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Jan-Jun/2008 Fontes. Históricas. Os extraditados: os orientais Moisés e Francisco

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Academic year: 2021

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orientais escravizados

ilegalmente na província

de São Pedro do Rio Grande do Sul

(décadas de 1850 e 1860)

Jônatas Marques Caratti**

Resumo

Este artigo tem o objetivo de analisar a participação do consulado uruguaio na causa de liberdade de negros orientais que foram vítimas do tráfico ilegal pela fronteira. Mais especificamente, tentaremos demonstrar como os negros orientais conseguiam retornar para seu país de origem, quais indivíduos participavam destas conquistas e que argumentos utilizavam para a libertação dos mesmos. As fontes utilizadas foram correspondências do consulado uruguaio, processos criminais (APERS) e ofícios emitidos pelo Ministério das Relações Exteriores (AHRS).

Palavras-chave: Tráfico pela fronteira. Consulado uruguaio. Cidadania. Solo livre. Liberdade. The extraditates: the activity of the Uruguayan consulate in the libertation of the illegally

enslaved blacks in the province of São Pedro do Rio Grande do Sul (1850’s and 1860’s)

Abstract

This article objective is analysing Uruguay embassy participation in cause of black oriental liberty were victim of illegal traffic by the border. We are trying to prove how the black oriental people got to return to their origin country whom people to took part in that conquests and what arguments used to liberty of them. The sources used were correspondence from Uruguay embassy, criminal process (APERS) and trades issued by Brasil’s Ministry of Foreign Affairs (AHRS).

Key words: Traffic by the border. Uruguay embassy. Citizenship. Freedom land. Freedom.

Os extraditados: os orientais Moisés e Francisco

Em junho de 1862, o vice-cônsul da República Oriental, Manoel Montaño, enviou uma carta ao delegado de polícia a qual trazia o seguinte conteúdo:

Ilustríssimo Senhor Delegado de Polícia = Constando ao infra-escrito que o negro Moisés que se acha recolhido em cadeia pública, e o da mesma cor Francisco, que se acha no hospital, foram violentamente arrebatados do território da República, Departamento de Taquarimbó, lugar denominado Querino, com o fim de serem vendidos neste país [Brasil] como efetivamente o foram ao Sr. Honório Luís da Silva por Venceslau José Gomes, e logo recendida a venda, talvez por conhecimento que teve o Sr. Honório da origem viciosa de semelhante escravidão. E constando-lhe mais ao abaixo assinado que Moisés está com passaporte para ser remetido para o Rio de Janeiro, se apressa a pedir a Vossa Senhoria se sirva obstar a remessa do referido indivíduo, e proceder com justiça as indagações necessárias a fim de que recaia o peso da lei sobre o autor ou autores de semelhante atentado. = Deus guardea Vossa Senhoria. 1

Não era a primeira vez que o delegado de polícia de Pelotas recebia ofícios do consulado uruguaio para tratar de assuntos de tráfico de negros orientais. Desde o início da

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década de 1850, diversos casos chegaram à polícia com o objetivo de investigar, primeiro, se de fato a vítima que vivia em cativeiro ilegal era de nacionalidade uruguaia, e segundo, se a escravização fora premeditada com o fim de tráfico.

Moisés e Francisco foram vítimas do tráfico ilegal pela fronteira e, por pouco, o primeiro não foi parar no Rio de Janeiro, onde o tratamento físico dados aos escravos era extremamente violento. As fazendas de plantação de café tinham um compromisso de produção em larga escala, o que aumentava a pressão sobre o trabalho escravo.2 Mas a tempo, as autoridades foram comunicadas e o vice-cônsul pode intervir em sua liberdade.

O interessante é que o caso de Moisés e Francisco não foi o único revolvido pelas autoridades uruguaias. Durante as décadas de 1850 e 1860, a Justiça brasileira abriu diversos processos com o fim de identificar a real naturalidade das vítimas do tráfico. Isso porque de certa forma, o tráfico não ocorria somente com negros orientais, mas também com crioulos e africanos residentes na província de São Pedro. Identificar a nacionalidade do sujeito era uma das primeiras ações das autoridades, que buscavam evitar problemas diplomáticos com seus vizinhos republicanos. Na maioria das vezes, os negros orientais que viviam em cativeiro ilegal na província conseguiam retornar para seu país como cidadãos uruguaios, ou seja, como homens livres.

No entanto, esse retorno era marcado profundamente pela ação de curadores uruguaios, e em alguns casos pelo próprio consulado da República Oriental do Uruguai. Os curadores e chefes políticos uruguaios utilizavam um conjunto de argumentos baseados no solo livre e na cidadania para convencer as autoridades brasileiras da real liberdade dos mesmos. Com essas constatações, elaboramos algumas perguntas: Como os negros orientais conseguiam retornar para seu país de origem? Quem os representava? Que argumentos utilizavam as autoridades uruguaias para tê-los de volta?

Na primeira parte deste artigo, mostraremos como ocorriam os seqüestros de negros orientais, como funcionavam as rotas de tráfico ilegal pela fronteira, quem eram os participantes e alguns de seus destinos. Após a apresentação de alguns aspectos do tráfico, passaremos para uma segunda parte, quando identificaremos os personagens envolvidos na causa de liberdade dos negros orientais escravizados ilegalmente. Finalmente, abordaremos o conjunto de conceitos utilizados pelas autoridades uruguaias com o fim de extraditarem seus cidadãos.

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Os traficados: características do tráfico ilegal de negros orientais pela fronteira

Antes de explorarmos como se dava a extradição dos negros orientais escravizados ilegalmente na província, é importante entendermos o funcionamento do tráfico, para que possamos localizar as experiências vividas por traficantes e negros orientais num contexto mais amplo.

