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Catherine Walsh

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Educação

Educação

Intercultural

Intercultural

na América Latina:

na América Latina:

entre concepções,

entre concepções,

tensões e propostas

tensões e propostas

V

VERAERA M MARIAARIA C CANDAUANDAU ( (ORGORG))

2009 2009

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(3)

    E     E     d     d   u   u    c    c    a    a    ç    ç     ã     ã   o   o     I     I   n   n   t   t    e    e    r    r    c    c    u    u     l     l   t   t   u   u    r    r    a    a     l     l   n   n   a   a     A     A   m   m     é     é   r   r     i     i   c   c   a   a     L     L   a   a   t   t     i     i   n   n   a   a

   :    :    e    e    n    n    t    t    r    r    e    e    c    c    o    o    n    n    c    c    e    e    p    p    ç    ç     õ     õ   e   e   s   s  , ,    t    t    e    e    n    n    s    s     õ     õ   e   e   s   s    e    e    p    p    r    r    o    o    p    p    o    o    s    s    t    t    a    a    s    s Catherine Walsh Catherine Walsh11

Ler criticamente o mundo é um ato Ler criticamente o mundo é um ato  político-pedagógico; é inseparáv  político-pedagógico; é inseparávelel

do pedagógico-político, ou seja, do pedagógico-político, ou seja, da ação política que

da ação política que envolveenvolve

a organização de grupos e de classes a organização de grupos e de classes  populares para inte

 populares para intervir rvir 

na reinvenção da sociedade. na reinvenção da sociedade.

Paulo

Paulo FreireFreire22

 A descolonização que se

 A descolonização que se propõepropõe mudar a ordem do mundo é... mudar a ordem do mundo é...

um programa de desordem absoluta.... um programa de desordem absoluta.... Um processo histórico...

Um processo histórico... feito por homens

feito por homens novos,novos, uma nova linguagem, uma nova linguagem, uma nova humanidade. uma nova humanidade.

Frantz

Frantz FanonFanon33 1

1 Possui Possui Mestrado e Mestrado e o o Doutorado em Doutorado em Educação pela Educação pela UniversitUniversity y of of MassachusetMassachusetts ts (USA). (USA). ÉÉ professo

professora principal ra principal e diretora do e diretora do Doutorado em Estudos Culturais Latino-americanos, Univer-Doutorado em Estudos Culturais Latino-americanos, Univer-sidad Andina Simón Bolívar, Sede Equador.

sidad Andina Simón Bolívar, Sede Equador. 2

2 Paulo Paulo Freire,Freire,Pedagogy of Indignation.Pedagogy of Indignation. Boulder, Colorado: Paradigm, 2004, p. 18. Boulder, Colorado: Paradigm, 2004, p. 18. 3

3 Frantz Frantz Fanon,Fanon,Los condenados de la tierra.Los condenados de la tierra. México: Fondo de Cultura económica, 1961/2001, México: Fondo de Cultura económica, 1961/2001, p. 30 e 31.

p. 30 e 31.

Intercultur

Interculturalidade

alidade Crítica

Crítica

e Pedagogia Decolonial:

e Pedagogia Decolonial:

in-surgir

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    E     E     d     d   u   u    c    c    a    a    ç    ç     ã     ã   o   o     I     I   n   n   t   t    e    e    r    r    c    c    u    u     l     l   t   t   u   u    r    r    a    a     l     l   n   n   a   a     A     A   m   m     é     é   r   r     i     i   c   c   a   a     L     L   a   a   t   t     i     i   n   n   a   a

   :    :    e    e    n    n    t    t    r    r    e    e    c    c    o    o    n    n    c    c    e    e    p    p    ç    ç     õ     õ   e   e   s   s  , ,    t    t    e    e    n    n    s    s     õ     õ   e   e   s   s    e    e    p    p    r    r    o    o    p    p    o    o    s    s    t    t    a    a    s    s

