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FOTOGRAFIA, CONSCIÊNCIA COLETIVA E AUTOIMAGEM ENTRE IDENTIDADES E

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Dossiê Fotografia, crises e contemporaneidade: olhares sobre existências

FOTOGRAFIA, CONSCIÊNCIA COLETIVA E AUTOIMAGEM ENTRE IDENTIDADES E IDENTIFICAÇÕES

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Photography, collective conscience and self-image between identities and identifications Fotografía, conciencia colectiva y auto imagen entre identidades e identificaciones

Ana Taís Martins2

Resumo

A identidade estável, invenção da modernidade, parece abalada hoje, dando espaço para identificações múltiplas e mesmo efêmeras das quais as fotografias de si nas redes sociais (selfies) constituem um catálogo notável. Esse artigo se propõe relacionar as práticas de si com as questões da construção da identidade através da fotografia, tomando a dissociação da consciência individual em relação ao inconsciente coletivo como condição de possibilidade para isso.

Palavras-chave: identidade. construção de si.

redes sociais. fotografia

Abstract

The stable identity, an invention of modernity, seems today to be shaken, giving way to multiple and even ephemeral identifications of which selfies on social networks constitute a remarkable catalog. This article proposes to put in relation the practices of the self with the questions of the construction of identity through photography, assuming as a condition of possibility the dissociation of the individual consciousness from the collective unconscious.

Keywords: identity. self-construction. social networks. photografs

Resumen

La identidad estable, invención de la modernidad, parece hoy quebrantada, dando paso a identificaciones múltiples e incluso efímeras de las que las fotgrafías de sí en las redes sociales constituyen un catálogo notable.

Este artículo propone poner en relación las prácticas del yo con las cuestiones de la construcción de la identidade a través de la fotografía, asumiendo como condición de posibilidad la disociación de la conciencia individual del inconsciente colectivo.

Palabras-clave: identidad. construcción del ego.

redes sociales. fotografía

1Trabalho desenvolvido em parte com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 01.

2 Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (2003) com pós-doutorado em Filosofia da Imagem pela Université Jean Moulin - Lyon/3 (2013). Professora do Programa de Pos- Graduação e do Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil. anataismartins@icloud.com - http://orcid.org/0000-0001-5203-7575

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Indiferentes às mensagens apocalípticas sobre seus malefícios, as redes sociais impõem sua realidade em números que crescem a cada ano. De roubo de dados pessoais a transtornos psicológicos, passando pela exposição à violência de todos os tipos e à facilitação do terrorismo, não são poucos os fatos que desencorajam a abertura de uma conta em rede social. No entanto, o relatório Global Digital Statshot 20193 informa que o número de usuários dessas redes cresceu de 3 bilhões em 2017 para 3,5 bilhões em 2019, o que compreende 45% da população mundial. Segundo o mesmo relatório, o Brasil tem 140 milhões de usuários ativos nas redes ou 66% da sua população. Embora o mesmo relatório aponte que o uso das mídias sociais é desigualmente distribuído no planeta4, não é possível desconsiderar sua importância na vida do homem contemporâneo. Castells (1993, p. 573) afirma mesmo que as redes trouxeram uma reconfiguração qualitativa da experiência humana ao ponto de se poder dizer que “[...] os fluxos de imagens e mensagens entre as redes constituem o encadeamento básico de nossa estrutura social”.

A imagem que os indivíduos têm e/ou constroem de si mesmos não se desliga do que ocorre na sociedade. Antes de conhecer a si mesmo, o homem conhece o mundo. É o caráter de sua relação com mundo que fornece ao indivíduo os elementos com que ele vai construir sua autoimagem. Assim, a medida da oposição entre o eu e o mundo se projeta diretamente sobre a construção de si.

Como diz Jung (2016, p. 149, tradução minha), “[…] somente a separação, o desprendimento, o doloroso fato de ‘ser colocado em oposição’ que pode produzir a consciência individual e o conhecimento”5.

Essa oposição ao mundo nem sempre se deu do modo como se dá hoje. Suas variáveis ao longo do tempo histórico indicam que a consciência de si de cada ser humano não só é diferente em função da biografia pessoal como, sobretudo, do ponto de vista coletivo, o grau dessa consciência não foi sempre igual ao longo dos tempos. Houve mesmo um tempo em que “[...] a consciência da

3 Disponível em https://wearesocial.com/global-digital-report-2019. Consultado em 06 jan. 2020.

4 A penetração em certas regiões da África é de menos de 10%.

5 No original francês: “[…] ce n’est que la séparation, le détachement, le fait douloureux d’ ‘être mis en opposition’ qui peut produire la conscience individuelle et la connaissance”.

