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Do masoquismo da mulher ao semblante 1 Joana Maia Simoni

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Academic year: 2021

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Do masoquismo da mulher ao semblante1 Joana Maia Simoni

Em 1954, o romance erótico História de O é publicado e, surpreendentemente, torna-se um best-seller. Hoje em dia, é considerado um clássico da literatura francesa e, ao mesmo tempo, referência erótica sadomasoquista. A história por trás da história é, como veremos, de especial interesse para nós. Anne Desclos, com o pseudônimo de Pauline Réage, teria escrito História de O como resposta a um desafio proposto por seu amante, Jean Paulhan, quem inclusive prefacia o romance. Paulhan era, na época, não só o editor da Nouvelle Revue Française, de Gaston Gallimard, como também um reconhecido escritor, que já havia prefaciado 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade.

Conta-se que, em uma conversa entre os amantes, Paulhan havia duvidado da capacidade de uma mulher de escrever literatura erótica de boa qualidade e é justamente a isso que Anne Desclos passa a dedicar-se. Ela escreve inúmeras cartas eróticas e as envia a seu amante, com o intuito de instigá-lo e surpreendê-lo. Ao final, é por Paulhan incentivada a escrever e a publicar um romance completo, que recebe o título de História de O.

O é uma fotógrafa de moda que mora em Paris com seu amante René. O romance tem início com O e René em um carro; René ordena a O que tire suas roupas íntimas e entre em um castelo afastado da cidade, onde ela deve fazer tudo o que lhe pedirem. O consente e obedece. Ali sofre todos os tipos de suplício: é violentada, chicoteada, açoitada, enfim, completamente violada por seu amante e outros homens que ali estão. Entretanto, nada é feito à sua revelia. E, apesar de lhe ser permitido partir a qualquer momento, O permanece, consentindo e obedecendo a tudo que lhe é impingido. A cada vez, ao lado do sentimento de pavor experimentado pela personagem, revela-se pouco a pouco um prazer ainda mais intenso.

Antes de tudo, é preciso que sejam feitas algumas ressalvas. A primeira delas é que O é uma personagem literária e, nesse sentido, não se trata aqui de propor diagnósticos ou tomá-la como um caso clínico. Estamos, antes, seguindo o conselho freudiano e interrogando os poetas – no caso uma – sobre a feminilidade. A segunda ressalva é que, longe de acreditar ser possível uma resposta a este enigma, apostamos, no entanto, que a história de O e Desclos possa nos ensinar algo a                                                                                                                          

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respeito da posição feminina e de suas relações com o masoquismo. Ressalvas feitas, que peculiaridades haveria na posição assumida por O? Por que O consente em fazer-se tão radicalmente objeto do Outro? O que estaria, de fato, em jogo para ela?

Em Fetichismo2, Freud faz uma análise da estrutura perversa que nos auxilia a

pensar as relações entre o masoquismo e a feminilidade. O fetiche, nos diz Freud, é um substituto para o pênis da mulher e, mais especificamente, da mãe. Trata-se daquele pênis que fazia de sua mãe uma mãe fálica, crença que o sujeito não deseja abandonar. O fetichista, deste modo, recusa-se a tomar conhecimento da castração materna, na medida que isso implica sua própria castração. É do desejo do Outro que o fetichista nada quer saber.

No momento da constituição do fetiche, as coisas se passam da seguinte maneira: a criança percebe a ausência do pênis na mãe e nega o fato, fixando sua atenção no que observa imediatamente antes do órgão feminino. Daí a prevalência de sapatos, pés e roupas íntimas enquanto objetos-fetiches. No entanto, ressalta Freud, não se trata na perversão de uma negação absoluta da castração. A castração se inscreve para o sujeito, mas ocorre uma recusa (Verleugnung) da mesma. O objeto fetiche representa tanto a recusa da castração quanto sua inscrição.

Vemos, de início, que a perversão é uma estrutura que se refere fundamentalmente a uma posição masculina, uma vez que constitui uma tentativa masculina de negação da castração feminina. Mas, como entender as relações sadomasoquistas heterossexuais — tal como descritas por Sade ou Sacher Masoch — que, à primeira vista, parecem ser compostas por um homem e uma mulher perversos?

