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A posse, o mérito e a justiça distributiva

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Academic year: 2022

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cular, a possibilidade de o bem da comunidade se poder afigurar como uma dimensão constituinte deste tipo.

Por isso, ainda que não se possa afirmar que os princípios de Rawls derivam "de uma doutrina que não impõe quaisquer restrições antecipada- mente" sobre as concepções do bem, ainda assim, poder-se-á argumentar que as concepções por ele excluídas são de algum modo dispensáveis, sendo possível explicar a justiça e chegar a uma concepção de sociedade bem orga- nizada sem elas. A teoria da justiça de Rawls é precisamente uma tentativa deste tipo. Para a podermos aferir, temos de descer do universo da meta- -ética deontológica para uma análise dos princípios de primeira ordem. Nos capítulos que se seguem, argumentarei no sentido de que não só a concep- ção da pessoa de Rawls não consegue sustentar a sua teoria da justiça, como também não é capaz de explicar, com plausibilidade, as nossas capacidades de agir e de auto-reflexão. A justiça não pode ser primária no sentido exigido pela deontologia, na medida em que não nos podemos perspectivar coeren- temente a nós próprios como o tipo de seres que a deontologia ética exige que sejamos.

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A posse, o mérito e a justiça distributiva

Depois de termos clarificado o estatuto dos pressupostos de motivação de Rawls, podemos agora colocar lado a lado a sua teoria da pessoa e a sua teoria da justiça, a fim de procurar a· conexão entre ambas. Deste modo, poderemos operar dentro do argumento que parte do equilíbrio reflectido, indagando se a teoria da pessoa expressa na posição original corresponde aos princípios da justiça que tem simultaneamente de enformar e de reflectir. Para este propósito, um princípio assume um interesse especial.

Trata-se do princípio de diferença, nos termos do qual apenas são permitidas aquelas desigualdades que funcionem em benefício dos membros mais des- favorecidos da sociedade. Veremos neste capítulo que uma defesa adequada do princípio de diferença tem necessariamente que pressupor uma concep- ção de pessoa que não está ào alcance de pressupostos deontológicos, uma vez que não podemos simultaneamente ser sujeitos para quem a justiça é primária, e sujeitos para quem o princípio de diferença é um princípio de justiça. Um ponto central incidirá sobre o papel do mérito na justiça distri- butiva, bem como sobre a concepção de posse que exige. Para explorar estes temas, começaremos contrastando as perspectivas de Rawls com várias teo- rias distributivas alternativas, em particular com a teoria rival, se bem que em alguns aspectos espantosamente semelhante, defendida por Robert Nozick (1974).

Do pensamento libertário ao pensamento igualitário

A partir de um ponto de vista político prático, as posições de Rawls e de Nozick opõem-se com clareza. Rawls, o liberal, defensor do Estado de bem- -estar, e Nozick, o conservador libertário, definem entre si as alternativas

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mais claras que a agenda política norte-americana tem para oferecer, pelo menos naquilo que à justiça distributiva diz respeito. E, no entanto, a partir de um ponto de vista filosófico, têm muito em comum. Um e outro definem as suas posições em oposiçao explícita ao unluarismo, que ambos rejeitam com o fundamento de este negar a distinção entre pessoas. Alnbos

em alternativa, uma ética baseada em direitos, proposta com vista a assegtl- rar de forma mais completa a liberdade dos indivíduos. Apesar de a concep- ção de direitos de Nozick ficar a dever muito a Locke, ambos apelam para o preceito de Kant nos termos do qual cada pessoa deve ser tratada como um fim, e não apenas como meio, e procuram os princípios da justiça que correspondam a esta posição. Ambos negam que exista qualquer entidade social acima ou para além dos indivíduos que a compõem. Conforme Nozick escreve, ecoando Rawls, tanto nos princípios como na retórica,

"Os constrangimentos colaterais à acção (isto é, as proibições não qualificadas) reflectem o princípio kantiano fundamental de que os indivíduos são fins e não apenas meios. [ ... ] Os constrangi- mentos colaterais exprimem a inviolabilidade de outras pessoas.

Mas, por que razão não se poderão violentar os direitos das pes- soas com vista a um bem social maior? Cada um de nós, indivi- dualmente, escolhe por vezes submeter-se a algum trabalho ou sacrifício com vista seja à obtenção de um benefício, seja a evitar um prejuízo ainda maior. [ ... ] Porém, não existe qualquer entidade social com um bem privativo que se disponha a suportar algum sacrifício para o seu próprio bem. Apenas as pessoas individuais existem, pessoas individuais diferentes, com as suas próprias vidas individuais. Utilizar uma dessas pessoas para o benefício de outras é usá-la a ela e beneficiar as outras. Nada mais. [ ... ] Utilizar uma pessoa deste modo não respeita o suficiente, nem leva em consideração o facto de ela ser uma pessoa separada, cuja vida é a única que tem para viver" (1974: 30-33).

"Os constrangimentos morais colaterais sobre aquilo que possamos fazer, afirmo, reflectem o facto de termos existências separadas. Reflectem o facto de que a actuação sobre uns não pode ser moralmente equilibrada pela actuação sobre outros. Não há nada que supere o valor moral da vida de uni de nós ao ponto

de justificar que ela lhe possa ser retirada com vista à obtenção de um bem social global maior. Nada justifica que se sacrifique alguns de nós pelos outros" (1974: 33).

Os dois filósofos sublinham aquilo que Rawls apelida de "pluralidade e singularidade das pessoas" e aquilo que Nozick apelida de "facto das nossas existências separadas". Este é o facto moral central negado pelo utilitarismo e que é afirmado por uma ética individualista, baseada nos direitos do homem. Sobre este facto moral, bem como sobre a importância dos direitos, Rawls e Nozick estão enfaticamente de acordo. Contudo, Rawls chega a uma teoria da justiça no quadro da qual se aceitam desigualdades económicas e sociais apenas na medida em que beneficiem os mais desfavorecidos, enquanto que, para Nozick, a justiça se situa unicamente nas trocas e nas transferências voluntárias, o que exclui todas e quaisquer políticas redistri- butivas. Como é que, então, as suas teorias da justiça acabam por divergir de forma tão vincada? Afortunadamente, o ponto em que ambos se separam pode ser localizado com alguma precisão, na medida em que Rawls, ao desenvolver o seu segundo princípio da justiça (aquele que contém o princí- pio de diferença), apresenta uma linha de raciocínio que parte de uma posi- ção semelhante à de Nozick, mas termina na sua.

Rawls considera três princípios possíveis segundo os quais a distribui- ção dos benefícios sociais e económicos pode ser regulada ou aferida: a liberdade natural (semelhante à "teoria dos direitos" de Nozick), a igualdade liberal (aparentada com uma meritocracia-padrão), e a igualdade democrá- tica (baseada no princípio de diferença). O sistema de liberdade natural define como sendo justa qualquer distribuição que decorra de uma econo- mia de mercado eficiente na qual prevaleça uma igualdade de oportunidades formal (isto é, jurídica), de tal ordem que os postos sociais possam ser ocupados por aqueles que possuírem os talentos relevantes para o efeito.

Para Rawls, este princípio é inadequado, na medida em que a organização social que sanciona tende simplesmente a reproduzir a distribuição inicial de talentos e de recursos; aqueles que forem substancialmente mais dotados arrecadarão quinhões maiores, e aqueles que se virem com menores posses obterão resultados também menores. Onde quer que os resultados tiverem a tendência para simplesmente reproduzir a distribuição inicial, apenas poderemos apelidar uma tal circunstância de justa, caso se verifique o pres- suposto adicional de a distribuição inicial de talentos ter sido, já ela, justa.

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Porém, este pressuposto não pode ser estabelecido como princípio, "Inde- pendentemente do período de tempo a que nos reportarmos, a distribuição inicial de talentos e capacidades é fortemente influenciada pelas contingên- cias naturais e sociais"; como tal, não será

mente arbitrária. E uma vez que nada há que recomende a justiça das dotações iniciais, implantá-las em nome da justiça equivalerá a incorporar a arbitrariedade da sorte, nada mais. "Intuitivamente, a injustiça mais evidente do sistema de liberuade natural está em que ele permite que a parte que cabe a cada um na distribuição seja influenciada por estes factores, os quais são perfeitamente arbitrários de um ponto de vista moral" [72 (76)].

