InterEspaço Grajaú/MA v. 3, n. 9 p. 141-157 maio/ago. 2017 Página 141
UMA ANÁLISE DA TEORIA DA JUSTIÇA EM ARISTÓTELES PRESENTE NA ÉTICA A NICÔMACO (LIVRO V)
AN ANALYSIS OF THE THEORY OF JUSTICE IN ARISTÓTELES PRESENT IN THE NICOMACHEAN ETHICS (BOOK V)
EL ANÁLISIS DE LA TEORÍA DE LA JUSTICIA EN ARISTÓTELES PRESENTE EN LA ÉTICA LA NICÓMACO (LIBRO V)
Maria Domingas Vale da Silva
Graduanda em Direito pela Faculdade de Educação Santa Teresinha – FEST.
gigibinhalinda@hotmail.com
Recebido para avaliação em 30/07/2016; Aceito para publicação em 12/08/2017.
RESUMO
O presente artigo faz uma análise do tema da justiça presente no Livro V da obra “Ética a Nicômaco” do filósofo grego Aristóteles. Nesta, leva em conta os diversos temas atinentes ao termo conforme apresenta o próprio filósofo. Por conta disso, inicia alocando a justiça enquanto virtude por excelência. Posteriormente, passa a analisar a significação e posterior distinção entre justiça total e justiça particular (nesta última, distingue justiça distributiva de justiça corretiva), justiça política e justiça doméstica, justiça natural e justiça legal, a designação de justiça como equidade, a relação entre amizade e justiça e, por fim, a consideração do juiz como justiça animada.
Palavras-chave: Aristóteles; Justiça; Virtude.
ABSTRACT
This article is a justice theme this analysis in Book V of the “Nicomachean Ethics” work of the Greek philosopher Aristotle. This takes into account the various issues pertaining to the term as presents the philosopher himself. Because of this, start by allocating justice as a virtue par excellence. Later proceeds to analyze the meaning and later distinction between full justice and particular justice (the latter distinguishes distributive justice corrective justice), political justice and domestic justice, natural justice and legal justice, the designation of justice as fairness, the relationship between friendship and justice and, finally, a judge as lively justice.
Keywords: Aristotle; Justice; Virtue.
RESUMEN
Este artículo es un tema de justicia este análisis en el Libro V de la obra “Ética a Nicómaco” del filósofo griego Aristóteles. Esto toma en cuenta las diversas cuestiones relacionadas con el término como se presenta el propio filósofo. Debido a esto, comenzar mediante la asignación de la justicia como una virtud por excelencia. Posteriormente se procede a analizar el significado y más tarde completa distinción entre la justicia y la justicia particular (este último distingue la justicia distributiva justicia correctiva), la justicia política y la justicia doméstica, la justicia natural y la justicia legal, la designación de la justicia como equidad, la relación entre la amistad y la justicia y, por último, una justicia tan viva la justicia.
Palabras clave: Aristóteles; Justicia; Virtud.
InterEspaço Grajaú/MA v. 3, n. 9 p. 141-157 maio/ago. 2017 Página 142 INTRODUÇÃO
Primando pela objetividade, convém que se estabeleça, logo de início, o que se pretende. A intenção do presente texto consiste em realizar uma breve abordagem acerca do conceito de justiça tal como apresenta Aristóteles no Livro V de sua magistral Ética a Nicômaco. Neste sentido, dispõe-se a trazer à tona as diversas formas e imagens de justiça ali presentes sem, contudo, propor-se a fechar a discussão (é possível que tantas outras imagens possam ser extraídas do texto em questão), apesar de tratar-se, aqui, mais de um texto analítico- descritivo (o que não implica em dizer que não seja passível de discussão, dada a originalidade e grandeza do texto e do autor em questão).
A análise do tema da justiça na visão de Aristóteles (384-322 a c.) se baseia no campo ético-prático uma vez que para este pensador a justiça é uma virtude (Areté), mas essa virtude possui somente um vício (que seria a injustiça) e não dois como as demais virtudes (lembrando que para o filósofo de Estagira a virtude reside no equilíbrio mantido por dois vícios, um relativo aos excessos e outro à falta), e esta justiça se consagra nas relações sociais cotidianas entre as pessoas sejam elas de ordem política ou econômica.
Ao tratar das acepções do termo “justiça”, o filósofo inicia assumindo o pressuposto de que esta pode ser concebida de várias maneiras, e é sempre necessário levar em consideração, para a análise da mesma, critérios tanto de ordem formais, quanto materiais.