O fim do tráfico internacional de escravos decretado em quatro de setembro de 1850, pela Lei Euzébio de Queirós, impactou a organização da escravidão no Império, levando senhores, pequenos negociantes e traficantes a criarem estratégias para obtenção de cativos. Cabe salientar que o sistema de plantations adotado no vale da Paraíba tinha por objetivo a coleta e a produção em larga escala, movidos pelo próprio mercado internacional. Uma das alternativas criadas foi o tráfico interprovincial. Esse consistia, basicamente, em vender os escravos de regiões menos produtivas e direcioná-los para locais de economia mais ampla.3

É nesse contexto, da criação de alternativas para a distribuição de cativos pelo Império que, em meados de 1850, começam a ocorrer pela fronteira rio-grandense a introdução de negros orientais destinados ao comércio de escravos. Esses casos não só geraram desconfortos diplomáticos entre a República e o Império, como trouxeram mudanças sociais na própria organização da escravidão na província. Em outras palavras, a entrada destes negros orientais no Rio Grande do Sul deixou diversos senhores de escravos em dúvida sobre a condição social (cativa ou liberta) dos escravos que estavam adquirindo. Isso pode ser percebido nos diversos testemunhos de senhores rio-grandenses dados à Justiça sobre traficantes que ofereciam aos mesmos tais cativos.4

Muita correspondência foi produzida em torno destas questões, e mesmo os jornais estamparam em suas primeiras páginas, casos de orientais que estavam reduzidos ao cativeiro. Mas o que nos interessa neste momento, é compreender como funcionava este tráfico aos olhos dos próprios envolvidos. Por isso, será interessante darmos a palavra a Moisés, nosso conhecido do início do texto, que estava num iate enfrentando o perigo de ser vendido como escravo ao Rio de Janeiro.

Segundo seu depoimento

estando [ele] em Taquarimbó nos matos do mesmo arroio cortando taquaras com o seu companheiro Francisco, a dois meses mais ou menos, ali lhe aparecera o pardo de nome Prudêncio residente no Estado Oriental, falando-lhes para irem com ele fazer uma tropa em Mata-olho, ao que anunciou ao seu companheiro Francisco, e dirigindo-se os três a uma mangueira próxima do mato para pegarem cavalos, ali foram intimados por dito Prudêncio, e mais seus três companheiros que n’ aquele ato

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apareceram de nomes Manoel Mitro, Antônio (conhecido por Nico) e Manoel grande, que à ordem do Tenente Comissário Childes os acompanhassem presos [...] e dali fomos conduzidos a direção da linha divisória, passaram para este lado[...] e seguindo em direção a povoação de D. Pedrito, em Santa Maria, nossos condutores esperavam a noite, quando nos fizeram entrar para a povoação, onde nos entregaram ao senhor Daniel Garcia de Vasconcellos, e ali [...] postos em ferros, e no [dia] seguinte fomos conduzidos por dois indivíduos [...] para esta cidade, onde fomos entregues ao Senhor Venceslau José Gomes, quem de nós fez venda ao senhor Honório Luiz da Silva.5

Moisés foi surpreendido, juntamente com seu companheiro Francisco, por alguns homens que se diziam enviados pelo Tenente Comissário Childes. Certamente, Moisés atendeu este chamado por ser ele um guarda nacional e que por certo, não desobedeceria tais ordens. Mas ao que tudo indica, Moisés e Francisco foram enganados e acabaram sendo vendidos como escravos. Neste caso, tivemos acesso ao depoimento da mãe de Moisés, que buscando libertar o filho do cativeiro ilegal forneceu o seguinte testemunho:

seu filho, o dito Moisés, foi nascido na República Oriental, e ali batizado, no Departamento de Taquarimbó, na costa do mesmo Arroio no lugar denominado Passo do Querino, tempo este em que a declarante existia no domínio de seu senhor Manoel Machado Cardoso, o qual na revolução daquele país de colorados e brancos, imigrou para esta província, trazendo em sua companhia a declarante e o dito seu filho Moisés, e dois ou três anos depois tomou a voltar o dito Machado levando em sua companhia seu filho, residindo no Departamento de Taquarimbó, até esta data. Declarou mais que, seu filho Moisés gozou de todo este tempo dos direitos de sua liberdade, na qualidade de súdito oriental e como tal considerado Guarda Nacional comandado pelo Tenente Comissário Miguel Childes.6

Florência, apesar de liberta no tempo do interrogatório, informou que na época do nascimento de seu filho Moisés, servia como escrava a Manoel Machado Cardoso. Em 1838, segundo o registro de batismo, nascera Moisés, que foi batizado somente no ano de 1841. Nesse ano, a República do Estado Oriental do Uruguai ainda não havia abolido a escravidão e Moisés nascia como cativo, devido à própria condição de sua mãe.

Mas em meio à Guerra Grande, um conflito entre brancos e colorados, a família Cardoso imigrou entre 1841 e 1842 para o Rio Grande do Sul – na companhia de seus escravos - em busca de segurança. Coisa que não sabemos se encontraram, devido a Guerra dos Farrapos que ocorria desde 1835 na província. Outra possibilidade que não podemos refutar, é que Manoel Machado Cardoso tivesse imigrado da província para não perder a posse de seus cativos, já que pouco depois foi abolida a escravidão no Uruguai, em dezembro de 1842. Ainda assim, a família Cardoso permaneceu no Rio Grande cerca de três anos, e depois voltaram para o departamento do Taquarimbó, em companhia ainda de sua escrava Florência e de seu filho Moisés, que na época tinha cerca de oito anos.

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É interessante notar que no depoimento de Florência, a mesma deixa claro que “seu filho Moisés gozou de todo este tempo dos direitos de sua liberdade, na qualidade de súdito oriental e como tal considerado guarda nacional”. Isso indica que tanto Florência como Móisés, apesar do cativeiro, viviam como pessoas livres. Mas além de interessante, essa história nos faz pensar sobre algumas questões pontuais. Apesar de se autodenominarem livres, seu senhor, Manoel Machado Cardoso não concordava com essa condição. Foi por isso que tentou capturar Moisés e vendê-lo a diversas pessoas. Tê-lo destinado ao Rio de Janeiro pode indicar que Cardoso quisesse “desaparecer” com Moisés, já que encontrara barreiras para vendê-lo nesta província.

Outra questão é o próprio movimento da família Cardoso pela fronteira. Apesar de também ser uma “linha demarcatória”, como o próprio Moisés nos revela, a fronteira era também um espaço construído pelos próprios indivíduos que viviam entre as duas regiões.

Moisés e Francisco depois de apreendidos no Estado Oriental do Uruguai foram vendidos a Honório Luís da Silva. Mas antes que Honório percebesse que tais escravos eram de condição liberta, os mesmos trataram de fugir, não permanecendo passivos frente a seu cativeiro ilegal. Manoel Machado Cardoso, mesmo assim, conseguiu encontrá-los e certamente usou da violência física para agarrá-los. Esses indícios podem ser mais bem percebidos na própria carta que o vice-cônsul enviara ao delegado de Pelotas, informando que “foram violentamente arrebatados” e que o preto Francisco tivera, inclusive, de ser levado ao hospital.