EE

ste texto parte da necessidade – ainda presente e crescen-ste texto parte da necessidade – ainda presente e crescen-temente urgente – de ler criticamente o mundo, intervir na temente urgente – de ler criticamente o mundo, intervir na reinvenção da sociedade, e visibilizar a desordem absoluta da reinvenção da sociedade, e visibilizar a desordem absoluta da descolonização, como apontaram há alguns anos Frantz Fanon, descolonização, como apontaram há alguns anos Frantz Fanon, da Martinica, e Paulo Freire, do Brasil. Considerar este trabalho da Martinica, e Paulo Freire, do Brasil. Considerar este trabalho político-pedagógico e pedagógico-político no atual contexto político-pedagógico e pedagógico-político no atual contexto latino-americano é talvez mais complexo, tanto pelo latino-americano é talvez mais complexo, tanto pelo reconhe-cimento e a inclusão dos “oprimidos” e “condenados”

cimento e a inclusão dos “oprimidos” e “condenados”44 nas ins- nas

ins-tituições e nos discursos públicos, o

tituições e nos discursos públicos, o��ciais, neoliberais e trans-ciais, neoliberais e

trans-nacionalizados – dando a impressão de que o “problema” está nacionalizados – dando a impressão de que o “problema” está resolvido -, como pelas lutas que os movimentos indígenas e resolvido -, como pelas lutas que os movimentos indígenas e afrodescenden

afrodescendentes tes estão conseguindoestão conseguindo ��rmar na perspectiva darmar na perspectiva da

construção de sociedades, Estados e humanidade construção de sociedades, Estados e humanidade radicalmen-te diferenradicalmen-tes, em confronto com racismos solapados e te diferentes, em confronto com racismos solapados e estraté-gias – cada vez mais so

gias – cada vez mais so��sticadas – que se opõem e mobilizamsticadas – que se opõem e mobilizam

contínuos processos de manipulação e

contínuos processos de manipulação e cooptaçãocooptação..

O interesse do artigo é então, por um lado, contribuir, a O interesse do artigo é então, por um lado, contribuir, a par-tir da perspectiva da “colonialidade”, para a compreensão desta tir da perspectiva da “colonialidade”, para a compreensão desta complexa conjuntura atual, conside

complexa conjuntura atual, considerando de forma mais esperando de forma mais espe--cí 

cí ��ca, a operação do multiculturalismo neoliberal e uma inter-ca, a operação do multiculturalismo neoliberal e uma

inter-culturalidade de corte funcional como dispositivos de poder culturalidade de corte funcional como dispositivos de poder que permitem a permanência e o fortalecimento das que permitem a permanência e o fortalecimento das estrutu-ras sociais estabelecidas e sua

ras sociais estabelecidas e sua matriz colonial. Por outro ladomatriz colonial. Por outro lado, e, e ainda mais central, é o interesse em colocar no cenário – ainda mais central, é o interesse em colocar no cenário – pen-sando a partir e com as lutas acima assinaladas – uma sando a partir e com as lutas acima assinaladas – uma pers-pectiva crítica da interculturalidade, que se encontra enlaçada pectiva crítica da interculturalidade, que se encontra enlaçada

4

4 ReRe��ro-me aos sujeitos que ro-me aos sujeitos que eram a preocupação central desses intelectuais críticos, eram a preocupação central desses intelectuais críticos, cons- cons-cientes e comprometidos, e especi

cientes e comprometidos, e especi��camente citados assim em seus textoscamente citados assim em seus textosPedagogia del opri-Pedagogia del opri-mido

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    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s

com uma pedagogia e práxis orientadas ao questionamento, transformação, intervenção, ação e criação de condições radi-calmente distintas de sociedade, humanidade, conhecimento e vida; isto é, projetos de interculturalidade, pedagogia e práxis que assumem a perspectiva da decolonialidade. Nesse afã em-preendemos, na última parte deste texto, um diálogo, partindo das contribuições de Fanon e Freire.

