• Nenhum resultado encontrado

LEANDRO AMBROS GALLON

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "LEANDRO AMBROS GALLON"

Copied!
97
0
0

Texto

(1)

LEANDRO AMBROS GALLON

O NOVO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO: UM ESTUDO EMPÍRICO SOBRE OS PROCEDIMENTOS CRIMINAIS ORIGINÁRIOS CADASTRADOS NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA ENTRE 2012 E 2019

Florianópolis 2020

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

(2)

O NOVO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO: UM ESTUDO EMPÍRICO SOBRE OS PROCEDIMENTOS CRIMINAIS ORIGINÁRIOS CADASTRADOS NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA ENTRE 2012 E 2019

Estudo de caso submetido ao Programa de Pós-Graduação Profissional em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, área de concentração em Direito e acesso à justiça, para obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Professor Doutor Matheus Felipe de Castro

Florianópolis 2020

(3)
(4)

O novo foro por prerrogativa de função: um estudo empírico sobre os procedimentos

criminais originários cadastrados no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina entre 2012 e 2019

O presente trabalho em nível de mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Prof. Dr. Matheus Felipe de Castro UFSC

Profa. Dra. Chiavelli Facenda Falavigno UFSC

Prof. Dr. Sérgio Francisco Carlos Graziano Sobrinho UCS

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de mestre em Direito.

___________________________________ Coordenação do Programa de Pós-Graduação

_________________________________ Prof. Dr. Matheus Felipe de Castro

Orientador

(5)

Dedico este trabalho primeiramente a Deus e a Jesus Cristo, pois tudo posso Naquele que me fortalece!

Aos meus avós maternos Otávio Luiz Ambros (in memoriam) e Terezinha Ragnini Ambros (in memoriam): os ensinamentos, o caráter e a solidariedade de vocês carregarei sempre comigo!

À minha mãe Marilene Aparecida Ambros: no momento mais difícil da minha vida, você foi o meu grande exemplo de persistência, de dedicação e de superação!

À minha esposa Daniélle Cristina Novack: te encontrar foi o meu maior presente! Parceira de todas as horas, orgulho imenso de ter construído contigo a nossa família! Que o nosso amor e a nossa cumplicidade cresçam com o passar dos anos! Gratidão imensa! Te amo! À minha melhor amiga Ana Clara Novack Gallon: filha amada, que nada e nem ninguém lhe tire a capacidade de sonhar! Tenha amor pelas pessoas e pela sua profissão! Depois da tempestade, sempre vêm o dia ensolarado! Quem acredita sempre alcança!

(6)

Um agradecimento especial ao Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina e à Academia Judicial, na pessoa do Professor Doutor e Desembargador Pedro Manoel Abreu, um dos idealizadores deste exitoso projeto de Mestrado Profissional no curso de Direito, e por refletir na política de valorização e de capacitação dos seus colaboradores.

À Universidade Federal de Santa Catarina, em especial a toda a equipe do Programa de Pós-Graduação Profissional em Direito, pela já reconhecida qualidade do ensino e excelência dos seus profissionais, o que o faço na pessoa do Professor Doutor Orides Mezzaroba.

Ao meu orientador, Professor Doutor Matheus Felipe de Castro, com quem aprendi valiosos ensinamentos jurídicos e acadêmicos, sempre disponível em diversos encontros, e com preciosas sugestões.

Aos Professores Doutores Francisco de Oliveira Neto e Chiavelli Facenda Falavigno, componentes da banca de qualificação e que, com seu vasto saber jurídico, muito contribuíram na elaboração deste trabalho.

Aos Diretores Maurício Walendowsky Sprícigo e Tatiana Costa Cássio, pelas importantes orientações e por disponibilizarem todas as unidades administrativas do Tribunal de Justiça para a consecução deste projeto!

Aos servidores Adriano Alves e Caroline de Souza Farias Terra Lima, que muito auxiliaram na extração dos dados junto ao Sistema de Automação do Judiciário – SAJ.

Ao Chefe da Seção de Oficiais de Justiça Robson Carlo de Oliveira, por todo o auxílio, pela compreensão e pelo apoio!

Às amigas e aos amigos da Seção de Oficiais de Justiça, com lotação na Diretoria de Cadastro e Distribuição Processual, pelas reflexões, pelo incentivo e pelo carinho!

Aos servidores e Mestres Polliana Correa Morais, Cristiano Melo de Araújo e Ricardo Tadeu Estanislau Prado, pelas pertinentes sugestões e pela disponibilidade em sempre ajudar nas mais variadas dúvidas acadêmicas.

Aos novos amigos e amigas, colegas da Turma 3 do Mestrado Profissional, com quem tive o privilégio de conhecer, aprender e conviver durante as aulas e debates acadêmicos!

(7)

O estudo de caso versa sobre a nova roupagem do foro por prerrogativa de função, ocorrida após virada jurisprudencial promovida pelo Supremo Tribunal Federal na Questão de Ordem na Ação Penal n. 937/RJ. O tema se revela fundamental, seja por tratar de princípios e garantias constitucionais (duplo grau de jurisdição, duração razoável do processo, isonomia, entre outros), seja porque dispõe sobre alteração de competência do órgão julgador. Objetivou-se confrontar os procedimentos criminais cadastrados no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina entre 2012 e 2019, com o referido acórdão da Suprema Corte, e verificar de que maneira eles são atingidos pela decisão-paradigma. Dentro dos critérios de análise, foram examinados 116 (cento e dezesseis) procedimentos criminais, e elaborados 6 (seis) grupos de perguntas, a fim de verificar o funcionamento do sistema do foro especial neste limite territorial: (a) Grupo dos resultados gerais; (b) Grupo dos cargos ocupados, do momento do delito e de sua natureza; (c) Grupo da origem dos procedimentos e das denúncias; (d) Grupo dos crimes e da prescrição; (e) Grupo geográfico; e (f) Grupo do resultado final. Após a coleta dos dados, o resultado da pesquisa mostrou que aproximadamente 35% destes feitos teriam sua competência deslocada para o primeiro grau de jurisdição. Os dados revelaram que a maioria das investigações (57%) ocorreu em municípios com menos de 10.000 habitantes, e que estes não são sedes de comarcas. Constatou-se que o total de absolvições fundadas apenas em prescrições penais (11%) foi maior do que o total geral de condenações (10%). A pesquisa também expôs os três diplomas normativos que mais prescreveram: os crimes cometidos nos procedimentos licitatórios (Lei n. 8.666/93, em especial os artigos 89 e 90); os crimes ambientais (Lei n. 9.605/98, com ênfase nos artigos 54, §2º e 60), e os crimes do Decreto-lei n. 201/67 (com destaque para os incisos I, II e XIII, todos do artigo 1º). Após a realização da pesquisa, concluiu-se que a nova decisão não atacou os gargalos existentes no sistema do foro especial. Providências que poderiam influir nos pontos de restrição foram sugeridas: (a) a criação de uma câmara exclusiva para o julgamento de crimes envolvendo os detentores do foro; (b) a alteração legislativa na Lei n. 8.038/90, a fim de suprimir a defesa preliminar, ou a sua adequação ao procedimento comum do Código de Processo Penal, trazendo mais simplicidade e agilidade em sua tramitação; (c) a alteração da competência do Órgão Especial do Tribunal de Justiça, a fim de que todas as autoridades, e não apenas os prefeitos, sejam julgadas pelas câmaras criminais.

Palavras-chave: foro por prerrogativa de função; competência; crimes; agentes públicos; Poder Judiciário.