Por sorte, como mostramos no início, Moisés foi encontrado dentro de um iate com um passaporte destinado ao Rio de Janeiro, e através da ação do vice-cônsul uruguaio pôde ser depositado no consulado e devolvido ao seu país. Mas nem sempre as coisas eram facilmente identificadas. Em alguns casos, havia uma especialização maior no tráfico, uma espécie de despistamento jurídico, que tinha por objetivo vender negros orientais a diversas pessoas, não permitindo, assim, a policia localizar os destinos dos negros orientais. Isso poderá ser melhor verificado a partir do próximo caso.

Reina Rodrigues tinha 26 anos, era preta, nascida no Uruguai, filha de um africano da Mina e de uma crioula oriental. Reina também passou pela experiência do tráfico ilegal pela fronteira e testemunhou suas experiências ao Juiz de São Leopoldo:

no domingo a noite, vinte seis de março deste ano [1854], estando ela fazendo a ceia na cozinha de sua casa, foi esta invadida por três indivíduos armados de espadas e pistolas. Um que parecia o chefe, Laurindo Costa, era branco e brasileiro, os outros dois, Vitor de tal e Belarmino Soares, também brancos e brasileiros. Além destes,

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estava afastado da casa um outro indivíduo, um tal Cardoso, mestiço de índio, brasileiro, residente no Estado Oriental. O qual Cardoso tinha preso perto de si um rapaz, crioulo, chamado Pancho. Entrando esses três indivíduos, Laurindo, Vitor, e Belarmino, na cozinha as diversas pessoas da casa que ali haviam fugiram assustadas, menos um, filho da casa, de nome Marcos o qual puxou uma faca, mas dando-lhe Laurindo Costa uma pranchada com um sabre o atirou por terra; também tentou resistir Pedro Tiolino, dono da casa, mas Laurindo da Costa lhe disparou um tiro que ela interrogada não sabe se o feriu ou o matou. Tentando ela interrogada ir para o interior da casa, foi seguida pelos três citados indivíduos que a agarraram e a tiraram para fora da casa. Na mesma ocasião tiraram um filho dela de nome Cândido o qual o citado Vitor o mandou para diante no seu cavalo e ela montou na garupa do cavalo em que estava o rapaz Pancho; dessa maneira e acompanhado dos quatro indivíduos mencionados foram caminhando [...] dai marcharam pela noite adiante até o passo chamado de Dona Thanazia nos pontos do arroio das palmas de cujo lugar se separaram [...] e amanheceram no potreiro de Marcelino dos Santos, que trouxe charque, milho cozido e um queijo. [...] Continuando de novo a marcha toda a noite, parando ao amanhecer do dia em um mato onde se conservaram seis dias privados de alimentos, por não querer Laurindo da Costa sair para fora, pois um indivíduo brasileiro o tinha vindo avisar que a polícia de Julião Paraguai andava em sua procura; marchando na sétima noite foram amanhecer no Taquarimbó ficando ela interrogada e seu filho Cândido, e o rapaz Pancho escondido no mato debaixo da guarda de Belarmino Soares [...] dai por diante continuaram a caminhar de noite até passarem por um povoado que ela ficou, e o chamado Vitor continuou a caminhada com os outros dois, marchando sempre de noite até chegarem a um lugar que ela interrogada não conhecia ,onde foram passados por uma barca de passagem entrando nela também os cavalos que dali seguiram até S. Leopoldo onde chegaram nesse mesmo dia, indo ficar na casa de um homem que ela julga chamar-se Felisbino Costa, irmão de Laurindo Costa, morador de Canguçu.7

Um pouco diferente das experiências de Moisés e Francisco, Reina e seu filho Cândido foram raptados em sua própria casa. Reina estava tranqüilamente servindo o jantar quando viu sua casa ser invadida por três homens que até aquele momento desconhecia. Foi perseguida pelos cômodos da casa, até que conseguiram agarrá-la, certamente, com violência. Seu filho que deveria estar escondido também foi encontrado e ambos foram levados para fora da casa. Lá havia cavalos e outro traficante vigiando. Neste ano de 1854, as autoridades policiais foram devidamente avisadas destes crimes cometidos no território da República, e certamente deviam estar atentos a tais atos. 8

Reina e seu filho viajaram a galope, sempre à noite, em companhia alerta de seus traficantes. Depois de alguns dias de viagem, pararam num potreiro de propriedade de Marcelino dos Santos. Ao que parece, foi um local já combinado pelos traficantes para permanecerem durante o dia, já que viajavam preferencialmente à noite. Tal local também pode ser entendido como uma rede de relações estabelecida pelos traficantes, a fim de poder levar os cativos com segurança.

Reina e Cândido foram levados a São Leopoldo, colônia alemã que proibia aos imigrantes o acesso ao trabalho cativo. 9 Mesmo assim, alguns traficantes encontravam

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intermediários que ofereciam ilegalmente esses negros orientais traficados pela fronteira. A viagem, das margens do Rio Negro até a colônia alemã durou 26 dias, segundo depoimentos da própria preta Reina. É importante notar o interesse destes alemães de adquirirem cativos. O próprio tráfico ilegal atlântico que ocorreu em 1852, na praia de Tramandaí, parece apontar para a mesma hipótese. O tráfico ilegal pela fronteira certamente só existia porque havia uma imensa procura por cativos e mão de obra na província.

O último caso é o da preta menor Faustina, a qual na época em que foi vítima do tráfico ilegal pela fronteira, estava com cerca de dez anos. Faustina foi raptada no ano de 1852, na vila de Melo, Departamento de Cerro Largo. Segundo os testemunhos de seu pai, Joaquim Antônio,

na noite do dia em que passou pelas imediações desta vila de regresso para o Brasil a coluna que comandava o Barão de Jacuí lhe foi avançada a sua casa por quatro homens armados que depois de have-los maltratados a ele e a sua esposa se foram levando-lhe sua filha Faustina e que como todos os quatro falavam em brasileiro se supunha a levassem para aquele país [...] disse [ainda] que a nenhum conhecia que para ele eram caras estranhas, e que só se pôs de fixar em um pardo a quem se aproximou mais por ser este um dos mais empenhados em levar sua filha, que sua estatura era regular, grosso de corpo, serrado de barba, seu cabelo chascudo[sic] sua cor pardo negro que todos eles traziam espada, poncho e panos, três de boné, e um de chapéu [...] e que a saída da sua casa tomaram a mesma direção que levou a coluna de Jaguarão.10

Tanto Joaquim Antônio como Joaquina Maria eram africanos e consideravam-se livres. Segundo o relato de Joaquim o rapto aconteceu na mesma noite em que passava uma coluna militar na região. Os quatro homens que invadiram a casa do africano Joaquim estavam fardados com roupas militares e usavam espadas. Certamente, utilizaram também da violência para apreender Faustina. Possivelmente, tinham alguma relação com a coluna militar, mesmo que não necessariamente o Barão de Jacuí fosse responsável por tal rapto.