Os critérios formais exigem que se conceda tratamento igual para situações iguais;
os materiais orientam para o julgamento considerando os méritos, capacidades e necessidades de cada um.
O filósofo Platão, do qual Aristóteles fora discípulo, concebera a justiça como a
“máxima virtude do individuo e do Estado”. Platão entendia que cada sujeito era dotado de uma aptidão própria e que todos os indivíduos deveriam se dedicar somente àquelas atividades que estivessem ao alcance de suas qualidades. Esta forma de pensar do filósofo ateniense não difere muito do pensamento de Aristóteles. Este, em sua obra Ética a Nicômaco, ao discorrer acerca da justiça distribui as atividades na pólis mediante a capacidade e méritos de cada sujeito. Porém, o ponto central de sua teoria consiste em analisar as diversas maneiras em que o termo “justiça” pode ser empregado, dinâmica que servirá de norte para o presente artigo.
JUSTO E INJUSTO
InterEspaço Grajaú/MA v. 3, n. 9 p. 141-157 maio/ago. 2017 Página 143 No tocante às acepções acerca da justiça, Aristóteles afirma que os homens entendem esta como
[...] disposições de caráter que torna as pessoas propensas a fazer o que é justo, que as faz agir justamente e desejar o que é justo, e do mesmo modo por injustiça se entende a disposição que as leva a agir injustamente e a desejar o que é injusto (ARISTÓTELES, 1984, p. 121).
A justiça, pois, seria um hábito, de modo que ser justo implicaria em praticar a justiça voluntariamente. É, portanto, um costume, seria o modo como os indivíduos agem diante da sociedade. Pode-se afirmar que as ações consideradas justas são aquelas que têm por objeto o justo. Ou seja, o homem justo é o homem que respeita às leis, uma vez que as leis são redigidas para a harmonia de todos na polis, enquanto as ações injustas tem por objeto o injusto. Assim, o homem injusto é o homem sem lei ou mesmo aquele que não as acata. Ou seja, de certa forma, todos os atos legais nos conduzem à prática das ações justas, uma vez que os atos prescritos em leis foram elaborados do ponto de vista da virtude. Nas palavras de Aristóteles “[...] em certo sentido, chamamos justos aqueles atos que tendem a produzir e a preservar, para a sociedade política, a felicidade e os elementos que a compõem” (ARISTÓTELES, 1984, p. 122).
Sabendo que Aristóteles entende a justiça como uma virtude e que esta se configura como um meio-termo entre dois vícios (um por excesso outro por falta) a injustiça se configura, então, como vício tanto em seu excesso quanto na falta.
Enquanto disposição de caráter, o injusto seria a disposição que leva as pessoas a agirem injustamente, bem como a desejarem o que é injusto. Ou seja, agem de forma a atentarem contra “as coisas que são boas em absoluto” (ARISTÓTELES, 1984, p. 122).
Este atentado se plasma no desrespeito para com a lei ou para com a probidade, bem como no cultivo da ganância e da iniquidade (em termos de contrariedade ao equitativo).
JUSTIÇA COMO VIRTUDE
A justiça de acordo com Aristóteles é uma virtude (Areté) e como toda virtude
(coragem, temperança, liberalidade, magnificência...) é o que ele denominou de mesótes, ou
seja, justo meio. Porém, se diferencia das demais virtudes uma vez que a justiça só possui
um vício (injustiça). A virtude é, pois, um meio termo entre dois extremos, entre dois atos
viciosos um por excesso e outro pela carência.
InterEspaço Grajaú/MA v. 3, n. 9 p. 141-157 maio/ago. 2017 Página 144 Afirma, também, que as virtudes são disposições de caráter e têm sempre a finalidade de realizar as ações do homem enquanto ser racional. Aristóteles, quando na sua divisão dos saberes, colocou a justiça sendo um saber prático, o que nos leva a entender que ela está relacionada com o comportamento dos indivíduos dentro da pólis e que é algo que se constrói e adquire.
Uma vez que a justiça se configura como um comportamento (e, portanto, como algo que se adquire), afirma ainda o eminente filósofo que é somente a educação para a ética (ou seja, a reta orientação de hábitos do comportamento dos indivíduos em que suas condutas e suas ações sejam sempre pautadas na eticidade) que permitirá a construção de um comportamento virtuoso nos sujeitos.