(8)

The case study deals with the new guise of the forum due to the prerogative of function, which occurred after a turn of jurisprudence promoted by the Federal Supreme Court in the Question of Order in Criminal Action n. 937/RJ. The theme proves to be fundamental, either because it deals with constitutional principles and guarantees (double degree of jurisdiction, reasonable duration of the process, isonomy, among others), or because it provides for changes in the jurisdiction of the judging body. The objective was to compare the criminal proceedings registered at the Santa Catarina State Court of Justice between 2012 and 2019, with the aforementioned Supreme Court ruling, and to verify how they are affected by the paradigm decision. Within the analysis criteria, 116 (one hundred and sixteen) criminal procedures were examined, and 6 (six) groups of questions were elaborated, in order to verify the functioning of the special forum system in this territorial limit: (a) General results group; (b) Group of positions held, the time of the offense and its nature; (c) Group of the origin of the procedures and complaints; (d) Group of crimes and prescription; (e) Geographic group; and (f) Final result group. After data collection, the research result showed that approximately 35% of these achievements would have their competence shifted to the first degree of jurisdiction. The data revealed that the majority of investigations (57%) took place in municipalities with less than 10,000 inhabitants, and that these are not the headquarters of counties. It was found that the total of acquittals based only on criminal prescriptions (11%) was higher than the overall total of convictions (10%). The survey also exposed the three normative diplomas that prescribed the most: crimes committed in bidding procedures (Law n. 8.666/93, in particular articles 89 and 90); environmental crimes (Law n. 9.605/98, with emphasis on articles 54, §2 and 60), and crimes of Decree-Law n. 201/67 (with emphasis on items I, II and XIII of article 1). After conducting the research, it was concluded that the new decision did not attack the existing bottlenecks in the special forum system. Provisions that could influence the restriction points were suggested: (a) the creation of an exclusive chamber for the judgment of crimes involving the holders of the forum; (b) the legislative change in Law n. 8.038/90, in order to suppress the preliminary defense, or its adaptation to the common procedure of the Code of Criminal Procedure, bringing more simplicity and agility in its processing; (c) changing the jurisdiction of the Special Body of the Court of Justice, so that all authorities, and not just mayors, are tried by criminal chambers.

(9)

Figura 1 – Distribuição dos procedimentos examinados de acordo com o ano de cadastro Figura 2 – Procedimentos distribuídos percentualmente, conforme o ano de cadastro Figura 3 – Resultados encontrados

Figura 4 – Julgamentos efetivos proferidos pelo Tribunal de Justiça catarinense Figura 5 – Cargos ocupados pelos(as) acusados(as) na data do cadastro

Figura 6 – Critério temporal: crimes cometidos durante o exercício do cargo atual Figura 7 – Critério funcional: crimes se relacionam com as funções desempenhadas? Figura 8 – Análise sobre a origem das denúncias

Figura 9 – Crimes mais recorrentes no Código Penal e na Lei de Contravenções Penais (1941) Figura 10 – Crimes no Decreto-lei 201/1967 e nas Leis do Parcelamento do Solo Urbano, de Racismo, da Ação Civil Pública, no ECA e na Lei de Crimes Tributários

Figura 11 – Crimes na Lei de Licitações, no Código de Trânsito Brasileiro, na Lei dos Crimes Ambientais, no Estatuto do Desarmamento e na Lei de Organizações Criminosas

Figura 12 – Resultado geral: os 8 crimes mais recorrentes Figura 13 – Quais crimes prescreveram?

Figura 14 – Quais diplomas normativos mais prescreveram?

Figura 15 – Em que momento da marcha processual ocorreu a prescrição? Figura 16 – Municípios em que ocorreram investigações

Figura 17 – Municípios com menos de 10 mil habitantes Figura 18 – Municípios com menos de 20 mil habitantes Figura 19 – Municípios com menos de 40 mil habitantes

Figura 20 – Quantos municípios investigados não são sedes de comarcas?

Figura 21 – Total de procedimentos que deveriam ter sua tramitação alterada, conforme a nova posição do Supremo Tribunal Federal

(10)

Tabela 1 – População dos municípios investigados

(11)

1 INTRODUÇÃO ... 13

2 APRESENTAÇÃO DO ACÓRDÃO PROFERIDO NA QUESTÃO DE ORDEM NA AÇÃO PENAL N. 937, DA SUPREMA CORTE ... 18

2.1 A DECISÃO-PARADIGMA ... 18

2.2 OS FATOS E A HISTÓRIA PROCESSUAL ... 19

2.3 O DIREITO E A DECISÃO ... 20

3 O NOVO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO: EMBASAMENTO TEÓRICO NECESSÁRIO ... 22

3.1 HISTÓRICO E EVOLUÇÃO DO TEMA ... 22

3.2 ACESSO À JUSTIÇA E FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO ... 27

3.3 A GARANTIA DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO ... 28

3.4 DA COLISÃO APARENTE ENTRE OS PRINCIPIOS DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO E DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO ... 29

4 REFLEXÕES CRÍTICAS E TEÓRICAS DA DECISÃO-PARADIGMA ... 31

4.1 A SUPREMA CORTE COMETEU USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DA FUNÇÃO DO PODER LEGISLATIVO? ... 31

4.2 A DECISÃO DA SUPREMA CORTE VIOLOU O PRINCÍPIO DA IGUALDADE? .... 34

4.3 A DECISÃO DA SUPREMA CORTE ATENDEU AOS PRINCÍPIOS DA CELERIDADE E DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO? ... 35

4.4 A DECISÃO DA SUPREMA CORTE VIOLOU O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL? 36 4.5 A DECISÃO DA SUPREMA CORTE ABRANGEU TODAS AS AUTORIDADES DETENTORAS DA PRERROGATIVA DE FORO?... 37

4.6 A CELEUMA CRIADA EM TORNO DO CONCEITO DE CRIME FUNCIONAL (PROPTER OFFICIUM) ... 39

5 O ESTUDO DE CASO DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO NO ESTADO DE SANTA CATARINA: PESQUISANDO OS PROCEDIMENTOS CRIMINAIS ORIGINÁRIOS CADASTRADOS NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA CATARINENSE ENTRE 2012 E 2019 ... 41

5.1 ESCLARECIMENTOS SOBRE A PESQUISA ... 41

5.2 PARÂMETROS NUMÉRICOS DA PESQUISA ... 42

(12)

6 CONFRONTANDO O RESULTADO DA PESQUISA COM O ACÓRDÃO-PARADIGMA: A DECISÃO DO STF ATINGIU DE QUE MANEIRA OS

PROCEDIMENTOS CRIMINAIS ORIGINÁRIOS OBJETO DE ESTUDO? ... 70

6.1 O CONFRONTO ENTRE A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O RESULTADO DA PESQUISA ... 70

6.1.1 O impacto mais visível: o deslocamento da competência ... 70

6.1.2 O alto índice de prescrições penais ... 73

6.2 QUAIS OS PONTOS DE RESTRIÇÃO MAIS EVIDENTES ENCONTRADOS? ELES SÃO ATACADOS PELA NOVEL DECISÃO? ... 74

6.2.1 As dificuldades encontradas no rito da Lei n. 8.038/1990 ... 75

6.2.2 As frequentes modificações de competência (o “sobe-e-desce processual”) ... 76

6.2.3 A nova orientação tem o condão de corrigir estes gargalos? ... 78

7 PROPOSIÇÕES DE ALTERNATIVAS PARA A CELERIDADE DO FLUXO DOS PROCESSOS COM PRERROGATIVA DE FORO NO PODER JUDICIÁRIO CATARINENSE ... 81

7.1 ALTERAÇÃO DA COMPETÊNCIA PARA AS CÂMARAS CRIMINAIS DO JULGAMENTO DE TODAS AS AUTORIDADES DETENTORAS DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO NO ESTADO DE SANTA CATARINA ... 81

7.2 CRIAÇÃO DE UMA CÂMARA CRIMINAL EXCLUSIVA PARA O PROCESSO E O JULGAMENTO DOS PROCEDIMENTOS CRIMINAIS ORIGINÁRIOS ... 82

7.3 ALTERAÇÃO LEGISLATIVA DO PROCEDIMENTO ESPECIAL PREVISTO NA LEI N. 8.038, DE 1990 ... 83

8 CONCLUSÃO ... 86

(13)

1 INTRODUÇÃO

O crescimento do acesso à informação trouxe, inegavelmente, aumento no controle da coisa pública. Informações que antes estavam inacessíveis, hoje devem por obrigação ser transparentes. A Constituição da República de 1988, com ares de modernidade, consagrou normas e princípios éticos, igualitários, que norteiam o modo de agir dos agentes públicos.

Institutos jurídicos que antigamente não demandavam muita atenção, como o foro especial, há algum tempo vêm sofrendo intensos debates não só no meio jurídico, mas em toda a sociedade.

O sistema do foro por prerrogativa de função em vigor no Brasil é tema da maior importância, notadamente após a polêmica decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em 3 de maio de 2018, na Questão de Ordem na Ação Penal n. 937/RJ, que, em virada jurisprudencial, restringiu o foro especial dos parlamentares federais, remetendo para a 1ª Instância os procedimentos criminais nos quais são investigados fatos ocorridos antes do exercício do cargo e que não guardem relação com as funções desempenhadas (sem relação com o mandato).

A área de concentração do presente trabalho é o Direito e o acesso à justiça. A linha de pesquisa desenvolvida é o acesso à justiça e processos jurisdicionais e administrativos: a administração da justiça sob o enfoque do combate.

