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UMA ANÁLISE DO TRABALHO DA MULHER RURAL ATRAVÉS DA PERSPECTIVA DA MULTIFUNCIONALIDADE AGRÍCOLA

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UMA ANÁLISE DO TRABALHO DA MULHER RURAL ATRAVÉS DA

PERSPECTIVA DA MULTIFUNCIONALIDADE AGRÍCOLA

Karolyna Marin Herrera1

Resumo: Este trabalho propõe uma discussão teórica baseada em revisão de literatura tendo em

vista responder a seguinte indagação: Como gerar visibilidade para o trabalho realizado por mulheres no âmbito da agricultura familiar, tendo em vista as atuais assimetrias de gênero? Para isto, pretende-se articular um diálogo entre as teorias feministas, baseado em estudos de gênero realizados com mulheres rurais e o conceito da multifuncionalidade agrícola. A revisão teórica sobre os estudos de gênero permitirá uma visão crítica em torno do trabalho realizado pela mulher rural e sua ocultação e/ou desconhecimento, já o conceito de multifuncionalidade agrícola permitirá analisar o trabalho da mulher rural não apenas pelo prisma da atividade produtiva, entendida pura e simplesmente como uma atividade econômica, mas orienta a análise por meio das próprias agricultoras em suas relações com a natureza e a sociedade, que moldam as formas de produção e de vida social.

Palavras-chave: Mulher Rural. Gênero. Trabalho. Multifuncionalidade Agrícola. Introdução

Apesar do esforço de movimentos sociais de mulheres no campo para reivindicar o reconhecimento de seus papéis como trabalhadoras e cidadãs2 (FARIA apud SABATTO et al., 2009), a agricultura de base familiar encontra-se ainda fortemente marcada pela divisão sexual do trabalho, em função de suas raízes históricas, que apontam diferenciações entre homens e mulheres (PAULILO, 1987; PAULILO e SILVA 2007; PAULILO, 2004, BRUMER e DOS ANJOS, 2008 e CARNEIRO, 1994). Tal assimetria reserva aos homens o reconhecimento público do trabalho produtivo, permanecendo obscurecido e oculto o trabalho das mulheres, que se circunscreve aos domínios privados.

A jornada cotidiana da mulher no meio rural é subestimada pela sociedade, uma vez que muitas das atividades exercidas por elas não se enquadram nas categorias aceitas e reconhecidas formalmente pela sociedade em torno do conceito de trabalho (FARIA, 2009). Neste sentido, pode-se considerar o trabalho da mulher como um conjunto de atividades invisíveis à sociedade, que, apesar disto, ultrapassa em muito as práticas estritamente vinculadas ao trabalho doméstico. As agricultoras familiares também realizam atividades produtivas, como o plantio e a colheita da

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina.

Florianópolis, Brasil.

2 Os movimentos sociais das mulheres no campo iniciaram-se nos anos 80 tendo como principal reivindicação o

reconhecimento da mulher como trabalhadora rural. A luta pela sindicalização das trabalhadoras rurais (para que tenham acesso à previdência e à licença maternidade), a demanda por acesso à terra e a documentação e a luta por remuneração, são alguns dos principais eixos dos movimentos feministas rurais.

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produção para o autoconsumo da família, a ordenha de vacas, a produção de queijo e pão e também práticas orientadas para a pequena escala de comercialização de produtos agrícolas.

Mesmo quando realiza atividades voltadas para o fim produtivo da agricultura, designadas geralmente como “masculinas”, a mulher é vista como uma “ajudante” e normalmente recebe baixa remuneração (ou mesmo nenhuma remuneração) por seu trabalho. As atividades agrícolas exercidas por elas são vistas como uma extensão intrínseca às suas atribuições de mãe e esposa (BRUMER, 2004).

Uma das justificativas para classificá-las como “ajudante” está relacionada com o tipo de trabalho executado na atividade rural, descrito como trabalho “pesado” ou “leve” (PAULILO, 1987). Tal diferenciação é bastante imprecisa e possui marcantes traços culturais, uma vez que o que é considerado trabalho “leve” ou “pesado” depende da perspectiva social analisada, haja vista que na esfera de suas atividades, a mulher também executa trabalhos entendidos como pesados, tais como a colheita de produtos agrícolas, os cuidados com os filhos e o carregamento de água, que muitas vezes, encontra-se distante do domicílio.