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unidade individual não existia ainda [...] ou não se podia propriamente falar de consciência individual (Jung, 2016, pp. 126-127, tradução minha)6. Assim, a construção da autoimagem só é possível quando o homem se entende como separado do mundo.

Se a imagem de si não é um elemento na estrutura da consciência e sim uma fase relativamente recente na história dessa consciência, o contrário ocorre com o sentimento do sagrado que, segundo Eliade (2010), é uma estrutura da consciência e não uma de suas fases, estrutura essa da qual depende profundamente a consciência de si. O sentimento do sagrado, conforme Otto (1985, p.

13), é "[...] a consciência de nossa insuficiência, de nossa impotência, de nossas limitações”. Essa consciência só pode se dar diante do reconhecimento de um outro; na ancestralidade humana, esse objeto exterior é percebido como uma “[...] força oculta da natureza, como uma descarga elétrica que se descarrega sobre aqueles que se aproximam” (Otto, 1985, p. 19). A resposta humana diante dessa força desconhecida, da grandiosidade de um mundo estranho é o temor místico, fundamento do sagrado. Então, o sagrado pressupõe a separação, o reconhecimento do absolutamente outro. Nesse estágio, provavelmente a consciência de si é simplesmente a consciência da própria pequenez. É através do sagrado que se instaura a comunicação homem-mundo, é o sagrado o primeiro modo de o homem se dirigir ao mundo, e embora muitas outras intermediações se tenham sucedido num movimento de dessacralização, a continuidade do sagrado na experiência humana se revela até os dias atuais. Paradoxalmente, a construção de si não se faz sem a oposição ao mundo, mas a primeira forma de distinção entre o eu e o mundo – o sentimento do sagrado - se encontra cada vez mais repudiada pela mesma consciência que só pode se construir a partir dela. Pode-se pensar a dessacralização como um processo que teve início no momento mesmo da instauração do sentimento do sagrado. O absolutamente outro vai se tornando progressivamente menos desconhecido, menos misterioso, menos separado do eu. Esse movimento inicia milênios atrás, quando o mito ainda é a forma preponderante de pensamento, mas a criatura já ousa se colocar no lugar do Criador.

Ao fundir o ferro (1.200 a 1.000 a.C.), o homem passou a abreviar o tempo, fazendo o trabalho da terra-mãe, segundo Eliade (2010, p. 63), transformando com o fogo um elemento em outro, acelerando a maturação dos minérios : “[...] o que teria exigido éons

6 No original francês: “[...] la conscience de l’unité individuelle n’existait pas encore [...], ou il n’y avait même pas à proprement parler de conscience individuelle”.

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para amadurecer nas profundidades subterrâneas o artesão julga ser capaz de obter em algumas semanas, pois o fogo substitui a matriz telúrica”. É assim que se inicia a aventura “[...]em um domínio que não pertence de direito ao homem, o mundo subterrâneo com os seus mistérios da lenta gestação mineralógica que se processa nas entranhas da terra-mãe” (Eliade, 2010, p. 62). A temeridade dessa operação, segundo o autor romeno, explica o “[...] número infinito de precauções, tabus e rituais que acompanham a fundição” (Eliade, 2010, p. 62). Supomos que esse domínio marque o início da separação eu-mundo, o momento em que progressivamente cresce a consciência individual e o mundo se torna o seu outro. Na consciência mítica, o inteiramente outro é o sagrado. Essa consciência começa a recuar quando o mundo adquire existência absoluta. Desvaloriza-se o lugar cósmico do si mesmo; não do “eu persona”, a máscara social com a qual se identifica o ego, e sim do “eu self”, o eu enquanto totalidade consciente e inconsciente, individual e coletiva. Vence a persona. Sua expressão ideal é a comunicação de si que vai sendo valorizada e se tornando mais complexa na medida em que cresce a consciência individual e se incrementa a dessacralização do mundo.

