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FREUD, NIETZSCHE E A GENEALOGIA DA CIVILIZAÇÃO

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FREUD, NIETZSCHE E A GENEALOGIA DA CIVILIZAÇÃO

Márcio Mariguela Universidade Metodista de Piracicaba -São Paulo

Escola de Psicanálise de Campinas - São Paulo

"No início não é a origem, é o lugar"

Jacques Lacan

O presente ensaio visa estabelecer uma interlocução entre Freud e Nietzsche num ponto específico: a gênese da coletividade como ato de civilização. Partirei do seguinte pressuposto: Freud foi um leitor curioso do pensamento filosófico de Nietzsche. Há referências explicitas ao nome de Nietzsche nas obras de Freud.1

Contemporâneos da emergência dos estudos filológicos, ambos determinaram os desdobramentos das técnicas de interpretação no século XX. Para além de apontar influências, débitos intelectuais ou coisas do gênero, por em relação os nomes Freud e Nietzsche implica constatar, primeiramente, que ambos partilham de um cenário histórico comum. Nada consta que tenham se encontrado, no entanto, Freud fez referência às idéias de Nietzsche em pelo menos três momentos no conjunto de sua obra:

1- no parágrafo acrescentado em 1919 no final do item B ("Regressão") do capítulo VII ("A psicologia dos processos oníricos") da Die Traumdeutung [A Interpretação dos Sonhos];

2 - na nota de rodapé no escrito de 1923, O Ego e o Id;

3- no capítulo X "A massa e a Horda Primitiva" do livro A Psicologia das Massas e Análise do Eu, publicado em 1921.

1 No artigo "Freud e Nietzsche: ontogênese e filogênese", publicada em homenagem ao centenário da morte de Nietzsche, abordei as relações entre ontogênese e filogênese na obra de ambos (Mariguela, 2001).

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Ao longo deste século, diferentes autores2 tematizaram a relação Freud-Nietzsche.

Michel Foucault, por exemplo, na conferência de 1964, alinhou Nietzsche, Freud e Marx para analisar as rupturas que cada um, a seu modo, realizou na hermenêutica moderna: "No primeiro volume do Capital, textos como o Nascimento da Tragédia, e A Genealogia da Moral, a Traumdeutung, situam-nos de novo ante técnicas interpretativas. E o efeito do seu impacto, o gênero de ferida que estas obras produziram no pensamento ocidental, deve-se provavelmente ao fato de terem significado para nós o que o mesmo Marx qualificou de 'hieroglíficos'. O que nos coloca numa posição incômoda, já que estas técnicas de interpretação nos dizem respeito, e que nós, como intérpretes, teremos que interpretarmo- nos a partir destas técnicas" (Foucault, 1987: 17).

Esta referência ao argumento de Foucault define também a perspectiva adotada neste ensaio: Freud e Nietzsche ocupam a função autor que permite traçar, ou mesmo cartografar, um campo de investigação a partir de uma genealogia da civilização. É como genealogista da moral que Nietzsche empreendeu sua descontrução dos ideais civilizatórios da modernidade iluminista e dos preceitos do cristianismo, interpretado como platonismo para a massa, a plebe. Freud também foi um genealogista da civilização: seus livros Totem e tabu, publicado em 1912 e O mal-estar na civilização, publicado em 1929 são verdadeiros marcos deste trabalho genealógico.

Dentre as três indicações citadas acima, vou me deter na referência que Freud fez a Nietzsche ao citar o advento do Super-homem no capítulo em que apresentou seu principal argumento para sustentar que psicologia individual deve ser tão antiga no tempo quanto a psicologia das massas. Para tanto, irei destacar alguns argumentos que permitam acompanhar o modo como Freud construiu seu livro Psicologia de las Masas y Analisis del Yo.