Os quatro indivíduos falavam “brasileiro” e, para Joaquim, esse era o principal indício que comprovava o lugar para onde levariam sua filha. A direção que tomaram indica um lugar muito utilizado por traficantes: a vila de Jaguarão. Não sabemos por quais motivos Jaguarão se tornou parte da rota utilizada por traficantes, mas talvez, por ser uma região onde a passagem de colunas militares era freqüente, tornou-se um ponto de afluência e movimentação. 11

Faustina acabou indo mesmo para Jaguarão. Pois lá foi vendida como escrava a primeira vez e seguiu para Pelotas, onde serviu dois anos como escrava de um ferreiro muito conhecido na região, chamado Henrique Rockmann. O caso de Faustina só chegou à polícia porque um homem que não quis se identificar enviou um bilhete anônimo para o pai de

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Faustina, Joaquim Antônio. Assim, com as descrições necessárias, começaram as investigações sobre o rapto de Faustina.

Em mais ou menos quatro meses tudo foi resolvido. Mesmo que os réus tivessem sido absolvidos, Faustina conseguiu retornar para seu país de nascimento, depois que seus pais comprovaram, mediante o registro de batismo, o nascimento da mesma na vila de Melo, no ano de 1843, como pessoa livre. 12

As experiências passadas pela preta menor Faustina e seus pais, como temos demonstrado, foram freqüentes e compartilhadas por outros negros orientais. Os casos apresentados aqui ocorreram em meados da década de 1850 e nos primeiros anos da década de 1860, período em que, na documentação, foram encontrados de forma mais sistemática. Não que os casos de tráfico ilegal pela fronteira não houvessem acontecido antes de 1850, mas é justamente, nesse período que tais casos se multiplicraam e se tornaram, inclusive, tema de disputas diplomáticas entre a República e o Império.

Tanto os pretos Moisés e Francisco, como a preta Reina, o crioulo Cândido e a preta menor Faustina, passaram por experiências semelhantes, pois foram sequestrados com o fim de serem vendidos na província comoescravos. Os quatro acabaram sendo vendidos, e alguns chegaram a Pelotas, Rio Grande e São Leopoldo, vilas de economia diversificada, mas que necessitavam de braços cativos.

Porém, em todos os casos aqui apresentados, percebemos uma forte ação de curadores, chefes políticos, cônsules e vice-cônsules uruguaios na libertação dos negros orientais. Essas ações, no entanto, precisam ser compreendidas no contexto político pelo qual passava a República uruguaia. A mesma década de 1850 em que ocorrem os casos de tráfico pela fronteira é aquela na qual o Império assina cinco tratados com o Uruguai, visando o controle e ingerência nas terras orientais.13 Estariam curadores, chefes-políticos, cônsules e vice-cônsules lutando na Justiça pelos negros orientais como forma de construir sua identidade nacional, de se tornar um Estado independente de fato? Estas reflexões poderão ser melhor pensadas na próxima parte, quando exploraremos o papel dos participantes na libertação dos negros orientais escravizados ilegalmente na província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Os representantes: chefes políticos, cônsules e vice-cônsules

Os negros livres orientais, apesar de suas liberdades aparentes, estavam residindo num país extremamente escravista. Assim, era prioritário que fossem representados por alguém perante a Justiça. Na historiografia da escravidão, existem trabalhos que estudam as ações de

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liberdade, onde escravos são representados na Justiça por curadores interessados em argumentar ao seu favor no tribunal.14 Porém, numa sociedade escravista algumas vezes os cativos encontravam barreiras para conseguir tal representação, porque na maioria das vezes era necessário pagar por tal serviço.

No caso do trafico ilegal pela fronteira e dos negros orientais, vítimas de tal fato, percebemos novos atores sociais neste cenário: os funcionários do consulado uruguaio. Mas quem eram esses indivíduos? Onde residiam? Quais suas atribuições?

Esses eram cidadãos, remetidos ao estrangeiro, com o fim de representar diversas questões e assuntos diplomáticos que interessassem aos dois países. Na província de São Pedro do Rio Grande do Sul, havia diversos cônsules e vice-cônsules que moravam em certas vilas com o fim de resolver questões de extradição, soltura de prisioneiros, negócios etc.

Esta presença de consulados no Império se torna mais visível no seguinte aviso dado pelo Ministério dos Estrangeiros

Havendo diversos agentes diplomáticos residentes nesta corte, representando por vezes ao Governo Imperial reclamando a soltura dos súditos de suas respectivas nações que nas províncias tem sido indevidamente recrutados para o Exército ou a Marinha Imperial, e convindo evitar todas as delongas prejudiciais desses estrangeiros assim violentados, quando nesta província de dêem casos semelhantes e apareça algum cônsul ou vice-cônsul reclamando a soltura do seu compatriota e comprovando competentemente sua nacionalidade [...] expeça logo as necessárias ordens para ser posto em liberdade o indivíduo reclamado.15

Os conflitos diplomáticos em alguns casos estavam na raiz de guerras e disputas maiores. Nesse sentido, não era interessante andar em pé de guerra com os vizinhos territoriais e o papel do consulado era, justamente, mediar a paz entre os países e evitar conflitos maiores. Mas nem sempre as relações exteriores andavam tranqüilas, pois muitas vezes os cônsules e vice-cônsules não eram bem vistos pelos políticos locais, por irem contra os interesses dos mesmos.