Narrativas de si e eu coletivo

O processo civilizatório que se assimila ao avanço da filosofia e ao recuo da mitologia parece evidenciar mais uma mudança de qualidade do coletivo com que o ser humano continua a se identificar do que um crescimento geral da consciência individual. Uma das formas consagradas de expressar a imagem de si, a autobiografia, seria impossível em praça pública ou pelo menos em um contexto em que a pessoa se situa antes de tudo como um cidadão, ou seja, como um homem público. Delory-Momberger (2000, p. 17, tradução minha) chama atenção para o fato de que o homem grego existe apenas pelo fato de participar da vida na cidade: “Ele vive, ele fala, ele pensa na praça pública, com todo o seu ser ele busca a notoriedade, ou seja, o reconhecimento do olhar público. Olhar público que lhe devolve sua imagem e seu estatuto no seio da cidade e que se confunde com o sentimento que ele tem de si mesmo” . Nesse contexto, as narrativas de si desse homem parecem desnecessárias, já que ele se define por seu sentimento de pertença à comunidade.

É com alguma hesitação que se poderia entender esse sentimento como um traço da imagem de si ainda relativamente recuada em

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relação à identificação com o coletivo, embora isso não seja totalmente falso. Parece que o coletivo continua a exercer até nossos dias uma considerável pressão sobre a consciência individual, como atesta a necessidade de aprovação evidenciada pelos usos das redes sociais em que o objetivo é obter atenção. No entanto, é necessário não perder de vista a dessacralização promovida pelo valor crescente da oposição logos x muthos. O outro vai aos poucos deixando de ser o sagrado misterioso para se tornar o mundo absoluto e objetificável. Mesmo que de algum modo essa identificação com o coletivo mais do que com o pessoal tenha resíduos ou ressurgências nas práticas de comunicação de si contemporâneas, sua relação com um maior ou menor individualismo não é evidente.

Se as redes sociais são acusadas de estimular o culto do “eu”, elas também favorecem a solidariedade e o engajamento em causas coletivas. Essas contradições podem ser aparentes apenas; compreender os processos que nos conduziram até esse ponto de manifestação da autoimagem pode auxiliar a compreender o seu momento atual.

Somente no século I a.C., segundo Delory-Momberger (2000), a eficiência retórica em praça pública começa a decair no Império Romano e o poder nas mãos de um só homem se naturaliza. Então, começam a se criar os espaços de intimidade da família e círculo de amigos nos quais se está protegido das vicissitudes do fórum público. Surgem as primeiras narrativas de si: as cartas. Nelas, o autor é o centro, construindo sua imagem de acordo com o que espera que o leitor pense de si.

Na Idade Média europeia cristianizada, a religião, segundo Delory-Momberger (2000, p. 37, tradução minha), impõe ao homem um “[...] sentimento de uma ordem que o ultrapassa por todos os lados e contribui para privá-lo de uma consciência específica dele mesmo [...]”. Portanto, não seria ainda nesse momento que a construção de um eu singular teria espaço, porque a consciência da individualidade é sinalizada por elementos que tornam a pessoa diferente da comunidade de pertença. Quando os indivíduos se definem pelos traços e valores da comunidade, a solidão é malvista. Mesmo com a emergência da burguesia do século XI ao XIII, passando-se de uma economia fechada a uma economia aberta, o privado do burguês ainda era orientado à exterioridade, o indivíduo ainda era muito devedor do grupo familiar e empresarial (Delory-Momberger, 2000).

Mudanças mais sensíveis desse aspecto são trazidas pela Renascença, entre 1300 e 1600, quando a descoberta do corpo começa a ser celebrada pela arte. “O imaginário do homem renascentista é o de um ser em posse de si mesmo e que [...] se empertiga em uma

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postura de desafio e de conquista” (Delory-Momberger, 2000, p. 50, tradução minha). É a época da introdução do conceito de perspectiva na pintura, promovendo a coincidência entre o ponto de fuga da imagem e o ponto de vista sob o qual a imagem é feita.

Isso quer dizer que a cena pintada no quadro inclui a suposição do sujeito que a executa, ou seja, é a partir do microcosmo do corpo que se projeta o macrocosmo, abrindo caminho para a descoberta do mundo: o olho central que passou a dominar a pintura se estendeu para os territórios fora dela, ensejando as grandes navegações em busca de terras incógnitas.

É então que o Brasil foi descoberto/invadido. Sua sociedade branca e livre, aquela formada pelos colonizadores europeus, começa assim a se formar num contexto em que, para os colonizadores, ao indivíduo era dado o voltar-se para dentro de si e lá encontrar seu lugar no mundo, algo bem diferente do que ocorria com os negros e índios escravizados no Brasil, violentamente arrancados da cultura tribal em que viviam a identificação com o coletivo. Os portugueses precisavam aqui de mão de obra para expandir a produção de açúcar e buscaram-na escravizando índios. No entanto, os índios não se adaptaram a essa forma de trabalho, morrendo em massa, vítimas de doenças transmitidas pelos europeus. Para resolver o problema, começou-se a importação de escravos negros da África que se estenderia por mais de 300 anos. Segundo Berkenbrock (2019 apud Bergmann, 1978), em 1818 os africanos formavam 66% da população do Brasil. Hoje, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), dos mais de 211 milhões de brasileiros, 55,8% se declaram pretos ou pardos. As raízes dos ancestrais africanos estão na origem da maior parte da população. Sua herança consciente ou inconsciente não deve ser descurada.