Como um grande mestre da retórica, Freud introduziu seu tema na primeira frase:

"La oposición entre psicologia individual y psicologia social o coletiva, que a primeira vista puede parecernos muy profunda, pierde gran parte de su significación en cuanto La sometemos a más detenido examen" (1945: 2563). Tratava-se justamente de um exame

2 Paul-Laurent Assoun, comentou a estranha contemporaneidade entre Freud e Nietzsche, citando a ata da Sessão de 01 de Abril de 1908 da Sociedade Psicanalítica de Viena em que Freud afirmou que não conhecia a obra de Nietzsche, que nunca conseguiu estudá-lo, que não ia além de meia página nas tentativas de lê-lo. Cita também duas outras ocasiões em que Freud disse ter recusado o grande prazer proporcionado pela leitura de Nietzsche e ter evitado, por muito tempo, o contato com sua escrita (1989: 15).

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genealógico que pudesse inventar um novo modo de relação entre a psicologia individual e a psicologia coletiva no qual a oposição pudesse perder sua significação.

Ao destacar o que considerou uma limitação na psicologia coletiva, Freud afirmou:

“Al hablar de la psicologia social o colectiva se acostumbra prescindir de estas relaciones [do indivíduo com seus pais, irmãos, com o objeto amado, com os amigos], tomando solamente como objeto de la investigación la influencia simultánea ejercida sobre el individuo por un gran número de personas a las que el unen ciertos lazos, pero que fuera de esto pueden serle ajenas desde otros muchos puntos de vista” (1945: 2563)

Para Freud, ao centrar a análise nas relações entre o indivíduo e um grande número de pessoas, a psicologia da massa3 deixa de fora laços cotidianos com os quais ele [o indivíduo] sustenta sua existência temporal. Se o nome massa designa um número considerável de pessoas que mantêm entre si certa coesão de caráter social, cultural, econômico, político, então a psicologia da massa se interessa assim pelo indivíduo como membro de uma tribo, de um povo, de uma classe social ou de uma instituição, ou como elemento de um conjunto de humanos, que em num dado momento e com determinada finalidade, se organizam em massa formando uma coletividade.

O passo seguinte foi confrontar sua posição com a concepção de “alma coletiva”

apresentada por Gustavo Le Bon em La psychologie des foules publicado em 1895. Freud recorreu a essa obra de Le Bon para interrogar o que define a massa e qual sua influência na constituição psíquica [vida anímica] dos indivíduos submetidos a uma dada formação de atitudes e comportamentos em coletividade. É o funcionamento psíquico das pessoas que se que se agrupam, formando uma massa, o interesse de Freud para analisar as formações do inconsciente nas atividades de agrupamento, de coletividade.

3 O título original, Messenpsychologie und Ich-Analyse, foi traduzido na Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, por Psicologia de Grupo e a Análise do Ego (1976). Como a tradução adotou a versão inglesa, Group Psychology and the Analysis of the Ego, a palavra grupo restringiu outros sentidos possíveis que estão presentes na palavra alemã Messen. Em nota de rodapé, o editor inglês da Standard afirmou: "No correr de toda tradução utiliza-se a palavra 'grupo' como equivalente à palavra alemã 'masse', muito mais abrangente. O autor emprega essa última palavra para traduzir tanto 'grupo', de McDougall, como também 'foule', de Le Bom, que seria mais naturalmente traduzida por 'multidão' em inglês.

A bem da uniformidade, contudo, preferiu-se 'grupo' também nesse caso e a palavra substituiu 'multidão' mesmo nos extratos da tradução inglesa de Le Bon" (FREUD, 1976: 91). A tradução em espanhol da Editorial Biblioteca Nueva de Madri, utilizada neste artigo, optou por Psicologia de las Masas y Analisis del Yo; traduzindo foules por multitudes. Quanto ao livro de Mc Dougall, The Group Mind, escolheu a palabra masa para traduzir group. Segundo os comentários de Freud, Mc Dougall designou como group uma "masa desorganizada le da el nombre de 'multitud' (crowd)" (1945: 2572).