Rafael Peter de Lima, ao estudar as lutas diplomáticas entre autoridades brasileiras e cônsules uruguaios em virtude do tráfico de negros orientais, encontrou uma variada documentação, indicando que em meados do século XIX, Brasil e Uruguai viviam uma conjuntura política muito delicada. Segundo Lima,

assim ocorreu com o vice-cônsul oriental em Jaguarão, José Benito Varella, que havia assinado documentos declarando serem livres alguns negros escravizados por terem nacionalidade uruguaia. [...] Em jornal da cidade é publicado um artigo contendo claras ameaças ao vice-cônsul. Diz o texto: “Esperamos que o Sr. Varella, se compenetrará de que tem errado, e que de hora em diante evitará a reprodução desses erros, e remediará os que têm praticado, sob pena de ter de passar por alguns dissabores se assim o não fizer”. 16

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Isso mostra que os casos de tráfico ilegal pela fronteira, apesar de serem reconhecidos como crime pelo vice-cônsul, não eram assim percebidos pela política local, pois atrapalhava os interesses de se alcançar altos lucros com a venda de escravos na província. Ainda segundo Lima, “os diplomatas uruguaios estavam investindo contra interesses poderosos que se ancoravam no modelo escravista brasileiro e que possuíam articulações com diversos setores da sociedade.” 17

Segundo as correspondências enviadas, ficamos sabendo que havia vice-cônsules uruguaios em diversos lugares da província, não somente em Porto Alegre, mas em Jaguarão e Pelotas, locais estratégicos, onde encontramos diversos casos de tráfico na documentação pesquisada.

Nos casos apresentados anteriormente, é muito perceptível a ação do consulado uruguaio na libertação de Moisés, Francisco, Faustina, Reina e Cândido. Com certeza, sem a ação dos vice-cônsules uruguaios, esses negros orientais teriam muitas dificuldades em conseguir suas liberdades. Isso fica claro no seguinte documento:

Transmito a Vossa Senhoria o incluso translado que me foi remetido pelo Exmo. Sr. Presidente da Província como ofício nº. 5 de 28 de fevereiro último, a fim de que Vossa Senhoria fazendo as necessárias diligencias sobre a veracidade do rapto da preta menor de nome Faustina, que se acha nesta cidade reduzida a escravidão , e é reclamada a sua extradição como pessoa livre , pelo chefe político do Departamento do Serro Largo, do Estado vizinho, proceda logo contra os seus autores no caso de afirmativo dando-me parte do ocorrido para ser levado ao conhecimento da presidência, conforme se ordena. Deus guarde a Vossa Senhoria. Rio Grande, 7 de março de 1854. Joaquim José da Cruz Peres.18 [grifos nossos]

Isso demonstra que os pedidos dos chefes políticos uruguaios eram levados em conta, ao ponto de serem devidamente respondidos e rapidamente resolvidos. Algo importante, citado no aviso do Ministério das Relações Exteriores, é que os cônsules e vice-cônsules deveriam comprovar “competentemente [...] a nacionalidade” de seus “compatriotas”. Ou seja, a única forma de extraditar um negro oriental que tivesse sido vítima do tráfico ilegal pela fronteira, era apresentar seus registros de batismo, onde comprovaria seu nascimento no Estado Oriental do Uruguai.

Ficou claro, por intermédio da documentação apresentada e dialogada com a bibliografia especializada, que os negros orientais eram representados perante a Justiça por chefes políticos, cônsules e vice-cônsules que usavam da diplomacia para recuperar a liberdade dos seus súditos que viviam em cativeiro ilegal na província.

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Os argumentos: conceitos de solo livre e cidadania

As autoridades uruguaias, ao intervirem na Justiça brasileira pelos negros orientais escravizados, utilizavam argumentos sustentados em diversos conceitos que possibilitavam à República certas reivindicações perante o Império. Nesse momento veremos alguns destes conceitos, a partir das correspondências do consulado uruguaio.

Keila Grinberg, ao analisar ações de liberdade levadas à Justiça por escravos que diziam ser livres, mostrou a importância dos curadores na representação de suas causas, bem como os argumentos levados ao Tribunal pelos mesmos. 19

Nos processos que encontramos no Arquivo Público do Rio Grande do Sul, chefes políticos, cônsules e vice-cônsules uruguaios enviavam aos delegados de polícia e em alguns casos ao Juiz de direito, diversas cartas contendo discurso abolicionista e de defesa territorial. Esses profissionais, para convencer as autoridades brasileiras, apostavam na condição livre das vítimas, utilizando diversas vezes as expressões “cidadão uruguaio”, “súdito uruguaio”, “homem livre”, “filho da nação” etc. Porém, essa liberdade dos negros orientais, defendida pela República uruguaia precisa ser compreendida no contexto da ingerência brasileira em terras orientais. 20

Para compreendermos a participação do consulado uruguaio nas questões de defesa dos negros orientais escravizados ilegalmente, utilizaremos dois casos que revelam como as autoridades uruguaias se apropriavam de argumentos com o fim de alcançar a libertação dos negros orientais.

O primeiro caso é o de Policarpo, “um pretinho de 12 anos” que se suspeitava ser livre, por ter ele nascido no Estado Oriental do Uruguai e que fora encontrado a bordo de um iate no qual seguiria para Porto Alegre, para ser vendido como escravo. Numa correspondência enviada pelo vice-cônsul ao delegado, o mesmo disse que

me denunciaram que a bordo do iate Bumba, que se acha no porto desta cidade para seguir para Porto Alegre (talvez amanha) se acha um pretinho de 12 anos de nome Policarpo que é livre, o qual consta que o trouxe do Estado Oriental um sujeito de nome Sebastião Leal Cardoso, curandeiro ou cirurgião, e que vendera em Pelotas ou em caminho para Porto Alegre. Vou rogar a Vossa Senhoria, se digne ordenar que o referido seja depositado neste vice-consulado ou em casa dos senhores Mendonças para se tomar conhecimento da verdade, e inquirirem se as testemunhas que o conhecem do Estado Oriental, onde parece que nascera. Deus guarde a Vossa Senhoria – Vice Consulado da República Oriental do Uruguai, Pelotas 7 de janeiro de 1866. José Vieira Pimenta, Vice-Cônsul. 21 [grifos nossos]

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O vice-cônsul José Vieira Pimenta havia recebido uma denúncia de que a bordo de um iate chamado de ‘Bumba’, atracado no porto da cidade, estava um pretinho chamado Policarpo que havia nascido no Estado Oriental do Uruguai e que foi trazido pelo seu antigo senhor, Sebastião Cardoso Leal, para ser vendido na cidade. Policarpo iria ser vendido como escravo para Porto Alegre, se não fosse à ação do vice-cônsul José Pimenta. Ainda em tempo, conseguiu juntamente com o delegado de Pelotas, levá-lo ao vice-consulado, de onde o remeteria em tempo oportuno. Abaixo a carta enviada pelo delegado:

Sendo me requisitado pelo vice-cônsul Oriental José Vieira Pimenta o depósito do menor de cor preta Policarpo como cidadão oriental, que na qualidade de cativo o tinha Domingos Francisco Duarte, patrão e dono do M. Comércio, pela compra que fizera a Sebastião Cardoso Leal, procedi em conformidade da requisição fazendo de ter o menor Policarpo em poder daquele vice - cônsul, mando os esclarecimentos que remito para que Vossa Senhoria proceda como for de Justiça. De tudo dei parte ao Sr. Dr. Chefe de polícia, bem como da existência de Sebastião Leal na freguesia do Arroio Grande no Fundo de Jaguarão. 15.01.1866 – Delegado de Pelotas para o Sr. Juiz Antônio José Garcez.22 [grifos nossos]

Estaria o vice-cônsul designando Policarpo como cidadão oriental para com maior certeza ganhar a causa? Seria Policarpo um cidadão oriental de fato, ou era assim chamado para dar mais poder ao pedido do consulado? Essas questões podem tomar forma a partir do próximo e último caso apresentado.