(Re)colonialidade, racionalidade neoliberal e política multicultural

Desde os anos 90, a diversidade cultural na América Latina se transformou num tema em moda. Está presente nas políticas públicas e reformas educativas e constitucionais e constitui um eixo importante, tanto na esfera nacional-institucional como no âmbito inter/transnacional. Embora se possa argumentar que essa presença é fruto e resultado das lutas dos movimen-tos sociais-ancestrais e suas demandas por reconhecimento e direitos, pode ser vista, ao mesmo tempo, de outra perspectiva: a que a liga aos desenhos globais do poder, capital e mercado. Por isso, é importante contextualizar o debate e iluminar sua politização.

O marco central para tal contextualização encontra-se na histórica articulação entre a ideia de “raça” como instrumento de classi�cação e controle social e o desenvolvimento do

capi-talismo mundial (moderno, colonial, eurocêntrico), que se ini-ciou como parte constitutiva da constituição histórica da Amé-rica. Como a�rma Quijano (2000, p.204), “as novas identidades

históricas produzidas sobre a base da ideia de raça foram asso-ciadas à natureza dos papéis e lugares na nova estrutura glo-bal de controle do traglo-balho”. Essa colonialidade do poder – que

ainda perdura – estabeleceu e �xou uma hierarquia racializada:

brancos (europeus), mestiços e, apagando suas diferenças his-tóricas, culturais e linguísticas, “índios” e “negros” como identi-dades comuns e negativas. A suposta superioridade “natural” se expressou, como diz Quijano, “em uma operação mental de

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    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s fundamental importância para todo o padrão de poder

mun-dial, principalmente com respeito às relações intersubjetivas”. Assim, as categorias binárias, oriente-ocidente, primitivo-civi-lizado, irracional-racional, mágico/mítico-cientí �co e

tradicio-nal-moderno justi�cam a superioridade e a inferioridade –

ra-zão e não rara-zão, humanização e desumanização (colonialidade do ser)- e pressupõem o eurocentrismo como perspectiva he-gemônica (colonialidade do saber) (ibidem, p. 210 e 211). É tal operação que põe em dúvida, como sugere Césaire (2006), o valor humano destes seres, pessoas que, por sua cor e suas ra-ízes ancestrais, �cam claramente “marcadas”, ao que

Maldona-do-Torres (2007a, p. 133, 144) se refere como “a desumanização racial da modernidade [...], a falta de humanidade nos sujeitos colonizados”, que os distanciam da modernidade, da razão e das faculdades cognitivas.

Há também uma dimensão a mais da colonialidade, pouco considerada, que enlaça com as outras três. É a colonialidade cosmogônica ou da mãe natureza, que se relaciona à força vi-tal-mágico-espiritual da existência das comunidades afrodes-cendentes e indígenas, cada uma com suas particularidades históricas. É a que se �xa na diferença binária cartesiana entre

homem/natureza, categorizando como não-modernas, “primi-tivas” e “pagãs” as relações espirituais e sagradas que conectam os mundos de cima e de baixo, com a terra e com os ances-trais como seres vivos. Assim, pretende anular as cosmovisões,

�loso�as, religiosidades, princípios e sistemas de vida, ou seja,

a continuidade civilizatória das comunidades indígenas e as da diáspora africana. Como argumentarei mais adiante, essa é uma dimensão que permite aprofundar o problema existencial ontológico, particularmente dos descendentes africanos, um problema enraizado não só na desumanização do ser, mas tam-bém na negação e destruição de sua coletividade diaspórico-civilizatória e sua �loso�a, como razão e prática de existência.

Esta matriz quadridimensionada da colonialidade evidencia que a diferença construída e imposta desde a colônia até os momentos atuais não é uma diferença simplesmente assen-tada sobre a cultura, tampouco é re�exo de uma dominação

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    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s

enraizada em questões de classe como eixo central, como vem argumentando grande parte da intelectualidade latino-ameri-cana, incluindo Paulo Freire. A matriz da colonialidade a�rma

o lugar central da raça, do racismo e da racialização como ele-mentos constitutivos e fundantes das relações de dominação. É nesse sentido que falamos da “diferença colonial”, sobre a qual está assentada a modernidade e a articulação e crescimento do capitalismo global (MIGNOLO, 2003).