O princípio de igualdade liberal procura remediar as injustiças da liber- dade natural, indo para além da igualdade formal de oportunidades e corri- gindo, sempre que possível, as desvantagens sociais e culturais. O objectivo é uma espécie de "meritocracia equitativa" na qual as desigualdades sociais e culturais são mitigadas por iguais oportunidades educativas, certas políticas redistributivas e outras reformas sociais. O ideal do princípio de igualdade liberal prende-se com a oferta a todos de "um mesmo ponto de partida", a fim de que aqueles com talentos e capacidades inatas semelhantes e com uma vontade também semelhante de os exercer possam, então, ter "as mesmas perspectivas de sucesso, sem olhar ao seu lugar inicial no sistema social, isto é, independentemente do rendimento auferido pela classe social em que nasceram. Em todos os sectores da sociedade deve haver aproxima- damente as mesmas perspectivas de cultura e de sucesso para todos aqueles que têm motivações e capacidades semelhantes. As expectativas daqueles que têm as mesmas capacidades e aspirações não devem ser afectadas pela classe social a que pertencem" [73 (76)].

Porém, enquanto que a igualdade liberal constitui um progresso em comparação com o sistema de liberdade natural, "intuitivamente, continua a aparecer insatisfatória". Igualdade de oportunidades, mesmo que total, con- tinua a representar um ataque demasiado débil ao carácter arbitrário da sorte.

"Ainda que consiga eliminar totalmente a influência das contingências sociais, ela continua a permitir que a distribuição da riqueza e do rendimento seja determinada pela distribuição natural de capacidades e talentos. Dentro dos, limites impostos pelas instituições de enquadramento, a distribuição é decidida

pelos resultados da lotaria natural, resultado esse que é arbitrário do ponto de vista moral. Não há mais razões para admitir que a distribuição do rendimento e da riqueza dependa da distribuição de talentos e qualidades naturais do que para aceitar que ela depende do acaso histórico e social" [73-74 (77)].

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A partir do momento em que nos sentimos chocados pelo facto de a repartição inicial de legados naturais determinar as nossas perspectivas de vida em geral, somos levados pela reflexão a sentir-nos tão chocados pela influência das contingências naturais como pela influência das suas congé- neres sociais e culturais. "De um ponto de vista moral, umas e outras são igualmente arbitrárias" [75 (78)]. O mesmo raciocínio que nos conduz a pre- ferir uma "meritocracia equitativa" (como no quadro da igualdade liberal) sobre uma igualdade puramente formal de oportunidades (como no para- digma de liberdade natural), conduz-nos naturalmente a procurar aquilo que Rawls apelida de concepção democrática. Torna-se, contudo, claro que a concepção democrática não constitui uma mera extensão do princípio de igualdade de oportunidades. Quanto mais não seja porque seria virtualmente impossível alargar as oportunidades de forma tão completa a ponto de erra- dicar até mesmo aquelas desigualdades que decorrem exclusivamente de condições sociais e culturais. Por si só, a instituição da família já torna "na prática impossível assegurar iguais possibilidades de sucesso e cultura a todos aqueles que são dotados de modo semelhante" [74 (77)]. Mas até mesmo se a educação compensatória e outras reformas pudessem suprir por completo, ou até mesmo de modo aproximado, as carências sociais e cultu- rais, torna-se difícil, se não mesmo em geral impossível, imaginar que tipo de políticas sociais seriam necessárias para que se pudesse proceder a uma

"correcção" comparável das contingências naturais do acaso. Daquilo que necessitamos, portanto, é de uma concepção que anule o efeito destas con- tingências, ao mesmo tempo que reconhece a sua inevitabilidade.

Alguns pensadores, em particular aqueles que se apresentam hostis ao princípio de igualdade democrática, descrevem o passo lógico que se segue como constituindo um salto, do domínio da igualdade de oportunidades para o domínio da igualdade de resultados. Na sua perspectiva, qualquer teoria da justiça que rejeite uma concepção assente sobre o mérito devido ao carácter moralmente arbitrário das consequências que dela decorrem ao nível da distribuição tem necessariamente de se encontrar empenhada numa

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espécie de igualdade de nivelamento, exigindo reajustamentos constantes dos quinhões que são distribuídos, a fim de corrigir as diferenças que possam persistir no que toca a talentos e capacidades naturais (Bell 1973: 441-443).

Porém, a igualdade de resultados não é, de modo

democrática a um regime de meritocracia, nem é, tão-pouco, o princípio adoptado por Rawls. O princípio de diferença não é sinónimo de igualdade de resultados, nem exige o nivelamento de todas as diferenças entre as pes- soas. "Daqui não decorre que se deva eliminar estas distinções [escreve Rawls]. Há outra maneira de lidar com elas" [102 (96)]. E essa maneira pro- posta por Rawls não aponta para a erradicação de dotes desiguais, mas para o desenvolvimento de um estratagema de distribuição de benefícios e de fardos de tal modo que os menos favorecidos possam beneficiar dos recursos dos mais afortunados. É este o estratagema que o princípio de diferença procura concretizar, definindo como justas apenas aquelas desigualdades sociais e económicas que funcionem para o benefício dos membros menos favorecidos da sociedade. Perspectivado em conjunto com o princípio de livre acesso de todos aos postos de trabalho e às posições, em condições de uma leal igualdade de oportunidades, o princípio de diferença define a concepção de igualdade democrática de Rawls.

O princípio de diferença não constitui uma mera versão mais acabada do princípio de igualdade de oportunidades, já que ataca o problema da arbitrariedade de um modo fundamentalmente diferente. Em vez de trans- formar as condições em que exerço os meus talentos, o princípio de dife- rença transforma o fundamento moral com base no qual eu reivindico os benefícios que deles decorrem. Deixo de ser considerado o único proprietá- rio dos níeus activos, ou o beneficiário privilegiado das vantagens que me trazem. "O princípio de diferença representa, com efeito, um acordo no sen- tido de se encarar a distribuição dos talentos natur~is como um bem comum, e de partilhar os benefícios desta distribuição, qualquer que ela venha a ser"

[101 (96)]. Deste modo, o princípio de diferença reconhece o carácter arbi- trário da sorte quando afirma que eu não sou exactamente o proprietário, mas apenas o guardião ou o depositário, dos talentos e das capacidades que venham a residir na minha pessoa e, como tal, não possuo qualquer direito moral especial sobreos frutos do seu exercício.

"Aqueles a quem a natureza favoreceu, sejam eles quem forem, podem beneficiar da sua sorte apenas em termos que

melhorem a situação dos que não tiverem sido igualmente bafeja- dos. Os que forem favorecidos pela natureza não deverão poder retirar ganhos apenas pelo facto de terem sido mais dotados, mas unicamente para cobrir os despesas envolvidas com o treino e a educação dos demais, bem como para utilizar os seus dons de maneira a melhorar também a sorte dos menos favorecidos. Nin- guém merece as suas maiores capacidades naturais, tal como não merece uma melhor posição inicial na sociedade" [10 1-2 (97)].

Ao considerar a distribuição de talentos e de atributos como um bem comum, e não como posses individuais, Rawls evita a necessidade de "nive- lar" as aptidões para remediar o carácter arbitrário das contingências sociais e naturais. "Quando os homens concordam em partilhar os destinos uns dos outros", o facto de os seus destinos enquanto indivíduos poderem variar torna-se menos importante. Por isso é que, apesar de o princípio de diferença ter tendência para "corrigir o desequilíbrio das contingências em direcção à igualdade [ ... ] não exige que a sociedade procure nivelar as desvantagens, como se todos devessem tomar parte da mesma competição numa base equitativa" [100-101(95)].