Para o caso da preta menor Faustina, apresentado ainda no início desse texto, as autoridades uruguaias produziram diversas cartas, justificando o rápido pedido de extradição da mesma e utilizando variados argumentos para convencimento das autoridades brasileiras. Por isso, seu caso se torna especial, pois nos fornece a oportunidade de perceber como os chefes políticos e cônsules construíram sua defesa e, principalmente, que conceitos utilizaram para alcançar seus objetivos.

O chefe político José Maria Morales, na tentativa de comprovar que Faustina era nascida livre e não cativa, enviou uma carta ao delegado de polícia de Pelotas, Dr. Ouvideo Fernando Trigo Loureiro, com o seguinte conteúdo:

Para satisfazer em devida forma a exigência de vossa senhoria, solicitando a comprovação de que a referida negrinha nasceu de ventre-livre, adjunto a Vossa Senhoria em cópia legalizada a lei de sete de setembro de mil oito centos e vinte cinco, que proclamou a liberdade de ventre e a vinte um de janeiro de mil oito centos e trinta que foi ato legislativo complementário ao primeiro. Depois da primeira lei se sancionou a Constituição da República cujo artigo cento e trinta e um diz assim: no território do Estado ninguém nascerá escravo, fica proibido para sempre seu tráfico e introdução na República. Vieram depois á proclamar a absoluta liberdade da raça de cor, antes escrava, as leis de doze de Dezembro de mil oito centos e quarenta e dois e a de vinte seis de Outubro de mil oito centos e quarenta e seis em cuja virtude se estipularão as condições pelas quais não podem trazer voluntariamente nem um homem de cor do território Brasileiro em qualidade de escravo sem ficar

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vertualmente[sic] livre de fato e de direito desde que pise em nosso território,por que ao pisa-lo segue a Constituição do suelo, digo, do solo. Com os documentos que acompanha intendo que ficará Vossa Senhoria suficientemente habilitado segundo sua deprecatória e os princípios de direito para formar o critério legal e em seu mérito dispor da extradição da negrinha Faustina, na forma solicitada na nota de vinte oito de março último e prosseguir em nome da humanidade. [O chefe político José Maria Morales ao Digníssimo Delegado de Polícia da cidade de Pelotas, Dr. Ouvideo Fernando Trigo Loureiro, em quatro de maio de mil oitocentos e cinqüenta e três.]23

O vice-cônsul José Maria Morales, não só enviou uma carta ao delegado de Pelotas pedindo a extradição da oriental Faustina, como mandou em anexo “uma cópia legalizada” das leis abolicionistas uruguaias. Estaria o vice-cônsul indicando que o delegado tomasse conhecimento das leis de seu país?

Mas Morales percebendo certa demora das autoridades brasileiras enviou outra correspondência para o delegado de polícia onde acusava o governo imperial de conivência:

Quando em mil oitocentos e cinqüenta e um apareceram as Armas do Império no território, trouxeram como é notório uma missão de paz, que era a exigência mais vetal[sic] de sua política de todos os aliados e seria uma injúria atroz dar lugar ou ocasião a supor que a causa dos Estandartes do Brasil poderiam encobrir crimes e desacato desta espécie. Denunciando uma vez o réu em tempo e em forma das leis brasileiras, abaixo assinado se persuade que a Majestade e o decoro ofendido da lei prepara o castigo merecido a um dobrado crime que principiou no território da República e se consumou no Império. Abaixo assinado aproveito para cumprimentar a Vossa Senhoria com as considerações de seu mais distinguido e cordial apreço. Deus o guarde a Vossa Senhoria muitos anos. José Maria Morales ao delegado de Pelotas.24

Parece que o caso de Faustina perpassou o crime de tráfico e escravização ilegal e tornou-se um embate político e diplomático entre a República uruguaia e o Império brasileiro. Chefes políticos, cônsules e vice-cônsules, além de intervirem nestes casos representando seu país, revelam em suas correspondências que haviam outras lutas além daquelas que defendiam. Segundo Eliane Zabiela, 30% das terras do Uruguai estavam nas mãos de rio-grandenses, o que permitia que o Império ingerisse na política uruguaia.25

A nosso ver, os conflitos diplomáticos entre província de São Pedro e Banda Oriental do Uruguai estavam, além de tráfico e escravização de negros orientais, baseados numa necessidade da República se autogerir, se libertar da ingerência brasileira, e poder construir sua própria identidade nacional.

Neste sentido, a utilização pelo governo oriental das designações ‘cidadão oriental’ e súdito oriental estavam muito mais vinculadas às questões que apresentamos acima, do que na realidade, de torná-los parte de um país, cidadãos de direito e de fato. Em outras palavras, os discursos abolicionistas uruguaios apresentados pelas autoridades tinham muito mais o

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objetivo de demarcar seu território perante o Império, do que apenas libertar os negros orientais do cativeiro ilegal na província.

No caso da cidadania na Argentina, a construção desta esteve ligada a critérios como gênero, nacionalidade e escolaridade. Isso definiria quem poderia ser ou não cidadão. Segundo Marta Bonaudo,

...el ciudadano el camino que se transitó partió de uma concepción amplia de la soberania del pueblo ya que siguiendo los crierios de universidad del voto sólo apelaron a lógicas de exclusión etareas, de gênero y de nacionalidad. Tal amplitud hacia más imperativa la necesidad de demilitar da condición del argentino.26

Ser argentino não era para qualquer um. Era uma designação carregada de sentido, de critérios estabelecidos por uma cultura política local. Assim, percebemos que ser cidadão era um caminho não aberto para todos. Segundo Bonaudo, alguns eram considerados habitantes da Argentina, outros, seus cidadãos.

