A NADIFICAÇÃO COMO CONDUTA CONCRETA HUMANA EM SARTRE
Siloe Cristina do Nascimento
∗RESUMO
A nadificação é um termo necessário para compreender o pensamento sartriano, mas ao contrário do que a primeira impressão sugere, este conceito não é simples abstração desconectada do real; a nadificação, de outro modo, funciona como instrumento dialético para compreensão da relação entre a consciência e os objetos, e como tal é sempre indicação de uma conduta humana que só existe no mundo. Nosso escopo é explicar, com base na obra O Ser e o Nada, como Sartre entende a nadificação para mostrar que ela é uma conduta concreta.
Para realizar esta tarefa faremos uma breve introdução ao conceito de intencionalidade explicando a relação entre a consciência e os objetos. Com isso feito, veremos por meio da análise de uma conduta humana - neste caso a interrogação pelo ser - como a consciência se desprende dos objetos nadificando o real e fazendo surgir o não-ser como constatação objetiva no mundo. Pretendemos mostrar que o conceito de nadificação compreende, portanto, o desgarramento da consciência em relação aos objetos, na qual a consciência se desprende do ser percebido colocando a possibilidade da negação. Mostraremos como, a partir de um exemplo dado por Sartre n’O Ser e o Nada, ao marcar um encontro no bar a consciência faz surgir o não-ser em meio ao ser. Marco um encontro com Pedro no bar, e ao chegar observo o ambiente, pessoas, mesas, bebidas e transcendo essa percepção. Faço desvanecer o que percebi e uso esse cenário apenas como um pano de fundo para a minha busca por meu amigo, mas Pedro não está – tudo que encontro é sua ausência – minha espera pelo ser encontrou o nada. A falta de Pedro é o nada que encontrei sobre o fundo do bar que nadifico e sua ausência é um fato objetivo: o não-ser de Pedro é o que sustenta a minha negação; dessa forma, veremos que a negação e o nada são constatações objetivas da consciência onde ela organizou o real esperando uma resposta do ser, e a nadificação indica o desprendimento da consciência, dos objetos e de si mesma, que a faz negar o ser.
PALAVRAS-CHAVE: Intencionalidade. Nadificação. Negação. Nada.
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Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), mestranda pelo Programa de Pós-
graduação em Filosofia da UFES e bolsista pela FAPES. Trabalhou a relação entre fenomenologia e ética em Sartre
INTRODUÇÃO
A ideia de nada e de nadificação são conceitos fundamentais para compreender a filosofia sartriana. O senso-comum entende que o nada é pura indeterminação e o conceito de nadificação parece, à primeira vista, uma abstração teórica sem relação com o real. Talvez seja esse o motivo da estranheza a esses termos, tão correntes ao longo da obra O Ser e o Nada, e que podem dificultar o estudo desse autor, já que este não é o sentido dado por Sartre - para ele a nadificação pode ser observada em qualquer conduta humana.
Para trabalhar esta questão, propomos demonstrar neste trabalho, como o conceito de nadificação sartriano refere-se a uma conduta concreta humana. Nesta tarefa, desenvolveremos de início o conceito de intencionalidade, toda consciência é consciência de algo, o que revelará a forma que Sartre compreende a relação da consciência com o objeto.
Com isso, poderemos entender como a consciência é sempre relação com um objeto e, ao mesmo tempo, desgarramento. É a esta ideia, como tentaremos mostrar, que o conceito de nadificação remete. A consciência só existe como consciência de um objeto que ela não é, com o qual não se identifica e por isso se desgarra, desse modo, ela é vazia de conteúdos. Em outras palavras, a consciência é nada de ser, em si mesma ela é perpétua nadificação de si que se desvencilha dos objetos nadificando-os. Isto feito, poderemos acompanhar a primeira parte da obra O Ser e o Nada de Sartre, intitulada O Problema do Nada. Veremos que para Sartre a realidade humana é uma totalidade sintética, de consciência e objeto, que precisa ser estudada como um todo para ser entendida, assim, é preciso partir da compreensão de uma conduta humana. A conduta escolhida é a pergunta, a qual revelará que, diferente do que o senso- comum acredita, o não-ser e o nada fazem parte da realidade humana. A partir daí, mostraremos que Sartre recusa a teoria do nada como indeterminação e do não-ser como juízo sobre o real, para ele o nada é uma revelação do ser que tem seu fundamento no real (e não na subjetividade).