Rawls reconhece que o princípio de diferença, e em particular a noção de aptidões entendida como "bens comuns", colide com as concepções tra- dicionais de mérito individual. "Existe uma inclinação natural para objectar que aqueles que estão melhor situados merecem' as vantagens que detêm, quer delas decorram benefícios para outros, ou não" [103 (97)]. A resposta de Rawls é que esta concepção de mérito individual está errada, tal como já é sugerido pelo argumento geral de arbitrariedade. "Parece-me ser um dos pontos assentes dos nossos juízos reflectidos que ninguém merece o lugar que lhe cabe na distribuição de atributos inatos, tal como ninguém merece a posição inicial que ocupa na sociedade" [104 (97)]. A reivindicação de que uma pessoa merece pelo menos aquilo que consegue obter através dos seus esforços é intuitivamente mais plausível, mas até mesmo a vontade de se esforçar com afinco pode ser determinada em larga medida por contingên- cias sociais e naturais. "A afirmação de que um homem merece o carácter superior que lhe permitiu desenvolver os esforços necessários para cultivar as suas capacidades é igualmente problemática, na medida em que o seu carácter depende em larga medida de circunstâncias familiares e sociais favoráveis, relativamente às quais esse homem não pode pretender ter qual-

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quer crédito. A noção de mérito não parece poder aplicar-se a casos como este" [104 (97)].

Isto não equivale a negar qualquer papel aos direitos individuais. Certos tipos de direitos são compatíves com o de

aqui necessário estabelecer uma distinção entre mérito e expectativas legíti- mas. Uma vez que é no interesse geral que cultivo e exerço (alguns dos) talentos e dos dons que me foram confiados, em vez de os deixar inactivos, a sociedade está habitualmente organizada de modo a fornecer-me os recur- sos que me permitam cultivá-los, assim como me incentiva para que os exerça. Tenho, com certeza, direito à minha parte desses benefícios sempre que me encontre habilitado para os receber nos termos especificados.

Porém, aquilo que é importante sublinhar é que esse direito se dirige a honrar as expectativas legítimas criadas pelas instituições desenhadas para a materialização dos meus esforços, não correspondendo a um direito primor- dial ou uma reivindicação de mérito baseada nas qualidades que possuo.

absolutamente verdade que, dado um sistema de coope- ração justo, perspectivado como um quadro de regras públicas, e dadas as expectativas criadas por ele, aqueles que, com o objectivo de melhorarem a sua condição, tiverem feito aquilo que o sistema anuncia que recompensará têm direito a receber essa recom- pensa. É neste sentido que os mais afortunados têm direito à situação melhor em que se encontram. As exigências constituem expectativas legítimas estabelecidas pelas instituições sociais e a comunidade tem a obrigação de as satisfazer. Porém, esta concep- ção de mérito pressupõe a existência de um acordo de coopera- ção, sendo portanto irrelevante para a questão de saber se o acordo inicial se deverá forjar segundo o princípio de diferença ou nos termos de outro critério qualquer" [103-104 (97)].

Ainda que eu tenha um direito aos benefícios que correspondem às minhas expectativas, não os mereço, por duas razões. Em primeiro lugar, em face do pressuposto de activos comuns, eu na realidade não possuo os atri- butos que estiveram na origem desses benefícios. Ou então, se os possuo, será apenas num sentido débil e acidental, e não no sentido forte e consti- tuinte. Neste contexto, a posse torna-se inadequada para o estabelecimento de mérito no sentido pré-institucional forte. E, em s~gundo lugar, se bem

107 que, no quadro das regras de cooperação, eu tenha um direito à minha justa parte, não tenho qualquer direito que sejam estas as regras em vigor para que se premeiem estes atributos, e não outras quaisquer. Por estas razões, aquele que tiver sido mais favorecido "não pode dizer que merece e, por isso, tem um direito ao quadro de cooperação no contexto do qual lhe é permitido adquirir benefícios por vias que não contribuem para o bem-estar dos outros. Uma tal reivindicação não tem qualquer fundamento" [104 (97)].

A meritocracia us. o princípio de diferença

Antes de passarmos à análise da resposta que Nozick tem para dar a Rawls, e à exploração da sua defesa da liberdade natural, poderá ser útil cla- rificar ainda alguns aspectos do contraste entre o princípio de diferença (tal como apresentado na concepção de igualdade democrática de Rawls) e a concepção meritocrática (tal como proposta na concepção de igualdade liberal). Talvez a diferença mais notória entre ambas se situe no papel reser- vado ao mérito individual- central numa concepção meritocrática e ausente, ou pelo menos significativamente debilitado, na justiça como equidade)'.

Numa "meritocracia equitativa", isto é, naquela em que apenas a discrimina- ção e os preconceitos de classe não são ultrapassados, aqueles que alcançam posições mais favorecidas ganharam o seu estatuto, merecendo assim os prémios que dele decorrem. São atribuídos quinhões desiguais em reconhe- cimento de um desempenho superior, não apenas para a satisfação de expectativas legítimas. Tal como explica um defensor da ética da meri- tocracia,

"Uma meritocracia integra aqueles que conquistaram a sua autoridade. [ ... ] No contexto em que utilizo o conceito, uma meri- tocracia constitui uma ênfase nos empreendimentos realizados e no estatuto conquistado pelos indivíduos é confirmados pelos seus pares. [ ... ] Enquanto que todos os homens têm o direito a serem respeitados, nem todos têm direito a serem elogiados.

I Não me reporto às versões de meritocracia que propõem a atribuição de quinhões a serem distribuídos, unicamente com vista à criação de incentivos e à atracção de talentos relevantes, sem qualquer referência ao mérito dos receptores.

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A meritocracia, no melhor significado da palavra, é composta por aqueles que merecem ser enaltecidos" (Bell1973: 453-454).

Uma segunda diferença, relacionada com a

distinção entre vantagens genéticas e vantagens culturais. Para Rawls, esta distinção é virtualmente irrelevante, no que diz respeito à justiça. Já para os pressupostos meritocráticos, ela é crucial. Daí o intenso debate que se desenvolve entre aqueles que se encontram comprometidos com os ideais da meritocracia relativamente ao impacto dos factores genéticos e dos factores culturais na determinação da inteligência e das perspectivas de vida das pes- soas, em geral. Na medida em que se entende que a justiça dos dispositivos distributivos depende de "oportunidade equitativa" de todos concorrerem entre si por prémios (em última instância) desiguais em igualdade de cir- cunstâncias, a distinção entre obstáculos genéticos, por um lado, e sociais e culturais, por outro, torna-se central para qualquer avaliação do esquema.

Quanto mais o sucesso for identificado como decorrendo de factores here- ditários, menos serão as desigualdades que as instituições sociais serão capa- zes (ou inculIlbidas) de corrigir, e menor será igualmente a esfera disponível para o tipo de esforço individual do que se presume depender o mérito.

"Na natureza da meritocracia, tal como tem vindo a ser con- cebida tradicionalmente, aquilo que é nuclear para a avaliação de uma pessoa é a relação que nela se verifica entre aquilo que ela faz e a inteligência que possui, tal como aferida pelo lugar que ocupa na escala do Quociente de Inteligência. Por isso, a primeira quéstão a ser colocada é a de saber o que é que determina a inteligência. "

"Tudo isto torna a questão da relação da inteligência com a herança genética muito melindrosa. A inteligência é sobretudo herdada? Poderá ser desenvolvida através da educação? Como se poderão separar as nossas capacidades e motivações inatas das competências que adquirimos através da educação ? (Bell 1973: 411)

Para a justiça como equidade, o debate acerca d<;lquilo que determina a inteligência e a extensa bibliografia científica por ele produzida são mais ou

me~os

irrelevantes. Desde o momento em que se rejeita a noção de mérito individual e de "oportunidade equitativa" como fundamentos primordiais dos quinhões a serem distribuídos, a distinção entre obstáculos genéticos e culturais ao êxito perde muito do seu interesse moral. A partir do momento em que concordarmos em perspectivar a distribuição de talentos como um património comum, pouco importa como é que alguns deles acabam por residir em ti e outros em mim.

