• Nenhum resultado encontrado

ENTREVISTA IMAGINÁRIA

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "ENTREVISTA IMAGINÁRIA"

Copied!
7
0
0

Texto

(1)
(2)

2 por Davi F azzolari Brevíssimos esclarecimentos FERNANDO PESSOA dedicou boa parte de seu tempo à produção de textos que bus -cavam explicar e até interpretar sua obra. Às vezes, na forma de carta, como é o caso da famosa Carta a Adolfo Casais

Monteiro, de 13 de janeiro de

1935; às vezes na fo

rma de ensaio, como em Sobre Portugal – Introdução ao problema nacional, ou arti-gos, como em Escritos íntimos , cartas e páginas autobiográf icas, publicados pela prim

eira vez na revista Presença , em junho de 1937. Dado o caráter enigmá -tico por on de alguns gostam de explorar a obra de Pessoa, todo esse material acabou por incor -porar-se ao

seu todo literário e integrar o “drama e

m gente”. Pois foi justamente

no interior desses textos que encontramos as respostas que Pessoa teria produzido

para uma entrevis -ta que faríamos já

no século XXI. Apesar de uma n ossa muito discreta insistência para que a entrevista

se reali -zasse no Martinho da Arcada1 , já que era o ponto de encon -tro dos mais hab ituais de Pessoa, o encontro se deu na Camponeza , leitaria da Baixa, loc

alizada à Rua dos Sapateiros, 155. E n ossa sede de glória foi logo ab andonada ante argumento de que na lei-taria talvez evitássemos mui-tas interrupções e alvoroço. Fernando Pessoa che-gou além

uma hora de nosso combinad

o. Chovia muito por volta das três

da tarde. Enquanto saudava-nos ofere-cia chapéu e capa aos cabides da entrada. Apro

ximou-se, já com gestos ao camareiro, que logo lhe serviria o habi -tual. De nosso lado, uma bica cheia2 muito quente acompa -nhada, como não poderia dei-xar de ser, de uma queijada de Sintra3.

ENTREVIST

A IMAGINÁRIA

UMA ENTREVIST

A IMAGINÁRIA COM RESPOST

AS PARA LÁ DE GENUÍNAS

1 Martinho da Arcada

: restaurante localizad

o no Terreiro do Paço , em Lisboa, onde costumavam se reunir importantes artistas e intelec -tuais do m ovimento m odernista p ortuguês. 2

Bica cheia: expressão usada em Lisboa para xícara de café. 3 Queijadas de Sintra:

muito consumidas n

aquela cidade e pare cem ter origens

medievais.

Em Lisboa

não são tão fáceis

de ser encon -tradas, mas na Camponeza costuma ser, ainda hoje, o acompanha -mento comum de quem pede um café.

(3)

3

FERNANDO PESSOA: Tardei, não tive jeito…

Não há incômodo. Toda essa azulejaria nos deu excelente compa-nhia e, quem sabe, alguma inspiração para o que queremos de si. Para já, esses ares nacionais de sua Mensagem também estão por aqui. É como se Portugal falasse por essas paredes como fala pelos versos de seu livro.

FP: Se é assim que vês, gostarás de saber que o meu livro

“Mensagem” chamava-se primitivamente “Portugal”. Alterei o título porque o meu velho amigo Da Cunha Dias me fez notar – a observação era por igual patriótica e publicitária – que o nome da nossa Pátria estava hoje prostituído a sapatos, como a hotéis a sua maior Dinastia. “Quer V. pôr o título do seu livro em analogia com portugalize os seus pés?” Concordei e cedi, como concordo e cedo sempre que me falam com argumentos.

Bastou, então, um argumento assim, perdoe, tão simplório para que o títu-lo de uma obra que pretende exaltar a pátria fosse títu-logo substituído?

FP: Tenho prazer em ser vencido quando quem me vence é a

Razão, seja quem for o seu procurador. E o curioso é que o título “Mensagem” está mais certo – à parte a razão que me levou a pô-lo – de que o título primitivo.

Explica-o?

FP: Explica-o melhor Virgílio4. Avancemos.

Avancemos, então. Por que Mensagem foi o primeiro livro publicado? As tantas e tantas páginas e os muitos versos que estão por aí em diários e revistas não mereceriam também capa e formato próprio?

FP: Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples

razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei por quê, ter organizado e pronto. Como estava pronto, incitaram-me a que o publicasse: acedi. Nem o fiz, devo dizer, com os olhos postos no prêmio possível do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado intelectual de maior. O meu livro estava pron-to em setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao prêmio, pois ignorava que o prazo para entrega dos livros, que

4 O entrevistado faz menção à estratégia utilizada no título. A palavra Mensagem teria nascido de uma expressão extraída do épico de Virgílio, Eneida: Mens agitat Molem (“A mente move a matéria.”)

(4)

4 primitivamente fora até fim de julho, fora alargado até ao fim de outubro. Como, porém, em fim de outubro já havia exem-plares prontos de Mensagem, fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro estava exatamente nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.

E então o prêmio do Secretariado veio…

FP: Publiquei em outubro passado, pus à venda,

propositadamen-te, em 1.º de dezembro. Foi premiado, em condições especiais e para mim muito honrosas, pelo Secretariado de Propaganda Nacional.