Enquanto a dupla modernidade-colonialidade historica-mente funcionou a partir de padrões de poder fundados na exclusão, negação e subordinação e controle dentro do siste-ma/mundo capitalista, hoje se esconde por trás de um discurso (neo)liberal multiculturalista. Desse modo, faz pensar que com o reconhecimento da diversidade e a promoção de sua inclu-são, o projeto hegemônico de antes está dissolvido. No entan-to, mais que desvanecer-se, a colonialidade do poder nos últi-mos anos esteve em pleno processo de reacomodação dentro dos desígnios globais ligados a projetos de neoliberalização e das necessidades do mercado; eis aí a “recolonialidade”.

Zizek (1998), entre outros, sustenta que, no capitalismo glo-bal da atualidade, opera uma lógica multicultural que incorpo-ra a diferença, na medida em que a neutincorpo-raliza e a esvazia de seu signi�cado efetivo. Nesse sentido, o reconhecimento e respeito

à diversidade cultural se convertem em uma nova estratégia de dominação que ofusca e mantém, ao mesmo tempo, a diferen-ça colonial através da retórica discursiva do multiculturalismo e sua ferramenta conceitual, a interculturalidade “funcional”, en-tendida de maneira integracionista. Essa retórica e ferramenta não apontam para a criação de sociedades mais equitativas e igualitárias, mas para o controle do con�ito étnico e a

conserva-ção da estabilidade social, com o �m de impulsionar os

impera-tivos econômicos do modelo neoliberal de acumulação capita-lista, agora “incluindo” os grupos historicamente excluídos.

Sem dúvida, a onda de reformas5 educativas e

constitucio-5 Sua�nalidade é enfatizar que, mais que oferecer mudanças substanciais, as modi�cações constitucionais e de políticas educativas fazem pouco mais que reformular (ou reformar) o já existente.

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    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s nais dos anos 90 – as que reconhecem o caráter multiétnico

e plurilinguístico dos países e introduzem políticas especí �cas

para os indígenas e afrodescendentes -, são parte desta lógica multicultural do capitalismo transnacional. De fato, as reformas coincidem com as políticas de caráter neoliberal, aquelas em que o Estado começa a ceder protagonismo aos atores do ce-nário internacional, especi�camente aos organismos

multilate-rais e às corporações transnacionais. Ao que parece, não é mera coincidência que, ao mesmo tempo em que os movimentos indígenas estavam despertando em vários países latino-ame-ricanos, uma nova força nacional e regional de sério questiona-mento das estruturas e instituições do Estado, os bancos mul-tilaterais de desenvolvimento, começaram a se interessar pelo tema indígena, alentando e promovendo uma série de iniciati-vas que abriram caminho ao processo, projeto e racionalidade de caráter neoliberal.

A iniciativa primordial veio do Banco Mundial e sua assim chamada “política indígena”. Em setembro de 1991, o Banco publicou suas diretrizes operacionais “4.20: Povos Indígenas”, uma política compreensiva, que servia, tanto como modelo para a criação de políticas regionais como guia para a promo-ção da participapromo-ção de povos indígenas em planos, projetos e programas dos membros do Estado, oferecendo “oportunida-des concretas para a interação entre povos indígenas e funcio-nários do Banco Mundial e dos governos” (BUHL, 1992, p. 29). Foi no marco desta diretiva e da nova estratégia geopolítica neoliberal – parte do denominado “Consenso de Washington”-, que o Banco, conjuntamente com o Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola – FIDA, �nanciou em 1998, com 50

milhões de dólares, o Projeto de Desenvolvimento dos Povos Indígenas e Negros do Equador - PRODEPINE6 - como primeiro

projeto no mundo onde os fundos do Banco iam diretamente para uma instituição administrada por organizações indígenas,

6 O enfoque do PROPEDINE, detalhado no Convênio �rmado com o Banco Mundial, de�nia quatro estratégias: (1) o fortalecimento da gestão das organizações indígenas e negras; (2) a in-tervenção na política agrária, incluindo a defesa dos recursos naturais, a titularização de terras e o uso da água; (3) a inversão no campo e (4) a capacitação indígena em carreiras intermediárias e de pós-graduação (ALMEIDA e ARROBO, 2005).