A palavra ética vem do grego ethos e significa hábito ou costume. A Justiça é uma virtude, e é somente através da educação ética que se chega à prática da conduta virtuosa, no sentido da busca do bem, e este bem para o ser humano é a felicidade. O caminho para se chegar, portanto, à felicidade consiste na prática reiterada da ética, uma vez que esta se configura como:
A ciência prática que cuida da conduta humana tem esta tarefa de elucidar e tornar realizável, factível, a harmonia do comportamento humano individual e social. O meio de aquisição da virtude é ponto de fundamental importância nesse sentido. De fato, não sendo a virtude nem uma faculdade, nem uma paixão inerente ao homem, encontra-se neste apenas a capacidade de discernir entre o justo e o injusto, e de optar pelas realizações de ações conformes a um ou a outro (BITTAR, 2010, p. 94-95).
JUSTO TOTAL
Depois de identificarmos que o tema justiça na visão aristotélica possui vários sentidos, partimos, então, para análise da primeira noção de justiça a que ele denominou de justiça total (Díkaion nominón). Pode-se afirmar que o justo total seria o respeito àquilo que é legítimo e que vige para o bem e felicidade de todos, seja de ordem individual, seja coletiva e esta se encontra plasmada na forma da lei. Diz-nos Aristóteles:
Como vimos que o homem sem lei é injusto e o respeitador da lei é justo, evidentemente todos os atos legítimos são, em certo sentido, atos justos; porque os atos prescritos pela arte do legislador são legítimos, e cada um deles, dizemos nós, é justo. Ora, nas disposições que tomam sobre todos os assuntos, as leis têm em mira a vantagem comum [...] (ARISTÓTELES 1984, p. 122).
Ora, se a lei possui em sua essência o caráter da generabilidade, então seu fim seria
a realização do bem comum a todos. E esta ação de legalidade é dirigida para o bem da
InterEspaço Grajaú/MA v. 3, n. 9 p. 141-157 maio/ago. 2017 Página 145 polis. Aqui o papel que o legislador desempenha é de extrema relevância para sociedade.
Aristóteles chega a comparar sua função com aquela do artesão, ou seja, o legislador ao operar o corpo normativo da pólis nada mais está realizando do que o exercício da prudência em âmbito normativo, a qual recebe o nome de nomothesia. Então, pode-se afirmar que o legislador cuidadoso em sua função de elaborar regras que regem a pólis está agindo de acordo com a nomothesia ou, como diz Aristóteles, “[...] a lei bem elaborada faz essas coisas realmente, enquanto as leis concebidas às pressas as fazem menos bem”
(ARISTÓTELES, 1984, p. 122).
Este tipo de justiça, por sua vez, pode ser empregado no sentido mais amplo. Por conta disso é que o termo justiça total pode também ser chamado de justiça universal ou integral e isto se deve ao fato da abrangência de sua aplicação (as leis valem para o bem de todos e para o bem comum) e por se associar ao que o estagirita nomeou como “virtude completa”.
Essa forma de justiça é, portanto, uma virtude completa [...]. Ela é a virtude completa no sentido do termo, por ser o exercício atual da virtude completa. É completa porque aquele que a possui pode exercer sua virtude não só sobre si mesmo, mas também sobre seu próximo [...] somente a justiça, entre todas as virtudes, é o “bem de um outro”, visto que se relaciona com o nosso próximo, fazendo o que é vantajoso a um outro[...]. Portanto, a justiça neste sentido não é uma parte da virtude, mas a virtude inteira (ARISTÓTELES, 1984, p. 122-123).
Aristóteles afirma ainda que aquele que não respeita as leis não respeita a todos de maneira geral, ou seja, desrespeita aqueles que estão submetidos a ela; e aquele que obedece às leis serve a todos que são por ela beneficiados. Esta é uma maneira dos membros da pólis se relacionarem uns com os outros indiretamente por meio de suas atitudes, comissivas no realizar de suas virtudes, e omissivas diante dos vícios, e o resultado de suas ações tem seu efeito sobre todos. Esta é a consequência da esfera individual sobre a coletiva, uma vez que todos compartilham do mesmo modo de vida política e estão regidos pelas mesmas leis, ou seja, o respeito às leis significa o respeito a todos.
A justiça total seria a mais apropriada no que diz respeito à vida política, uma vez
que seu conteúdo age de acordo com o meio termo e, por ser a mais completa das virtudes,
esta forma de justiça é a mais difícil de ser exigida exatamente porque muitos são capazes
de realizar atos justos para aquilo que lhes beneficiam de certa forma, e poucos são aqueles
que os realizam em função do outro que, por sua vez, também compartilha do mesmo
modo de vida da pólis. O justo total é a observância da lei, é quando as ações dos
indivíduos se vinculam no que é regra, nesta concepção o próprio conteúdo da lei realiza a
InterEspaço Grajaú/MA v. 3, n. 9 p. 141-157 maio/ago. 2017 Página 146 justiça. Ora, a partir da análise do tem “justiça total”, pode-se então inferir que justiça e legalidade são a mesma coisa.