Os defensores das concepções subjacentes à meritocracia nem sempre são explícitos acerca dos fundamentos da distinção que estabelecem entre vantagens sociais e vantagens naturais. Porém, podemos imaginar pelo menos dois argumentos possíveis: um moral e o outro prático. No quadro do primeiro, defender-se-ia que os atributos genéticos são invioláveis num sen- tido em que as características sociais e culturais não o são; que os atributos naturais de uma pessoa são de algum modo mais essencialmente dela, mais profundamente constitutivos da sua identidade do que os seus atributos socialmente condicionados. As diferenças inatas, por mais arbitrárias que possam ser, não são descartáveis, do mesmo modo que as sociais e culturais.

São elas, e não o resultado das condicionantes sociais e culturais, que assi- nalam os traços sem os quais eu não seria a pessoa particular que sou. Nesta perspectiva, o mais importarite não é saber se mereço, ou não, a inteligência com que nasci, por exemplo. O que interessa é que a minha inteligência inata é um facto irredutível a meu respeito, e a integridade da minha pessoa exige que se lhe não toque, independentemente do propósito social mais alargado que isso possa significar.

Porém, este argumento parece-nos improcedente a partir do momento em que consideramos que aquelas qualidades mais razoavelmente pers- pectivadas como sendo essenciais para a identidade de uma pessoa - o seu carácter, os seus valores, as suas convicções mais nucleares, as suas lealda- des mais profundas, por exemplo - são com frequência fortemente influen- ciadas por factores sociais e culturais, enquanto muitas características físicas - tais como a cor do cabelo e outras de índole trivial - são mais facilmente tidas como irrelevantes. Até mesmo perante a validade da distinção entre as característica~ essenciais e características meramente acidentais de uma pessoa, não nos deparamos com qualquer razão óbvia para qu~ esta clivagem corresponda à distinção entre atributos naturais e sociais. E certo que a objecção de Rawls a este argumento seria mais forte ainda, na medida em que a sua teoria da pessoa implica a inexistência de características essen-

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ciais neste sentido, sejam elas sociais ou naturais. Até mesmo aqueles atri- butos que intuitivamente mais se aproximam da condição de constituírem elementos de definição de um eu essencial- tais como o carácter e os valores de uma pessoa - são relegados para um estatuto contingente. Do mesmo modo que o carácter de uma pessoa" dépende em boa de beneficiar de circunstâncias familiares e sociais favoráveis relativamente às quais não pode reivindicar qualquer crédito" [104 (97)], também os nossos valores são igualmente acidentais. "Numa perspectiva moral, não é relevante que tenhamos uma concepção do bem em vez de outra. Ao adquiri-la, fomos influenciados pelo mesmo tipo de contingências que nos levaram a descartar o conhecimento do nosso sexo e da nossa classe social" (Rawls 1975: 537).

Um argumento prático distinguiria as desigualdades naturais das sociais com base no critério de que as primeiras são insuperáveis, num grau em que as segundas não o são e que, por isso, a soçiedade poderá ser incum- bida da correcçãodas desigualdades sociais, mas não das naturais. Quanto mais as desigualdades decorrerem de condições de natureza genética em vez de serem induzidas culturalmente, menor será a capacidade de a sociedade

"fazer alguma coisa" com vista à sua superação. Dado um sistema equitativo, alguns progredirão com maior sucesso do que outros, e chegar-se-á a um ponto em que nem sequer a sociedade mais ilustrada poderá fazer o que quer que seja para alterar este facto. Chegará uma altura em que até mesmo o reformador mais obstinado terá de reconhecer que a vida é injusta num grau que nenhuma instituição social poderá aspirar a corrigir. As pessoas são diferentes, e, mais tarde ou mais cedo, essas diferenças virão ao de cima, até mesmo - e talvez mais seguramente aí - numa sociedade em que prevaleça uma igualdade de oportunidades. "O fundamental é que a sociedade seja genuinamente aberta, tanto quanto for possível" (BeII1973: 454).

A tudo isto Rawls responderia provavelmente dizendo que o papel da sociedade se encontra naturalmente limitado desta forma, apenas quando se assume que a única função que pode desempenhar na promoção da justiça consiste nos seus esforços no sentido de nivelar as desvantagens dos menos afortunados para que possam competir de forma mais equitativa. Mas este pressuposto ignora a escolha social igualmente importante que está implícita nos objectivos prosseguidos pelas instituições e nos atributos que esta esco- lha premeia no processo. Até mesmo quando a grande maioria das diferen- ças entre as pessoas é de origem genética em vez de cultural, a sociedade teria sempre que decidir qual destas diferenças, se é que alguma delas, deve-

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ria com propriedade ser elevada à. condição de fundamento para a definição de 9uinhões diferenciados. Com certeza que, se se assume que o objectivo da instituição social é fixo - por exemplo, que consiste na maximização do pro- duto social global -, então os defensores de uma "meritocracia equitativa"

têm razão. Neste contexto, a única questão em matéria de justiça que per- manecerá será a de saber se as pessoas se encontram devidamente equipa- das pela sociedade para poderem contribuir para aquele objectivo e recolher os benefícios da sua contribuição. O que nos leva imediatamente a questio- nar por que razão aquele objectivo deve ser primário, mesmo quando reco- nhecemos que ele só é capaz de prevalecer a expensas da injustiça social.

Numa palavra, para além de fornecer ou não aos seus membros os dons rele- vantes para a prossecução do seu propósito colectivo, uma sociedade define a natureza desse propósito através do seu complexo institucional, bem como os atributos que devem ser considerados positivos e apresentados como fundamento dos quinhões que serão objecto de distribuição. Numa passa- gem de alguma eloquência, Rawls escreve:

"Face a estas observações, podemos rejeitar a afirmação de que a ordenação das instituições é sempre deficiente porque a distribuição natural de talentos e as circunstâncias sociais são injustas, estendendo-se estas injustiças, inevitavelmente, às estru- turas concebidas pelo homem. Por vezes, esta reflexão surge como uma desculpa para ignorar a injustiça, como se a recusa em aceitar a injustiça fosse da mesma natureza que a impossibilidade em aceitar a morte. A distribuição natural não é nem justa nem injusta, tal como não é injusto que se nasça numa determinada posição social. Trata-se de simples factos naturais. A forma como as instituições lidam com estes factos é que pode ser justa ou injusta" [102 (96)].

Estas considerações conduzem naturalmente a uma terceira diferença entre as concepções da meritocracia e da democracia, referente à relação entre o valor de vários activos e atributos, por um lado, e as instituições que os consideram positivos e os recompensam, por outro. Na concepção da meritocracia, as instituições sociais têm a obrigação de premiar certos atri- butos em vez de outros. As qualidades procuradas por um conjunto de ins- tituições detêm um mérito que é anterior à sua valorização institucional,

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razão pela qual oferecem um teste independente da justiça das próprias ins- tituições. Os dispositivos institucionais que encorajam as qualidades nobres, em vez das mais inferiores, são por isso mais meritórios, independentemente de outras considerações relevantes para a Justiça, tais como os propósitos que possam promover.

Na perspectiva de Rawls, as instituições não estão limitadas desta maneira, uma vez que as virtudes que as poderi2.m limitar têm, elas próprias, que aguardar uma definição institucional. "O conceito de valor moral não fornece um primeiro princípio de justiça distributiva" na medida em que não pode ser introduzido até que se disponha de princípios de justiça [312 (246)].