Na época de Moisés, Francisco, Reina, Cândido e Policarpo, havia conflitos diplomáticos internos pelas questões de fronteira e demarcação entre a província de São Pedro e a Banda Oriental do Uruguai. Esses conflitos envolviam, também, uma questão antiga: os brasileiros que ocupavam o território oriental desde a Guerra Cisplatina. Assim, o momento que nossos protagonistas foram defendidos na Justiça era um período onde muitos outros casos parecidos tiveram o mesmo fim: a libertação do cativeiro ilegal e a extradição para o país de nascimento.

Não é de estranhar, portanto, que devido aos ânimos estarem conflituosos entre as duas regiões, os curadores usassem o argumento da cidadania e do solo livre, pois estavam querendo, a nosso ver, autonomia no sentido da construção de suas identidades nacionais. O conceito de cidadania, designado aos negros livres pelas autoridades uruguaias, não tinha um compromisso em considerá-los parte da nação, aptos aos direitos que recebiam os cidadãos. O conceito de cidadania tinha o objetivo de fixar territórios, identidades, numa época na qual a nação uruguaia era atacada pela ingerência brasileira.

Considerações finais

Nas décadas de 1850 e 1860, muitos casos chegaram à Justiça em torno da questão do tráfico ilegal pela fronteira e da escravização de negros orientais na província. Esses casos representavam questões mais amplas, que eram recorrentes da propriedade escrava de estancieiros rio-grandenses que por algum motivo haviam imigrado para o Estado Oriental do

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Uruguai, e posteriormente, retornaram à província com os mesmos cativos, além das crias nascidas no Uruguai. Os senhores rio-grandenses, que logicamente defendiam a propriedade privada, não aceitavam perder seus preciosos escravos por uma lei que vigorava no Uruguai, em alguns casos, decretada depois de sua entrada naquele país.

Mas o fato é que casos muito complexos chegavam perante o Tribunal, e a própria designação do crime cometido era delicada de ser compreendida pelas autoridades. Isso porque havia dois sub-elementos nesta questão: aqueles escravos que eram nascidos na província de São Pedro, ou africanos adquiridos naquelas terras, que imigraram para o Uruguai em companhia de seus senhores. Esses, ao retornarem à província, posteriormente, pediam à Justiça suas liberdades mediante o tempo que passaram trabalhando no Uruguai, um país de homens livres. Nesses casos, o conceito utilizado pelos vice-cônsules era o do solo livre, o qual mostrava que, dentro da nova jurisdição uruguaia, todo escravo que pisasse no território da república se tornaria livre.27

Mas havia um segundo caso: eram os filhos destes escravos rio-grandenses que haviam nascido em terras orientais, batizados nesse mesmo país na época que seus senhores lá permaneciam. Esses, portanto, eram de naturalidade uruguaia, e não poderiam ser escravizados ilegalmente por terem nascido em um país livre. Nesse sentido, o conceito utilizado pelas autoridades uruguaias era outro, pois o argumento era o de escravizar um cidadão oriental, um homem livre.

Apesar da população escrava no Uruguai não ser tão expressiva, havia também aqueles negros que nasceram no Uruguai por serem descendentes diretos de crioulos orientais. Estes se encaixariam também nesse segundo caso. Pois, se os primeiros se tratavam de escravos rio-grandenses que haviam passado pelo Uruguai, e conseguiam a liberdade a partir do conceito de solo livre, os segundos adquiriam a liberdade pelo fato de terem nascido em terras orientais, assim, sendo cidadãos dela.

A nosso ver, essas experiências vivenciadas por nossos protagonistas eram diversificadas e isso se demonstrou na prática na documentação pesquisada. Foi perceptível a forma como as autoridades uruguaias viam o escravo rio-grandense, e como lhe davam a liberdade. Mas parece que ao se tratar de um negro oriental, batizado e registrado em terras uruguaias, os vice-cônsules se apropriavam de um imaginário social tratado anteriormente: que a República não queria ser comandada por um país opressor e autoritário onde existia escravidão.

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Todos os casos apresentados aqui foram selecionados em meio à massa documental, por se tratarem de negros orientais que conseguiram a liberdade, sendo representados na Justiça por chefes políticos, cônsules e vice-cônsules que utilizavam argumentos variados para ganhar suas causas. No entanto, existem outros casos nos quais, escravos rio-grandenses foram vítimas desse mesmo tráfico quando serviam seus senhores em terras uruguaias e percebemos que o consulado não interviu da mesma forma quanto aos negros orientais.

Não podemos desprezar, no entanto, que os próprios negros orientais tenham se manifestado contra a escravização ilegal e terem, por meio de seus próprios recursos, conseguido a liberdade. Preferimos focar nesse artigo, as ações do consulado uruguaio para a libertação dos negros orientais e não pudemos conseguir registros, como as ações de liberdade, que apresentassem os próprios orientais ganhando sua causa sem auxílio de curadores.

Mas isso é uma questão em aberto, que poderá ser mais bem explorada nas próximas pesquisas sobre esse tema. De qualquer forma, quisemos contribuir para essa temática, demonstrando a participação do consulado uruguaio na libertação dos negros orientais, vítimas do tráfico e escravizados ilegalmente na província e, também, mostrar os conceitos utilizados pelas autoridades uruguaias, permitindo, por um lado, convencer as autoridades da real liberdade de seus súditos e, por outro, tentar desvincular a ingerência brasileira em suas terras, em busca da liberdade política e da soberania territorial.

** Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS. Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto

Staudt Moreira. Bolsista CNPq.

1APERS, Pelotas, Cartório Júri, Processo-Crime, Maço: 14, Nº. Processo: 608, 1862. 2

COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. p. 69 – 72.

3 Sobre tráfico interprovincial ver: MOTTA, José Flávio. Escravos daqui, dali e de mais além: o tráfico interno

de cativos em Constituição (Piracicaba), 1861-1880. Revista Brasileira de História, v. 26, p. 15-47, 2006; GRAHAN, Richard. Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil. Revista

Afro-Ásia, nº. 27, 2002; PENA, Eduardo Spiller. Burlas à lei e revolta escrava no tráfico interno do Brasil

Meridional, século XIX. In: LARA, Sílvia Hunold e MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (orgs). Direitos e

justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas: Editora da Unicamp, 2006; SCHEFFER, Rafael da

Cunha. Tráfico interprovincial e comerciantes de escravos em Desterro, 1849-1888. Florianópolis, UFSC, 2006. (Dissertação de mestrado)

4APERS, Pelotas, Cartório Júri, Processo-Crime, Maço: 20, Nº. Processo: 789, 1856. O réu Miguel Antônio Paes

tentou vender o preto Joaquim a Joaquim Monteiro, um português que vivia de negócios em Pelotas. Segundo seu relato, “vendo ele que o menor falava o castelhano o chamou para o interior da casa, e ali aquele menor pôs-se a chorar dizendo que era livre e que o queriam vender”.