O tema é o foro por prerrogativa de função e o acesso à justiça. Delimitando o tema, o estudo se propõe a realizar uma pesquisa empírica nos procedimentos criminais originários cadastrados no Tribunal de Justiça catarinense entre 2012 e 2019, confrontando o resultado dos dados com a nova jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, inaugurada no decisum acima referido, cujo entendimento restringiu o foro especial.

O problema de pesquisa questiona de que maneira os procedimentos criminais originários cadastrados no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina entre 2012 e 2019 seriam atingidos pela novel decisão da Suprema Corte restritiva do foro especial; quais os pontos de restrição mais evidentes encontrados; bem como se a nova orientação tem o condão de corrigir esses aspectos, atacando estes gargalos.

Em hipótese, a virada jurisprudencial deflagrada pela Suprema Corte foi promovida com o discurso declarado de reduzir “as disfuncionalidades provocadas pelo sistema, no alto índice de prescrições penais e no próprio descrédito do Tribunal perante a sociedade” (BRASIL, 2017b). A propósito, fundamentaram a tese vencedora os discursos de efetivação da igualdade e do princípio republicano.

(14)

A maioria do Plenário decidiu, portanto, criar um mecanismo que revertesse o fluxo de procedimentos criminais com foro especial para o primeiro grau de jurisdição, remanescendo na Corte Suprema apenas aqueles cujos fatos foram cometidos dentro do período do mandato do parlamentar, os que teriam relação com o cargo público, e aqueles em que finda a instrução. Em outras palavras, partiu-se da premissa de que os feitos criminais que tramitam no juízo singular evitariam o alto índice de prescrições penais visualizados nos procedimentos iniciados e julgados exclusivamente na Suprema Corte.

A dúvida que sustenta a pesquisa reside em investigar de que maneira os procedimentos criminais originários no Tribunal de Justiça catarinense cadastrados entre 2012 e 2019 seriam impactados pelo acórdão-paradigma do Excelso Pretório. Tal investigação só será possível após a colheita dos dados obtidos em pesquisa ao Sistema de Automação do Judiciário – SAJ.

O tema é atual porque o Superior Tribunal de Justiça, em 20 de junho de 2018 (mês e meio após a decisão da Suprema Corte), ao julgar o Agravo Regimental na Ação Penal n. 866/DF, aplicou o novel entendimento aos governadores e aos conselheiros dos Tribunais de Contas dos Estados, invocando o “princípio da simetria” e o brocardo “ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio” (“onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de direito”).

A discussão atinge não apenas o futuro da prerrogativa de foro dos agentes públicos, como também suscita importantes discussões acerca do papel da Suprema Corte, quer sobre a interpretação das normas constitucionais, quer sobre a interferência em assunto típico do Poder Legislativo – tanto que tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição n. 333, de 20171.

A ofensa ao postulado da razoável duração do processo, bem como a ineficiência e a morosidade com que tramitaram diversas ações penais envolvendo autoridades detentoras da prerrogativa de foro, convidam os estudiosos a se debruçarem em busca do sistema ideal. Isso num país que, em 2015, atingiu a marca de cem milhões de processos em tramitação na justiça. A grande importância do estudo do foro por prerrogativa de função está no destaque que a adequada responsabilização dos agentes públicos reflete em toda a sociedade. A crença em uma justiça célere, eficiente e que ao mesmo tempo garanta às partes todos os seus direitos não pode ser uma utopia. Instrumentos jurídicos que apresentam mal funcionamento urgem por aperfeiçoamentos.

1 Disponível em: <https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2140446>. Acesso em: 19 jan. 2019.

(15)

A novidade e o ineditismo da pesquisa residem no fato não existir, salvo melhor juízo, uma pesquisa empírica confrontando os acórdãos de um Tribunal de Justiça com a decisão-paradigma que restringiu o foro por prerrogativa de função, adotada pelo Supremo Tribunal Federal em 3 de maio de 2018.

Além das polêmicas sobre a aplicação ou não do julgado do Excelso Pretório aos demais Tribunais, atenta-se que é nas Cortes de Justiça estaduais que se concentram as ações penais de competência originária envolvendo vice-governadores, secretários de Estado, deputados estaduais e prefeitos, representantes do governo local.

No Estado de Santa Catarina, por exemplo, tramita no Órgão Especial ação penal que versa sobre a chamada “Operação Fundo do Poço”2. Demanda das mais complexas e extensas,

na qual foram denunciadas 45 (quarenta e cinco) pessoas, por fatos ocorridos em 2009. O recebimento da peça acusatória se deu em 29 de setembro de 2014, e o julgamento de mérito ocorreu em dezembro de 2019, encontrando-se o feito, atualmente, em fase de análise dos embargos de declaração e demais recursos. Ela se mantém no Tribunal porque um dos denunciados é deputado estadual.

Para se chegar ao resultado pretendido, a pesquisa pretende responder às seguintes perguntas, subdivididas em 6 (seis) grandes grupos:

1) Grupo dos resultados gerais: Dentro do grupo de procedimentos criminais pesquisados, quantos resultaram em condenação? Quantos prescreveram? Quantos resultaram em absolvição por outros fundamentos? Quantos foram remetidos ao 1o grau ante a perda do foro especial em razão do fim do mandato pelo(a) investigado(a)? Quantos procedimentos foram arquivados? Quantas denúncias foram rejeitadas? Dos procedimentos criminais pesquisados, qual o total de julgamentos finais efetivos proferidos pelo Tribunal de Justiça catarinense?

2) Grupo dos cargos ocupados, do momento do delito e de sua natureza: Por que o procedimento criminal tramitou no Tribunal de Justiça? Em quantos deles o(s) crime(s) sob investigação foi(ram) cometido(s) durante o exercício do cargo atual (ou seja: no curso do mandato atual)? Em quantos deles o(s) crime(s) sob investigação se relaciona(m) com as funções desempenhadas no cargo atual?

2 A investigação apurou que, desde 2009, empresas de perfurações de poços artesianos estariam estabelecendo acordos para definir vitoriosos em procedimentos licitatórios.

(16)

3) Grupo da origem dos procedimentos e das denúncias: Quantos procedimentos criminais tiveram denúncia oferecida no 1o grau, por Promotor(a) de Justiça? E quantos tiveram denúncia oferecida no Tribunal de Justiça, por Procurador(a) de Justiça? Quantos não tiveram denúncia (pois arquivados pelo Tribunal sem denúncia)? Quantos procedimentos tramitam ainda sem denúncia (encontram-se nas fases preliminares, investigativas)?

4) Grupo dos crimes e da prescrição: Quais os crimes mais recorrentes? Quais os delitos que prescreveram? Quais os diplomas normativos que mais foram objeto de prescrição? Quais as modalidades de prescrições penais foram as mais reconhecidas? Dos procedimentos criminais prescritos, em que momento foi mais comum notar o retardamento da marcha processual: na fase investigatória ou de diligências, na fase instrutória, na fase decisória ou após o julgamento final?

5) Grupo geográfico: Quais as regiões geográficas do Estado de Santa Catarina que mais receberam investigações? Quantos municípios investigados não são sedes de comarcas? Dentro do grupo de procedimentos criminais pesquisados, qual o percentual de municípios que possuem menos de 10.000 habitantes? E 20.000 habitantes? E 40.000 habitantes?

6) Grupo do resultado final: Dos procedimentos criminais pesquisados, de acordo com o novo entendimento do Supremo Tribunal Federal, quantos deles não deveriam ter tramitação no TJSC? E quantos devem ter a tramitação mantida (pelo fato de o crime se relacionar com a função desempenhada no cargo atual e, ao mesmo tempo, ter sido cometido durante o exercício do mandato atual)?

Assim, o objetivo geral da pesquisa será analisar de que maneira os procedimentos criminais cadastrados no Tribunal de Justiça entre 2012 e 2019 seriam impactados pela decisão da Suprema Corte restritiva do foro especial.

Já os objetivos específicos consistem em analisar os fundamentos da decisão do Supremo Tribunal Federal que restringiu o foro por prerrogativa de função; apresentar os resultados da pesquisa feita no banco de dados do Poder Judiciário catarinense, mediante aplicação das perguntas expostas na delimitação do tema; verificar se a alteração do entendimento do Excelso Pretório é eficaz para o combate aos problemas detectados; e propor alternativas para a celeridade ou agilização do fluxo dos processos com foro por prerrogativa de função no Poder Judiciário catarinense.