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A investigação da vida psíquica coletiva já estava presente em Freud desde Totem e tabu, e se estende até sua obra póstuma, Moisés e o Monoteísmo. O livro O mal-estar na civilização, publicado em 1929, é exemplar do que alguns comentadores (Gay, 1989: 305) destacaram como vôo de Ícaro que Freud empreendeu no campo social: a passagem da escuta clínica, lugar da condução de tratamentos das psiconeuroses, para o diagnóstico das formações do inconsciente na vida social, lugar onde é excercido a coletividade. Pode-se argumentar que Freud empreendeu uma genealogia da moral ao diagnosticar o mal-estar na vida civilizada: condição a priori de toda formação de massa, marcado através de trocas simbólicas reguladas pelo primado da morte do pai.

Voltando à Psicologia das Massas..., podemos encontrar a premissa que permitiu Freud analisar os fenômenos da identificação na formação da massa: um indivíduo esta sujeito na massa a profundas alterações em sua atividade psíquica, em sua vida anímica. O campo de investigação de Freud foi demarcado através de premissas que procuraram traçar a gênese dessa alteração. Para tanto, afirmou que utilizaria o conceito de libido, que lhe prestou bons serviços no estudo das psiconeuroses para cartografar as formações do inconsciente nas massas. Assim, chegou à conclusão de que as relações amorosas [portanto, libidinais] estão na gênese do psiquismo coletivo.

A fim de demonstrar seu argumento, analisou duas formações de massa que possuem um caráter artificial: a Igreja e o Exército. Porque são artificiais? Por que essas são massas "sobre lãs que actúa uma coerción exterior encaminada a preservarlas de La disolución y a evitar modificaciones de su estructura" (Freud, 1945: 2578). Os laços libidinais que vinculam essas duas formações de massa estão determinados, por um lado, pela identificação com o líder [Cristo e seus apóstolos, na Igreja Católica; e o general em chefe, no Exército], e por outro, pela identificação entre si como membros da coletividade em que se representam. A estratégia de Freud foi substituir a figura do líder por uma idéia [representação ou conceito] dominante.

Ora, se a coesão que garante a coletividade é regulada pelas relações amorosas [libidinais], isso não significa que a formação coletiva é mantida somente pelos laços de amor. "El director o la idea directora podrían también revestir un caráter negativo; esto es, el odio hacia uma persona o una instituicón determinadas podria actuar análogamente al efecto positivo y provocar lazos afectivos semejantes. Asimismo habríamos de

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perguntarnos si el director es realmente indispensable para la esencia de la masa, etc"

(Freud, 1945: 2578)

Nesse ponto o livro de Freud torna-se ainda mais instigante: o conceito de pulsão de morte, estabelecido em Para-Além do Princípio do Prazer, publicado em 1920, foi aplicado para diagnosticar o funcionamento psíquico das massas. O passo seguinte foi uma contundente análise da identificação, o célebre capítulo VII "La Identificacion". Após ter caracterizado as três fontes do processo de identificação, Freud extraiu algumas premissas para concluir que a massa é uma resurreição da horda primitiva [aquela mesma descrita em 1914 no livro Totem e tabu]: "Así como el hombre primitivo sobrevive virtualmente em cada individuo, también toda masa humana puede reconstruir la horda primitiva. Habremos, pues, de deducir que la psicologia colectiva es la psicologia humana más antiga" (Freud, 1945: 2596).

Porém, tal conclusão carecia segundo Freud de uma correção: se admitirmos que a genealogia da moral, empreendida em Totem e tabu, demonstrou dois tipos de psicologia [a dos membros individuais da massa; e a do pai, chefe ou líder], podemos deduzir que a psicologia individual deve ser tão antiga quanto a psicologia das massas.