Cabe também destacar alguns achados de pesquisa sobre este assunto. Magalhães (2009), em seu trabalho sobre a modernização da produção de leite, constatou que nesta tarefa os homens operam as máquinas, assumindo um papel, frequentemente, desempenhado por mulheres (a ordenha de vacas); enquanto estas realizam atividades manuais (pesadas), caracterizadas popularmente pela expressão “enxada na mão”. Da mesma forma, Karam (2004), em sua pesquisa sobre o papel da mulher na produção agrícola orgânica, constatou que as mulheres tinham protagonismo no processo de conversão da produção agrícola convencional para a orgânica. Contudo, “à medida que os homens das famílias percebiam os resultados obtidos, tanto na produção como na renda auferida, muito rapidamente passaram a assumir um papel mais decisivo no processo produtivo” (KARAM, 2004, p.314).

Isto reforça a evidência de que quanto mais relevante e proeminente o trabalho executado, mais a mulher encontra-se excluída dele. Ou seja, "o trabalho é leve (e a remuneração é baixa), não por suas próprias características, mas pela posição que seus realizadores ocupam na hierarquia familiar” (PAULILO, 1987).

Dado sua ocultação e/ou desconhecimento torna-se um desafio o reconhecimento do trabalho da mulher rural, levando em consideração as atuais assimetrias de gênero.

Ao longo das últimas décadas alguns esforços têm sido realizados por parte de acadêmicas/os e órgãos oficiais (tais como, o Ministério do Desenvolvimento Agrário- MDA e a

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Organização das Nações Unidas- ONU) em relação à necessidade de problematizar ou mesmo demonstrar a importância do trabalho da mulher no meio rural. Contudo, estes esforços se deparam com um conhecido problema relacionado ao trabalho feminino, representado pela falta de reconhecimento de seu papel seminal no trabalho reprodutivo (doméstico e de cuidado), exercido quase que exclusivamente por mulheres em nossa sociedade (FARIA 2009).

Neste artigo contextualizaremos a problemática de gênero e sua relação com o trabalho no meio rural e apresentaremos uma nova abordagem que tem sido utilizada em estudos do meio rural, baseada no conceito da multifuncionalidade agrícola. Acreditamos que uma análise do trabalho da mulher no meio rural por meio da multifuncionalidade agrícola, poderá contribuir para o reconhecimento do seu trabalho.

Gênero, Trabalho e Mulher Rural

Dentro da literatura feminista, o termo “gênero” começou a ser utilizado em meados do século vinte como um conceito capaz de enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo dos indivíduos. Este conceito rejeita o determinismo biológico implícito no uso de termos tais como “sexo” ou “diferença sexual” e enfatiza a construção social que é subjacente à distinção entre homens e mulheres.

Contudo, Scott, em seu clássico texto sobre o conceito de “gênero” (SCOTT, 1995), defende que o uso generalizado do conceito nem sempre tem sido frutífero, devido à apropriação do termo por diferentes correntes teóricas, que, segundo ela, apresenta certas limitações. Dentre as diferentes interpretações, a autora destaca para quatro vertentes: (i) a que trata o gênero como um elemento constitutivo de relações sociais (conforme o contexto e suas representações simbólicas), sendo este o primeiro modo que dá significado às relações de poder; (ii) os conceitos normativos, que afirmam de maneira categórica o sentido do feminino e do masculino, legitimando e dando sentido a essa oposição binária, resultando em uma posição masculina dominante; (iii) perspectivas que reduzem o conceito de gênero à relação de parentesco; (iv) o gênero como parte da identidade subjetiva, sendo esta uma contribuição da psicanálise para a interpretação da reprodução do gênero (SCOTT, 1995).