(17)

Metodologicamente, destaca-se que o método científico de abordagem será o indutivo. Já o método de procedimento será o estudo de caso.

Quanto à forma de revisão, adotar-se-á a revisão narrativa.

O estudo de caso será avaliativo e propositivo, e a técnica de pesquisa utilizada será análise estatística de dados.

Os objetivos serão alcançados por meio do confronto entre o acórdão do Supremo Tribunal Federal e o resultado da pesquisa realizada no banco de dados do Sistema de Automação do Judiciário – SAJ, do Poder Judiciário de Santa Catarina (limitação geográfica), mais especificamente nos procedimentos criminais originários cadastrados entre 2012 e 2019 (limitação temporal).

O trabalho encontra raízes nos seguintes aspectos teóricos: direito de acesso à justiça; garantia do duplo grau de jurisdição; princípio da duração razoável do processo; princípio da celeridade; princípio do devido processo legal; princípio do juiz natural; Federalismo; entre outros.

(18)

2 APRESENTAÇÃO DO ACÓRDÃO PROFERIDO NA QUESTÃO DE ORDEM NA AÇÃO PENAL N. 937, DA SUPREMA CORTE

O estudo se propõe a realizar uma pesquisa empírica nos procedimentos criminais originários cadastrados no Poder Judiciário catarinense entre 2012 e 2019, confrontando o resultado dos dados com a nova jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, inaugurada em 3 de maio de 2018, cujo entendimento restringiu o foro por prerrogativa de função.

2.1 A DECISÃO-PARADIGMA

O Supremo Tribunal Federal deu nova roupagem ao tema do foro por prerrogativa de função no ordenamento jurídico brasileiro em 3 de maio de 2018, ao restringir o foro especial dos parlamentares federais (BRASIL, 2018e). A mudança no tratamento do tema foi radical. As consequências desta decisão colocam em xeque toda a estrutura até então vigente sobre a prerrogativa do foro. Explica-se.

Antes, o entendimento predominante era o de que o foro por prerrogativa de função abrangia todo e qualquer crime pelo qual o agente público estivesse sendo processado – seja crime funcional ou não –, cometido antes da aquisição do foro especial (leia-se: cometido antes da diplomação). Ou seja, com a diplomação, automaticamente o procedimento criminal era remetido ao Tribunal ao qual o agente público possuía o foro especial (BRASIL, 2015).

Com a nova orientação, no entanto, o foro por prerrogativa de função somente se justifica se o crime pelo qual a autoridade estiver sendo processada for cometido no exercício do cargo (leia-se: no exercício do mandato), e também que o crime tenha sido praticado em razão das funções e ele relacionadas (propter officium).

Faz-se fundamental trazer os termos precisos da tese vencedora, que ficou assim redigida, tendo como Relator o Ministro Luis Roberto Barroso (BRASIL, 2018d):

(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e

(ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”, com o entendimento de que esta nova linha interpretativa deve ser aplicada imediatamente aos processos em curso, com a ressalva de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e pelos demais juízos com base na jurisprudência anterior (original sem grifos).

(19)

Nessa linha, impõe-se observar o modo como se chegou à elaboração do voto vencedor, bem como os princípios que o embasaram, o contexto fático envolvido e os sólidos argumentos da corrente minoritária.

2.2 OS FATOS E A HISTÓRIA PROCESSUAL

O processo iniciou-se no Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE/RJ) porque, na época do recebimento da denúncia (30.01.2013), o réu era prefeito.

De acordo com a denúncia, nas eleições municipais de 2008, o agente teria angariado votos para se eleger prefeito de Cabo Frio, município do Estado do Rio de Janeiro, por meio da entrega de notas de R$ 50,00 (cinquenta reais) e da distribuição de carne aos eleitores, incorrendo na prática, em tese, do crime de captação ilícita de sufrágio – corrupção eleitoral (art. 299 do Código Eleitoral).

Com o encerramento do mandato municipal, o TRE/RJ declinou de sua competência em favor da 256ª Zona Eleitoral do Rio de Janeiro. Posteriormente, o mesmo TRE/RJ, agora em sede de habeas corpus, anulou o recebimento da denúncia e os demais atos posteriores, visto que, à época, o acusado já não ocupava o cargo que lhe deferia foro por prerrogativa de função. O juízo eleitoral de 1ª Instância proferiu, então, novo recebimento da denúncia em 14.04.2014 e realizou toda a instrução processual.

Ocorre que, mesmo após já apresentadas as alegações finais, estando os autos aptos a sentença, o réu foi diplomado, em 10.02.2015, como Deputado Federal, porquanto havia sido eleito como primeiro suplente, passando a exercer o mandato por afastamento do titular.

O desempenho do mandato no Congresso Nacional fez com que a 256ª Zona Eleitoral declinasse da competência ao Supremo Tribunal, em 24.04.2015.

Quase um ano depois, em 14.04.2016, o acusado afastou-se do mandato, diante do retorno do titular. Já em 13.09.2016, ele foi efetivado no mandato, em virtude da perda do cargo pelo titular.

Por fim, após o término da instrução processual e a inclusão do presente processo para julgamento na Suprema Corte, o agente foi eleito, novamente, prefeito do Município de Cabo Frio, e renunciou ao mandato federal para assumir o paço municipal, em 1º.01.2017.

Em 10.02.2017, o Ministro Relator suscitou questão de ordem na ação penal, a fim de que o Plenário se manifestasse sobre a possibilidade de “conferir interpretação restritiva às normas da Constituição que estabelecem as hipóteses de foro por prerrogativa de função, de

(20)

modo a limitar tais competências jurisdicionais aos crimes cometidos em razão do ofício e que digam respeito estritamente ao desempenho daquele cargo” (BRASIL, 2018e).

2.3 O DIREITO E A DECISÃO

A questão de direito em disputa versou sobre o cabimento da limitação do foro especial apenas para os delitos funcionais (relacionados às funções desempenhadas) cometidos durante o exercício do cargo (critério temporal).

Pois bem.

As razões que levaram o Excelso Pretório a mudar a posição antes pacificada, acerca da limitação do foro especial, podem ser resumidas nas disfuncionalidades provocadas pelo sistema, no alto índice de prescrições penais e no próprio descrédito do Tribunal perante a sociedade. Fundamentaram a tese vencedora os princípios da igualdade e da República (BRASIL, 2017b).

O Ministro Marco Aurélio, primeiro a discordar ainda que parcialmente da proposição do Relator, entendeu que o foro especial dependeria do fato de o agente já estar diplomado no dia da prática do crime. Além disso, prescreveu que a renúncia ou perda do cargo, em qualquer momento da marcha processual, seria causa para a perda imediata da prerrogativa do foro.

Seguindo a ordem, as Ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia acompanharam integralmente as palavras do Relator.

Apresentando divergência parcial, os Ministros Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski votaram no sentido de que a expressão “nas infrações penais comuns”, prevista no artigo 102, inciso I, alínea “b”, da Constituição Federal, alcançaria todos os tipos de infrações penais, ligadas ou não ao exercício do mandato (BRASIL, 2017c).

Além disso, registraram sua discordância com o fato de o Plenário estar decidindo matéria tão profunda – que exigiria tramitação idêntica aos ritos da repercussão geral, da edição de súmulas vinculantes e do julgamento das ações do controle concentrado de constitucionalidade – no âmbito de mera questão de ordem suscitada incidentalmente.

Consignaram, outrossim, que o Supremo Tribunal Federal já estabeleceu “a impossibilidade de subverter a lógica de jurisdições superpostas”, ou seja, a impossibilidade de aplicação da sanção de perda do cargo por magistrados de instâncias inferiores a instâncias superiores. O mesmo se aplicaria em relação aos membros do Ministério Público (BRASIL, 2018d).

(21)

Os Ministros Edson Fachin, Luiz Fux e Celso de Mello seguiram integralmente a linha preconizada pelo Relator.

Caminhando para o final, o Ministro Dias Toffoli, além de se alinhar à minoria (no sentido de que o foro especial estaria mantido mesmo se o crime não guardasse relação com cargo ocupado), verberou que as novas regras sobre restrição do foro deveriam se estender aos membros dos Poderes Judiciário, Executivo, Ministério Público e Tribunais de Contas. Outro aspecto que mereceu destaque na proposição deste Magistrado foi a invocação de inconstitucionalidade das prerrogativas de foro estabelecidas exclusivamente pelas Constituições dos Estados-membros, ao argumento de que somente as imunidades insculpidas na Constituição da República é que seriam admitidas (BRASIL, 2018d).