O JUSTO PARTICULAR
O tema da justiça particular é abordado por Aristóteles, sobretudo, no capítulo II do Livro V da Ética a Nicômaco. O justo particular seria, para Aristóteles, uma parte daquela justiça total. Este, por sua vez, se divide em justo particular distributivo e justo particular corretivo e este último se subdivide em justo particular comutativo.
O justo particular sendo, por sua vez, uma parte da virtude e não uma virtude total se refere ao outro de forma singular. Refere-se, também, às relações existentes entre indivíduos. Assim como no justo total, o justo particular interfere na esfera individual e coletiva, pois se uma pessoa comete uma injustiça de forma particular não deixa de violar uma lei e o resultado de seus atos abarca todos de forma geral.
Justo particular distributivo
O justo particular distributivo, em Aristóteles, se refere a todos os tipos de distribuição existentes na pólis, sejam elas de dinheiro, honras, cargos e qualquer outro bem que sejam destinados aos governados.
Da justiça particular e do que é justo no sentido correspondente, uma espécie é a que se manifesta nas distribuições de honras, de dinheiro ou das outras coisas que são divididas entre aqueles que têm parte na constituição (pois aí é possível receber um quinhão igual ou desigual ao de um outro) (ARISTÓTELES, 1984, p. 124).
Esta distribuição, por sua vez, seria de acordo com os méritos e aptidões de cada
pessoa e sempre levaria em conta o princípio de igualdade e proporcionalidade com fins de
manutenção de um pensamento que prime pela equidade. Partindo desta concepção, nota-
se de forma bastante clara a presença da justiça distributiva nos dias atuais, como os
princípios gerais da igualdade das relações jurídicas e também na Constituição Federal de
1988, no seu dispositivo que versa sermos todos iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a
inviolabilidade de direitos á vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade
(CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988, art. 5°).
InterEspaço Grajaú/MA v. 3, n. 9 p. 141-157 maio/ago. 2017 Página 147 Na justiça distributiva percebe-se também uma relação de subordinação entre aquele que distribui e aquele que recebe, e neste tipo de relação a justiça se alcançaria mediante o recebimento dos direitos e deveres dentro da pólis.
O justo particular corretivo
O justo particular corretivo consiste na aplicação de um juízo corretivo nas relações a serem estabelecidas entre os indivíduos. Na medida em que surgem conflitos de direito, à justiça corretiva é atribuída a função de corrigir este conflito de modo que se retorne o status quo. É ela “[...] o intermediário entre a perda e o ganho” (ARISTÓTELES, 1984, p.
126). Desse modo, ela previne os cidadãos de serem lesados em seus direitos. O Princípio de correção se divide, de acordo com a ação de comutação, em ações voluntárias e involuntárias. As primeiras voltam-se para as relações contratuais e as últimas são voltadas para os delitos.
A justiça comutativa (que tem sua origem no latim comutare que significa troca) se estabelece de modo a organizar as relações que tem como base a troca. Aplica-se a justiça comutativa nas relações voluntárias, e ela visa sempre estabelecer a igualdade entre o dar e o receber, além de procurar adequar-se caso a caso para não violar o princípio da igualdade entre os indivíduos.
No que tange às ações voluntárias (destinadas ao ordenamento das relações contratuais), diz-nos Aristóteles “[...] a justiça nas transações entre um homem e outro é efetivamente uma espécie de igualdade, e a injustiça uma espécie de desigualdade”
(ARISTÓTELES, 1984, p. 126).
O princípio da igualdade presente aqui é bastante diversificado, pois trata de medir os ganhos e perdas de forma generalizada. Aqui as relações são levadas em conta pelo seu objetivo e não mais pelas aptidões de cada indivíduo. Aqui a função do juiz é proceder de modo equitativo a fim de equilibrar perdas e ganhos.
Além desta forma de conceber a correção (voltada para uma “proporção aritmética”), todas as relações de troca, com vistas à manutenção do equilíbrio do corpus social, sejam elas penais ou civis é de objeto da justiça corretiva. Conforme afirma Aristóteles:
Portanto, sendo esta espécie de injustiça uma desigualdade, o juiz procura igualá-la; porque também no caso em que um recebeu e o outro infligiu um ferimento, ou um matou e o outro foi morto, o sofrimento e a ação foram
InterEspaço Grajaú/MA v. 3, n. 9 p. 141-157 maio/ago. 2017 Página 148
desigualmente distribuídos; mas o juiz procura igualá-los por meio da pena [...](ARISTÓTELES, 1984, p. 126).
