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3 HIERARQUIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

3.1 Indicativos implícitos da hierarquia

3.1.1 Historicidade

O primeiro indicativo claro diz respeito à própria historicidade dos direitos humanos.

A história moderna dos direitos humanos iniciou-se com os direitos de primeira geração, surgidos com a concepção do estado liberal. São direitos sumamente individuais, nascidos como fundamentos racionais das novas exigências da emergente sociedade burguesa. Os direitos de segunda geração que os seguiram, por sua vez, nasceram acompanhando a evolução industrial e o surgimento das relações proletariado-burguesia. Em outras palavras, desenvolveram-se direitos humanos voltados à coletividade (direitos econômicos, sociais, trabalhistas).

Já a terceira geração de direitos humanos dizem respeito às relações difusas de crescente relevância com a globalização, como por exemplo o direito a um meio ambiente equilibrado, à paz, ao desenvolvimento. D’avila31 argumenta que “os direitos de solidariedade, que juridicamente podem ser considerados em estado nascente, caracterizam-se por exigir, para sua conceituação, um maior grau de solidariedade do que os outros pelo fato de serem, ao mesmo tempo, individuais e coletivos32

”.

Há claras distinções entre as gerações de direitos humanos, distinções estas que, em sua essência, remontam ao contexto em que tais direitos foram primeiramente pensados. Neste sentido, a professora Ana Maria D’avila33

afirma que:

As diferentes épocas do surgimento, reconhecimento e positivação dessas três categorias de direitos fundamentais revelam que são fenômenos que tem respondido a contextos históricos distintos e a concepções ideológicas diversas. Isso impede que sejam considerados como estritamente equivalentes em seu grau de consenso e legitimidade nacional e internacional, ou como possuidores da mesma natureza.

A historicidade traz ainda uma relevante observação: sua introdução em um ordenamento, ou mesmo no ideário racional, depende de sua aceitação pela sociedade que o acolhe. Quer-se com isso dizer que há direitos humanos hoje amplamente aceitos que não o eram originariamente. Mais que isso: haverão no futuro direitos humanos que, hoje, sequer foram imaginados, que dirá implementados.

Note que, hodiernamente, boa parte da doutrina (Bonavides, Sarlet, Canotilho, para citar alguns34

), advogam contra o uso do termo “gerações de direito” e defendem a denominação “dimensões de direitos”, sob o lúcido argumento de que falar em gerações de

31

D’ÁVILA, Ana Maria. ‘Hierarquização de Direitos Fundamentais?’. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional - IBDC, ano 9, jan-mar 2001. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 176.

32

Fala-se ainda de direitos de uma quarta geração, os quais diriam respeito à democracia e às relações virtuais.

33

D’ÁVILA, Ana Maria. ‘Hierarquização de Direitos Fundamentais?’. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional - IBDC, ano 9, jan-mar 2001. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 176.

direitos traz uma noção de hierarquização entre eles em razão da época de seu surgimento. Ora, estas ressalvas doutrinárias indicam claramente que a hierarquia entre direitos humanos, a despeito de rejeitadas com base em critérios ideológicos, existe com base no momento histórico de seu surgimento.

É que falar de hierarquização com base na historicidade dos direitos humanos é válida, na medida em que aquela é resultado do próprio conteúdo essencial destes direitos. Perceba que a hierarquia entre direitos humanos faz sentido apenas se se considerar que certos direitos que só serão efetivados se já houverem outros que o precederam. Com efeito, há direitos humanos que se prestam apenas a garantir a observância a outro: o propósito de se estabelecer os direitos a uma alimentação diversificada e à agua – ambos bastante discutidos pela comunidade internacional hodiernamente - nada mais é senão a busca pela efetividade do direito à vida. Mais que isso, a vida é a base sobre o qual se amparam uma série de direitos: propriedade, privacidade, liberdade de religião, para citar alguns.