O último a votar foi o Ministro Gilmar Mendes, o qual também entendeu que a prerrogativa do foro alcançaria todos os delitos imputados ao destinatário da prerrogativa (BRASIL, 2018d).

(22)

3 O NOVO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO: EMBASAMENTO TEÓRICO NECESSÁRIO

3.1 HISTÓRICO E EVOLUÇÃO DO TEMA

O foro especial está umbilicalmente ligado à ideia de prerrogativa concedida aos agentes públicos em razão da importância da função desempenhada. Visa, assim, proteger as autoridades públicas contra possíveis perseguições ou, ainda, evitar que, com seu prestígio, possam intimidar a figura judiciária local, algo que não ocorreria no julgamento realizado junto aos Tribunais.

A natureza jurídica do foro por prerrogativa de função está associada a ideia de uma garantia fundamental, de maneira que a delimitação de um órgão jurisdicional competente na Constituição ou na Lei representa a definição do juiz natural, e não um juízo de exceção (BELÉM, 2008, p. 105).

É possível dizer que a prerrogativa do foro contém em si dupla garantia, uma dirigida ao investigado, e outra ao julgador. Ao agente público, porque terá um foro compatível com a importância de sua função. Ao magistrado, porque não haverá o risco de se sentir constrangido ou pressionado no julgamento, já que está em posição também compatível com o cargo ocupado pelo investigado (LOPES JUNIOR, 2020).

A Constituição, ao fixar as desigualdades, organiza o Estado para que as estruturas de poder encontrem formas seguras de atuação. Quando a Constituição estabelece competência criminal por prerrogativa de função, não está a privilegiar pessoas, mas cargos (COSTA, 2001, p. 68).

Newton Tavares Filho (2015), após realizar estudo sobre o foro especial por prerrogativa de função no Direito Comparado, investigando o sistema nas constituições da Suécia (art. 7º), Noruega (art. 86), Dinamarca (art. 16), Alemanha (art. 61), Áustria (art. 142), Colômbia (arts. 186 e 199), Venezuela (art. 200), Portugal (art. 130), Itália (arts. 96 e 134), França (arts. 67 e 68), Espanha (arts. 71 e 102), Bélgica (art. 125), Argentina (art. 100) e Estados Unidos (art. 3º, Seção II), concluiu que a lógica por trás da figura da prerrogativa especial é a mesma em todos os países: reconhecimento da relevância da função exercida pela autoridade pública, e designação do tribunal mais elevado para processá-la e julgá-la.

A propósito, destacando a evolução do instituto do foro por prerrogativa de função nas normas constitucionais brasileiras, registra-se que a Constituição Imperial de 1824, além do Poder Moderador, instituiu as prerrogativasde causa ou de foro, com o fito de acabar com as

(23)

benesses pessoais (odiosas). Desse modo, o raciocínio por traz do dito comportamento era o de que certos benefícios, caso existentes, deveriam recair sobre os cargos e os empregos.

A Carta Outorgada de 1824 recebeu grande influência da Carta Portuguesa de 1822 e, por consequência, da Constituição Francesa de 1791. O repúdio aos privilégios puramente pessoais pode ser verificado no artigo 179, especialmente nos §§ 16 e 17 da Constituição de 1824, por meio da noção de que ficam abolidos todos os privilégios, que não forem os essenciais e inteiramente ligados aos cargos, por utilidade pública.

Anos depois, a Constituição de 1891, além de se distanciar da nobreza e da igreja, trouxe, como aspectos relevantes, a competência originária do Supremo Tribunal Federal para julgar o Presidente da República e os Ministros de Estados nos crimes comuns (art. 59, I, “a”), incumbindo ao Senado o seu julgamento, nos crimes de responsabilidade (art. 53), além de importar da Carta Americana a figura do impeachment.

Aliás, o próprio sentimento de República já norteou o Constituinte de 1890 rumo à proibição efetiva do foro privilegiado, conforme se extrai do texto constitucional, na Seção II, relativa aos direitos e garantias individuais, com destaque para os §§ 2º e 23 do artigo 72:

Art. 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

[...] § 2º - Todos são iguais perante a lei. A República não admite privilégios de nascimento, desconhece foros de nobreza e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho.

[...] § 23 - À exceção das causas que, por sua natureza, pertencem a Juízos especiais, não haverá foro privilegiado. (grifei)

Durante o primeiro mandato presidencial de Getúlio Vargas, a Constituição de 1934 fez constar, em seu artigo 58, que o órgão responsável pelo julgamento do Presidente da República, nos crimes comuns, seria o Supremo Tribunal Federal, ao passo que, nos crimes de responsabilidade, a competência seria de um Tribunal Especial, composto por 9 (nove) juízes, sendo três ministros da Corte Suprema, três membros do Senado Federal e três membros da Câmara dos Deputados.

A Carta de 10 de dezembro de 1937 criou um “Conselho Federal”, composto por membros nomeados pelo Presidente da República, para processá-lo e julgá-lo nos crimes de responsabilidade.

O processo de redemocratização que ocorreu no Brasil após mais de uma década de Governo Vargas foi responsável pela elaboração de uma Lei Maior com ares de Estado Social. No entanto, a Constituição de 1946 apresentou diversos aspectos polêmicos. Um deles residiu

(24)

no fato de o rol de autoridades com prerrogativa de foro ter aumentado consideravelmente (ARBAGE, 2016).

Explicando o elastecimento do número de agentes públicos detentores do foro especial, Orlando Carlos Neves Belém esclarece que:

[A] qualidade e a quantidade dos agentes públicos detentores do foro por prerrogativa de função, de fato, representava o exercício da prerrogativa de função instituída pelo modelo republicano e não um “inchaço” na competência originária do Supremo Tribunal Federal (2008, p. 130).

Portanto, o que se argumentou é que o aumento no rol de autoridades detentoras do foro por prerrogativa de função, na Constituição de 1946, longe de representar um retrocesso no regime do foro especial, significaria, na verdade, um reflexo do regime republicano.

Em 3 de abril de 1964, iniciou-se um primeiro momento muito importante na fixação da competência dos agentes públicos: foi editado, pelo Supremo Tribunal Federal, o enunciado de Súmula n. 394, segundo o qual: “cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”.

O verbete não deixa dúvidas: o entendimento pacífico da Corte Suprema era o de que o foro especial persistia com o ex-agente estatal, mesmo após o fim do cargo, mandato ou função públicos; uma verdadeira perpectuatio jurisdictionis.

Sobre a Constituição da República de 1988, Newton Tavares Filho (2015), ao pesquisar o modelo de mais de 20 (vinte) países europeus e americanos, destacou que nenhum deles previu tantas hipóteses quanto o Brasil, em sua mais recente Constituição.

O crescimento no rol de autoridades detentoras do foro especial, a partir da Constituição de 1934, restou graficamente exposto por Lourenço Biasi e Samuel Martins dos Santos (2019):

(25)

Em 25 de agosto de 1999, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Questão de Ordem no Inquérito n. 687, mudou o seu entendimento e decidiu que a Constituição de 1988 somente garantia foro por prerrogativa de função às pessoas que, no momento do julgamento, estivessem no exercício do cargo, cancelando-se, por consequência, a Súmula n. 394.

(26)

Um terceiro momento de grande relevo aconteceu em 24 de dezembro de 2002. A Lei federal n. 10.628 veio a lume objetivando acrescentar os §§ 1º e 2º ao artigo 84 do Código de Processo Penal para, na prática, reintroduzir o teor da Súmula n. 394 do Supremo.

O artigo 84, §1º, do CPP, passaria a dispor que a competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevaleceria ainda que o inquérito ou a ação judicial fossem iniciados após o fim do exercício da função pública.

Contra a norma em exame foi ajuizada a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.797, a qual, em 15 de setembro de 2005, foi julgada procedente pelo Plenário, com eficácia ex nunc. Restou decidido que tanto o cancelamento da Súmula 394 quanto a decisão da Corte que a cancelara derivaram de interpretação direta e exclusiva da Constituição Federal, não sendo possível à lei ordinária opor-se ao entendimento jurisprudencial, sob pena de as decisões judiciais ficarem ao referendo do legislador (BRASIL, 2005).

Assim, ficou decidido que o crime cometido antes do exercício da função seria de competência do Supremo. E, caso deixasse o cargo sem que o feito fosse julgado, este seria remetido para a primeira instância.

Da mesma forma, o delito cometido no exercício da função permaneceria no foro especial durante o período em que o ocupante estivesse no exercício do múnus público.