Estamos aí diante de ações em que uma das partes foi involuntariamente lesada.
Involuntária porque a lesão não provém de transações previamente ordenadas. Também aqui busca-se estabelecer a justiça. Aqui, o “[...] justo é intermediário entre uma espécie de ganho e uma espécie de perda, a saber, os que são involuntários” (ARISTÓTELES, 1984, p. 127).
JUSTO POLÍTICO E JUSTO DOMÉSTICO
O justo político se apresenta de forma diversa do justo da casa, uma vez que a ação do justo político se volta para aplicação da justiça na pólis. Trata-se especificamente das questões referentes ao corpo cívico. É de sua responsabilidade a organização do meio social, o modo de vida dos indivíduos, dividindo por sua vez as atividades de cada cidadão de acordo com os méritos e capacidades de cada um a fim de alcançarem a eudaimonía, ou seja, a felicidade plena.
Em termos gerais, Aristóteles, assim define a justiça política:
Esta é encontrada entre homens que vivem em comum tendo em vista a auto- suficiência, homens que são livres e iguais, quer proporcionalmente quer aritmeticamente, de modo que entre os que não preencham esta condição não existe justiça política, mas justiça num sentido especial e por analogias (ARISTÓTELES, 1984, p. 130).
Ou seja, os escravos, menores, mulheres e estrangeiros faziam parte do grupo de excluídos, uma vez que a justiça política não seria aplicada a eles, pois a lei não vige para estes. Seriam por ela atingidos somente obliquamente. A justiça política seria somente aplicada àqueles a quem as leis e os comandos normativos eram dirigidos.
Além disso, Aristóteles é enfático na defesa do governo da pólis por um princípio
racional (governança da lei) e não por um homem, ou seja, que não assuma um viés
personalista. O objetivo é estabelecer um governo cuja meta seja plasmada na defesa da
justiça fundada basicamente no princípio de isonomia, “Aí está porque não permitimos que
um homem governe, mas o princípio racional, pois que um homem o faz no seu próprio
interesse e converte-se num tirano. O magistrado, por outro lado, é um protetor da justiça
e, por conseguinte, também da igualdade” (ARISTÓTELES, 1984, p. 130).
InterEspaço Grajaú/MA v. 3, n. 9 p. 141-157 maio/ago. 2017 Página 149 A justiça doméstica, por sua vez, refere-se às relações domésticas e familiares. Esta tem como referência o chefe da família (pai ou amo), dado que a ele incumbe fazer justiça em âmbito doméstico e qual o papel destinado aos filhos, servos e esposa em relação a ele.
Esta justiça se difere da justiça política, uma vez que os servos e filhos (incapazes ou menores) de um senhor são considerados parte dele. Neste caso, Aristóteles afirma que ninguém fere a si próprio, sendo assim, é impossível que se cometa voluntariamente injustiça para consigo mesmo. Assim, servos e filhos estariam protegidos obliquamente, por derivação da proteção do senhor. Ora, a justiça e a injustiça política não se manifestam em relações dessa natureza, pois, como já foi dito, estas se relacionam diretamente com o respeito ou não ao seguimento da lei prescrita em vistas da equidade pública e, portanto, volta-se para os que estão naturalmente a ela sujeitas, não é o caso dos membros da oikos aqui citados. Aristóteles subdivide a justiça política em justiça natural e justiça legal.
Justo natural
A justiça natural provém do direito natural. É aquela que possui em si mesma validade em todo lugar. Nas próprias palavras de Aristóteles (1984, p. 131) percebe-se isto quando este afirma que a justiça natural é “como o fogo que arde tanto aqui como na Pérsia”, embora reconheça a mutabilidade acerca do conteúdo do justo, sua forma, porém, mantém-se intacta, pois, formalmente, assume um caráter objetivo. Afirma o estagirita:
“para nós existe algo que é justo mesmo por natureza, embora seja mutável”
(ARISTÓTELES, 1984, p. 131). Sua origem não está na natureza do legislador, mas na necessidade premente da busca intermitente do homem pela ordem e, por isso, possui a mesma força da justiça legal. Acerca deste tema, Bittar (2010, p. 145) afirma que a justiça natural consiste em um
Conjunto de todas as regras que encontram aplicação, validade, força e aceitação universais. Assim, pode-se definir o justo natural como sendo parte do justo político que encontra respaldo na natureza humana, e não depende do arbítrio volitivo do legislador, sendo por consequência, de caráter universalista.