Para a autora, o conceito de gênero deve ser analisado desde uma perspectiva integradora das quatro vertentes apontadas anteriormente, ressaltando que seu conceito parte do pressuposto que “o gênero é a forma primária de dar significado às relações de poder”. (SCOTT, 1995, p.88).

Em se tratando da mulher rural, a perspectiva integradora proposta por Scott nos permite analisar o papel que ela representa em seu meio. A situação de opressão e subordinação da mulher

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no meio rural passa pela naturalização do papel do homem e da mulher, que está relacionada com a relação hierárquica dentro das famílias rurais, cuja base material é a divisão sexual do trabalho. Esta diferenciação é determinada socialmente através de vivências, símbolos e representações, e se reproduz no cotidiano da dinâmica familiar.

Devido à divisão sexual das atividades, cabe ao homem a responsabilidade do trabalho produtivo da agricultura e a mulher o trabalho relativo aos cuidados doméstico de cunho reprodutivo.

Porém, diversos estudos apontam (NEVES; MEDEIROS, 2013) que as atividades da mulher rural não estão apenas circunscritas ao cuidado reprodutivo, pois elas também realizam atividades em lavouras e atividades de produção de alimentos, que não são reconhecidas como parte produtiva da agricultura. Inclusive, na maioria das vezes as mulheres rurais nem sequer são consideradas agricultoras, sendo mais bem conhecidas como a mulher ou filha de determinado agricultor3.

Alguns esforços por parte de acadêmicos e órgãos oficiais (tais como, o Ministério do Desenvolvimento Agrário- MDA e Organização das Nações Unidas- ONU) foram realizados com o intuito de dar reconhecimento ao trabalho da mulher no campo. Determinadas abordagens4 acreditam que a mudança da condição da mulher no meio rural se daria a partir de sua independência financeira, portanto tratam de evidenciar a importância da igualdade de remuneração entre homens e mulheres em atividades produtivas. Por sua vez, certas correntes, acreditam que através da descrição das atividades produtivas e reprodutivas realizadas pelas mulheres seria possível estabelecer a mensuração do trabalho realizado (principalmente em relação às atividades reprodutivas) e consequentemente, poderia se alcançar o reconhecimento do papel da mulher por parte da sociedade (CARRASCO, 2006).

Dentre as tentativas de reconhecimento do papel das mulheres no meio rural destacamos o recente trabalho realizado pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO,2011). A principal problemática desse trabalho refere-se à diferença de oportunidade da mulher em relação ao homem no que diz respeito ao acesso à terra, à tecnologia, à produção e comercialização agrícola. Segundo este relatório, se as mulheres tivessem as mesmas oportunidades que os homens em termos produtivos, a fome no mundo poderia ser reduzida entre 12% a 17%. Além disso, o relatório coloca em destaque a seguinte hipótese: se as mulheres tivessem as mesmas

3 Cabe destacar a problemática de acesso à terra por mulheres através de herança, discutidos por CARNEIRO (2001),

BRUMER e ANJOS (2008), PAULILO (2004)

4 Como por exemplo, o relatório do PNUD que traça objetivos para o empoderamento das mulheres tendo como

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oportunidades que os homens no meio rural, o trabalho realizado por elas resultaria em um importante crescimento econômico, principalmente em países em desenvolvimento, onde se encontra a maior força de trabalho rural feminina5.

Nessa mesma direção, destaca-se a iniciativa do Governo Federal para o processo de empoderamento das mulheres rurais. Em 2001, o Ministério Desenvolvimento Agrário (MDA), determinou que 30% dos recursos relativos à linha de crédito do Programa de Agricultura Familiar (PRONAF) fossem destinados às mulheres, reforçando a importância da ampliação de instrumentos de acesso em relação às políticas públicas que se orientam para a agricultura familiar.