Fotografia, invenção mítica

No século XIX, segundo Delory-Momberger (2000), o indivíduo ocidental começa a ser definido pela atividade que ele exerce, com o status social e individual se confundindo. Também nesse século o daguerreótipo é inventado e, com ele, os retratos e autorretratos fotográficos.

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Para se fazer uma fotografia, são necessários basicamente dois processos: a captura da imagem e o seu registro. Isso considerado, é justo dizer que, do ponto de vista puramente técnico, a invenção da fotografia poderia ter se dado muito antes do século XIX. Para a captura da imagem, já se dispunha de um instrumento desde pelo menos o século IV a.C. Aristóteles descreveu sua observação de um eclipse solar por sua projeção numa parede de um compartimento escuro através de um furo na parede oposta (Amar, 2007), dispositivo que passou a ser conhecido como câmera obscura. Com o objetivo de desenhar em perspectiva, esse aparelho teve sucessivos aprimoramentos até culminar em câmeras portáteis dotadas de um sistema ótico, que organiza os raios luminosos com mais eficácia do que um simples furo, como ocorria com as primeiras câmeras obscuras, e de um espelho com inclinação de 45 graus para enviar a imagem projetada num plano vertical dentro da câmera para um plano horizontal fora dela, de modo que o artista poderia facilmente copiá-la. Estava, assim, resolvido o problema básico da captura da imagem. Já o seu registro também tinha condições de possibilidade no mínimo desde a Idade Média, quando as propriedades fotossensíveis dos sais de prata foram descritas pelo alquimista Albert Le Grand (Amar, 2007). Aparentemente, tudo o que faltava para a invenção da fotografia já no final da Idade Média seria a junção desses dois processos. Por que então não aconteceu? Provavelmente, porque o imaginário não estava solicitando isso.

Na Idade Média, a consciência do coletivo era muito forte, como bem sublinha Delory-Momberger (2000, p. 37, tradução minha): “Na sociedade da cristandade feudal, se isolar é se singularizar e a singularidade é vivida ao mesmo tempo como tara social e como pecado”. Daí que o homem medieval se representa através do que o torna parecido com os demais e não através de sua originalidade. Disso dão conta as histórias dos grandes personagens imaginados e históricos tais como contadas por Le Goff (2013).

Carlos Magno, Virgem Maria, Robin Hood, Rei Arthur são descritos de modo canônico, sem particularidades; eles pertencem às suas linhagens e não a eles mesmos. Seria necessário aguardar alguns séculos para que a noção de indivíduo crescesse no imaginário e que sua expressão se destacasse nas artes, na literatura, fazendo exigências também técnicas.

De fato, é possível que o retrato fotográfico sugira um controle maior sobre a imagem que o retratado deseja transmitir do que no retrato pictórico, no qual o modo de o pintor ver o retratado se impõe com mais evidência. Para que uma inovação técnica ou

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tecnológica ocorra, é necessário um desejo coletivo potente. Esse desejo depende do acordo entre certas pulsões arquetípicas (antropológicas, imanentes à humanidade) e as coerções históricas. As dinâmicas e os termos desse acordo é o que, precisamente, se pode denominar de “imaginário” segundo Durand (2016). Dentre as múltiplas formas de expressão do imaginário, a mais próxima de suas raízes arquetípicas, mas já apreensível pelo jogo racional, é o mito.

Dubois (1998) distingue no imaginário da civilização ocidental três grandes grupos de mitologias: a pagã, a cristã e a moderna.

Essas três mitologias não se sucedem umas às outras e sim se superpõem. Assim, segundo o autor francês, a mitologia pagã tem por principais características uma relação de imanência com a natureza em que os deuses são forças naturais personificadas, o politeísmo e a convivência entre a ordem da razão e a herança mítica tradicional da qual o caso grego é emblemático. O mito cristão, por sua vez,

“[...] é o resultado de uma feliz adaptação de elementos emprestados do judaísmo com traços da mentalidade pagã” (Dubois, 1998, p.