Uma vez que nenhuma virtude possui um estatuto moral antecedente ou pré-institucional, a configuração das instituições está aberta no que toca às qualidades que deverá premiar. Daqui decorre que o valor intrínseco dos atributos que uma sociedade procura e premeia não pode fornecer uma medida de aferição da justiça, porquanto, desde logo, o seu valor apenas emerge à luz dos dispositivos institucionais. A rejeição, por parte de Rawls, de noções pré-institucionais de virtude reflecte a prioridade que atribui ao justo sobre o bom, e a recusa de escolher antecipadamente entre concepções diferentes do bem. Uma sociedade de caçadores que premeie a rapidez na corrida acima da eloquência (tal como esta é apreciada numa sociedade litigiosa, por exemplo) não será menos justa nem menos virtuosa por causa disso, uma vez em que não existem fundamentos antecedentes com base nos quais se possa demonstrar que a agilidade nos pés é mais ou menos virtuosa do que a sua congénere na língua. A prioridade das instituições justas relati- vamente à virtude e ao valor moral fornece uma segunda razão pela qual não se pod€ dizer que eu mereço os benefícios decorrentes dos meus atributos naturais. Para que eu pudesse merecer os benefícios associados à minha inteligência superior, por exemplo, seria necessário, simultaneamente, que eu possuísse a minha inteligência (nalgum sentido não arbitrário de posse), e que eu tivesse um direito (num sentido forte, pré-institucional do conceito) a que a sociedade valorize a inteligência em vez de valorizar outra coisa qualquer. Mas, na concepção de Rawls, nenhuma destas condições é proce- dente. O argumento que parte da arbitrariedade para um conceito de acervo comum arruina o primeira, ao passo que a precedência das instituições sobre o valor moral nega a segunda.

Em defesa do acervo comum

Para o desenvolvimento da nossa apreciação da teoria da pessoa e do princípio de diferença de Rawls, cada um deles à luz do outro, tomaremos como ponto de partida dois aspectos da crítica que Nozick dirige à justiça como equidade. O primeiro ataca o princípio de diferença, em particular a noção de posse sobre a qual se baseia, e o segundo defende uma versão de liberdade natural, a partir das noções de mérito e de direito a algo. Recorrer desta maneira a Nozick e aos seus argumentos contra Rawls permitir-nos-á aferir o pensamento do primeiro, bem como clarificar algumas das seme- lhanças e das diferenças entre as teorias distributivas de um e de outro.

A objecção nuclear de Nozick ao argumento que produz o princípio de diferença incide sobre a noção rawlsiana de que a distribuição de talentos naturais deve ser perspectivada como uma posse "comum" ou "colectiva", a qual deverá ser partilhada pela sociedade como um todo. Conforme Rawls escreve,

"O princípio de diferença representa, com efeito, um acordo po sentido de se encarar a distribuição de talentos naturais como um acervo comum e de participar dos benefícios desta distribui- ção, qualquer que ela venha a ser" [101 (96)].

"Os dois princípios são equivalentes, como afirmei, a um compromisso de encarar a distribuição de capacidades naturais como um património colectivo, por forma a que os mais afortuna- dos beneficiem apenas na medida em que os benefícios que recolhem revertam em vantagem para os que o ficaram a perder na lotaria natural" [179 (150)].

Rawls acredita que a noção de acervo comum, tal como está incorpo- rada no princípio de diferença, exprime o ideal de respeito mútuo que o liberalismo deontológico procura afirmar.

"Ao disporem as desigualdades de forma a produzirem van- tagens recíprocas e ao absterem-se da exploração das contingên- cias da natureza e das circunstâncias sociais, num quadro de liberdades iguais, as pessoas exprimem o seu respeito recíproco ao

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nível da própria constituição da sociedade. [ ... ] Outra forma de apresentar este facto consiste em afirmar que os princípios da jus- tiça manifestam, na estrutura básica da sociedade, os desejos de os homens se tratarem uns aos outros, não como meios, mas como fins em si mesmos" [179 (150)].

Nozick, pelo contrário, alega que perspectivar os dons naturais de uma pessoa como constituindo propriedade comum equivale precisamente a contradizer tudo aquilo que o liberalismo deontológico afirma ao sublinhar a inviolabilidade do indivíduo e as diferenças entre as pessoas.

"As pessoas discordarão umas das outras relativamente ao modo como vêem o princípio segundo o qual os talentos naturais constituem um acervo comum. Ecoando Rawls, algumas quei- xar-se-ão do utilitarismo, e dirão que isto equivale a 'não levar a sério as diferenças entre as pessoas'. E perguntar-se-ão se uma reconstrução de Kant que trate as capacidades e os talentos das pessoas como recursos para os outros pode alguma vez ser ade- quada. 'Os dois princípios da justiça [ ... ] excluem até mesmo a tendência para considerar os homens como meios para o bem- -estar uns dos outros'. Só quando insistir muito em distinguir os homens dos seus talentos, dotes, capacidades e traços especiais"

(1974: 228).

Nozick atinge aqui o âmago da teoria do sujeito de Rawls. Como vimos, Rawls, na realidade, insiste muito na diferença entre o eu e as suas várias posses. O rigor desta distinção, independentemente do seu carácter proble- mático, é talhado cuidadosamente de modo a adaptar-se às exigências do projecto deontológico como um todo. E é ela que permite a prioridade do eu sobre os seus fins, a qual, pelo seu lado, sustenta a prioridade do justo e a primazia da justiça. Outra característica desta concepção prende-se com o facto de permitir a defesa que se expõe de seguida em relação às objecções apresentadas por N ozick ao princípio da diferença.

Perspectivar a distribuição de talentos naturais como um acervo comum não viola a diferença entre as pessoas, nem equivale a considerá-las como meios a serem usados para o bem-estar de outros, uma vez que não são as pessoas que estão a ser usadas como meios para o bem-estar de

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outros, mas apenas os "seus" atributos. Dizer que eu sou de algum modo viqlado ou abusado quando a "minha" inteligência ou até mesmo o meu esforço é utilizado para o benefício comum equivale a confundir o eu com os atributos que lhe são fornecidos de forma contingente e que em nada são essenciais (não são essenciais, quero dizer, para que seja o tipo de ser particular que sou). Só no quadro de uma teoria da pessoa que considerasse estes dons como sendo essencialmente constitutivos, em vez de atributos alienáveis do eu, se poderia afirmar que, com a partilha de activos, eu estaria a ser usado como um instrumento para fins alheios. Mas, na perspectiva de Rawls, todos os dons são contingentes e, em princípio, separáveis do eu, cuja prioridade está assegurada pela sua capacidade constante de retroceder perante o remoinho das circunstâncias. Esta é a característica através da qual se preserva a sua identidade, assegurando a sua invulnerabilidade perante a experiência, que não é capaz de o transformar.

Se bem que esta defesa iluda a inconsistência, ela convida rapidamente outras objecções de incoerência do mesmo tipo. Perante uma distinção tão acabada entre o eu e as suas posses, a questão que se impõe imediatamente é a de saber se, ao evitar um sujeito radicalmente situado, Rawls não cai no extremo oposto, propondo um sujeito radicalment~ incorpóreo. Tal como Nozick argumenta, "insistir desta forma nesta distinção equivale a convidar questão de saber se, ao fazê-lo, subsiste alguma concepção coerente de pessoa. Tão-pouco se entende por que razão é que nós, repletos como estamos de traços particulares, nos devemos contentar em que não sejam perspectivados como meio (apenas) aqueles que se virem assim purificados"

(1974: 228).

Deste modo, Nozick antecipa a defesa de Rawls e mostra que ela é demasiado especiosa para poder redimir a teoria. A noção de que só os meus atributos é que são usados como meio, e não eu, ameaça pôr em causa a plausibilidade, e até mesmo a coerência, da própria clivagem que invoca. Ela sugere que, perante o princípio de diferença, podemos tomar seriamente a distinção entre pessoas apenas quando recorremos à metafísica e à distinção entre uma pessoa e os seus atributos. Mas isto tem uma consequência: deixa- -nos com um sujeito de tal modo desprovido de características empiri- camente verificáveis (tão "purificado", na linguagem de Nozick) que acaba por se assemelharem tudo ao sujeito kantiano transcendente ou destituído de um corpo que Rawls se propôs evitar. Parece mesmo que Rawls consegue escapar à acusação de inconsistência, apenas a preço de incoerência, e que

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a objecção apresentada por Nozick ao princípio de diferença é, assim, procedente.