Sem questionar a importância dos esforços mencionados anteriormente, chamamos a atenção para a excessiva ênfase no caráter produtivo da agricultura. Se isto por si já não resultasse em potenciais distorções para a problemática de gênero na agricultura familiar, outras consequências ainda piores têm a capacidade de agravar esta questão. Qual seja: ao colocar destaque nas questões de acesso das mulheres aos recursos agrícolas orientados para a produção, estas abordagens tomam como referência a produtividade agrícola masculina. Sem questionamentos a respeito de tais intercorrências, minimizando, desta forma, os fatores que impedem as mulheres de atingirem o patamar de produtividade dos homens. (PAULILO, 2012)

A preocupação em evidenciar a participação das mulheres em determinados setores econômicos passa também pelo debate a respeito da utilização de dados estatísticos. A partir da década de 1990, a ONU passou a incentivar a desagregação de índices socioeconômicos6 por gênero a fim de compreender as especificidades distintivas entre homens e mulheres. Essa demanda surgiu por parte do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que pretendia, a partir daquele momento, aprofundar uma discussão da situação socioeconômica das mulheres. Nesse sentido, foram desenvolvidos, então, os ‘indicadores de gênero’ (índices desagregados por sexo), que procuravam representar a situação de homens e mulheres em determinadas áreas, tais como a saúde, a educação, a moradia e o acesso ao mercado de trabalho.

5 As mulheres representam 43% do total da força de trabalho agrícola. Para uma discussão crítica com respeito ao

publicado pela FAO, ver Paulilo (2012).

6A importância da desagregação de índices socioeconômicos se deve ao fato de estes índices, em geral, serem

calculados seguindo-se o marco analítico da teoria econômica neoliberal, que utiliza como categoria de análise o indivíduo (o homo economicus) como sendo um ser homogêneo, sem distinção de sexo, raça, religião e classe social. O que esses indicadores procuram expressar é a realidade socioeconômica de um determinado grupo social, sem fazer distinção entre as particularidades dos indivíduos analisados.

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Apesar de ser considerado um avanço dentro do âmbito da discussão de desigualdade de gênero, Carrasco (2012)7 alerta que a construção dos ‘indicadores de gênero’ continua a reproduzir sem questionamentos o marco analítico subjacente, oriundo da teoria econômica vigente. Nessa concepção a situação das mulheres é tratada recorrentemente a partir da perspectiva construída pela experiência masculina. Isso significa dizer que em uma sociedade cujo modelo está baseado na opressão e submissão das mulheres, os ‘indicadores de gênero’ expressam a participação das mulheres dentro de um espaço predominantemente masculino.

Em se tratando das estatísticas do meio rural, o problema é ainda maior. As estatísticas subestimam a contribuição da mão-de-obra feminina ao trabalho produtivo, uma vez que, conforme mencionamos anteriormente, o trabalho realizado pelas mulheres nas lavouras não é reconhecido, e quando constatado geralmente é visto como uma ‘ajuda’ ao marido ou como parte das atividades domésticas.

Uma análise do trabalho da mulher no meio rural através de perspectivas que evidenciam a visão produtivista da agricultura familiar impossibilita a visibilidade de seu trabalho. Primeiro, porque o reconhecimento do papel desempenhado pelas mulheres no trabalho reprodutivo já é, por si mesmo, um velho entrave8; segundo, quando os estudos a respeito do trabalho reprodutivo recaem sobre o espaço rural, as análises tornam-se ainda mais intrincadas, porque, segundo Paulilo (2012), “as [próprias] mulheres vêem os campos em volta de sua moradia como uma extensão da casa e não separam o trabalho que fazem nos dois espaços, declarando todas as atividades [que realizam] como trabalho doméstico”.

Multifuncionalidade Agrícola

A análise do meio rural com foco nos fatores ambientais e socioculturais da agricultura familiar faz parte constitutiva da construção da denominada nova ruralidade brasileira (WANDERLEY, 2000), na medida em que está centrada em uma perspectiva que não se limita aos aspectos produtivos e econômicos da agricultura, mas, pelo contrário, enfatiza a reconstrução dos significados do espaço rural e da própria agricultura (GAVIOLI, F.; COSTA, 2011).

7 CARRASCO (2012) propõe uma nova abordagem de indicadores de gênero, baseados em um marco analítico

diferente do referencial dominante, tomando como ponto de partida a experiência das mulheres.

