins de
efetivação, não depende apenas do momento histórico, mas também da adequação do
contexto sociopolítico ao tempo desta.
Os direitos humanos seriam fruto de momentos históricos diferentes e a sua
própria diversidade já apontaria para a conveniência de não se concentrarem
esforços na busca de uma base absoluta, válida para todos os direitos em
todos os tempos. Ao invés, seria mais producente buscar, em cada caso
concreto, as várias razões elementares possíveis para a elevação de um
direito à categoria de fundamental, sempre tendo presentes as condições, os
meios e as situações nas quais este ou aquele direito haverá de atuar. Não
basta, assim, que um direito encontre bons motivos filosóficos, aceitos no
momento, para ser positivado; é indispensável, ainda, o concurso de
condições sociais e históricas favoráveis para que se incorpore aos estatutos
vinculantes28.
Ora, tendo em vista tais argumento, planteia-se o problema: o que acontece
quando um direito fundamental é positivado sem que o estado positivador tenha reais
condições de efetivá-lo? A análise da Carta Magna brasileira lança luz sobre esta questão.
Sarlet salienta, sobre o processo de elaboração da Constituição brasileira:
[...] o procedimento analítico do Constituinte revela certa desconfiança em
relação ao legislador infraconstitucional, além de demonstrar a intenção de
salvaguardar uma série de reinvidicações e conquistas contra uma eventual
erosão ou supressão pelos Poderes constituídos29.
Ora, é absolutamente compreensível, à luz da conjuntura histórica da promulgação
da Carta Cidadã, que o constituinte originário tenha estabelecido no texto constitucional o rol
o mais amplo possível de direitos e garantias fundamentais. À época, com a memória ainda
fresca das violações frequentes dos direitos individuais e sociais pela ditadura militar, o país
engatinhava em direção à democracia, após mais de duas décadas de ditadura militar na qual o
28 FERREIRA MENDES, Gilmar; MÁRTIRES COELHO, Inocêncio; GONET BRANCO, Paulo Gustavo.
Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 225.
29
WOLFGANG SARLET, Ingo. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
respeito aos direitos humanos era respeitado à conveniência discricionária do estado.
Buscou-se então positivar constitucionalmente um amplíssimo rol de direitos e garantias
fundamentais. Com esta volição, foi promulgado o artigo 5º, § 1º, CRFB/88, na qual a
aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais está expressamente prevista.
Contudo o paradigma sócio-econômico brasileiro não permitia a efetivação prática
de todo o rol delineado constitucionalmente. À época da promulgação da Carta cidadã, o país
não dispunha, ainda, de capacidade técnica, econômica e social suficientes à instauração plena
de todas as garantias constitucionalmente previstas.
O resultado dessa discrepância foi que a eficácia real de alguns direitos foi
prescindida em favor de outros, cuja efetivação era urgente.
Exemplo claro disso foram as garantias fundamentais referentes aos processos
judiciais. É inegável, por exemplo, que a proibição de ser considerado culpado antes de
transitada em julgado sentença condenatória, em termos práticos, foi efetivada antes da
garantia da razoável duração do processo, muito embora estivessem ambas originariamente
previstas no corpo constitucional.
É possível arguir que a divergência do exemplo acima se deve à complexidade de
efetivação de ambas as garantias, uma das quais exige apenas prestação negativa pelo estado,
ao passo que a outra exige a instauração efetiva de toda uma estrutura judiciária apta a tornar
célere a prestação jurisdicional, incidindo limitações de ordem econômica.
Contudo, esta complexidade não afasta a aferição do contexto social ao tempo da
promulgação da Constituição de 88. A sociedade brasileira ansiava, à época, mais por
segurança jurídica que por celeridade processual, resultado das graves violações do devido
processo legal perpetradas nos “anos de ferro”. Naturalmente, diante deste contexto,
prestigiaram-se em primeiro lugar as garantias referentes a efetivar a segurança jurídica.
Apenas atingida esta foi possível considerar a implementação de celeridade na tramitação
processual.
Nesse sentido, José Afonso da Silva30
aduz que “o legislador constituinte regulou
suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou margem à atuação
restritiva por parte da competência discricionária do poder público, nos termos que a lei
estabelecer.” Esta faculdade discricionária de restrição é indício claro do cisma trazido, já
30
pelo constituinte originário, entre direitos autoaplicáveis e direitos dependentes de orientação
legislativa adicional.
A conclusão que se tira destas premissas, dessarte, é inegável. A história
constitucional brasileira recente revela que, conquanto hajam sido positivados a um só tempo,
e sejam formalmente equidistantes, a efetivação prática dos direitos fundamentais observou
um escalonamento em face da urgência de sua instauração diante das necessidades da época.
Em outras palavras, houve uma hierarquia histórica de efetividade dos direitos
fundamentais previstos na Carta Magna de 88. Todo o exposto até aqui, entretanto, nada mais
é senão teorização com base em evidências racionais, fruto de evidências lógicas. Nada
obstante a análise do ordenamento jurídico brasileiro traz a lume uma série de evidências da
existência desta hierarquia, as quais analisaremos a seguir.
3.1 Indicativos implícitos da hierarquia
Falamos de um indício da hierarquização com base na efetividade histórica dos
direitos fundamentais no texto constitucional. Um índicio nada mais é que indicativo de que
uma tese possa ser verídica, é dizer, não se sustenta por si só. Uma série de indícios,
entretanto, aponta para um padrão de premissas que, se analisadas sistemáticamente,
apontarão para a mesma conclusão.
Há diversos indícios formais e materiais de hierarquização de direitos
fundamentais, os quais, analisados isoladamente, poderiam até ser considerados irrelevantes.
Isso se deve ao fato de que estes indícios, estes padrões indicativos de hierarquia não estão
escancarados no texto constitucional. São em sua maioria tangenciais, limitrofes, implícitos à
Constituição. Sua análise conjunta, entretanto, aponta invariavelmente para uma hierarquia.
Abordemos, pois, alguns destes indicativos.
3.1.1 Historicidade
O primeiro indicativo claro diz respeito à própria historicidade dos direitos