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    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s

sem o �ltro governamental-estatal.

Tal como argumentou a intelectualidade crítica do mo-vimento indígena, mais que bene�ciar os povos indígenas, o

PRODEPINE teve um papel sumamente estratégico, tanto para o Banco Mundial como para o Estado equatoriano:

O fato de ter conceitualizado um projeto especí �co para os povos

indí-genas do Equador evidencia que, dentro dos cálculos políticos do Ban-co Mundial, os índios do Equador, Ban-com suas estruturas organizativas e políticas, podem se converter no obstáculo mais sério para suas políti-cas de liberalização, desregulação e privatização. Este projeto reproduz os objetivos estratégicos do Banco Mundial, dentro da lógica de um dos atores mais importantes do momento atual, o movimento indígena. [...] A visão modernizante e apegada aos parâmetros neoliberais da qual são portadores os tecno-burocratas desta instituição se converteram em um risco cotidiano para o projeto político das organizações indíge-nas e numa fonte permanente de con�itos. [...] O Banco Mundial

con-seguiu neutralizar a oposição política dos índios contra ele, ao mesmo tempo em que comprometeu maiores esforços na reforma estrutural de caráter neoliberal do Estado Equatoriano7.

É esta geopolítica estratégica que, segundo o movimento, forma parte do neoliberalismo étnico ou multicultural; nes-se, não se deve deixar de levar em consideração o poder dos organismos multilaterais em geral e do Banco Mundial espe-ci�camente. De fato, é essa instituição que “tem como

res-ponsabilidade levar adiante todas as transformações sociais, institucionais, jurídicas, econômicas e inclusive simbólicas, que permitam a transformação do Estado em um Estado neoliberal” (DÁVALOS, 2005, p. 10)8.

7 ICCI, “Banco Mundial y PRODEPINE: Hacia un liberalismo étnico?” (editorial), emBoletín ICCI – RIMAI, ano 3, No.25, Quito: Instituto Cientí �co de Culturas Indígenas, abril de 2001, p. 5 e 6. 8 É interessante notar que em 1998, o mesmo ano em que se iniciou o projeto PRODEPINE, o Banco Mundial começou uma revisão de sua política de 1991 com relação aos povos indígenas. Entre março e julho de 2001, saiu uma série de novos rascunhos sobre políticas operativas, pro-cedimentos e estratégias, dirigida a “assegurar que o processo de desenvolvimento fomente o respeito total da dignidade, dos direitos humanos e das culturas dos povos indígenas [...] e ao prover-lhes uma voz no desenho e implementação dos projetos, evitando ou minimizando quanto seja possível impactos negativos e assegurando que os benefícios destinados a eles sejam culturalmente apropriados” (World Bank Operational Manual. Operational Policies,draft, 23 de março de 2001). A versão mais recente desse Manual Operacional é de julho de 2005. (ver http://wbln0018.worldbank.org/Intitucional/Opmanual.nsf).

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    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s As reformas educativas e constitucionais latino-americanas

dos anos 90 podem ser compreendidas dentro deste interesse e responsabilidade de “transformação”. Efetivamente, a orienta-ção relacionada aos “Povos Indígenas” incluía elementos rela-cionados à educação, ao desenvolvimento e aos direitos legais – particularmente os direitos de identidade e da terra -, ofere-cendo desta maneira critérios para as reformas jurídicas dentro de um marco encaminhado ao projeto neoliberal de ajuste es-trutural, dando reconhecimento e inclusão à oposição dentro do Estado-nação, sem maior mudança radical ou substancial em sua estrutura hegemônico-fundante.

