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A SUPREMA CORTE COMETEU USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DA FUNÇÃO

No documento LEANDRO AMBROS GALLON (páginas 31-34)

3 O NOVO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO: EMBASAMENTO

4.1 A SUPREMA CORTE COMETEU USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DA FUNÇÃO

A Constituição da República de 1988 dispõe sobre o foro por prerrogativa de função em variados dispositivos: no artigo 27, §1º (Deputados Estaduais); 29, inciso X (Prefeitos); 53, §1º (Deputados Federais e Senadores da República); 96, inciso III (juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, e membros do Ministério Público); 102, I, “b” e “c” (Presidente da República; Vice-Presidente; Ministros do STF; Procurador-Geral da República; Ministros de Estado; Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica; membros dos Tribunais Superiores; membros do Tribunal de Contas da União; e chefes de missão diplomática de caráter permanente; entre outros (BRASIL, 1988).

É por essa razão que respeitável corrente entende que a Suprema Corte, ao reinterpretar o artigo 53, §1º, da CF/88 e restringir o foro especial dos parlamentares federais, invadiu competência típica do Poder Legislativo, porquanto somente emenda constitucional poderia atuar desta maneira. O Ministro Dias Toffoli (BRASIL, 2018e) é um dos defensores da impossibilidade da interpretação restritiva da prerrogativa de foro instituída pela Constituição Federal, ponderando, em seu voto-vista, que:

Como os Poderes Constituintes Originário e Derivado, que poderiam ter optado, em sua liberdade de conformação, por restringir a competência do STF aos crimes praticados no exercício do mandato parlamentar e em razão do cargo, não o fizeram, não poderá o STF, guardião maior da Constituição, fazê-lo.

[...] sou favorável às regras de prerrogativa de foro, pois entendo que, em uma Federação complexa e marcadamente desigual como a brasileira, quem deve julgar as autoridades máximas do país não deve ser o poder local, no caso, os juízes de primeira instância, mas sim um órgão da Nação brasileira. A Constituição escolheu o Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Poder Judiciário do país, para desempenhar esse mister. (grifos no original)

João Paulo Martinelli também entende que o tema é matéria afeta ao Poder Legislativo: “somente uma Emenda Constitucional pode modificar o alcance do foro por prerrogativa de função, por isso é temeroso o ativismo judicial que invade a atribuição do parlamento” (É PRECISO RESTRINGIR, 2019).

Thiago Turbay Freiria (2018) é outra voz a defender a atuação única do Poder Legislativo: “[n]ão obstante haver concordância desses autores quanto à necessidade de

restringir a prerrogativa de função a todos os poderes instituídos, estamos certos de que a parametrização normativa deve ter coerência e ser feita pelo único legitimado, o Legislativo”.

Demais disso, parte considerável dos estudiosos entende que o Supremo Tribunal carece de legitimidade quando realiza mutação constitucional em hipótese na qual somente cabível a alteração pela via da emenda constitucional. Nesse sentido: Gabriela Mafra e Cláudio Ladeira de Oliveira (2019).

A propósito, decisões inovadoras dos Tribunais, notadamente da Corte Suprema, que, para além dos aspectos jurídicos, enveredam-se em fundamentos políticos, são denominadas pela doutrina como movimento ativista dos juízes, o qual, utilizando retórica neoconstitucionalista, fere a separação dos poderes e insere o Poder Judiciário no fenômeno da judicialização da política, o que é incompatível com o Estado Democrático de Direito (MAFRA; OLIVEIRA, 2020).

Há que consignar a lição clássica de Mauro Cappelletti (1993, p. 26) sobre os limites da atuação judicial:

Criatividade jurisprudencial, mesmo em sua forma mais acentuada, não significa necessariamente “direito livre”, no sentido de direito arbitrariamente criado pelo juiz do caso concreto. Em grau maior ou menor, esses limites substanciais vinculam o juiz, mesmo que nunca possam vinculá-lo de forma completa e absoluta.

Sobre os prejuízos ao processo penal e ao Estado Democrático de Direito que um juiz ativista pode trazer, Aline Pires de Souza Machado de Castilhos e Roberta Eggert Poll (2018) compreendem que um julgador que amolda a lei de acordo com a decisão que deseja ver concretizada nos autos, viola a segurança jurídica, e não serve ao processo penal, que requer um julgador estritamente imparcial e vinculado aos ditames constitucionais, em especial ao contraditório e a ampla defesa.