8 Desde a década de 80 feministas vem lutando para o reconhecimento do trabalho reprodutivo realizado pelas

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A noção de multifuncionalidade agrícola9 está inserida dentro deste contexto, pois está estreitamente vinculada à expectativa de uma agricultura e de um desenvolvimento rural sustentável, uma vez que articula as múltiplas funções da agricultura familiar, valorizando as suas contribuições não-produtivas, com o território onde a família rural está situada. Segundo Wanderley (2003) a multifuncionalidade agrícola pode ser entendida como uma perspectiva inovadora de desenvolvimento rural, uma vez que esta abordagem

não está apenas focalizada na atividade agrícola, entendida pura e simplesmente como um setor econômico, [mas] está orientada à própria família de agricultores, em suas complexas relações com a natureza e com a sociedade, que moldam as formas particulares de produção e de vida social (WANDERLEY, 2003, p.9).

A mesma autora chama a atenção para o fato de, em que pese ser uma perspectiva nova, a compreensão da agricultura familiar como sendo multufuncional, faz parte da já antiga e profunda tradição de estudos sobre o campesinato e a agricultura familiar no Brasil (WANDERLEY, 2003).

Desta forma, podemos dizer que a noção multifuncional da agricultura traz um “novo e ampliado olhar” sobre a agricultura de base familiar, o qual nos permite analisar a interação entre os agricultores/as familiares na dinâmica da reprodução social, considerando os modos de vida agrícola na sua totalidade.

Levando em consideração o modo de vida das famílias rurais, a noção de multifuncionalidade agrícola está associada a quatro funções do exercício da atividade agrícola, definidas por Cazella et al. (2009):

a) Reprodução socioeconômica das famílias: aborda a fonte de recursos para os membros das famílias rurais (geração de trabalho e renda), a condição de permanência no campo, as práticas de sociabilidade, as condições de instalação dos jovens e as questões relativas à sucessão do responsável pela unidade produtiva. Dentro desta função, torna-se seminal a análise da pluriatividade10 da atividade agrícola;

b) Promoção da segurança alimentar da sociedade e das próprias famílias rurais: abrange a produção para autoconsumo das famílias e a produção mercantil dos alimentos, considerando, também, o acesso aos alimentos por parte das famílias e da sociedade e a qualidade dos mesmos. Esta função multifuncional também leva em consideração as opções técnico-produtivas dos agricultores e os canais principais de comercialização da produção;

9 O conceito de multifuncionalidade agrícola surge no início dos anos 2000 como um instrumento de política pública na

União Europeia.

10 Segundo Scheneider (2007), a pluriatividade consiste em fenômeno de combinação de duas ou mais atividades, sendo

uma delas a agricultura, em uma mesma unidade de produção familiar. Através da pluriatividade, as famílias rurais podem estabelecer iniciativas de diversificação das suas ocupações interna e externamente à unidade de produção, bem como aumentar as fontes e as formas de acesso à renda.

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c) Manutenção do tecido social e cultural: além da importância da reprodução socioeconômica já citada anteriormente, esta função refere-se à preservação e ao melhoramento das condições de vida das comunidades rurais, levando em conta os processos de elaboração e legitimação de identidades sociais e de promoção da sociabilidade das famílias e das comunidades rurais;

d) Preservação dos recursos naturais e da paisagem rural: essa dimensão tem como referência o uso sustentável dos recursos naturais por parte da agricultura familiar, as relações entre as atividades econômicas e a paisagem, e a preservação da biodiversidade.

Sendo assim:

a noção de multifuncionalidade da agricultura teria que ser capaz de unificar as diferentes demandas e preocupações em relação ao mundo rural e às unidades familiares que o compõem, numa espécie de nova síntese em substituição ao paradigma que esteve na base da ‘modernização da agricultura (CARNEIRO; MALUF, 2003, p.21)

O conceito de multifuncionalidade agrícola rompe com o enfoque economicista de produção e enfatiza as funções sociais da agricultura. Atuando, assim, como um “instrumento de análise de processos sociais agrários que permite enxergar dinâmicas e fatos sociais obscurecidos pela visão que privilegia os processos econômicos” (CAZELLA, et al. 2009, p.49).