Justo legal
A justiça legal refere-se às disposições legais que possuem sua origem na natureza do legislador. Estas, uma vez aprovadas em assembleia, emanam uma obrigatoriedade geral.
Significa o respeito à lei, às regras elaboradas e regidas para o bem comum. A justiça legal
InterEspaço Grajaú/MA v. 3, n. 9 p. 141-157 maio/ago. 2017 Página 150 possui suas bases na justiça natural, porém se difere desta última uma vez que a justiça legal necessita de positivação para sua existência e não possui em si força de validade universal (nos moldes propostos pelo justo natural) necessitando, assim, das ações humanas de forma participativa para sua efetivação. Em outras palavras, o justo legal seria
[...] o conjunto de disposições vigentes na polis que têm sua existência definida pela vontade do legislador. Tem por objeto tudo aquilo que poderia ser feito das maneiras as mais variadas possíveis, mas uma vez que convencionada legislativamente, é esta que se deve obedecer. A lei possui força não natural, mas fundada na convenção (BITTAR, 2010, p. 109).
Das partes que compõem o justo político existe aquela que emana da natureza (a razão) e aquela que é conforme a lei. Portanto, pode-se afirmar que a legislação perfeita seria a junção do legal ao natural. O legislador muitas vezes é infeliz ao redigir o texto normativo e acaba deixando a desejar pelo fato de restringir demais o sentido do texto ou por estendê-lo em demasia. Outras vezes acaba a legislar de acordo com seus próprios interesses ou interesses de grupos. Por isso, a adequação do legal ao natural seria a forma ideal de legislar uma vez que o legal radica-se no natural
1.
JUSTIÇA E EQUIDADE
A justiça, como já fora dito, na visão de Aristóteles é uma virtude (Areté). Mas esta virtude possui somente um vício (ao contrário das demais virtudes traçadas pelo filósofo grego) que seria a injustiça. O jurisconsulto Ulpiano descreve justiça como “a firme e constante vontade de dar a cada um o que é seu” (ULPIANO apud NADER, 2007, p.
105). Já a linha positivista declara-a como algo inteiramente subjetivo que varia de pessoa para pessoa e de grupos para grupos e o pensador austríaco Hans Kelsen considera a justiça como algo absoluto e afirma ser ela “um bonito sonho da humanidade” (KELSEN apud NADER, 2007, p. 106).
Ao analisar o tema justiça e equidade é importante ressaltar que tais categorias caminham juntas. Nas palavras de Aristóteles equidade seria, portanto, “uma correção da lei quando ela é deficiente em razão da sua universalidade” (ARISTÓTELES, 1984, p. 137).
Ora, os acontecimentos advindos da vida social estão sempre em evolução e nem sempre o ato normativo acompanha todos os casos possíveis de acordo com suas
1 Pelo fato de não ser o objeto deste artigo o debate sustentado entre jusnaturalistas e positivistas jurídicos encerra-se ali a discussão sobre o tema, mesmo sabendo que acerca disto muito há que esclarecer, fato que poderia ensejar trabalhos futuros.
InterEspaço Grajaú/MA v. 3, n. 9 p. 141-157 maio/ago. 2017 Página 151 peculiaridades. Desta forma é que a equidade surge como mecanismo de adaptação das normas jurídicas abstratas ao caso concreto. Ora, a norma jurídica nem sempre consegue abarcar todos os casos e acontecimentos possíveis (não é casuística), isso não significa dizer que o legislador foi incompetente ou que tenha criado uma lei deficiente. Isso se deve às evoluções advindas dos fatos sociais (uma vez que a sociedade está em constante evolução), e a equidade surge como forma de resolução de conflitos de modo que não se quebre a igualdade de direitos tal como se estivesse previsto em lei.