30, tradução minha) . Embora monoteísta, a imagem divina é diversificada, de modo que um mundo de seres intermediários – santos, apóstolos, Maria etc. – se institui. O messianismo da religião judaica se transforma na vinda de Cristo, ou seja, não há mais espera, pois o messias já fez sua incursão na Terra. Com a chegada das mitologias da modernidade, a função simbólica do Grande Pai divino passa a ser pensada em alguma medida em termos de tecnologia (deísmo, Deus como um arquiteto supremo que criou o mundo e o dotou com as leis da natureza), mas surge sobretudo a valorização da razão livre de crenças, chegando-se à expulsão de Deus – o ateísmo. Também a Grande Mãe tem sua função simbólica na modernidade entregue à natureza e/ou à sociedade que se tornam, assim, provedoras dos bens materiais. O ser humano ingressa então num modo de vida voltado para o usufruto de suas conquistas:

“O homem, desembaraçado da lei paterna e beneficiário das riquezas do corpo materno, torna-se uma espécie de deus-filho cujo horizonte de espera é a liberdade e a felicidade” (Dubois, 1998, p. 32, tradução minha).

Como vimos, na Renascença, época pujante de mitologia cristã na sociedade ocidental, a perspectiva artificialis inicia-se na pintura. Em contraste com a perspectiva natural, a perspectiva artificialis marca na representação uma posição única do espectador, o ponto de fuga. Esse ponto indica a altura dos olhos do observador, determinando quais objetos serão representados como vistos de baixo, de frente ou de cima. Com isso, cria-se a ilusão de profundidade dada pela representação bidimensional do que é na verdade

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tridimensional. Ao marcar na cena representada a posição do observador, sua presença passa a ser suposta ainda que não explícita.

Pode-se considerar a adoção da perspectiva artificialis um indício da afirmação de uma visão de mundo com o protagonismo de um sujeito construtor de sua própria história, iniciando lentamente a instauração social de uma mitologia moderna na qual Deus passa a ser traduzido e finalmente substituído por tecnologia. A consecução desse mito foi fundamental para que a fotografia pudesse ser inventada.

Como descreve Floriênski (2012 apud Rezende & Abrantes, 2017), a perspectiva artificialis não foi adotada pelas culturas anteriores não por ignorância e sim por não condizer com os valores vigentes. Foi necessária a passagem de um modelo de representação teocentrada para um outro em que o modo de cada ser humano entender as coisas ganhasse evidência para que seu ponto de vista se afirmasse também nas imagens visuais. A valorização social da imagem de si mesmo fez com que se criassem as condições externas para a invenção de um dispositivo – a fotografia - capaz de retratá-la.

A par desse crescimento da importância do ponto de vista pessoal cresce, no século XIX, também a preocupação com a identidade social. Ao possibilitar o controle sobre a própria imagem, o retrato se valoriza progressivamente quando o status social e individual se confundem, com o homem sendo definido pela atividade que exerce. O retrato, que desde a pintura já tinha a tarefa de representar papeis sociais, tem essa vocação reforçada e amplificada com a fotografia. Tanto Nadar, com suas dramáticas fotografias de celebridades da época, quanto Disdéri, com suas fotografias esquemáticas de populares que posavam com roupas emprestadas, revelam o comportamento dos seus retratados dentro da instituição social; os primeiros, artistas, intelectuais, almejando a expressão pessoal; os segundos, pessoas do povo, almejando o padrão do que seriam os cidadãos de bem. Nos dois casos, papeis sociais, ainda que seja fácil colocar os retratos em série de Disdéri em contraste com os retratos menos repetitivos de Nadar. A dissociação entre indivíduo e sociedade estava, no século XIX, já bem estabelecida. Desde o Iluminismo, a ideia de que o homem é um ser em formação evidencia uma consciência de si, a necessidade de o homem estudar também a si mesmo, mas isso não quer dizer que ele tenha se tornado dono de si. Delory-Momberger sublinha o quanto a sociedade burguesa se impõe através do domínio sobre o corpo e sobre a alma das pessoas: a disciplina do corpo do trabalhador que o liga à sua máquina, a restrição da mulher à sexualidade conjugal, seu

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confinamento ao papel de mãe e esposa... Longe de serem secretas, as práticas de escrita pessoal desenvolvidas nesse contexto incluem os diários das moças sendo discutidos com suas mães em vista do aperfeiçoamento moral.