De fato, ao sustentar a produção e administração da dife-rença dentro da ordem nacional, a torna funcional à expansão do neoliberalismo9 [está faltando a nota no pé da página], e isso

é precisamente o que busca essa diretriz M, estas reformas de corte multicultural-neoliberal. Zizek se refere a esta lógica como a nova lógica multicultural do capitalismo multinacional, que se “abre” para a diversidade ao mesmo tempo em que assegura o controle e contínuo domínio do poder hegemônico nacional e os interesses do capitalismo global (MUYOLEMA, 2001).

Tal lógica pretende reconstruir as relações entre o Estado e a sociedade por meio de uma inclusão que permite reduzir con�itos étnicos e incrementar a e�ciência econômica da ação

estatal (LECHNER,1995), dentro de uma ordem não só nacional, mas regional e global. Exemplos adicionais se encontram nas políticas étnicas do Banco Internacional do Desenvolvimento – BID, dirigidas principalmente, desde os inícios deste século, às populações afrodescendentes; os esforços do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas – PNUD durante 2006 e 2007, ao incidir no “labirinto” étnico, político e social boliviano, argumentando a necessidade de gerir o pluralismo étnico, re-gional e de movimentos sociais na direção do apoio a um mo-delo de Estado que se assente no “sentido comum”10. De

ma-9

10 Tais esforços incluíram, entre 2006 e 2007, o �nanciamento, coordenação e publicação dos estudos extensos: El estado del Estado y El estado de la opinión; um�lme:El estado de las cosas. Un informe nacional sobre desarrollo humano en Bolívia; e uma série de televisão intitulada El laberinto.

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    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s

neira similar, podemos mencionar as recentes mudanças na po-lítica da UNESCO que buscam a identi�cação de “melhores

po-líticas e instrumentos de política para assegurar a diversidade cultural, às vezes vista como ameaça ou fonte de insegurança”. Também se destacam os planos e programas emergentes de “desenvolvimento integral e inclusivo” baseados na coesão so-cial, no desenvolvimento individual – e individualista - e num modelo econômico mais competitivo, todos com o afã de se-guir “o ideal europeu”. Essas iniciativas formam parte das novas políticas do PNUD, BID, EUROsociAL, o último sendo uma alian-ça entre a Comissão Européia, BID, PNUD, CEPAL, com o apoio do BM e do FMI, tendo como enfoque uma nova estratégia de desenvolvimento para a América Latina.11

Estes exemplos e perspectiva nos permitem entender que a política multicultural atual sugere muito mais do que o reco-nhecimento da diversidade. É uma estratégia política funcional ao sistema/mundo moderno e ainda colonial; pretende “incluir” os anteriormente excluídos dentro de um modelo globalizado de sociedade, regido não pelas pessoas, mas pelos interesses do mercado. Tal estratégia e política não buscam transformar as estruturas sociais racializadas; pelo contrário, seu objetivo é ad-ministrar a diversidade diante do que está visto como o perigo da radicalização de imaginários e agenciamento étnicos. Ao po-sicionar a razão neoliberal – moderna, ocidental e (re)colonial – como racionalidade única, faz pensar que seu projeto e inte-resse apontam para o conjunto da sociedade e a um viver me-lhor.12 Por isso, permanece sem maior questionamento.

A interculturalidade é, cada vez mais, o termo usado para se referir a esses discursos, políticas, estratégias de corte multi-cultural-neoliberal. Seguindo Tubino (2005), podemos nomear essa interculturalidade como funcional, porque não questiona

11 Os países com maior�nanciamento e assessoria de EUROsociAL são México, Brasil e Co-lômbia.

12 O contraste óbvio se encontra nas novas Constituições e projetos de sociedade emergen-tes no Equador e na Bolívia, onde o “bem viver” ou “viver bem” se colocam como princípios e projeto para o refundar, tomando distância do bem-estar individual e do arquétipo de Estado e sociedade euro-usa-cêntricos. Ver Catherine Walsh, Interculturalidad, Estado, Sociedad. Luchas (de)coloniales de nuestra época.Quito: UASB/Abya Yala, 2009.