Para tanto, Freud descreveu a psicologia do pai: o pai da horda era livre, ao passo que os membros da massa não o são. Os atos do pai demonstravam força suficiente para impor sua vontade, posto que esta não necessitava do reforço de outros. Aqui aparece uma articulação curiosa: Ele, o pai da horda, não amava ninguém, a não ser a si próprio, ou quando muito, amava a outras pessoas, na medida em que atendiam às suas demandas e necessidades. "En los albores de la historia humana fue el padre de la horda primitiva el superhombre, cuyo advenimiento esperaba Nietzsche en un lejano futuro. Los individuos componentes de una masa precisan todavia actualmente de la ilusión de que el jefe los ama a todos con un amor justo y equitativo, mientras que el jefe mismo no necesita amar a nadie, puede erigirse en dueño y seõr y, aunque absolutamente narcisista, se halla seguro de si mismo y goza de completa independencia. Sabemos ya que el narcisismo limita el amor, y podríamos demostrar que actuando así se ha constituído en un importantísimo factor de civilización" (Freud, 1945: 2597). O que Nietzsche anunciou pela boca de seu Zaratustra o devir do homem da civilização ilumista, Freud reconheceu no passado, nos "albores de la historia humana".

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Por que Freud relacionou o pai da horda com o super-homem nietzschiano? Qual a leitura que Freud fez de Nietzsche para estabelecer tal articulação? Qual a relação entre o super-homem, anunciado pelo Zaratustra, com o conceito de vontade de poder? Vale observar que Freud destacou o pai da horda como o super-homem que Nietzsche esperava do futuro. O que Nietzsche esperava do futuro, Freud reencontra no passado, no início da história da civilização.

O que Zaratustra anunciou aos homens4 na praça do mercado? O super-homem! No

“Prólogo” encontra-se a primeira referência desse anúncio: "Cuando Zarathustra entró en La ciudad más cercana al bosque, halló un gran gentio congregado em la plaza. Había corrido la voz de que llegaba un titiritero. Y Zarathustra habló al pueblo con estas palabras:

'Yo predico el Superhombre. Yo os anuncio el Superhombre. El hombre es algo que debe ser superado. Quién de vosotros há hecho algo para superarle?' (...) Escuchadme, os diré qué es el Superhombre: El Superhombre es el sentido de la tierra. Que vuestra voluntad diga: sea el Superhombre el sentido de la tierra!" (Nietzsche, 1992: 26-27).

Pelo visto, Freud leu os cantos de Zaratustra e encontrou no conceito nietzschiano um ponto de ancoragem para sua argumentação sobre a psicologia do pai da horda primitiva. A interpretação feita por Roberto Machado desse trecho do prólogo em que se encontra o anuncio do super-homem, abre outra perspectiva para interrogar a relação estabelecida por Freud: “Super-homem é todo aquele que supera as oposições terreno- extraterreno, sensível-espiritual, corpo-alma; é todo aquele que supera a ilusão metafísica do mundo do além e se volta para a terra, dá valor à terra. Neste sentido, super-homem é superação, ultrapassagem. De quê? Do homem tal como ele foi; do homem do passado e sua crença em Deus (...) Se quisermos dizer como Deleuze, o super-homem é um novo modo de sentir, um novo modo de pensar, um novo modo de avaliar; uma nova forma de vida; um outro tipo de subjetividade” (Machado, 1997: 45).

Poderíamos indagar se a descrição da psicologia do pai feita por Freud para justificar a ira, o ódio entre os irmãos, afeto esse que os levou a unirem-se e assassinar o pai todo-poderoso como ato fundador do laço social não abriria outra possibilidade para pensar o lugar da violência na gênese da civilização. Lembremos que o pai da horda era livre, ao

4 A designação "homens na praça do mercado" ou mesmo "un gran gentio congregado em la Plaza" tal como aparece na tradução adota é um modo de Nietzsche se referir à massa.

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passo que os membros da massa não o são. Os atos do pai demonstravam força suficiente para impor sua vontade e não necessitava do reforço de outros para se atualizar.