Nesse sentido, Ana Maria D’ávila leciona o seguinte:

Tradicionalmente, tem-se afirmado que os direitos fundamentais constituem um complexto integral, interdependente e indivisível de direitos, abrangendo tanto os individuais e políticos quanto os econômicos, sociais, culturais e de solidariedade. Tal posição é reforçada ainda mais pela confirmação de que só o reconhecimento integral de todos os direitos pode assegurar a existência real de cada um deles, pois, sem a eficácia dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos individuais e políticos tornam-se simples categorias formais. Igualmente, sem o pleno exercício dos direitos individuais e políticos, os demais perdem seu verdadeiro sentido.35

Como se vê, esta característica dos direitos humanos se reflete em sua positivação. O Estado adequa a efetivação dos direitos fundamentais de acordo com suas condições estruturais, porém, qual o critério a definir quais direitos devem ser primeiramente atendidos? A resposta, logicamente, é a garantia aos direitos “de base”, aqueles cuja efetivação por si só garanta a efetivação dos direitos a que se sujeitam.

34

GUERRA FILHO, William Santiago. Introdução ao direito processual constitucional. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 26; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 47; BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15. Ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 524-525.

35

D’ÁVILA, Ana Maria. ‘Hierarquização de Direitos Fundamentais?’ . In: Revista de Direito Constitucional e Internacional - IBDC, ano 9, jan-mar 2001. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 173.

A historicidade é, assim, evidência clara de hierarquia. Em que pese os argumentos em contrário, mormente aqueles expostos em torno da denominação “geração” ou “dimensões” de direito, vê-se que a crítica aqui se dá não contra a existência de hierarquia propriamente, mas sim em face do receio de que admitir hierarquia com base na historicidade dos direitos humanos poderá esvaziar o conteúdo dos direitos mais modernos. Trataremos desta crítica mais adiante.

3.1.2 Irrevogabilidade e Issuspendibilidade

Como segundo indicativo, temos o fato de que a Constituição Federal de 88, bem como uma série de tratados internacionais, institui certos direitos como irrevogáveis e issuspendíveis. Ora, tal é incompatível com a idéia de direitos fundamentais absolutos e indivísiveis, pois, fosse este o caso, deveriam ser observados em toda e qualquer circunstância.

O artigo 27.1 do Pacto de São José da Costa Rica disciplina a matéria da seguinte forma:

Artigo 27 - Suspensão de garantias

1. Em caso de guerra, de perigo público, ou de outra emergência que ameace a independência ou segurança do Estado-parte, este poderá adotar as disposições que, na medida e pelo tempo estritamente limitados às exigências da situação, suspendam as obrigações contraídas em virtude desta Convenção, desde que tais disposições não sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhe impõe o Direito Internacional e não encerrem discriminação alguma fundada em motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião ou origem social.

2. A disposição precedente não autoriza a suspensão dos direitos determinados nos seguintes artigos: 3 (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), 4 (direito à vida), 5 (direito à integridade pessoal), 6 (proibição da escravidão e da servidão), 9 (princípio da legalidade e da retroatividade), 12 (liberdade de consciência e religião), 17 (proteção da família), 18 (direito ao nome), 19 (direitos da criança), 20 (direito à nacionalidade) e 23 (direitos políticos), nem das garantias indispensáveis para a proteção de tais direitos.

3. Todo Estado-parte no presente Pacto que fizer uso do direito de suspensão deverá comunicar imediatamente aos outros Estados-partes na presente Convenção, por intermédio do Secretário Geral da Organização dos Estados Americanos, as disposições cuja aplicação haja suspendido, os motivos determinantes da suspensão e a data em que haja dado por terminada tal suspensão.

Do texto do tratado internacional supracitado, é de especial relevância o item 27.2. Perceba que não só se previu expressamente hipótese de suspensão ou restrições de direitos fundamentais, como se estabeleceu ato seguido um rol de direitos intangíveis e irrevogáveis, que não podem ser suspensos, nem as garantias que lhes garantam eficácia.

A Constituição Federal de 1988, por sua vez, positiva o estado de sítio e o estado de defesa, nos quais é possível a restrição a certos direitos. Esta restrição, porém, é minuciosamente regulada. Durante o estado de defesa, o artigo 136, § 1º, I, estabelece um rol de direitos que poderão ser restringidos: reunião, sigilo de correspondência, e comunicação telegráfica e telefônica. Já durante o estado de sítio, o decreto que o instituir deve indicar expressamente os direitos restringidos, limitados a: locomoção, liberdade de imprensa, inviolabilidade de domicílio e propriedade, esta última pela possibilidade de intervenção em empresas de serviços públicos e requisição de bens.