O reconhecimento da agricultura familiar desde uma perspectiva integradora permite que a sociedade (e as próprias famílias rurais) reconheça a importância do papel da agricultura familiar, o que possibilita a evidência do papel desempenhado pelas agricultoras desde este novo olhar.

Considerações finais

A proposta de revisão teórica realizada neste ensaio possibilitou destacar alguns aspectos relevantes para os objetivos de pesquisa aqui perseguidos. A jornada cotidiana da mulher no meio rural, voltada para as atividades produtivas e de cunho reprodutivo permanecem ocultas à sociedade e às próprias famílias rurais, devido ao processo histórico de hierarquização do trabalho dentro das famílias, advindas da divisão sexual do trabalho.

Diversos esforços recentes têm sido realizados com o intuito de gerar visibilidade ao trabalho da mulher rural. Dentre os quais, destacam-se certas correntes que evidenciam a importância da mulher dentro da lógica produtivista da agricultura. Destacam-se, também, abordagens quantitativas baseadas em métodos estatísticos, utilizadas para demonstrar o papel que a mulher desempenha em determinadas áreas socioeconômicas, dentre elas a agricultura. Em geral, o resultado desses indicadores estatísticos demonstra a participação das mulheres dentro de uma

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perspectiva predominantemente masculina, haja vista que os indicadores de gênero são construídos dentro da lógica da economia neoliberal dominante.

Desta forma, a tentativa de analisar a agricultura através de um prisma economicista dificulta a análise do papel da mulher, tendo em vista evidenciar a complexidade de seu papel desempenhado no meio rural. A dificuldade encontra-se na problemática da definição do que é considerado atividade de produção agrícola e do que pode ser considerado atividade doméstica, levando em consideração que as próprias mulheres rurais não vêem a separação entre estas atividades.

A noção de multifuncionalidade agrícola pode ser utilizada como instrumento de análise do papel da mulher rural, uma vez que oferece a possibilidade de construir um novo e ampliado olhar da agricultura de base familiar, possibilitando uma análise que se desvincula do caráter predominantemente econômico da agricultura familiar. A lente teórica baseada na multifuncionalidade agrícola permite incluir em um mesmo quadro analítico elementos que compõem o universo social do mundo rural, orientando a análise por meio dos próprios atores sociais, nas suas relações com a natureza e com a sociedade, que moldam as formas de produção e de vida social.

Ao proceder desta forma, o caráter multifuncional da agricultura torna-se uma ferramenta poderosa de análise com o objetivo de dar visibilidade ao trabalho da mulher no meio rural, tendo em vista reduzir as assimetrias de gênero neste espaço. Uma vez que permite dar reconhecimento ao trabalho da mulher rural a partir de uma perspectiva integradora que combina não só o ponto de vista produtivo, como, também, as dimensões social, ambiental e cultural que o trabalho da mulher representa no meio rural.

Sendo assim, este ensaio propôs uma revisão teórica sobre a questão de gênero e trabalho no meio rural através do enfoque da multifuncionalidade agrícola. Sendo este um primeiro esforço nosso de articulação entre a problemática do trabalho da mulher rural com o conceito de multifuncionalidade agrícola, almejamos ampliar o referencial teórico aqui esboçado com o objetivo de subsidiar futuras pesquisas aplicadas ao campo empírico.

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An Analysis of the Rural Woman Labor Througout the Perspective of Multifunctional Agriculture

Abstract: This paper proposes a theoretical discussion based on literature review in order to answer

the following question: "How to generate visibility for the work of women within the family farming, taking into consideration the current gender asymmetries?". For this, a dialogue linking feminist theories, based on gender studies conducted with rural women and the concept of multifunctional agriculture is intended. A literature review on gender studies will allow to have a critical view about the labor performed by rural women and its concealment and/or ignorance, and by using the concept of multifunctional agriculture will be possible to give an analysis of the rural women labor not only through the prism of productive activity, understood simply as an economic activity, but guides the analysis by means of rural women in their own relationships with nature and society that shape the production and social life.

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