No canto “De las mil metas y de la única meta”, Nietzsche estabeleceu uma distinção muito importante para designar a matriz valorativa de todo ato de cultura. As viagens de Zaratustra, sua passagem por muitos países, muitos povos levou-o a descobrir que a voloração dos atos em bem e o mal são forma diversificadas, múltiplas, plurais. Cada povo tem o seu bem e o seu mal. E esta forma de valoração metafísica é expressão do maior poder encontrado: as palavras bom e mau. Tais palavras são atos de valoração que atualiza a vontade de poder. O Super-homem utiliza-se das palavras bom e mau para valorar seu ato de superação.

Vejamos:

" Muchos paises há visto Zarathustra, y muchos pueblos. Así há discubierto el bien y el mal de muchos pueblos. Ningún poder há encontrado em la tierra Zarathustra mayor que las palavras bueno y malo. Ningún pueblo habria podido vivir si antes no hubiera hecho sus valoraciones; mas si quiere conservar-se, no puede valorar como valora su vicino.

Muchas cosas que este pueblo llamó buenas son para aquel outro vergonzosas y malas: eso es lo que yo he visto. Muchas cosas que aquí era llamadas malas, las encontré allí honradas com la púrpura. Jamás um vecino comprendió al otro: siempre se assombra su alma de la locura y la maldad del otro. Sobre cada pueblo está suspendida uma tabla de valores: es la tabla de sus triunfos, la voz de su voluntad de poder" (Nietzsche, 1992: 77).

Retomemos o argumento de Freud. O que vem na seqüência da referência ao super- homem de Nietzsche? Ainda hoje [Freud escreveu entre 1920-1921] os membros de uma massa permanecem na necessidade da ilusão de serem igual e justamente amados por seu líder, chefe ou dirigente; este, por sua vez, no exercício de sua função, não demanda amor de ninguém. Sua condição dominadora, autoconfiante e independente define seus traços psíquicos. E, se admitirmos o argumento de Freud, segundo o qual o narcisismo limita o amor, somos levados a reconhecer que a psicologia do pai da horda primitiva [o ao menos um era indiviso] foi um importantísimo fator de civilização. (Freud, 1945: 2597).

Levando em conta o contexto histórico no início da década de 1920, podemos indagar se, ao fazer tal referência, Freud não estaria marcado pela estratégia de Elisabeth Förster-Nietzsche,? Casada com um oficial nazista, ela fundou e presidiu, desde 1896, os

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Arquivos Nietzsche e tinha o deliberado propósito de estabelecer a publicação das obras do irmão filósofo para demonstrar que Hitler era a encarnação do super-homem.

Como bem salientou Jean Lefranc, Elisabeth fazia parte daquela categoria de irmãs abusivas [semelhante à irmã de Arthur Rimbaud], “preocupadas em salvar as conveniências e a honra da família contra os escândalos que uma obra tão genial poderia provocar (...) Ela procurou apagar a hostilidade declarada de seu irmão pelo nacionalismo alemão, construindo a imagem anti-semita que foi imputada à Nietzsche (...) Agora não há mais dúvida que Elisabeth não só fez cortes, mas também o que se pode chamar de falsificações.

Suas opções políticas são claras: é a seu insistente pedido que o Führer Adolf Hitler, a caminho de Beirute, pára em Weimar, onde Elisabeth o faz visitar o Nietzsche Archiv. É daí que se espalha a lenda de um Nietzsche precursor do nazismo” (Lefranc, 2005: 25).

A leitura que Freud fez de Nietzsche estaria marcada pela associação do super- homem à figura de Hitler, o grande líder que conduziu a massa à identificação amorosa que implicou tanto o amor à raça ariana pura, quanto à hostilidade, o ódio mortal anti-semita?