Desse modo, agir com equidade, pois, é agir sem o legislador em determinado caso especifico, pois é na ausência da lei que a equidade torna-se útil. Partindo desta análise, Aristóteles afirma, ainda, que o equitativo é justo e é melhor do que uma espécie de justiça
2. É neste sentido que Eduardo Bittar (2010, p. 115) afirma que o équo possui “[...] uma excelência ainda maior daquela já contida no conceito do que é bom”. Primeiro, porque o équo ainda reside na esfera da justiça. Segundo, por pertencer à mesma ordem semântica que o justo (a da busca do que seja bom), torna-se mais desejável do que este último visto que se propõe a ser uma correção do justo legal. Some-se a isto, o fato de ser ele uma virtude, ou seja, uma disposição de caráter cultivada pelo homem equitativo, o qual seria
O homem que escolhe e pratica tais atos, que não se aferre aos direitos em mau sentido, mas tende a tomar menos do que seu quinhão embora tenha a lei por si, é equitativo, e essa disposição de caráter é a equidade que é uma espécie de justiça e não uma diferente disposição de caráter (ARISTOTELES, 1984, p.
137).
Ademais, faz-se necessário explanar como o homem justo relaciona esta virtude em face da amizade (categoria deveras cara ao homem grego, configurando-se, inclusive como uma forma de amor, a philia).
JUSTIÇA E AMIZADE
Aristóteles discorre de modo mais acurado acerca da amizade especialmente no Livro VIII da Ethica Nicomachea. Explicitamos que nosso objetivo, aqui, centra-se em uma análise do conceito de Justiça para o filósofo de Estagira conforme consta no Livro V da obra supracitada. Dada, porém, a associação indubitável entre estes dois conceitos, faz-se necessário extrapolar o Livro analisado deixando claro que não nos aprofundaremos acerca
2 Neste caso, o équo seria superior ao justo legal, vez que o primeiro se dispõe a retificar as lacunas ou falhas do segundo.
InterEspaço Grajaú/MA v. 3, n. 9 p. 141-157 maio/ago. 2017 Página 152 do tema da amizade, uma vez que isso poderia implicar numa fuga do que nos propusemos.
Para Aristóteles justiça e amizade estão sempre ligadas e, sendo a amizade responsável pela harmonia e coesão das cidades-Estados, o bem comum emana, também, deste acordo. O homem, como afirma Aristóteles, é um animal político (zoon politikon).
Sendo assim, a amizade é elemento de extrema importância para a sociabilidade de modo a unir os homens em um único corpo social.
É certo que o homem enquanto ser racional não pode viver fora do convívio da sociedade. Neste caso, a sociabilidade funda-se na utilidade e na amizade, sendo assim, a amizade torna-se um condicionante para a existência da justiça. Aristóteles afirma que
“Quando os homens são amigos necessitam da justiça, ao passo que os justos também necessitam da amizade; e considera-se que a mais genuína forma de justiça é uma espécie de amizade” (ARISTÓTELES, 1984, p. 179).
A amizade requer semelhança e esta objetiva tornar justa as relações subjetivas, uma vez que, em virtude de se configurar como uma relação equitativa com seu semelhante não manifesta interesse ou desejo de prejudicar o outro
3e sim busca manter relações pautadas na confiança, lealdade e harmonia dentro da pólis. Ora, o mesmo pode ser atribuído à justiça.
Tanto a amizade quanto o justo só se realizam de fato na vivência em comunidade e requerem a alteridade como pressuposto. Ora, diferentes tipos de comunidade ensejam formas diferentes de amizade, o mesmo se aplica à justiça.
No que diz respeito ao tema da amizade, este se refere àquela existente entre as pessoas virtuosas, uma vez que esta é a mais excelente, a mais perfeita e douradora manifestação de amizade. Ora, a amizade pode se manifestar de maneiras diversas. Existe a amizade que se funda na utilidade que um indivíduo tem para com o outro ou no prazer que as pessoas são capazes de proporcionar a outrem. Em relações desta natureza não se manifesta o verdadeiro sentido da amizade, este só é possível de ser encontrado (como dito antes) nas relações mantidas entre pessoas virtuosas.
Aristóteles nos diz ainda que tanto a amizade quanto a justiça possuem a mesma finalidade e se consolidam nas relações mantidas entre indivíduos na comunidade. Ora, os homens necessitam de amigos e esta necessidade se manifesta principalmente nas relações de distribuições (referente à justiça distributiva) dentro da pólis. A amizade comporta-se,
3 É certo que aqui está a se tratar daquela amizade estabelecida entre pessoas virtuosas, conforme afirma Bittar (2010, p. 120). É esta a forma mais desinteressada, excelente e perfeita forma de amizade e, por isso, a mais completa e duradoura de todas.
InterEspaço Grajaú/MA v. 3, n. 9 p. 141-157 maio/ago. 2017 Página 153 nesse contexto, a desempenhar um papel fundamental. A justiça, por sua vez, se manifesta de modo a controlar nossas ações de modo a não agirmos injustamente para com o próximo.