Neste ponto, nós questionaremos – ainda acompanhando o movimento textual
sartriano – de onde surge o Nada? Pois o ser é plenitude e não poderia gerar o nada, e o nada
também não pode nadificar-se. Para responder a esta questão iremos explicar que a origem do nada encontra-se no homem, porque ele é em si mesmo seu próprio nada. O homem é perpétua nadificação que o separa de si e do mundo.
Seguindo este trajeto pretendemos mostrar que o nada e o não-ser descobertos através do estudo de uma conduta humana são a origem da negação e pertecem à realidade humana. E, a nadificação, longe de ser mera abstração teórica, é o que permite fazer surgir a realidade humana, podendo ser observada em qualquer comportamento. Por isso, mostraremos por fim, a forma que a nadificação faz surgir o não-ser em meio ao ser em um momento qualquer cotidiano como a espera de um amigo no bar.
Com essa imagem Sartre explica como a nadificação está presente em nosso cotidiano, e a todo momento nos deparamos com o nada e o não-ser. Quando procuro meu amigo no bar faço os objetos do local desvanecerem - o que é a primeira forma de nadificação – e se tornarem o fundo de minha busca por Pedro. Mas Pedro não está, encontro sua ausência, e o não-ser de Pedro sustenta minha negação. De fato, foi minha consciência que formulou o juízo
“Pedro não está lá”, mas esse juízo está fundamentado na falta de Pedro porque sua ausência é real: seu não-ser é um fato objetivo que constatei. Portanto, a nadificação permitiu ao homem questionar o ser, organizando a plenitude do bar como um quadro, em sua busca por Pedro; e a ausência de Pedro, seu não-ser, é um fato real.
INTENCIONALIDADE
Faremos nesta parte uma breve exposição sobre o conceito de intencionalidade apenas para introduzir o leitor ao diálogo sartriano, já que ao longo do texto iremos acrescentar mais informações sobre a consciência na medida em que nos aprofundamos na nossa questão.
A fórmula da intencionalidade que Sartre desenvolveu, partindo de Husserl, é “toda consciência
é consciência de algo”. Esta frase, a princípio simples, contém uma série de desdobramentos
teóricos que estruturam toda filosofia sartriana. “Toda consciência, mostrou Husserl, é
consciência de alguma coisa. Significa que não há consciência que não seja posicionamento de um objeto transcendente, ou, se preferirmos, que a consciência não tem “conteúdo”” (SARTRE, 2009, p. 22).
Em Situações I ele afirma que a consciência é um sair de si, um escapar-se; ela é apenas um movimento transcendente em direção às coisas, e não passa do exterior dela mesma. Neste texto, ele critica as filosofias alimentares que fazem da consciência uma substância digestiva de objetos. Para o francês, a consciência é vazia de conteúdos, todos os objetos estão por princípio fora dela. É esta recusa a ser passividade, recusa a ser substância, que constitui a consciência. Consciência é intenção em direção ao objeto, que se desgarra pela fissura do nada, nadificando a si e ao mundo.
Afirmar “toda a consciência é consciência de qualquer coisa” significa dizer que a consciência não existe fora dessa relação com o objeto, logo, ela não tem ser próprio; ela é nada de ser, e só existe como consciência de algo; dessa forma não poderia existir uma consciência absoluta que subsistisse por si, já que uma consciência de nada seria um nada absoluto
1. Isso implica que para que essa relação se sustente é preciso que o objeto, por sua vez, exista por si e tenha ser próprio. Ele é externo à consciência, plena positividade, fechado em si, sem nenhuma fissura, incapaz de se relacionar com outro ser. Já a consciência é falta de ser, busca pelo ser: um movimento que nada carrega e a nada se prende. É ela que percebe, relaciona e significa o mundo à sua volta. Esse mundo existe por si, porém como massa indeterminada, enquanto que a consciência é capaz de significar o mundo, mas só existe nesta relação com o objeto que nega. A consciência é negação do ser, só existe em relação ao ser que arranca de si, deslizando pela fissura do nada.
Dessa forma, é condição de existência da consciência relacionar-se com o ser, já que só existe consciência como consciência de algo. Ela é vazia, nada de ser e por isso busca pelo ser que preencheria seu nada. A consciência permanece, portanto intencionando o objeto para
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