E, por fim, em 3 de maio de 2018, o Supremo Tribunal decidiu restringir a prerrogativa do foro apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas. Trata-se da Questão de Ordem na Ação Penal n. 937/RJ (BRASIL, 2018e).

Portanto, em outras palavras, fatos ocorridos antes do exercício do cargo ou que não guardem relação com as funções desempenhadas (sem relação com o mandato), devem julgados pela primeira instância.

Além disso, decidiu-se em 2018 que, após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.

A doutrina também apresenta críticas quanto ao fato de os crimes cometidos antes da diplomação, mas relacionados com a futura atuação parlamentar, escaparem da competência do Supremo Tribunal. Tais como: o financiamento irregular de campanhas; o “caixa dois”; a corrupção; a evasão de divisas das sobras da campanha; etc. Estas situações, embora diretamente relacionadas ao futuro cargo, ficaram a cargo da primeira instância (LOPES JUNIOR, 2020).

(27)

3.2 ACESSO À JUSTIÇA E FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO

O acesso à justiça é postulado universal no Estado Democrático de Direito. A sua relação com o instituto do foro especial ganha relevo com a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Questão de Ordem na Ação Penal n. 937/RJ.

Uma das principais qualidades do recente entendimento encontra-se na abertura do órgão revisor aos réus, que antes só tinham uma única instância de julgamento. De há muito se criticava o fato de as autoridades processadas originariamente na Suprema Corte não terem direito ao duplo grau de jurisdição, havendo quem defendesse, inclusive, a possibilidade de condenação do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (MAZZUOLI, 2013, p. 455).

É indiscutível que o acesso à justiça não se confunde com o acesso ao Poder Judiciário; aquele é mais abrangente; este é mais restrito (CAVALCANTE, 2015, p. 176). No entanto, também não se discute que uma das vertentes do acesso à justiça é o direito, por qualquer pessoa, de obter uma decisão justa, ou seja, a busca pela ordem jurídica justa.

Faz-se fundamental observar a ordem jurídica por meio da visão do jurisdicionado, ou seja, do destinatário das normas jurídicas, a fim de que as reformas processuais estejam acompanhadas de uma mudança no seu método de pensamento (CAPPELLETTI, 1998, p. 88). Verifica-se que proporcionar às partes – aqui entendidos os atores não apenas do processo penal, mas de qualquer processo, seja jurisdicional, seja administrativo – a busca à ordem jurídica justa constitui pressuposto fundamental para o correto funcionamento do sistema jurídico, sobretudo em uma república federativa e democrática.

Nessa perspectiva, bem lançada é a observação de Kazuo Watanabe (1998), para quem:

O acesso à justiça não se limita em possibilitar o acesso aos tribunais, mas em viabilizar o acesso a uma ordem jurídica justa, que abrangeria: (1) o direito à informação; (2) o direito à adequação entre a ordem jurídica e a realidade socioeconômica do país; (3) o direito ao acesso a uma justiça adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo de realização da ordem jurídica justa; (4) o direito à preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a objetiva tutela dos direitos; (5) o direito à remoção dos obstáculos que se anteponham ao acesso a uma justiça. Tal pretensão encontra-se devidamente agasalhada com a restrição do foro por prerrogativa de função, na medida em que os réus passam a ter direito à revisão – dos fatos e da fundamentação jurídica – da sentença (de 1º Grau) na instância imediatamente superior.

(28)

Com efeito, não se trata apenas de recorrer aos Tribunais, mas sim de alcançar a revisão, em todos os seus termos, da decisão combatida. E o recurso não é para os mesmos magistrados, tal qual decidiu a Suprema Corte no caso “Mensalão”, ao admitir o expediente dos embargos infringentes (BRITO; FABRETTI, 2013, p. 93). A irresignação da sentença dirigida ao respectivo Tribunal será julgada por acórdão em órgão colegiado composto por novos julgadores.

3.3 A GARANTIA DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO

É certo, também, que a ampliação do acesso à justiça trouxe aos acusados a garantia do duplo grau de jurisdição, a qual significa que “toda decisão judicial deve poder ser submetida a novo exame, de modo que a segunda decisão prevaleça sobre a primeira” (MOREIRA, 2006, p. 237), em julgamento realizado por órgão diverso daquele que proferiu a decisão.

Embora exista importante divergência no campo doutrinário sobre a envergadura constitucional do duplo grau de jurisdição, defendendo uns a sua presença no rol de garantias mínimas decorrentes do devido processo legal (MEDINA, 2017, p. 1191), e outros negando a sua existência (BRASIL, 2009), o certo é que o Pacto de São José da Costa Rica – que tem status supralegal na pirâmide normativa segundo o próprio STF (BRASIL, 2008) – prescreve, no artigo 8º, §2º, item “h”, que “durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade [...] ao direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior”.

Ainda que de maneira mais tímida, o duplo grau de jurisdição já estava previsto desde 1966 no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, no momento em que se registrou o direito, a qualquer pessoa que seja privada de sua liberdade, por prisão ou encarceramento, de recorrer a um tribunal, para que este decida sobre a legalidade da segregação e ordene a soltura, caso ilegal (art. 9º, §4º).

A aplicação da norma da Convenção Americana de Direitos Humanos encontra fundamento também no princípio pro homine, segundo o qual “em matéria de direitos humanos, deve sempre prevalecer a norma mais favorável, devendo a convenção ter incidência, por se tratar de norma mais benéfica” (LIMA, 2018, p. 1374).

Interessante notar que, num primeiro momento, o duplo grau de jurisdição pode colidir com o princípio da razoável duração do processo. O raciocínio é claro: uma demanda que tramita em várias instâncias tende a ser mais lenta do que outra processada apenas em um único Tribunal.

(29)

No entanto, não há como se afirmar, categoricamente, que o fato de a ação tramitar apenas na Corte Suprema torná-la-á mais célere do que outra que percorreu todas as instâncias judiciárias.

3.4 DA COLISÃO APARENTE ENTRE OS PRINCIPIOS DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO E DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO

Eduardo de Avelar Lamy e Horácio Wanderlei Rodrigues (2011, p. 218) bem ponderam que a ideia de prazo razoável – ainda que não de modo expressa – já estava presente na Lei Maior de 1988 como subprincípio do devido processo legal, de maneira que “a efetividade dessa garantia passa também pela existência de instrumentos processuais que, além de serem acessíveis, sejam também céleres e efetivos na resolução dos conflitos”.

Com efeito, a criação de novos mecanismos processuais na Magna Carta de 1988 contribuiu sobremaneira para o aperfeiçoamento da noção de efetividade. A consagração explícita do princípio da duração razoável do processo, no inciso LXXVIII do artigo 5º, pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004, demonstrou outra preocupação do constituinte derivado com o valor “tempo” nos processos administrativos e judiciais.

Sobre o assunto, Aury Lopes Junior (2004, p. 34) leciona que:

No que tange à duração razoável do processo, entendemos que a aceleração deve produzir-se não a partir da visão utilitarista, da ilusão de uma justiça imediata, destinada à imediata satisfação dos desejos de vingança. O processo deve durar um prazo razoável para a necessária maturação e cognição, mas sem excessos, pois o grande prejudicado é o réu, aquele submetido ao ritual degradante e à angústia prolongada da situação de pendência. O processo deve ser mais célere para evitar o sofrimento desnecessário de quem a ele está submetido. É uma inversão na ótica da aceleração: acelerar para abreviar o sofrimento do réu.

[...] Assumindo o caráter punitivo do tempo, não resta outra coisa ao juiz que compensar a demora reduzindo a pena aplicada, pois parte da punição já foi efetivada pelo tempo. (grifei)

Um dos objetivos do Ministro Relator Luis Roberto Barroso, presente em seu discurso, foi o de tornar estas ações mais céleres, tendo em conta o alto índice de prescrições penais. No entanto, a pretensão visada é colocada em xeque quando exposta diante do princípio da razoável duração do processo. Pergunta-se: uma ação penal que tramitou apenas no Supremo Tribunal pode ser julgada mais rapidamente do que outra que percorreu a primeira e a segunda Instâncias (já que ampliado o acesso à justiça pela existência do duplo grau de jurisdição)?

Em linha de princípio, é mais coerente afirmar que uma demanda que tramitou somente em um órgão judiciário tende a chegar mais rápido ao seu final. A prevalecer esta lógica,

(30)

verifica-se que a decisão da Suprema Corte, em que pese consagrar o duplo grau, não atendeu ao princípio da razoável duração do processo. A tensão entre estes postulados constitucionais deve ser equacionada com base no princípio da proporcionalidade.