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    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s as regras do jogo e é perfeitamente compatível com a lógica do

modelo neoliberal existente. Essa interculturalidade funcional se diferencia substantivamente da interculturalidade entendida como projeto político, social epistêmico e ético, o que denomi-nei e ao que Tubino também se refere, como interculturalidade crítica (WALSH, 2002).13 Tubino ajuda a esclarecer a diferença:

Enquanto no interculturalismo funcional  busca-se promover o diálogo

e a tolerância sem tocar as causas da assimetria social e cultural hoje vigentes, no interculturalismo crítico busca-se suprimi-las por métodos políticos não violentos. A assimetria social e a discriminação cultural tornam inviável o diálogo intercultural autêntico. [...] Para tornar real o diálogo, é preciso começar por tornar visíveis as causas do não diálo-go. E isso passa necessariamente por um discurso de crítica social [...] um discurso preocupado por explicitar as condições [de índole social, econômica, política e educativa] para que este diálogo se dê. (TUBINO, 2005, p. 8)

Interculturalidade crítica

O enfoque e a prática que se desprende da interculturalidade crítica não é funcional para o modelo de sociedade vigente, mas um sério questionador dele. Enquanto a interculturalida-de funcional assume a diversidainterculturalida-de cultural como eixo central, apontando seu reconhecimento e inclusão dentro da socie-dade e do Estado nacionais (uni nacionais por prática e con-cepção) e deixando de fora os dispositivos e padrões de poder institucional-estrutural – que mantêm a desigualdade -, a inter-culturalidade crítica parte do problema do poder, seu padrão de racialização e da diferença (colonial, não simplesmente cul-tural) que foi construída em função disso. O interculturalismo funcional responde e é parte dos interesses e necessidades das

13 A interculturalidade crítica a que me re�ro é distinta da que propõe De Souza: “pluri/inter/ multiculturais críticas”, pensadas para a pós-modernidade / mundo marcado pela diversidade cultural. Enquanto para De Souza essa interculturalidade crítica parte da modernidade, servin-do como elemento na luta por sociedades democráticas, a interculturalidade crítica que parte do projeto político do movimento indígena se concebe do lado oculto da modernidade, que é a colonialidade. Ver João Francisco de Souza, Atualidade de Paulo Freire: contribuição ao debate sobre a educação na diversidade cultural,Recife: NUPEP/CIIE, 2001.

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    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s

instituições sociais; a interculturalidade crítica, pelo contrário, é uma construção de e a partir das pessoas que sofreram uma histórica submissão e subalternização.

Esta construção “desde baixo” evidencia-se de maneira par-ticular no contexto equatoriano, em que a interculturalidade é conceito, aposta e projeto cunhado e signi�cado pelo

mo-vimento indígena, princípio ideológico de seu projeto políti-co que – desde os anos 90 – veio apontando a transformação radical das estruturas, instituições e relações existentes. O fato de que seu sentido vem desse movimento pensado, não só para ele, mas para o conjunto da sociedade, é signi�cativo,

tanto pela diferença que marca com o projeto hegemônico-dominante e sua ideia de que os indígenas só se preocupam consigo mesmos, como pela aposta, proposta e projeto dife-rentes que sugerem. É esse movimento que amplia e envolve “em aliança” setores que, da mesma forma, buscam alterna-tivas à globalização neoliberal e à racionalidade ocidental, e que lutam tanto pela transformação social como para a criação de condições de poder, saber e ser muito diferentes. Pensada dessa maneira, a interculturalidade crítica não é um processo ou um projeto étnico, nem tampouco um projeto da diferença em si. Antes, e como argumenta Adolfo Albán (2008), é um projeto que aponta à reexistência e à própria vida, para um imaginário “outro” e uma agência “outra” de com-vivência – de

viver “com” – e de sociedade.