Aristóteles (1984, p. 188) afirma, ainda, que as imposições de justiça (assim como as relações de amizade) se diferenciam: “não são os mesmos os deveres dos pais para com os filhos e os dos irmãos entre si, nem os dos camaradas ou dos concidadãos [...]” e os atos injustos se diferenciam de modo a considerar seu grau de afecção de acordo com o atentado desta para com cada uma dessas classes. Desta forma, a injustiça ocorre exatamente quando os homens se manifestam de modo a ferir aqueles que são mais amigos em sentido mais pleno, por exemplo, é mais abominável ferir o próprio pai do que qualquer outro.
A amizade e justiça, como vimos, se manifestam em relação aos indivíduos e se diferenciam de acordo com cada segmento de composição de uma dada comunidade. Ora, todas essas formas de comunidades são pertencentes à comunidade política, e as formas de organização da comunidade política se apresentam de maneiras diversas. Por isso, para cada tipo de governo político (que atenderá às exigências de organização intrínseca a cada povo, obedecendo aos graus e formas de amizade mantidos internamente) existe uma espécie de constituição.
Por conta disso, Aristóteles afirma existirem três formas de constituição de governo
e, por conseguinte, três formas de degeneração atinentes a cada uma das formas de
governo: monarquia, aristocracia e timocracia. A melhor delas, segundo o filósofo, é a
monarquia e a pior a timocracia. Afirma ainda que o desvio da monarquia é a tirania, pois
ambas tem como base de governo o absolutismo, mas se diferenciam uma vez que o tirano
visa sempre vantagens próprias, e o rei, por sua vez, a vantagem dos seus súditos. A
monarquia se degenera em tirania, que é a forma de governo de um só homem, e o mau rei
converte-se em tirano. A aristocracia degenera-se em oligarquia, isto ocorre quando os
governantes não se baseiam no equitativo nas distribuições dos encargos pertencentes ao
Estado. A timocracia, por sua vez, degenera-se em democracia. Estas últimas, afirma
Aristóteles, são coextensivas, uma vez que a timocracia tem como base de governo a
maioria, de modo que os que não têm posses são considerados também iguais. A
democracia é, por fim, considerada a pior das três espécies de perversão de constituição,
uma vez que nesta perde-se o referencial que ensejaria a prática da justiça e da amizade,
comum na imagem do pater famílias, tão cara aos gregos. A este respeito arremata
Aristóteles: “a democracia é encontrada sobretudo nas famílias acéfalas (onde, por
InterEspaço Grajaú/MA v. 3, n. 9 p. 141-157 maio/ago. 2017 Página 154 conseguinte, todos se encontram num nível de igualdade), e naquelas em que o chefe é fraco e todos têm licença de agir como entenderem” (ARISTÓTELES, 1984, p. 190).
O JUIZ COMO JUSTIÇA ANIMADA
Segundo Aristóteles o juiz funciona como uma espécie de mediador nas relações de correções da justiça. Incube ao juiz sempre colocar os indivíduos desiguais em uma situação de paridade e de igualdade absoluta, de acordo com a situação em que este indivíduo se encontrava antes da contenda. Portanto, o injusto neste sentido seria tomar mais do que é bom e menos do que é ruim. Aqui a função do juiz consiste em tirar daquele que se apropriou da determinada porção maior do que é bom e distribuir ao outro que fora lesado, como sustenta Aristóteles (1984, p. 126):
Ora, o juiz restabelece a igualdade. É como se houvesse uma linha dividida em partes desiguais e ele retirasse a diferença pela qual o segmento maior exceda a metade para acrescentá-la ao menor. E quando o todo foi igualmente dividido, os litigantes dizem que receberam “o que lhes pertence” - isto é, receberam o que é igual.
Ora, entender o juiz como aquele que restabelece a igualdade, significa tê-lo como mediador, como aquele busca o meio-termo, o ponto de equilíbrio propiciador da justiça.
Trata-se de tê-lo como aquele que avalia o desequilíbrio mantido entre os litigantes a partir do convencionado e plasmado sob a forma da lei. É exatamente por conta disso que Aristóteles (1984, p. 126) afirma:
Eis ai por que as pessoas em disputa recorrem ao juiz; e recorrer ao juiz é recorrer à justiça, pois a natureza do juiz é ser uma espécie de justiça animada; e procuram o juiz como o intermediário, e em alguns Estados os juízes são chamados de mediadores, na convicção de que, se os litigantes conseguirão o meio termo, conseguirão o que é justo. O justo, pois, é o meio termo já que o juiz o é.