5APERS, Pelotas, Cartório Júri, Processo-Crime, Maço: 14, Nº. Processo: 608, 1862. Depoimento do preto

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6APERS, Pelotas, Cartório Júri, Processo-Crime, Maço: 14, Nº. Processo: 608, 1862. Depoimento da mãe de

Moisés, a preta liberta Florência. A mesma conseguiu sua liberdade mediante o pagamento de 400 patacões em prata a Manoel Machado Cardoso.

7APERS, São Leopoldo, Cartório Cível e Crime, Processo-Crime, Maço: 57, Nº. Processo: 2914, 1854. 8AHRS, Relatório do Presidente da Província, João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu, 1854.

9Ver as dissertações de ALVES, Eliege Moura. Presentes e Invisíveis: escravos em terras de alemães (São Leopoldo, 1850-1870). São Leopoldo: PPG História/Unisinos, 2004. OLIVEIRA, Vinícius Pereira de. De Manoel de Congo a Manoel de Paula: a trajetória de um africano ladino em terras meridionais – Séc. XIX. São Leopoldo: PPG História/Unisinos, 2006.

10APERS, Pelotas, Cartório Júri, Processo-Crime, Maço: 10ª, Nº. Processo: 442, 1854. 11

Segundo Franco, Jaguarão era sede da guarda militar e base de operações do Império. FRANCO, Sérgio da Costa. Origens de Jaguarão. Caxias do Sul: UCS, 1980. p. 63.

12 Registro de batismo anexado ao processo: “No dia quatro de abril de mil oitocentos e quarenta e sete o dito D.

Thomas Lhobeu, Vice-Cura, batizou solenemente e pôs os santos óleos a uma menina que chamou Faustino, que disseram ter três anos, filha natural da preta Maria Joaquina, natural da Costa da África, e vizinha desta vila. Foram padrinhos Dom Izideo Frondoy, natural de Tucuman e sua esposa Clara Vaz, natural do Brasil e vizinhos desta paróquia, e para que conste o firmo, José Revendos.”

13 Estas questões foram abordadas por ZABIELA, Eliane. A presença brasileira no Uruguai e os tratados de 1851 de comércio e navegação, de extradição e de limites. Porto Alegre: PPGH Universidade Federal do Rio

Grande do Sul, 2002. (Dissertação de mestrado)

14KEILA, Grinberg. Liberata, a lei da ambigüidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação no Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

15

AHRS, Avisos do Ministério de Estrangeiros, B1-28. (26/01/1854)

16 LIMA, Rafael Peter de. Escravidão e liberdade na região fronteiriça Brasil Uruguai (Séc. XIX). VIII Encontro

Regional de História. Caxias do Sul: ANPUH/RS, 2006. (Cd-Rom) Jornal citado: Echo do Sul, Ano 2, Jaguarão,

nº. 115, Sábado, 15 de agosto de 1857. Outros trabalhos do autor: LIMA, Rafael Peter de. Violência na Fronteira: o seqüestro de negros do Estado Oriental (Séc. XIX). In: IV Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Anais: produzindo história a partir de fontes primárias/ org. Márcia Medeiros da Rocha. Porto Alegre: CORAG, 2006. LIMA, Rafael Peter de. O poder do sistema escravista e as redes de tráfico terrestre na fronteira do Brasil Meridional (meados do séc. XIX). Anais do XXIV Simpósio Nacional de

História. São Leopoldo: Unisinos, 2007. (Cd-Rom); LIMA, Rafael Peter de. Conivência com o tráfico: as

autoridades brasileiras e uruguaias e as escravizações na fronteira. IX Encontro Estadual de História. Porto Alegre: ANPUH/RS, 2008.

17LIMA, 2006, p.9. 18

APERS, Pelotas, Cartório Júri, Processo-Crime, Maço: 10ª, Nº. Processo: 442, 1854. (primeira correspondência anexa ao processo)

19GRINBERG, 1994, p. 63-70.

20“A consolidação do Estado Oriental foi muito dificultada pela presença de súditos brasileiros que lá viviam

como se o Uruguai fosse um apêndice do Brasil. A presença destes indivíduos, muitas vezes avessos às leis locais, gerou problemas de natureza diversas, que já vinham desde antes da Campanha da Cisplatina e tiveram sua fase de aglutinação nas décadas de 1850 e 1860, quando o número de brasileiros no Uruguai aumentou e a ingerência do Brasil Imperial na República Oriental também”. (ZABIELA, 2002, p. 16)

21

APERS, Pelotas, Cartório Júri, Processo-Crime/Autuação, Maço: 18, Nº. Processo: 715, 1866.

22 APERS, Pelotas, Cartório Júri, Processo-Crime/Autuação, Maço: 18, Nº. Processo: 715, 1866. 23 APERS, Pelotas, Cartório Júri, Processo-Crime, Maço: 10ª, Nº. Processo: 442, 1854.

24APERS, Pelotas, Cartório Júri, Processo-Crime, Maço: 10ª, Nº. Processo: 442, 1854. 25

ZABIELA, 2002, p. 24.

26

BONAUDO, Marta. La libertad de opinión y el honor de los hombres. Diálogos entre lo público y lo privado (Santa Fe, 1850 – 1890) Las escalas de la historia comparada: dinámicas sociales, poderes políticos y sistemas jurídicos Tomo I. (p. 2)

27

“no território do Estado ninguém nascerá escravo, fica proibida para sempre seu tráfico e introdução na República” e “não podem trazer voluntariamente nenhum homem de cor do território brasileiro em qualidade de escravo sem ficar livre de fato e de direito desde que pise em nosso território, porque ao pisá-lo vale a lei do solo”. (13/12/1842) Sobre a noção de solo livre, ver: GRINBERG, Keila. A Fronteira da Escravidão: a noção de “solo livre” na margem sul do império brasileiro. In: III Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Florianópolis: UFSC, 2007. (Cd-Rom)

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