Observe que a mera faculdade de suspensão de direitos fundamentais evidencia tão somente que estes não são absolutos. Contudo, a colocação de direitos issuspendíveis, ou mesmo a delimitação dos direitos passíveis de suspensão, claramente os hierarquiza.

3.1.3 Momento de exigibilidade

Argumentou-se anteriormente que a Constituição Federal de 88 estabeleceu um rol de direitos fundamentais que não foram todos efetivados a um só tempo. Nada obstante, a historicidade dos direitos humanos diz respeito ao momento em que estes se tornam exigíveis. D’avila afirma que:

Entre as gerações de direitos fundamentais existem claras diferenças. Uma terceira, e que é a mais importante, consiste na afirmação de que, enquanto os direitos da primeira geração possuem aplicabilidade imediata, os da segunda, terceira e quarta gerações estão sujeitos a uma progressividade,

traduzida em normas programáticas cuja aplicação concreta encontra-se condicionada ao desenvolvimento de políticas legislativas posteriores, que lhes darão viabilidade material36.

Tal se deve ao fato de que a efetividade dos direitos individuais exigem uma prestação negativa, consistente na abstenção do estado e dos demais titulares em violar tais direitos, ao passo que as demais gerações exigem uma prestação positiva, é dizer, requerem a criação de condições reais e materiais que permitam sua eficácia.

A Constituição Federal de 88 estabeleceu em seu artigo 5º, § 1º, a aplicabilidade imediata das normas que tratem sobre direitos e garantias fundamentais. Em outras palavras, no ordenamento brasileiro basta que o direito fundamental esteja posto na Constituição para ser exigível. Contudo, ao passo em que procedeu à esta brilhante disposição, o constituinte originário dividiu os direitos fundamentais em sua exigibilidade, na medida em que delegou a instauração de certos direitos à normas de aplicação mediata, dependentes de regulação legislativa para adquirem exequibilidade. A solução implícita para este impasse foi interpretar os direitos de eficácia limitada (p.e. direito de greve) como juridicamente eficazes, mas não materialmente. Em outras palavras, não se nega tal direito se perseguido judicialmente, porém sua exigibilidade enquanto atuação estatal positiva será restrita enquanto perdure a ausência de regulação.

Quanto a este ponto pode-se traçar uma série de lutas e conquistas pela plena exigibilidade, dentre as quais merece menção a busca pela efetividade do mandado de injunção como mecanismo de efetivação das disposições constitucionais. Tratar deste tema, contudo, pouco acrescentaria a este trabalho. O fato é que, implicitamente, existem direitos fundamentais cuja exigibilidade é prejudicada no ordenamento jurídico brasileiro, a despeito da garantia do art. 5º, § 1º, CRFB/88. Tal fato aduz a uma hierarquia entre direitos plenamente exigíveis e direitos de exigibilidade restrita.

3.1.4 Conteúdo axiológico

Abordando os direitos fundamentais sob uma perspectiva material, ademais, há claramente hierarquização entre eles. Neste sentido, Marmelstein afirma que, embora não se

36

D’ÁVILA, Ana Maria. ‘Hierarquização de Direitos Fundamentais?’ In: Revista de Direito Constitucional e Internacional - IBDC, ano 9, jan-mar 2001. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 180.

possa reconhecer uma hierarquia epistemológica formal entre princípios constitucionais, há claramente hierarquia se consideradas as normas axiologicamente. Aduz o citado autor que:

De fato, se nos pautarmos no critério axiológico, valorativo, parece indubitável que há hierarquia entre princípios fundamentais. Afinal, quem ousa dizer que o princípio da dignidade da pessoa humana ‘vale’ menos que o princípio da proteção à propriedade? Aliás, todos os princípios e regras decorrem, ainda que indireta e mediatamente, do princípio-mor da dignidade da pessoa humana. Do mesmo modo, seria correto dizer que o princípio do devido processo legal estaria situado no topo dos princípios constitucionais processuais37.

Em outras palavras, quando analisadas materialmente, percebe-se que os direitos fundamentais se hierarquizam quase que naturalmente. É bem verdade que a discussão sobre uma hierarquia material de direitos fundamentais descambará, quase invariavelmente, a uma discussão filosófica sobre quais dos direitos é mais importante. Contudo, analisando os indicativos formais já aduzidos em consonância com a análise material, percebe-se que há certos direitos – vida, autodeterminação, devido processo legal, para citar alguns – que muito dificilmente poderão sofrer restrições diante de outros.