Ainda no campo científico, também foi possível constatar que, para alguns, a decisão- paradigma aqui debatida representa exemplo do "Consequencialismo Jurídico". Georges Abboud (2018) esclarece que:

O entendimento foi adotado numa tentativa de racionalizar o “combate a impunidade”, seja pelo fato de as instâncias inferiores estarem supostamente submetidas a menores pressões políticas ou pela primazia de uma tramitação mais célere dos processos.

Aqui a régua do “combate à corrupção” não combinou com a Constituição Federal, que não deu ao foro por prerrogativa de função o desenho pretendido pela maioria vencedora do Supremo. Ou seja, o STF alcançou resultado interpretativo distinto do texto constitucional, com o argumento eficientista de que haveria aí maior eficiência no combate à corrupção (original sem grifos).

Em complemento, Marcelo Lessa Bastos (2020) afirma que o Poder Judiciário, com esta iniciativa pontual, praticou “ativismo judicial interpretativo”, no qual “o julgador decide da forma como quer, ainda que encontre uma solução não contemplada pelas diversas alternativas de intepretação honestas da norma em análise”.

Há, registre-se, um estágio mais avançado de ativismo, sobremaneira deletério ao Estado Democrático de Direito. A evolução do “magistrado ativista” é encontrada na doutrina sob a figura dos “juízes partisans” ou militantes, presentes no Estado de exceção, onde “se revela a tensão máxima entre poder, violência e Estado de Direito, abrindo as portas de uma lacuna pela qual pode passar o real do sistema penal” (CASTRO, 2017).

Matheus Felipe de Castro (2017) dispõe que os limites do partisan foram fixados com mais profundidade por Carl Schmitt, em seus “Teoria do Partisan” e “O conceito do político”, dando seguimento aos estudos de Nicolau Maquiavel. Sintetizando o pensamento do autor alemão, destaca que:

O partisan combate de forma irregular, ou seja, fora das regras estabelecidas para a própria guerra porque ele não é um simples soldado, mas um partidário, um militante, um guerrilheiro tomado por uma ideologia ou meta política que o diferencia de um soldado regular. [...] O partisan é partidário. Ele possui interesse direto no combate. [...] O seu intenso engajamento político o distingue de outros tipos de combatentes regulares. (grifos no original)

Portanto, ao levantar a “bandeira” do “combate à corrupção”, e (re)interpretar normas constitucionais cujo texto, desde o nascedouro, passava conteúdo claro, revela-se imperioso avaliar se o Supremo Tribunal Federal agiu conforme a Constituição e dentro de sua esfera de competência, sem invadir terreno que não lhe é próprio.

Por outro lado, há também aqueles que, na linha dos dizeres do Ministro Luis Roberto Barroso, argumentam que a Suprema Corte apenas efetuara interpretação restritiva e histórico- evolutiva da norma do artigo 53, §1º. É a posição de Vladimir Passos de Freitas e de Carolina Reis Jatobá Coêlho.

Aliás, Freitas (2018) menciona que idêntico proceder ocorreu quando o Supremo reconheceu aos homossexuais a possibilidade de casarem-se, mesmo havendo norma dispondo ser reconhecida a união estável entre homem e mulher.

Defendendo ser possível a mutação constitucional em sentido técnico realizada pelo Supremo Tribunal, Carolina Reis Jatobá Coêlho (2018) expõe que, diante da mudança na realidade fática não prevista pelo constituinte originário, aliada ao fato de que o modelo, tal

como vinha sendo aplicado, refletia a falência do instituto, implicando em consequências práticas negativas, o caso exigiria leitura conforme a Constituição, sendo possível concluir que:

[O] STF não legislou, apenas identificou a dissociação entre disposição e norma, caracterizada pela incidência de outras normas e princípios-normas, como o princípio republicano e da igualdade, de modo que pôde afastar a literalidade do texto que não condizia com a teleologia do instituto, dando-lhe interpretação restritiva, para preservar o sentido original da garantia de prerrogativa de foro.

Por fim, convém lembrar que, versando exatamente sobre a restrição da prerrogativa de foro, tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição n. 333, de 2017, atualmente em andamento na Câmara dos Deputados (BRASIL, 2017a).

No documento LEANDRO AMBROS GALLON (páginas 31-34)