No entanto, Rawls tem à sua disposição uma defesa alternativa, não antecipada por Nozick. Trata-se, porém, de uma defesa que, apesar de evitar que o princípio de diferença dependa de uma do aparen- temente incorpóreo, fá-lo a expensas de outros aspectos da doutrina de Rawls, pelo que é provável que o próprio Rawls se oponha a ela. Em todo o caso, procurarei d8monstrar que só através dela o princípio de diferença se poderá manter. Para esta segunda defesa, Rawls poderia negar que o princí- pio de diferença conduz a que eu seja usado como meio para o serviço dos fins de outros da seguinte forma. Em vez de propor que são os meus activos que estão a ser usados, e não a minha pessoa, Rawls poderia questionar o sentido em que aqueles que partilham dos "meus" atributos podem com propriedade ser considerados "outros". Enquanto que a primeira defesa sublinha a distinção entre o eu e os seus atributos, a segunda qualifica a diferença entre o eu e o outro, permitindo que, em certas circunstâncias morais,a descrição relevante do eu possa abarcar mais do que um único ser humano individuado empiricamente. Esta segunda defesa liga a noção de acervo comum à possibilidade de um sujeito de posse também ele comum.

Apela, em resumo, a uma concepção intersubjectiva do eu.

Aceitar que o princípio de diferença o compromete com uma perspec- tiva intersubjectiva que ele, por outro lado, rejeita parece-nos constituir a única forma de Rawls ultrapassar as dificuldades levantadas por Nozick.

E serve ainda para sublinhar um pressuposto da teoria do sujeito de Rawls, ainda por tratar. Como vimos, Rawls concebe o eu como um sujeito de posse,

limitado~ partida, e dado antes dos seus fins, ao mesmo tempo que assume ainda que os limites do sujeito correspondem sem qualquer problema aos limites corporais dos seres humanos individuais. Porém, Rawls nunca defende esta pretensão - assume-a simplesmenté. A possibilidade de ser contestada encontrar-se-á, talvez, dissimulada pela sua afinidade com as nossas perspectivas não reflectidas de senso comum sobre a matéria2

Poderá pensar-se que a ênfase que Rawls coloca na pluralidade enquanto

2 Ainda assim, a crítica de Rawls ao utilitarismo torna particularmente surpreendente que ele não tenha sido capaz de defender o seu princípio de individuação de forma mais completa, na medida em que, segundo argumenta, é precisamente sobre esta matéria que o utilitarismo se equivoca, não sendo capaz de reconhecer ou, pelo menos, não sepdo capaz de levar a sério, a distinção entre as pessoas.

característica essencial das sociedades humanas oferece algum apoio a este pressuposto; porém, apenas poderá estabelecer que algum princípio de pluralidade ou de diferenciação é essencial para uma concepção do sujeito humano, que não necessariamente de natureza física e corporal. E tão pouco consegue demonstrar que o número desta pluralidade corresponde necessa- riamente, e em todos os casos, ao número de seres humanos individuais no mundo.

Em todo o caso, aquele é o pressuposto que terá que ser sacrificado, caso se pretenda ultrapassar a objecção apresentada por Nozick relativa ao acervo comum. Pretendendo-se que o princípio de diferença seja capaz de evitar que alguém seja usado como meio para o serviço dos fins de outros, isso só será possível em circunstâncias em que o sujeito de posse seja um

"nós" em vez de um "eu", implicando estas circunstâncias, pelo seu lado, a existência de uma comunidade em sentido constitutivo.

A conclusão de que a teoria de Rawls se baseia implicitamente nunca concepção intersubjectiva que ele rejeita formalmente encontra ainda apoio adicional nas discussões sobre o mérito e a justificação, de que trataremos a seguir, adivinhando-se em vários traços de linguagem intersubjectiva que podemos encontrar ao longo do texto. Uma tal linguagem surge inicialmente na apresentação do princípio de diferença quando, como vimos, a distribui- ção dé talentos naturais é descrita alternadamente como um acervo

"comum", "colectivo" ou "social", a ser usado em "proveito comum" [101, 179,107 (96, 150, 100)]. "Na justiça como equidade os homens acordam em partilhar o destino uns dos outros" [102 (96)]. Isto é, decidem não aceitar que as diferenças entre as pessoas constituam a base para que tenham pers- pectivas de vida diferenciadas, já que estas diferenças decorrem de factores arbitrários do ponto de vista moral.

Ao discutir a ideia de união em sociedade, Rawls transporta a sua lin- guagem intersubjectiva do domínio de um acervo comum para o domínio de fins e propósitos comuns, falando igualmente, numa retórica que se apro- xima perigosamente da teleologia, de seres humanos que concretizam a sua natureza comum. Nesta explicação da união em sociedade, Rawls abandona as questões distributivas para se preocupar com a auto-realização, pro- curando demonstrar que a justiça como equidade é capaz de fornecer uma interpretação da sociabilidade humana que não é nem trivial, nem pura- mente instrumental. "Com efeito, os seres humanos possuem de facto objectivos finais partilhados e consideram as suas instituições e actividades

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comuns como bens em si mesmas" [522 (396)]. As características da união em sociedade incluem "objectivos finais partilhados e actividades comuns valorizadas por si mesmas" [522 (396)1. Seguindo Humboldt, um liberal do século XIX da tradição idealista alemã, Rawls escreve

em sociedade, fundada sobre as necessidades e as dos seus membros, que cada pessoa pode participar da soma total daquilo que vier a ser realizado a partir dos valores naturais dos outros. [ ... ] Só numa união em sociedade o individuo se torna completo" [itálico nosso, 523, 525n (396- -397n)]. A sociedade assume uma variedade de formas e de dimensões: "[ ... ] tanto abrangem as famílias e os grupos de amigos, como associações muito mais amplas. Também não existem limites de tempo e de espaço, já que as comunidades, ainda que separadas pela história e pelas circunstâncias, podem, apesar disso, colaborar na realização da sua natureza comum"

Iitálico nosso, 527 (399)].

Por força das suas dimensões intersubjectivas, o princípio de diferença e a ideia de união em sociedade contrapõem-se aos pressupostos individua- listas de duas maneiras diferentes. O princípio de diferença, anulando a arbitrariedade que surge quando os dons naturais são perspectivados como posse individual. A ideia de· união em sociedade,. ultrapassando o carácter parcial das pessoas que emerge quando os indivíduos são considerados como seres fechados e completos em si mesmos. Numa união em sociedade,

"os membros de uma comunidade participam da natureza uns dos outros [... e] o eu realiza-se nas actividades de múltiplos eus" [itálico nosso 565 (426)].

~ "É característica da sociabilidade humana que, por nós pró- prios, não somos senão partes daquilo que poderíamos ser. Temos de nos voltar para os outros para podermos obter as excelências que não conseguimos realizar ou de que estamos destituídos.

A actividade colectiva da sociedade, as múltiplas associações e a vida pública da comunidade mais ampla que as governa, apoia os nossos esforços e provoca a nossa contribuição. No entanto, o bem que é atingido pela cultura comum excede em muito o nosso trabalho, no sentido em que deixamos de ser meros fragmentos: a parte de nós próprios que realizamos directamente associa-se a um sistema mais justo e mais vasto, cujos objectivos defendemos"

[itálico nosso, 529 (400-401)].

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o

fundamento do mérito

A noção de posse conduz naturalmente a reivindicações de mérito e de direitos. O debate acerca de o que é que as pessoas possuem, e em que ter- mos, tem um impacto directo sobre a questão de saber o que é que merecem, ou a que é que têm direito, em termos de justiça. É para as questões de mérito e daquilo a que se tem direito que nos dirigimos agora, de modo a podermos apreciar o segundo elemento da crítica de Nozick à justiça como equidade. Rawls rejeita os princípios de liberdade natural e de igualdade liberal com o fundamento de que premeiam dons e atributos que, sendo arbitrários de um ponto de vista moral, de modo algum se poderá dizer com propriedade que as pessoas os merecem, adoptando o princípio de diferença precisamente na medida em que ele anula esta arbitrariedade. Nozick ataca esta linha de pensamento, argumentando, primeiro, que a arbitrariedade não destrói o mérito, e, em segundo lugar, que mesmo que o fizesse, o resul- tado preferível que emergiria seria uma versão da liberdade natural e não o princípio de diferença.