Argumento interessante quanto a hierarquia material de direitos fundamentais, ademais, é trazido pelo professor Vírgilio Afonso da Silva. Segundo ele38

:

É interessante notar que a superioridade material de algumas normas constitucionais em relação a outras é defendida justamente na decisão do Tribunal Constitucional Alemão que muitos costumam usar como fundamento da unidade da constituição. O trecho normalmente citado por quem usa essa decisão com esse fim é o seguinte: "Uma disposição constitucional não pode ser considerada isoladamente e nem interpretada somente a partir de si mesma. Ela está em uma conexão de sentido com os demais preceitos constitucionais, que representam uma unidade interna. No entanto, a decisão vai mais além. A frase seguinte é: "Do conteúdo total da constituição depreendem–se certos princípios e decisões juridico– constitucionais, aos quais as demais disposições constitucionais estão subordinadas".

37 MARMELSTEIN, George. A hierarquia entre princípios e a colisão de normas constitucionais. In:

mundojuridico.com.br, publicado em agosto/2002. Acesso em 30/12/2012

38

O professor Vírgilio Afonso da Silva faz referência à Cf. BVerfGE 1, 14. Os trechos citados foram traduzidos pelo próprio.

Pouco mais adiante, a conclusão: "Disso resulta que cada disposição constitucional deve ser interpretada de forma que seja compatível com aqueles princípios constitucionais e decisões fundamentais do legislador constitucional39.

Estes princípios aos quais as demais normas constitucionais se subordinam, conforme aduzidos pela Corte Constitucional alemã, estão materialmente em uma posição hierárquica superior aos demais. Podem ser considerados, inclusive, como normas fundamentadoras dos demais princípios constitucionais.

Conclui-se, portanto, que a série de argumentos aqui expostos possuem uma única conclusão possível: Há uma hierarquia implícita entre direitos fundamentais no ordenamento brasileiro. Os indicativos que apontam nesta direção, embora meramente circunstanciais se analisados isoladamente, tomam feição definitiva em análise sistemática.

Contudo esta hierarquização é amplamente rechaçada por boa parte da doutrina nacional. O principal argumento para tanto – a violação ao princípio da unidade da constituição – já foi afastado no capítulo anterior, pois falar de hierarquia não fere este princípio, considerado enquanto paradigma de observação compulsória da interpretação constitucional sistemática. Em que pese tal fato, há argumentos relevantes em desfavor desta hierarquização. Cumpre, portanto, debruçar-se sobre os mais contundentes.

3.2 Críticas à Hierarquização

Há algumas críticas a serem tratadas neste trabalho. Falou-se, a princípio, da unidade da constituição como óbice para a hierarquização. Tal crítica, embora contundente, só pode existir se se adota o ponto de vista de que unidade constitucional resume-se a aferição de que normas constitucionais são absolutas e inafastáveis. Este ponto de vista, como já explanado, é inválido, pois admitir o caráter absoluto de uma norma constitucional é negar o sopesamento como método de resolução do conflito entre normas, amplamente utilizado no ordenamento brasileiro. Ou seja, resulta em incutir em um silogismo que deve ser inaceitável para a interpretação constitucional.

39

SILVA, Vírgilio Afonso da. Interpretação Constitucional e Sincretismo Metodológico In: Silva, Virgílio Afonso da (Org.) . Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 124.

Cabe, sem embargo, sopesar outras críticas relevantes acerca da hierarquização de direitos fundamentais, a fim de: (1) aferir sua pertinência e, (2) verificar se estes, embora válidos, realmente significam óbice à hierarquia entre direitos fundamentais.

3.2.1 Esvaziamento de fato dos direitos fundamentais

A primeira e importante crítica a se abordar consiste na seguinte afirmação: admitir hierarquia entre direitos humanos implica em reconhecer que certos direitos, hierarquicamente inferiores, serão preteridos quando em conflito com aqueles que estão em um patamar superior. Neste caso, pode haver no caso concreto hipóteses em que direitos fundamentais serão integralmente suprimidos diante de outros, o que contrariaria o princípio da máxima efetividade e da inafastabilidade dos direitos humanos.