Se admitirmos que amor e ódio não são pares antitéticos, como bem demonstrou Freud em Para-além do Princípio do Prazer, e que a relação entre Eros e Tânatos mantém entre si um conflito irremediável, pois são forças, potências que duelam o solo fértil de nossos corações, então, por ambivalência afetiva, amamos e odiamos com a mesma intensidade e todos os laços são tecidos por essas duas pulsões. Isso significa que a formação da massa é constituída pela presença irredutível do amor e do ódio. O ódio dirigido ao pai da horda que levou ao assassinato é redistribuído na forma de culpa entre os irmãos que decidem amar uns aos outros como forma de expiação.

Aqui se encontra um bom indicativo para a leitura do capítulo V do livro El malestar em la cultura: a exigência ‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo’ [que é bem anterior ao advento do cristianismo] impõe deveres para cujo cumprimento é preciso estar preparado e disposto a efetuar sacrifícios. Como advertiu Freud, "si amo a alguien, es preciso que este lo merezca por cualquier título. (Descarto aqui la utilidad que podría reportarme, así como su posible valor como objeto sexual, pues estas dos formas de vinculación nada tienen que ver com el precpto del amor al prójimo). Merecería mi amor se se me asemejara en aspectos importantes, a punto tal que pudiera amar en él a mí mismo; lo mereceria si fuera más perfecto de lo que yo soy, en tal medida que pudiera amar en él al

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ideal de mi propia persona" (Freud, 1945: 3044). Se o ideal do Eu é no fundo um Super-Eu, portanto, uma exigência superegóica, a hostilidade, a exclusão e rivalidades estarão presentes nessa exigência universal. Pois, todos aqueles que não correspondem ao ideal do Eu são considerados meus estranhos. Nesta condição de estranho, seus valores não representam meus valores.

Neste ponto, Freud afirmou encontrar-se com novas dificuldades: "Este ser extraño no solo es en general indigno de amor, sino que - para confesarlo sinceramente - merece mucho más mi hostilidad y aun mi ódio. No parece alimentar el mínimo amor por mi persona, no me demustra la menor consideración. Siempre que le sea de alguma utilidad, no vacilará em perjudicarme (...) le bastará experimentar el menor placer para que no tenga escrúpulo alguno en denigrarme, en ofenderme, en difamarme, en exhibir su poderio sobre mi persona, y cuanto más seguro se sienta, cuanto más inerme yo me encuentre, tanto más seguramente puedo esperar de él esta actitud para conmigo" (Freud, 1945: 3045). Se aqueles que não são objeto de identificação para mim não podem ser dignos de meu amor, a atitude reativa implica em eleger meus estranhos, objeto de minha hostilidade agressiva. A mesma agressividade, o mesmo ódio dirigido aos estranhos é justificado pela expectativa de que eles poderão me destruir a qualquer momento. Desse modo, uma dada posição de ataque é justificada para defender-se. Lembremos que é sempre em defesa da sociedade que os atos de violência são justificados pelo discurso jurídico.5

O pressuposto de Freud neste livro publicado em 1930, partiu da seguinte definição definição de cultura: soma integral das realizações e regulamentos que distinguem a vida humana e a dos demais animais, e que servem a dois objetivos: proteger os humanos contra o poder destruidor da natureza e regular os relacionamentos entre os indivíduos da espécie humana (Freud, 1945: 3033). Dentre os elementos que compõem esta soma integral, Freud destacou: o controle do fogo e por conseqüência a invenção de instrumentos para o trabalho e a guerra; construções de habitações; o culto à beleza; a educação para a higiene; a disciplina para o ordenamento social; as realizações científicas e tecnológicas; as concepções filosóficas; a produção artística, e as múltiplas confissões religiosas.