No belíssimo livro Sacher Masoch: o frio e o cruel3, Deleuze traz importantes

contribuições para pensarmos a perversão sadomasoquista. Nesta obra, ele traça um paralelo entre Sade e Sacher Masoch, escritores clássicos que tiveram — em decorrência de suas obras literárias — seus nomes utilizados por Krafft Ebing para designar as perversões sadismo e masoquismo respectivamente.

Deleuze nos mostra que o fato de o homem ser perverso — seja sádico ou masoquista — não implica necessariamente que a mulher com quem ele se relaciona e encena sua perversão também o seja. A unidade da perversão sadomasoquista no par sexual seria somente uma suposição. No Seminário 23, Lacan menciona                                                                                                                          

2 FREUD, S. (1927). Fetichismo. vol. XXI, Rio de Janeiro: Imago, 1976, (Edição Standard Brasileira). 3 DELEUZE, G. Sacher-Masoch: o frio e o cruel, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.

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brevemente o sadomasoquismo pai-filho como a única forma possível de sadomasoquismo: “O sadismo é para o pai, o masoquismo é para o filho. Freud, de todo modo, tentou se desprender desse sadomasoquismo. Esse é o único ponto onde há uma relação suposta entre o sadismo e o masoquismo”4.

Tal como qualquer relação sexual, a relação sexual perversa também não existe e sádicos e masoquistas não fazem um. Para ilustrar seu argumento, Deleuze relembra a famosa anedota que explicita, ainda que grosseiramente, a impossibilidade do encontro entre essas duas posições. O masoquista pediria ao sádico: “Bata em mim”, ao que o sádico responderia: “Não bato”. Um masoquista não convém a um carrasco sádico, por isso um sádico jamais aceitaria uma vítima masoquista.

Em A Angústia5, Lacan afirma que o masoquista tem como objetivo declarado a

encarnação de si mesmo como objeto e o que ele busca é justamente esta identificação com o objeto, objeto comum, o objeto de troca. Entretanto, adverte-nos Lacan, o masoquista não alcança sua identificação como objeto. Tal como para o sádico, esta identificação só tem lugar por meio da cena. E essa cena, entretanto, mascara o que realmente é almejado pelo masoquista, que é justamente “no Outro, a resposta à queda essencial do sujeito em sua miséria suprema, essa resposta é a angústia”6. Essa angústia — ainda que velada — é sua ambição cega. Ou seja, mais

do que o gozo do Outro, o que visa o masoquista é a angústia do Outro.

Tais elaborações tornam evidente para nós que há algo de fundamentalmente masculino na perversão — tanto sádica quanto masoquista — que nos indica um caminho para pensarmos as relações entre a feminilidade e o masoquismo. Se estes dois termos se aproximam, tal aproximação se dá no registro da economia, do gozo. Há algo no modo de satisfação feminino, expresso particularmente na relação amorosa, que   — tal como nos ensinam O e sua criadora — parece possuir uma estranha intimidade com a satisfação masoquista, sem, no entanto, confundir-se com ela.

Freud aproximou desde cedo feminilidade e masoquismo; ainda que, ao final de seu ensino, tenha nos advertido para não estabelecermos tal equivalência entre os termos. Freud percebeu que havia aí um problema, um impasse, embora não dispusesse de instrumentos para resolvê-lo. A questão fica, pois, em aberto. Se, por                                                                                                                          

4LACAN, J.(1975-1976). O Seminário, livro 23: O Sinthoma, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p.

82.

5 LACAN, J. (1962-1963). O Seminário, livro 10: A Angústia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. 6

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um lado, Freud vislumbra entre os dois algo que lhe parece muito íntimo, que podemos circunscrever como a passividade e a posição objetal, por outro, parece-lhe que há, entre a feminilidade e o masoquismo, algo radicalmente distinto.