O prêmio impulsionou a divulgação e a leitura de Pessoa por um pú-blico mais amplo. Mas uma obra de estreia geralmente compromete o perfil que se fará do autor. O nacionalismo ali está, como bem disse, mas não será hora, então, de começar a pôr nas estantes do país outras faces do Pessoa? Já tem algo planejado?

FP: Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia,

que de mim mesmo fiz com um livro da natureza de Mensagem. Sou, de fato, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, Mensagem não as inclui.

Feita, nas condições que lhe indiquei, a publicação de Mensagem, que é uma manifestação unilateral, tenciono prosseguir da seguin-te maneira. Estou agora completando uma versão inseguin-teiramenseguin-te remodelada do Banqueiro anarquista, essa deve estar pronta em breve e conto, desde que esteja pronta, publicá-la imediatamente. Se assim fizer, traduzo imediatamente esse escrito para inglês, e vou ver se o posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem probabilidades europeias. (Não tome esta frase no sentido de Prêmio Nobel imanente.)

Mas e quanto aos versos de naturezas tão variadas, produzidos nesses anos todos? Ao menos alguma antologia poderia ser organizada?

FP: Tenciono, durante o verão, reunir o tal grande volume dos

poemas pequenos do Fernando Pessoa, e ver se o consigo publicar em fins do ano em que estamos. Esse, então, será as facetas todas, exceto a nacionalista, que Mensagem já manifestou.

(5)

5

Vossos heterônimos terão alguma oportunidade nesse “grande volume” que nos anuncia?

FP: Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de

Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, exceto quando me for dado o Prêmio Nobel. E contudo – penso-o com tristeza – pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Mais planos não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para dizer: Graças a Deus!

Então, ao menos nos dê agora alguma chance de conhecermos um pou-co dessa produção tão singular de versos. Como explica sua heteronímia ou esse “drama em gente” como costuma chamar?

FP: A origem dos meus heterônimos é o fundo traço de histeria que

existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histeroneurastênico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenômenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenômenos – felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se mani-festam na minha vida prática, exterior e de contato com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenômenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais his-tericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…

Mas diga-nos. Como teve início essa história de versar por gente outra, de outros punhos e mãos e, por certo, de outros olhares para o mundo?

FP: Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um

mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não deve-mos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, caráter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos,

(6)

6 porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.

Então, já na infância terá nascido algum heterônimo?

FP: O meu primeiro heterônimo, ou, antes, o meu primeiro

conhecido inexistente era um certo Chevalier de Pas, nos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figu-ra, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos niti-dez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas… Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida – ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.

Em eu começando a falar custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si. Vou entrar na gênese dos meus heterônimos lite-rários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz.

Fale-nos, primeiramente, sobre esses que mais têm assinado versos e arti-gos e que mencionou há pouco: Caeiro, Reis e Campos. Como surgiram, afinal? Como resolveu dar vida a toda essa gente escritora? Não basta-ram vossos próprios versos?

FP: Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à

ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.) Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desisti-ra – foi em 8 de março de 1914 – acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei defi-nir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O guardador de rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei

(7)

7

desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente… Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reação de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.

Então, podemos deduzir que o Álvaro de Campos, que produziu, ao que parece, bem mais versos que os outros dois, só veio ao mundo, por assim dizer, depois deles?

FP: Depois, mas logo a seguir. Aparecido Alberto Caeiro, tratei

logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns dis-cípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode triunfal de Álvaro de Campos – a ode com esse nome e o homem com o nome que tem.

Satisfeito? Creio ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em novo convite. Mas agora o camarada deverá desculpar, a chuva parou e tenho um assunto bastante caro com o Abel.

Ali mesmo nos despedimos. Fernando Pessoa apanhou seus pertences e os vestiu. Paguei a conta e ao sair era possível ver o pôr do sol, no final da rua para os lados do Tejo, e a figura diminuindo-se do poeta que enfiava-se para os lados da Praça da Figueira.

Referências

Documentos relacionados

Por isso , qualquer pessoa é uma redatora, no entanto, para ser um bom redator e até mesmo um escritor profissional, devemos saber o que podemos ou não fazer nas situações

Portanto, todos os negócios devem ser informados de suas falhas, pois são manchas para a religião, pois não devemos ser assim neste ou naquele

Suspiro uma, duas, centenas de vezes… Levo as mãos à cabeça…Bagunço cabelo,  escorre uma lágrima… arrumo o cabelo e o travesseiro leva um tapa.. Estalo os dedos  mordisco

Para o menino Momik, a constituição de sua própria memória, no que diz respeito ao trauma não vivido do holocausto e a constituição de si mesmo como judeu, se dará necessariamente

Há amplo espaço para preocupação quanto às dificuldades para aprovação de reformas necessárias à contenção do déficit público, peça crucial para o sucesso

penta deriva da palavra grega 'pente' que significa 'cinco' tera do grego 'téras' que significa 'monstro'.. giga do grego 'gígas' que

As leis humanas são comandos para ordenar que se aja de uma certa maneira, de modo que cada um possa escolher se comportar, ou possa escolher não se comportar; mas as leis

As leis humanas são comandos que ordenam que se aja de uma certa maneira, de modo que cada um possa escolher se comportar ou não se comportar; mas as leis naturais são uma