5 Para avaliar esta posição, ver o curso Em Defesa da Sociedade, ministrado por Foucault ( ) no Collège de France.

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Freud destacou ainda o trabalho de promoção da cultura como um exercício estético que nos permitiria fazer da vida uma obra de arte. Este aspecto abre uma perspectiva muito oportuna para interrogar as possibilidades de convivência num tempo em que o exercício violência produz diferentes formas de hostilidade para com os estranhos. Se as relações entre as exigências pulsionais de um lado e as exigências da civilização do outro são constiuídas por um conflito irremediável, então é urgente inventar formas de sublimação para enfrentar a situação de desamparo que é estrututral do animal falante. Neste aspecto, Freud sustentou que uma das possibilidades de enfrentar a dor e o sofrimento constitutivo de nossa condição humana é realizar uma estética de si: um trabalho de promover a vida como matéria prima para a criação artística, através dos atos de superação de si.

Como isso é possível? Como podemos promover as diferentes formas de produção da vida? Da nossa própria vida como seres humanos e da vida do planeta em que habitamos temporalmente? Qual a importância dos bens culturais na promoção da vida? Um exemplo indicado por Freud parece-me decisivo: criar condições para cultivar o amor à beleza. O amor à beleza é a única forma de inibir, mediante trabalho de sublimação, os impulsos destrutivos que regem o funcionamento psíquico do animal falante. A pulsão de morte, que atua com poderes de destruição, pode sim encontrar no cultivo à beleza, uma forma de escoamento, evitando assim, uma ação destruidora que leve à ruína as condições de afirmação da vida.

Afirmar a vida como um valor é apostar que as ações culturais podem resgatar a dignidade humana pelo cultivo da beleza. A cultura pode nos salvar da destruição e restituir nossa humana condição de ser-para-a-morte. Porque a arte é bela? perguntou o poeta Fernando Pessoa. Por que é inútil, respondeu. Na lógica do mercado, regida pelo valor da utilidade, a cultura não têm valor. Só tem valor o que é possível ser transformado em mercadoria.

Nietzsche, em seu livro Aurora, fez um preciso [e por isso, precioso] diagnóstico da cultura de mercadorias: “vemos agora [1881] surgir de várias maneiras, a cultura de uma sociedade em que o comércio é a alma (...) O mercador [dessa sociedade] sabe estimar o valor de tudo sem produzi-lo, e estimar-lhe o valor segundo a necessidade dos consumidores, não segundo suas próprias necessidades; ‘quem e quantos consomem isto?’

é sua grande pergunta. Esse gênero de estimativa ele [o mercador da cultura] prega

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instintivamente e incessantemente para tudo, também para as realizações da arte e da ciência, dos pensadores, doutores, artistas, estadistas, de povos e partidos, [de religiões] de épocas inteiras: em relação a tudo o que é produzido ele [o mercador da cultura] pergunta pela oferta e a demanda, a fim de estabelecer para si o valor de uma coisa" (2004: 127).

Num tempo em que a cultura tornou-se uma mercadoria dentre outras, os indivíduos foram lançados à própria sorte como consumidores de objetos que prometem status de civilização. A genealogia da civilização traçada por Freud e Nietzsche possibilita novas formas inventivas de interrogar e mesmo diagnosticar o presente, o estado atual das coisas.

Quem nos dera encontrar neste diagnóstico do presente pontos de fuga, estratégias de luta que nos permitam apostar num trabalho de transvaloração de todos os valores.

Bibliografia

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Enriquez, Eugène (1990) Da Horda Primitiva ao Estado: psicanálise do vínculo social, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro.

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[disponível em http://iepmail.unimep.br/phpg/editora/mostraitemsumario.php]

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Nietzsche, Friedrich (1987) Genealogia da Moral, Tradução Paulo César Souza, Brasiliense, São Paulo.

Márcio Mariguela Professor de História da Filosofia Contemporânea

na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP);

Doutor em Educação pela UNICAMP;

Psicanalista e Membro da Escola de Psicanálise de Campinas;

Pesquisador colaborador do Grupo de Estudos e Pesquisa Diferenças e Subjetividades em Educação (FE/UNICAMP).

Email: mmariguela@gmail.com

Referências

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