Por outro lado, há vozes na doutrina a defender que a razoável duração sobrepor-se-ia ao duplo grau, porquanto a diretriz daquela adviria do princípio do acesso à justiça, inclusive para tornar o processo mais efetivo (MACHADO; LEAL JÚNIOR, 2010, p. 77).

Na verdade, é fato que a melhor solução consiste na convivência harmônica de ambos os princípios, pois de nada adiantaria uma ação tramitar em duas instâncias durante décadas, nem tampouco uma demanda processada em apenas um órgão jurisdicional, porém sem direito à revisão por outros julgadores.

(31)

4 REFLEXÕES CRÍTICAS E TEÓRICAS DA DECISÃO-PARADIGMA

4.1 A SUPREMA CORTE COMETEU USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DA FUNÇÃO DO PODER LEGISLATIVO?

A Constituição da República de 1988 dispõe sobre o foro por prerrogativa de função em variados dispositivos: no artigo 27, §1º (Deputados Estaduais); 29, inciso X (Prefeitos); 53, §1º (Deputados Federais e Senadores da República); 96, inciso III (juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, e membros do Ministério Público); 102, I, “b” e “c” (Presidente da República; Vice-Presidente; Ministros do STF; Procurador-Geral da República; Ministros de Estado; Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica; membros dos Tribunais Superiores; membros do Tribunal de Contas da União; e chefes de missão diplomática de caráter permanente; entre outros (BRASIL, 1988).

É por essa razão que respeitável corrente entende que a Suprema Corte, ao reinterpretar o artigo 53, §1º, da CF/88 e restringir o foro especial dos parlamentares federais, invadiu competência típica do Poder Legislativo, porquanto somente emenda constitucional poderia atuar desta maneira. O Ministro Dias Toffoli (BRASIL, 2018e) é um dos defensores da impossibilidade da interpretação restritiva da prerrogativa de foro instituída pela Constituição Federal, ponderando, em seu voto-vista, que:

Como os Poderes Constituintes Originário e Derivado, que poderiam ter optado, em sua liberdade de conformação, por restringir a competência do STF aos crimes praticados no exercício do mandato parlamentar e em razão do cargo, não o fizeram, não poderá o STF, guardião maior da Constituição, fazê-lo.

[...] sou favorável às regras de prerrogativa de foro, pois entendo que, em uma Federação complexa e marcadamente desigual como a brasileira, quem deve julgar as autoridades máximas do país não deve ser o poder local, no caso, os juízes de primeira instância, mas sim um órgão da Nação brasileira. A Constituição escolheu o Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Poder Judiciário do país, para desempenhar esse mister. (grifos no original)

João Paulo Martinelli também entende que o tema é matéria afeta ao Poder Legislativo: “somente uma Emenda Constitucional pode modificar o alcance do foro por prerrogativa de função, por isso é temeroso o ativismo judicial que invade a atribuição do parlamento” (É PRECISO RESTRINGIR, 2019).

Thiago Turbay Freiria (2018) é outra voz a defender a atuação única do Poder Legislativo: “[n]ão obstante haver concordância desses autores quanto à necessidade de

(32)

restringir a prerrogativa de função a todos os poderes instituídos, estamos certos de que a parametrização normativa deve ter coerência e ser feita pelo único legitimado, o Legislativo”.

Demais disso, parte considerável dos estudiosos entende que o Supremo Tribunal carece de legitimidade quando realiza mutação constitucional em hipótese na qual somente cabível a alteração pela via da emenda constitucional. Nesse sentido: Gabriela Mafra e Cláudio Ladeira de Oliveira (2019).

A propósito, decisões inovadoras dos Tribunais, notadamente da Corte Suprema, que, para além dos aspectos jurídicos, enveredam-se em fundamentos políticos, são denominadas pela doutrina como movimento ativista dos juízes, o qual, utilizando retórica neoconstitucionalista, fere a separação dos poderes e insere o Poder Judiciário no fenômeno da judicialização da política, o que é incompatível com o Estado Democrático de Direito (MAFRA; OLIVEIRA, 2020).

Há que consignar a lição clássica de Mauro Cappelletti (1993, p. 26) sobre os limites da atuação judicial:

Criatividade jurisprudencial, mesmo em sua forma mais acentuada, não significa necessariamente “direito livre”, no sentido de direito arbitrariamente criado pelo juiz do caso concreto. Em grau maior ou menor, esses limites substanciais vinculam o juiz, mesmo que nunca possam vinculá-lo de forma completa e absoluta.

Sobre os prejuízos ao processo penal e ao Estado Democrático de Direito que um juiz ativista pode trazer, Aline Pires de Souza Machado de Castilhos e Roberta Eggert Poll (2018) compreendem que um julgador que amolda a lei de acordo com a decisão que deseja ver concretizada nos autos, viola a segurança jurídica, e não serve ao processo penal, que requer um julgador estritamente imparcial e vinculado aos ditames constitucionais, em especial ao contraditório e a ampla defesa.

Ainda no campo científico, também foi possível constatar que, para alguns, a decisão-paradigma aqui debatida representa exemplo do "Consequencialismo Jurídico". Georges Abboud (2018) esclarece que:

O entendimento foi adotado numa tentativa de racionalizar o “combate a impunidade”, seja pelo fato de as instâncias inferiores estarem supostamente submetidas a menores pressões políticas ou pela primazia de uma tramitação mais célere dos processos.

Aqui a régua do “combate à corrupção” não combinou com a Constituição Federal, que não deu ao foro por prerrogativa de função o desenho pretendido pela maioria vencedora do Supremo. Ou seja, o STF alcançou resultado interpretativo distinto do texto constitucional, com o argumento eficientista de que haveria aí maior eficiência no combate à corrupção (original sem grifos).

(33)

Em complemento, Marcelo Lessa Bastos (2020) afirma que o Poder Judiciário, com esta iniciativa pontual, praticou “ativismo judicial interpretativo”, no qual “o julgador decide da forma como quer, ainda que encontre uma solução não contemplada pelas diversas alternativas de intepretação honestas da norma em análise”.

Há, registre-se, um estágio mais avançado de ativismo, sobremaneira deletério ao Estado Democrático de Direito. A evolução do “magistrado ativista” é encontrada na doutrina sob a figura dos “juízes partisans” ou militantes, presentes no Estado de exceção, onde “se revela a tensão máxima entre poder, violência e Estado de Direito, abrindo as portas de uma lacuna pela qual pode passar o real do sistema penal” (CASTRO, 2017).

Matheus Felipe de Castro (2017) dispõe que os limites do partisan foram fixados com mais profundidade por Carl Schmitt, em seus “Teoria do Partisan” e “O conceito do político”, dando seguimento aos estudos de Nicolau Maquiavel. Sintetizando o pensamento do autor alemão, destaca que:

O partisan combate de forma irregular, ou seja, fora das regras estabelecidas para a própria guerra porque ele não é um simples soldado, mas um partidário, um militante, um guerrilheiro tomado por uma ideologia ou meta política que o diferencia de um soldado regular. [...] O partisan é partidário. Ele possui interesse direto no combate. [...] O seu intenso engajamento político o distingue de outros tipos de combatentes regulares. (grifos no original)

Portanto, ao levantar a “bandeira” do “combate à corrupção”, e (re)interpretar normas constitucionais cujo texto, desde o nascedouro, passava conteúdo claro, revela-se imperioso avaliar se o Supremo Tribunal Federal agiu conforme a Constituição e dentro de sua esfera de competência, sem invadir terreno que não lhe é próprio.

Por outro lado, há também aqueles que, na linha dos dizeres do Ministro Luis Roberto Barroso, argumentam que a Suprema Corte apenas efetuara interpretação restritiva e histórico-evolutiva da norma do artigo 53, §1º. É a posição de Vladimir Passos de Freitas e de Carolina Reis Jatobá Coêlho.

Aliás, Freitas (2018) menciona que idêntico proceder ocorreu quando o Supremo reconheceu aos homossexuais a possibilidade de casarem-se, mesmo havendo norma dispondo ser reconhecida a união estável entre homem e mulher.

Defendendo ser possível a mutação constitucional em sentido técnico realizada pelo Supremo Tribunal, Carolina Reis Jatobá Coêlho (2018) expõe que, diante da mudança na realidade fática não prevista pelo constituinte originário, aliada ao fato de que o modelo, tal

(34)

como vinha sendo aplicado, refletia a falência do instituto, implicando em consequências práticas negativas, o caso exigiria leitura conforme a Constituição, sendo possível concluir que:

[O] STF não legislou, apenas identificou a dissociação entre disposição e norma, caracterizada pela incidência de outras normas e princípios-normas, como o princípio republicano e da igualdade, de modo que pôde afastar a literalidade do texto que não condizia com a teleologia do instituto, dando-lhe interpretação restritiva, para preservar o sentido original da garantia de prerrogativa de foro.