Em Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina, Lacan questiona: “Será que podemos nos fiar no que a perversão masoquista deve à invenção masculina, para concluir que o masoquismo da mulher é uma fantasia do desejo do homem?” 7. Interessante notar a escolha de Lacan pelo termo masoquismo

da mulher, em detrimento do conceito freudiano masoquismo feminino, cunhado, em

1924, para descrever as fantasias dos perversos masoquistas. Com efeito, Freud aproxima inúmeras vezes a feminilidade do masoquismo, chegando a afirmar que o masoquismo é feminino8. No entanto, ao fazê-lo, nunca faz uso do termo masoquismo

feminino, reservando este último unicamente à estrutura perversa. Os perversos

masoquistas é que encenariam uma posição feminina em suas fantasias levadas a cabo e não o contrário.

Em A Angústia9, Lacan explica a fantasia masculina do masoquismo da mulher

como decorrente da relação do homem com a falta. Na copulação, é o homem quem porta o órgão detumescente e é o homem quem, de fato, perde. Assim, sua relação com o desejo é marcada e complicada por esta falta (- φ). A fantasia acerca da mulher masoquista, assim, colocaria em cena uma mulher objeto que gozaria de ser o objeto de gozo sem os limites circunscritos pelo (- φ) que afeta o homem.

Como as mulheres não têm a mesma relação com a castração que os homens, uma vez que castradas, na acepção de privadas do falo, elas são desde a origem, elas se posicionam no jogo amoroso como quem não tem nada a perder. Assim, os sujeitos femininos têm sua relação com o falo marcada preponderantemente pela privação, pela presença da falta no real. No entanto, Lacan sublinha que no real mesmo nada lhes falta, de modo que a presença de uma falta no real nada mais é do que um efeito do simbólico, relativo a uma deficiência do simbólico no que diz respeito ao significante da mulher.

Voltemos à História de O. Ao longo do romance, fica claro que tudo que é feito por O é em nome do amor. Amor inicialmente devotado a René e, posteriormente, transferido para o “mestre” deste, Sir Stephen. O amor é, ao longo de todo o romance,                                                                                                                          

7 LACAN, J. (1960). Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina. Em: Escritos, Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 741.

8 FREUD, S. (1932). Feminilidade, vol. XXII, Rio de Janeiro: Imago, 1976, (Edição Standard Brasileira), p.

144.

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a justificativa de O para a posição que assume e para o gozo que dela extrai. Neste sentido, parece-nos que o gozo extraído e assegurado por sua posição tem menos a ver com a fruição da dor enquanto tal do que com o lugar que o amor ocupa para ela. E aqui, autor e personagem parecem se confundir.

Ao se propor a escrever literatura erótica como resposta ao desafio de seu amante, é curioso que Desclos tenha optado por um erotismo sadomasoquista, dentre tantas outras possibilidades. O objetivo de sua escrita endereçada parece ser justamente o de fisgar seu amante, capturá-lo em sua fantasia. No entanto, Desclos denuncia-se ao colocar em cena como personagem principal o amor. Seu amante, Paulhan, não se engana e percebe a que ou a quem ela visava. Escreve ele no prefácio do romance: “Talvez a História de O seja a mais impetuosa carta de amor que um homem já recebeu”10.

A escritora vai tão longe em sua empreitada que quase consegue nos fazer crer que a posição de O é de fato masoquista, quando, por exemplo, parece condicionar seu amor à crueldade de seu carrasco, uma vez que ela troca de amante, chegando a amar mais sir Stephen do que René, por ele ser ainda mais cruel. Ou ainda, quando descreve minuciosamente o prazer sentido por O no momento em que seu corpo é marcado com ferro quente com as iniciais de seu carrasco.