Com efeito, esta é uma preocupação válida, e pode ser considerada a principal responsável pela relutância que a doutrina brasileira possui em admitir a ideia de hierarquia entre direitos fundamentais. As ressalvas a serem feitas a esta crítica, portanto, não devem se estruturar para fins de rechaço, mas sim para adequá-la à problemática aqui abordada.

A crítica destacada parte de um pressuposto até certo ponto lógico, porém equivocado: o de que a noção de hierarquização é incompatível com o sopesamento de normas constitucionais. Ora, a crítica aqui discutida pode ser resumida na preocupação com o esvaziamento material de um direito fundamental quando entra em conflito com outro. Contudo, esse esvaziamento não se dará quando utilizado o sopesamento, na medida em que este não afasta norma, apenas restringe sua abrangência e faz prevalecer a outra, conflitante.

As premissas lançadas nos capítulos anteriores permitem chegar a uma série de conclusões. A uma, existe hierarquia implícita entre as normas constitucionais, as quais se refletem naquelas normas que positivam direitos e garantias fundamentais. A duas, que essa hierarquia se revela não formalmente – não existe hierarquia formal – mas pela própria axiologia destas normas, é dizer, nos valores inerentes aos direitos positivados por elas.

Por essas duas conclusões, chega-se a uma terceira: a hierarquia aqui discutida é prévia à interpretação. Consequência disso é que a ideia de hierarquia não afasta o sopesamento como método de solucionar conflitos entre normas constitucionais, mas apenas

deixa uma destas em posição preferencial frente à outra, de forma anterior à atuação do intérprete.

Há um método, conhecido como “doutrina da posição preferencial”, que vem sendo amplamente utilizado pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América para solucionar conflitos entre direitos fundamentais. Por este método, através de um exame prévio de razoabilidade entre um direito fundamental constrito e uma norma constritora, permite-se chegar a um escalonamento hierárquico entre direitos fundamentais. Letícia Campos Velho Martel advoga:

A doutrina da posição preferencial significa, pois, a hierarquização dos Direitos Fundamentais protegidos pelo devido processo legal e a inserção de alguns em posição privilegiada em relação a outros. Em que pese todos possuírem caráter de fundamentalidade, uns são apostos em local cimeiro, tomados como de maior peso de per si. Então, os Direito Fundamentais que assumem o mais alto posto na hierarquização correspondem aos dotados de posição preferencial. Diante da privação destes, usar-se-á o escrutínio estrito; na ausência deles, usar-se-á o teste da mera razoabilidade40.

A aplicação deste método no Brasil é inviável, por tratar de ordenamento jurídico bastante alheio à realidade brasileira. Contudo, o conceito de posição preferencial de certos direitos pode indubitavelmente encontrar paralelos com nosso ordenamento.

Se admitirmos tanto a idéia de sopesamento quanto a idéia de hierarquia a partir da posição preferencial de um direito sobre o outro, temos um sistema em que as normas, antes da atuação hermenêutica, serão axiologicamente hierarquizadas entre si. Esta hierarquização implícita, contudo, não deve representar impedimento a que a norma hierarquicamente inferior prevaleça sobre a hierarquicamente superior, se assim entender o intérprete, desde que esta prevalência esteja bem motivada e fundamentada. Na verdade, a consequencia prática da hierarquização será apenas reforçar o princípio do livre convencimento motivado pelos julgadores. Em outras palavras, colocar um dos direitos, a priori, em “posição preferencial”.

Como se vê, a hierarquização é perfeitamente adequável a um sistema ponderativo de valores utilizando-se do sopesamento como método de solução de conflitos normativos e,

40 MARTEL, Letícia de Campos Velho. Hierarquização de direitos fundamentais: a doutrina da posição

preferencial na jurisprudência da Suprema Corte Norte-americana. Florianópolis: Revista Sequência, nº 48,

com efeito, a reforça. Com a hierarquização, tem-se sistema na qual se limita sobremaneira a discrição casuística dos órgãos julgadores, valorizando-se os princípios conteúdo essenciais das normas e fortalecendo os direitos fundamentais na justa medida em que se restringe o casuísmo da interpretação constitucional.

A crítica discutida, assim, é pertinente, porém não incompatibiliza a ideia de hierarquia entre direitos fundamentais.

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