Apresentada em termos de posse, a objecção de Rawls à liberdade natural e à igualdade liberal prende-se com o facto de, no quadro destes princípios, se permitir que as pessoas beneficiem (ou sofram) injustamente por dons naturais e sociais que de facto não lhes pertencem, pelo menos no sentido forte, constitutivo do termo. Com certeza que se poderá dizer que os vários atributos naturais com que eu nasci me "pertencem" no sentido débil, contingente, em que acidentalmente residem em mim. Porém, deste sentido de propriedade ou de posse não se pode estabelecer que eu detenha quais- quer direitos especiais sobre esses activos ou qualquer título privilegiado sobre os frutos do seu exercício. Neste sentido atenuado de posse, eu não sou, em sentido estrito, o proprietário, mas tão-só o guardião ou o repositório do conjunto de dons e de atributos que foram instalados "aqui". Os princípios de liberdade natural e de igualdade liberal transviam-se na medida em que não reconhecem o carácter arbitrário do destino, assumindo que os "meus"

activos me pertencem no sentido forte, constitutivo, do termo, e permitindo que seja deles que dependam os quinhões que me deverão ser atribuídos.

Expressa em termos de mérito, a objecção de Rawls aos princípios de liberdade natural e de igualdade liberal decorre do facto de premiarem dons e atributos que não se pode dizer que as pessoas mereçam. Apesar de alguns poderem pensar que os afortunados merecem as coisas que conduziram à

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vantagem superior de que usufruem, "esta perspectiva é seguramente incorrecta" .

"Parece ser ponto assente dos nossos não merecemos o lugar que ocupamos na

naturais, tal como não merecemos a nossa posição inicial na sociedade. A afirmação de que um homem merece o carácter superior que lhe permite desenvolver os esforços adequados com vista ao cultivo das suas capacidades é igualmente problemática, na medida em que o seu carácter depende em boa parte das cir- cunstâncias sociais e familiares afortunadas em que nasceu, pelas quais não pode reivindicar qualquer crédito: A noção de mérito não parece aplicar-se a estes casos" [104 (97)].

Uma vez que ninguém merece a boa sorte que possa ter tido na lotaria genética, ou a sua posição inicial mais favorável na sociedade, ou até mesmo o carácter superior que o motiva a cultivar as suas capacidades de forma conscienciosa, não se poderá dizer de quem quer que seja que mereça os benefícios que estes atributos possam vir a produzir. É esta dedução que Nozick disputa. "Não é verdade", argumenta, "que uma pessoa ganhe

Y

(o

direito de conservar um quadro que tenha pintado, louvor por ter escrito Uma Teoria da Justiça, etc.) apenas na medida em que tenha conquistado (ou de outro modo qualquer mereça) tudo aquilo que possa ter utilizado (incluindo os seus dons naturais) durante o processo de criar Y. Pode dar-se o caso de muito simplesmente possuir, de forma não ilegítima, algumas das coisas que utiliza no processo. Não se torna necessário que os fundamentos subjacentes ao mérito tenham de ser, eles também, merecidos, desde o início" (1974: 225).

Ora, como devemos entender este argumento? Se não tenho necessa- riamente de merecer tudo aquilo que utilizo na produção de alguma coisa para a poder merecer, então o meu mérito depende de quê? Nozick afirma que algumas das coisas que uso, posso "tê-las d~ forma não ilegítima" (e, presume-se, possivelmente arbitrária). Mais uma vez, a noção de posse entra em cena. Para vermos se o facto de ter uma coisa, de forma não ilegítima, me habilita a merecer aquilo que essa coisa me ajuda a produzir, necessitamos de explorar em maior pormenor a relação entre a posse e o mérito, e selec- cionar uma vez mais o sentido de posse a que nos reportamos.

Para o efeito, será talvez útil considerar um estudo recente de Ioel Fein- berg, sobre a justiça e o mérito pessoal, que explora os fundamentos do mérito com uma clareza admirável e em termos sugestivos para o argumento de que agora nos ocupamos (1970). Feinberg parte da observação de que ninguém merece nada, a não ser que exista um fundamento para esse mérito. "Mérito, sem uma base, simplesmente não é mérito". Porém, a questão que se coloca de imediato é a de identificar o tipo de fundamento que é necessário. Tal como Feinberg escreve, "não basta um fundamento qualquer". Uma vez mais, a noção de posse fornece-nos a chave. "Se uma pessoa é merecedora de algum tipo de tratamento, tem necessariamente de o ser em virtude de alguma característica que possui ou de alguma actividade anterior" (itálico nosso, 1970: 48).

"Uma característica minha não pode ser o fundamento de um mérito teu, a não ser que, de algum modo, revele ou espelhe alguma das tuas características. Em geral, os factos que consti- tuem o fundamento do mérito de um sujeito têm de ser factos acerca desse sujeito. Se um estudante merece uma nota mais ele- vada numa disciplina, por exemplo, o seu mérito tem de decorrer de algum facto acerca dele - o seu desempenho anterior, ou as suas capacidades actuais. [ ... ] É necessário que o mérito de uma pessoa tenha um fundamento, e que esse fundamento consista em algum facto acerca dessa pessoa" (1970: 58-59! 61).

A análise de Feinberg, ligando o mérito de uma pessoa a algum facto acerca dela, parece apoiar o argumento de Nozick nos termos do qual "os fundamentos subjacentes ao mérito não têm de ser, eles também, merecidos, desde o início". De facto, fazer depender o mérito de uma característica que a pessoa possua sugere uma tese ainda mais forte do que a de Nozick, já que os fundamentos subjacentes ao mérito não podem também eles ser mereci- dos, desde o início, do mesmo modo que os fundamentos subjacentes à posse não podem ser igualmente possuídos desde o início. Já vimos como a noção de posse exige que, algures "no processo", exista um sujeito de posse que não seja, ele também, possuído (uma vez que isso negaria a sua faculdade de agir), um sujeito "assegurando a posse", por assim dizer. A analogia com o mérito aponta para a necessidade de um fundamento desse mérito, que em última instância lhe é anterior. Considere-se o seguinte. Se o mérito pressu-

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põe a posse de alguma característica, e se as características possuídas pres- supõem algum sujeito de posse que não se encontre, também ele, possuído, então o mérito tem de pressupor algum sujeito de posse que não se encontre ele também possuído e, por isso, algum fundamento

também ele merecido. Tal como tem de exi.stir sujeíto de posse antes que esta se verifique, também tem de existir uma base para o mérito anterior a este. É por isto que a questão de saber se alguém merece (ter) o seu carácter sólido, de confiança, por exemplo, é notoriamente difícil (uma vez que, quando lhe retiramos o carácter, fica-se sem saber quem poderá ser julgado, ou o quê). E é também por isto que, para além de um certo ponto, a questão mais geral de saber se alguém merece ser a pessoa (ou o tipo de pessoa) que é se torna perfeitamente incoerente. Algures "no processo" tem de existir um fundamento do mérito que não é também ele merecido. Os fundamentos subjacentes ao mérito não podem ser merecidos desde o início do processo.

Este resultado pareceria confirmar plenamente o argumento de Nozick contra Rawls de que não é necessário que eu mereça tudo aquilo que utilizo na produção de alguma coisa, bastando que "tenha obtido de forma não ilegítima" parte daquilo que uso no processo. E se esta pretensão puder ser demonstrada, então a sensação que nos fica é a de que o argumento desen- volvido por Rawls a partir da arbitrariedade afinal não chega a destronar o mérito. Afirmar, como o faz Rawls, que eu não mereço o carácter superior que me conduziu à concretização das minhas capacidades, deixa de ser sufi- ciente. Para negar o mérito, ele terá de demonstrar que eu não possuo o carácter adequado ou, em alternativa, que o tenho, mas não no sentido exigido.