O coletivo retorna na profusão da autoimagem

Vimos assim que a expressão pessoal e a construção de uma autoimagem adquirem contornos mais nítidos com o avançar dos séculos no ocidente na mesma medida em que se orienta por papeis sociais. Os autorretratos de Nadar têm sua pose estudada, a luz controlada dramaticamente, de modo a deixar ver um artista que quer se singularizar; os autorretratos de Disdéri apresentam-no nas mesmas poses padronizadas que ele utilizava para retratar seus clientes. Talvez se evoque aqui o contraste frankfurtiano entre arte e cultura de massa que também pode ser resumido no aforismo de Jean-Luc Godard segundo o qual a cultura é a regra e a arte é a exceção. Ora, a expressão pessoal não é uma questão de arte ou cultura, e sim um problema antropológico colocado pelo jogo entre o eu e o mundo. Expressar-se é revelar em alguma medida quem se é; a expressão mais ou menos singularizada ou padronizada interessa pelo que isso indica quanto ao grau e à qualidade da relação eu – mundo, e não por suas qualidades mais ou menos elevadas.

No caso brasileiro, os fatos coercitivos que se juntam à equação se encontram na interrupção brutal da consciência coletiva dos povos autóctones e dos africanos que para cá foram trazidos como escravos. Uma maneira de expressar sua consciência coletiva eram os rituais de possessão. As formas da possessão recobrem muitas variantes, como transes, estados alterados de consciência, incorporação. Ser possuído é ser animado por uma potência, um deus que, como diz Bertrand (2017, p. 436, tradução minha), nos

“[...] trespassa com a voz de um outro ou do Inteiramente Outro” . Não se trata do irracional, mas da lógica fusional e mística do imaginário, aquela que orienta a não separação entre o eu e o mundo. Trata-se de um procedimento racionalmente tão válido quanto o da lógica excludente que, no entanto, é entendida quase sempre como única possível para a humanização. De fato, para os povos ditos civilizados a evidência da autoimagem em oposição ao mundo é dominante ao ponto de ela se tornar sinônimo de humanidade.

Ser humano é ter uma imagem de si. Essa concepção de humanidade sofre do viés esquizoide do imaginário, porque compreender o

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humano em oposição ao cosmos é separá-lo do cosmos. Não é um fato empírico, mas uma lógica do imaginário que privilegia as dualidades, as distinções, as separações. Trata-se ainda de uma lógica do imaginário tanto quanto a lógica fusional e mística.

A necessidade de expor a própria imagem ao mundo pode, talvez, ser compreendida como uma atualização da consciência coletiva em detrimento da consciência individual. Os estudos sobre sonhos já mostraram como as imagens familiares apresentam os fatos do inconsciente, ou seja, como nossa psyché utiliza as imagens do cotidiano para nos conduzir à consciência do que se esconde em nosso inconsciente. A consciência coletiva brutalmente reprimida na história do Brasil – e provavelmente também em outras culturas – não desaparece. Ela encontra nos fenômenos socialmente adapatados um modo de sobrevivência. Talvez, na impossibilidade social e histórica de se retroceder a um estado de diluição da imagem de si na imagem de mundo, a pressão do impulso fusional reprimido tenha encontrado um modo de retornar nas próprias imagens individuais que devoram o eu. A profusão de narrativas de si nas redes sociais, em todas as linguagens e formatos, é de tal monta que faz pensar no descontrole do consciente, ou seja, na emersão de algo que tinha sido escamoteado para as trevas do inconsciente coletivo e que retorna para se apossar dos protagonistas que o expulsaram, mas dessa vez carregando outros nomes para melhor ser assimilado, num procedimento de derivação que, como bem observa Durand (1996) assegura a sobrevivência do mito. Possuídos pelas imagens de si, os indivíduos não são mais indivíduos porque se fundem nessa força coletiva.

Voltamos ao mito de Narciso. Desde que fazer selfies se tornou um gesto banal na vida cotidiana, o senso comum evoca o mito de Narciso para explicar e condenar esse gesto fotográfico dirigido a si mesmo. O mito de Narciso é reduzido, na consciência coletiva, a uma fábula moralista quando é recontado acentuando a punição reservada aos que se deixam levar pela vaidade. No entanto, é bom lembrar que Narciso foi levado à morte não por sua paixão por si mesmo, mas porque ele não se reconheceu na imagem refletida na água (Hillman, 1979). Eis, talvez, a fonte do grande vazio que sentimos hoje: não nos reconhecemos mais no grande espelho que é o outro.

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REFERÊNCIAS

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Referências

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