Interessante notar a escolha do nome da personagem, que nada mais é que — não uma inicial —, mas uma única letra, O. Pura borda, frágil, que circunscreve um vazio irredutível. O que quer uma mulher? História de O parece ser uma tentativa de resposta ao enigma da feminilidade. E porque ama, Desclos constrói O, caricatura extrema do gozo feminino endereçada à fantasia de seu amante referente ao masoquismo feminino. Fantasia essa por ele explicitada no prefácio do romance:

Finalmente uma mulher confessa! Confessa o quê? Aquilo que as mulheres nunca se permitiram confessar (ainda mais atualmente). Aquilo que os homens sempre criticaram nelas; que elas só obedecem ao seu sangue; que nelas tudo é sexo, até o espírito. Que elas precisam ser sempre alimentadas, lavadas, maquiadas, que precisam sempre apanhar. (...) Ou seja, é preciso levar um chicote quando se vai ao encontro delas11.

Somos, assim, levados do masoquismo feminino ao registro do semblante. Em

De Mujeres y Semblantes, Miller esclarece que a proposição lacaniana “a mulher não

existe” não quer dizer que o lugar da mulher não exista, mas, antes, que esse lugar permanece essencialmente vazio, a ser inventado. O que se encontrará nesse lugar,                                                                                                                          

10 REAGE, P. História de O, Rio de Janeiro, José Álvaro Editor, 2005, p. 20. 11

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no entanto, serão apenas máscaras, máscaras do nada. As mulheres, como propõe Miller, são aqueles sujeitos que possuem uma relação essencial com o nada. E, uma vez que o semblante tem a função por excelência de velar o nada, não é difícil vislumbrar a intimidade entre ele e as mulheres. Assim, para Miller uma “mulher verdadeira”, em sua relação com o homem, é aquela que permite ao homem se manifestar como desejante, assumindo o menos que lhe cabe, bem como os semblantes que jogam com esse menos12. Claro que, como todo sujeito, o homem

também recorre aos semblantes para velar o nada, no entanto, o semblante propriamente dito seria o feminino, que diz respeito particularmente à máscara da falta.

Vemos, deste modo, que O encontra-se a milhas de distância de uma posição perversa. Ela não quer, como o masoquista, dividir o Outro e causar a angústia em seu parceiro amoroso. Antes, ao fazer uso deste semblante, ela parece consentir com o gozo feminino e com o que há de mais peculiar na feminilidade: seu caráter de

nãotoda. E, para concluir, a passagem abaixo explicita muito bem que este oferecer-se

radicalmente como objeto para o Outro confere a ela uma experiência singular de corpo e de gozo:

Será que algum dia ela teria coragem de dizer a ele que nenhum prazer, nenhuma alegria, nenhuma imaginação, aproximava-se dessa felicidade proporcionada pela liberdade com a qual ele a usava, vinda do fato de que ele sabia que com ela não havia nenhuma precaução a tomar, nenhum limite à maneira pela qual ele podia buscar o prazer no corpo dela? A certeza que ela possuía de que, quando ele a tocava, fosse para acariciar ou para bater, quando ele ordenava alguma coisa, unicamente porque tinha vontade, a certeza de que ele só levava em consideração o seu próprio desejo, trazia uma satisfação a O que, cada vez que tinha a prova disso e, às vezes, até mesmo só de pensar, sentia abater-se sobre ela uma capa de fogo, uma couraça ardente que ia dos ombros até os joelhos. Ali, de pé contra a parede, de olhos fechados, murmurando eu o amo, quando não lhe faltava o ar (...)13.

Referências Bibliográficas

DELEUZE, G. Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.

FREUD, S. (1927). Fetichismo. vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1976, (Edição Standard Brasileira).

                                                                                                                         

12 Cf. MILLER, J-A. De Mujeres y semblantes, Buenos Aires: Paidós. 13

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LACAN, J. (1958). A Significação do Falo. Em: Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

__________ (1960). Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina. Em:

Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

__________ (1962-1963). O Seminário, livro 10: A Angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

__________ (1975-1976). O Seminário, livro 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.

MILLER, J-A. Uma partilha sexual. Em: Clique n. 2, Belo Horizonte, ago. 2003, pp. 12-29.

____________ De Mujeres y semblantes, Buenos Aires: Paidós.

____________ La Naturaleza de los Semblantes, Buenos Aires: Paidós, 2009. REAGE, P. História de O, Rio de Janeiro, José Álvaro Editor, 2005.

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