Por fim, convém lembrar que, versando exatamente sobre a restrição da prerrogativa de foro, tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição n. 333, de 2017, atualmente em andamento na Câmara dos Deputados (BRASIL, 2017a).

4.2 A DECISÃO DA SUPREMA CORTE VIOLOU O PRINCÍPIO DA IGUALDADE?

Vozes favoráveis ao entendimento firmado pela maioria do Plenário do Supremo Tribunal Federal entendem que a novel decisão fortaleceu o princípio da igualdade, uma vez que a restrição do foro especial colocaria todos os cidadãos, independente do cargo que ocupam, sob o julgamento na mesma vara criminal comum (GODOY, 2018).

Na outra direção, todavia, caminha o entendimento de que o foro por prerrogativa de função não significa uma concessão de privilégios para os detentores, mas sim uma garantia para o melhor desempenho do cargo, sendo, pois, imprescindível neste Estado Democrático de Direito. Nesse sentido vai a clássica lição de Hélio Tornaghi (1959, p. 56):

Não há foro especial para conde, barão ou duque; para Jafet, Café ou Mafé; não existe acepção de pessoas; a lei não tem preferências nem predileções. Mas leva em conta a dignidade da função, a altitude do cargo, a eminência da posição. Se a pessoa deixa a função, perde a prerrogativa, que não é sua, mas dela.

Nesta mesma linha leciona Gustavo Henrique Badaró (2016, p. 248), para quem o foro por prerrogativa de função “[n]ão se trata de um benefício ou privilégio da pessoa, mas de uma situação diferenciada em respeito e em decorrência do cargo exercido. Não é privilégio do indivíduo, mas prerrogativa do cargo, em razão da relevância da função pública exercida”.

A posição imediatamente acima foi endossada pelo Ministro Dias Toffoli, o qual afirmou que “a prerrogativa de foro não tem como objetivo favorecer aqueles que exercem os cargos listados, mas garantir a independência do exercício de suas funções, além de evitar manipulações políticas nos julgamentos e a subversão da hierarquia”, de modo que “[a]

(35)

prerrogativa de foro tem como objetivo maior assegurar que haja o máximo de imparcialidade nos julgamentos” (BRASIL, 2018e).

4.3 A DECISÃO DA SUPREMA CORTE ATENDEU AOS PRINCÍPIOS DA CELERIDADE E DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO?

É inegável que um dos maiores argumentos invocados pelo Ministro Relator Luis Roberto Barroso para restringir o foro especial foi o de que a remessa dos autos à primeira instância traria um julgamento mais célere, evitando o reconhecimento de tantas prescrições (BRASIL, 2018e).

O Relator discursou, também, que o sistema atual contribuiu para o congestionamento dos tribunais, exemplificando que, em estudo realizado, concluiu-se que o recebimento de denúncia no Supremo levaria, em média, 581 (quinhentos e oitenta e um) dias (BRASIL, 2018e).

A despeito disso, não é consenso entre os estudiosos que a remessa dos autos à primeira instância trará, efetivamente, redução do tempo médio de tramitação dos processos.

Aliás, a cobrança por um processo penal rápido, capaz de acompanhar a hiperaceleração social vivenciada nas últimas décadas, pode pulverizar as mais basilares garantias constitucionais. Aury Lopes Junior (2018) assevera que:

Vivemos em uma sociedade hiperacelerada, regida pela velocidade, vão dizer, com algumas variações conceituais, mas com um mesmo núcleo fundante, Bauman, Virillo, Morin, Pascal Bruckner, Comte-Sponville e os principais pensadores contemporâneos. Estamos imersos numa narcose dromológica, sedados pelo instantâneo e o imediato, onde qualquer demora, por menor que seja, nos causa um imenso sofrimento. Nessa perspectiva de hiperaceleração, é claro que o processo penal “também” é filho da flecha do tempo.

[...] O problema é que o fetiche da velocidade e da aceleração é muito forte, por qualquer ângulo que se mire, mas é especialmente forte no viés economicista, eficientista e utilitarista que tanto exige do processo penal. É talvez a mais cruel das “acelerações” que o processo penal pode sofrer, pois implica grave violação e restrição de direitos e garantias fundamentais. (grifei)

O Brasil é país continental, e as diferenças estruturais também se evidenciam nas dezenas de Tribunais espalhados por todos os cantos. Logo, nos rincões deste país, existem muitas varas criminais sem o mínimo de estrutura de gestão dos procedimentos criminais, o que dirá então quando começarem a receber as complexas ações penais envolvendo as autoridades detentoras do foro por prerrogativa de função.

(36)

Essa crítica é endossada por Douglas Rodrigues da Silva (2017), o qual assevera que o problema da suposta impunidade, muito pelo contrário, tenderia a aumentar após a decisão do Supremo, haja vista as dificuldades que teria um juiz do interior do país, de vara única, para processar e julgar esta contenda. O que deveria existir seria um amplo movimento em prol do crescimento de toda a estrutura do Poder Judiciário.

O que se vê é um problema crônico de falta de estrutura física e humana não apenas no Poder Judiciário, mas também nas polícias, nos institutos de perícias criminais, no Ministério Público e nas Defensorias Públicas, capazes de fazer frente às demandas levadas à justiça.

4.4 A DECISÃO DA SUPREMA CORTE VIOLOU O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL?

O princípio constitucional do juiz natural está previsto no artigo 5º, inciso LIII, que dispõe: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.

Em importante trabalho correlacionando o foro por prerrogativa de função e os princípios da igualdade e do juiz natural, Paula Bajer Fernandes da Costa (2001, p. 68) sintetizou que:

As regras de competência servem ao estabelecimento anterior do juiz natural e colaboram para que não haja tribunais de exceção, como, aliás, é vedado na Carta Política (art. 5.º, XXXVII). A Constituição, quando cria os foros por prerrogativa de função, está desigualando para garantir a imparcialidade.

Sobre o respeito ou não do princípio em exame pelo Supremo Tribunal, a divisão de posicionamentos no âmbito da doutrina e da jurisprudência é muito clara: aqueles que entendem ser possível a interpretação restritiva do texto constitucional (posição de Luis Roberto Barroso, de Vladimir Passos de Freitas e de Carolina Reis Jatobá Coêlho) defendem que não houve violação ao referido princípio, pois, como já visto, tratar-se-ia de mera interpretação evolutiva dos dispositivos.

Por sua vez, há aqueles que argumentam que o artigo 53, §1º, da CF/883 é claro,

dispensando quaisquer interpretações, no sentido de que os deputados e os senadores, desde a expedição do diploma, e independente da espécie de crime ou do momento de sua prática, serão processados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal (posição defendida por Dias Toffoli,

3 O dispositivo narrado tem o seguinte teor: “Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. § 1º Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal”.

Referências

Documentos relacionados

Assim sendo, a. tendência assumida pela pós - graduação em co- municação nos anos 60 contribuiu muito menos para melhorar e.. Ora, a comunicação de massa , após a Segunda Guerra

Portanto, mesmo percebendo a presença da música em diferentes situações no ambiente de educação infantil, percebe-se que as atividades relacionadas ao fazer musical ainda são

Dessa forma, o presente tópico pretende analisar questões basilares acerca da relação jurídica que se forma entre o causídico, que atua na qualidade de profissional liberal, e

As pontas de contato retas e retificadas em paralelo ajustam o micrômetro mais rápida e precisamente do que as pontas de contato esféricas encontradas em micrômetros disponíveis

Esta pesquisa discorre de uma situação pontual recorrente de um processo produtivo, onde se verifica as técnicas padronizadas e estudo dos indicadores em uma observação sistêmica

Dakle svi otoci i kopno od narecene Lini- je prema Zapadu i Jugu a koji nisu u vlasnistvu bilo kojeg krscanskog princa ili kralja do ove godine 1493.. po

As pessoas que compõem a equipe, de oito componentes, são formadas, em sua maioria, por profissionais de comunicação, tendo apenas dois de outras habilitações

Efeito do DHA sobre o dano celular isquêmico: Apoptose neuronal, infiltração microglial e astrócitos reativos nas regiões corticais e subcorticais em ratos submetidos