Mãs este é precisamente o argumento que a teoria da pessoa de Rawls lhe permite desenvolver. Em face da distinção viva que estabelece entre o eu, perspectivado como sujeito puro de posse, e os objectivos e atributos que possui, o eu fica destituído de traços substantivos ou de características que pudessem constituir fundamentos para o mérito. Dado o aspecto distancia- dor da posse, o eu em si mesmo é destituído de posse. No quadro da teoria da pessoa de Rawls, o eu, em sentido estrito, não tem nada, nada pelo menos no sentido forte, constitutivo, exigido pelo mérito. Numa manobra semelhante à invocada para demonstrar que o princípio de diferença não usa uma pessoa como meio, mas apenas os seus atributos, Rawls consegue aceitar que o mérito exige algum fundamento, ele mesmo não merecido, apenas para reivindicar que, a partir de Uma compreensão adequada da pessoa, em prin-

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cípio, esta condição jamais se poderia cumprir. Na concepção de Rawls, as características que eu possuo não estão associadas ao eu, mas apenas rela- cionadas com ele, permanecendo sempre a uma certa. distância. É isto que faz com que sejam atributos, Fc~m vez de partes constituintes da minha pes- soa. Elas são minhas, em vez de eu próprio, coisas que eu possuo, em vez de coisas que eu sou.

A esta luz, podemos constatar como é que o argumento desenvolvido por Rawls a partir da arbitrariedade corrói a noção de mérito, não directa- mente, reivindicando que eu não posso merecer aquilo que me foi dado arbitrariamente, mas indirectamente, demonstrando que eu não consigo possuir aquilo que me foi dado arbitrariamente, isto é, que "eu", enquanto sujeito de posse, não o poderei deter, no sentido constitutivo e não distan- ciado necessário para me fornecer um fundamento para o mérito. Um bem que me tenha sido dado de forma arbitrária não pode ser um elemento constituinte essencial da minha pessoa, mas apenas um atributo acidental;

caso contrário, a minha identidade dependeria de meras contingências, a sua continuidade encontrar-se-ia vulnerável, sujeita a transformação pela expe- riência e o meu estatuto enquanto agente soberano dependeria das condi- ções da minha existência, em vez de me ser garantido epistemologicamente.

Na concepção de Rawls, não se pode dizer de ninguém que, em sentido estrito, mereça o que quer que seja, uma vez que, em sentido estrito, nin- guém possui o que quer que seja, pelo menos no sentido forte, constitutivo, exigido pela noção de mérito.

Uma teoria da justiça sem mérito seria uma ruptura dramática com as concepções tradicionais, mas Rawls esforça-se por demonstrar que isso não acontece. Nas suas páginas de abertura, Rawls reconhece que a sua aborda- gem "poderá parecer não estar de acordo com a posição tradicional"; porém, procura assegurar-nos que não é esse o caso.

"O sentido mais específico que Aristóteles dá do termo 'jus- tiça', e do qual a maioria das formulações correntes derivam é o de recusa da pleonexia, isto é, da obtenção de uma vantagem para si através da apropriação do que pertence a outrem, quer seja a pro- priedade, a recompensa, a função ou qualquer outra coisa, ou através do negar a outrem aquilo que lhe é devido [ ... ] No entanto, a definição de Aristóteles pressupõe claramente, segundo creio, uma análise daquilo que pertence apropriadamente a uma pessoa e

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daquilo que lhe é devido. Estes direitos, segundo creio, derivam muitas vezes das instituições sociais e das legítimas expectativas a que elas dão Não h3 rW7i'ío rar'1 pen8ar que Aristóteles estaria em desacordo com esta e

cepção da justiça social explica estas reivindicações. lH'] Não há pois qualquer conflito com a concepção tradicional" [itálicos nossos, 10-11 (32)].

Ao comparar a justiça como equidade com as concepções tradicionais, Rawls confirma a sua novidade, em vez de a negar. Aquilo que apresenta como sendo uma qualificação incidental da justiça, tal como apresentada na concepção clássica, acaba na realidade por assinalar uma clara divergência com ela. Tal como Rawls sugere, as noções tradicionais r@ferem-se apenas

"àquilo que apropriadamente pertence a uma pessoa", deixando de lado, presume-se, as instituições. Pressupõem pessoas densamente situadas, com uma fixidez de carácter, determinadas características do qual são tidas como sendo totalmente essenciais, "desde o início". Porém, a concepção de Rawls não conta com nenhum destes conceitos. Apesar de uma teoria da justiça

"pressupor uma explicação daquilo qúe apropriadamente pertence a uma pessoa" (no sentido forte de pertencer), Rawls reconhece efectivamente que não tem nenhuma para oferecer. E até parece propor implicitamente que, em face da precedência da pluralidade, a prioridade do justo e a teoria da pessoa que ela exige, tão-pouco se torna razoável pensar que uma tal teoria da justiça possa ser verdadeira. Na nossa essência, não somos suficiente- mente densos para podermos carregar direitos e merecimentos antes que as instituiçÕes os definam. Em face destes constrangimentos, a única alterna- tiva que resta é a opção por uma teoria da justiça fundamentada exclusiva- mente nos direitos decorrentes de expectativas legítimas, excluindo o mérito por inteiro. De início, Rawls evita comprometer-se sobre a matéria, dizendo apenas que "estes direitos, segundo creio, derivam muitas vezes das institui- ções sociais e das legítimas expectativas a que elas dão origem" [itálicos nos- sos, 10 (32)]. Po~ém, à medida que as consequências plenas da perspectiva de Rawls emergem, "muitas vezes" transforma-se em "sempre", uma vez que se torna claro que "tais direitos" não podem emergir de mais qualquer outra maneira. Se bem que Aristóteles possa não discordar de que possam emergir direitos por esta via, estará bem longe da sua mente afirmar que eles não podem também surgir através de qualquer outro processo. Ao negar que a

justiça tenha a ver com dar às pessoas aquilo que elas merecem, a justiça com? equidade, afinal de contas, afasta-se de forma decisiva da noção tradicional.

A perspectiva que Rawls aparenta possuir, de que não se pode dizer de ninguém que mereça o que quer que seja, e a inter-relação desta ideia com a noção do eu como sendo "essencialmente destituído de conteúdo", emerge de forma mais plena na sua discussão de expectativas legítimas e do mérito moral. Começa reconhecendo que, ao rejeitar o mérito, a justiça como equi- dade vai ao arrepio do senso comum.

"Há uma tendência de senso comum para supor que o rendimento e a riqueza, e em geral as coisas boas da vida, devem ser distribuídos em função do mérito moral. A justiça é a feli- cidade em acordo com a virtude. Embora se reconheça que este ideal nunca poderá ser inteiramente executado, ele constitui uma concepção apropriada da justiça· distributiva, pelo menos como princípio prima facie, e a sociedade deveria tentar realizá-lo, de acordo com o que as circunstâncias permitam. Porém, a teoria da justiça como equidade rejeita esta concepção. Esse princípio não seria escolhido na posição original. Parece não haver forma de definir o critério correspondente a esta situação" [310-311

(244-245)].

Parece não existir maneira de definir os critérios exigidos para a identi- ficação da virtude ou do valor moral de uma pessoa na posição original, por- que não contamos com uma teoria substantiva da pessoa anterior às instituições sociais. Para que o mérito moral possa fornecer um critério independente de justiça, tem de existir uma teoria substantiva da pessoa, ou do valor das pessoas, na qual se apoie e cumpra a tarefa que lhe é consig- nada. Mas, para Rawls, o mérito das pessoas é subsequente às instituições, em vez de ser independente delas. E, assim, as pretensões morais de uma

pessoa têm de esperar. .

O que nos conduz à distinção entre mérito moral e legítimas expectatI- vas. Desde que uma pessoa faça todas as coisas que as instituições estabele- cidas a encorajam a fazer, ela adquire certos direitos, mas não antes. Ela tem o direito que as instituições cumpram aquilo que prometeram, honrando as pretensões que anunciaram que premiariam. Porém, não tem

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