Recordar que a interculturalidade crítica tem suas raízes e antecedentes não no Estado (nem na academia), mas nas dis-cussões políticas postas em cena pelos movimentos sociais, faz ressaltar seu sentido contra-hegemônico, sua orientação com relação ao problema estrutural-colonial-capitalista e sua ação de transformação e criação. O grupo de trabalho do Fórum Lati-no-Americano de Políticas Educativas– FLAPE, Colômbia (2005), também faz esta a�rmação:

Nesta tradição [dos movimentos sociais], a interculturalidade  aparece

como parte do discurso político e reivindicatório de populações afe-tadas pelo desenvolvimento do capitalismo através do despojamento

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    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s

da terra, pela ocupação de seus territórios por colonos portadores de outras tradições e valores culturais, pelo deslocamento de seus lugares de origem para outros territórios, particularmente as grandes cidades, onde se estruturam complexos culturais multiétnicos, plurirregionais, intergeneracionais, de gênero, de trabalho etc., que colocam desa�os

difíceis de resolver mediante os mecanismos tradicionais da democra-cia transformista que caracteriza nosso regime sodemocra-cial e político. [...] Foi a localização destas lutas [emancipatórias e de resistência dos povos indí-genas e afro na América Latina] e de seus desenvolvimentos em novos contextos nacionais e internacionais que atualizou a discussão e nos obriga a precisar seus conteúdos. (p. 2 e 3)

Partir do problema estrutural-colonial-racial e dirigir-se para a transformação das estruturas, instituições e relações sociais e a construção de condições radicalmente distintas, a intercultu-ralidade crítica – como prática política – desenha outro caminho muito distinto do que traça a interculturalidade funcional. Mas tal caminho não se limita às esferas políticas, sociais e culturais; também se cruza com as do saber e do ser. Ou seja, se preocupa também com a exclusão, negação e subalternização ontológica e epistêmico-cognitiva dos grupos e sujeitos racializados; com as práticas – de desumanização e de subordinação de conheci-mentos – que privilegiam alguns sobre outros, “naturalizando” a diferença e ocultando as desigualdades que se estruturam e se mantêm em seu interior. Mas, e adicionalmente, se preocupa com os seres de resistência, insurgência e oposição, os que per-sistem, apesar da desumanização e subordinação.

Por isso, seu projeto se constrói de mãos dadas com a de-colonialidade, como ferramenta que ajude a visibilizar estes dispositivos de poder e como estratégia que tenta construir relações – de saber, ser, poder e da própria vida – radicalmente distintas. Isso seria, utilizando as categorias de Boaventura de Sousa Santos (2005, p.172), um projeto que provoca questionar as ausências – de saberes, tempos, diferenças etc. – e pensar e trabalhar a partir das emergências que se revelam “através da ampliação simbólica de pistas ou sinais” da própria experiência, particularmente a dos movimentos sociais.

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diri-    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s

gido à construção de modos “outros” do poder, saber, ser e viver permite ir muito além dos pressupostos e manifestações atuais da educação intercultural bilíngue ou da �loso�a intercultural.

É argumentar não pela simples relação entre grupos, práticas

ou pensamentos culturais, pela incorporação dos tradicional-mente excluídos dentro das estruturas (educativas, disciplina-res ou de pensamento) existentes, ou somente pela criação de programas “especiais” que permitem que a educação “normal” e “universal” siga perpetuando práticas e pensamentos racia-lizados e excludentes. É assinalar a necessidade de visibilizar, enfrentar e transformar as estruturas e instituições que diferen-cialmente posicionam grupos, práticas e pensamentos dentro de uma ordem e lógica que, ao mesmo tempo e ainda, é racial, moderno-ocidental e colonial. Uma ordem em que todos fo-mos, de uma maneira ou de outra, participantes. Assumir esta tarefa implica em um trabalho de orientação de-colonial, diri-gido a romper as correntes que ainda estão nas mentes, como dizia o intelectual afrocolombiano Manuel Zapata Olivella; de-sescravizar as mentes, como dizia Malcolm X; e desaprender o aprendido para voltar a aprender, como argumenta o avô do movimento afroequatoriano Juan García. Um trabalho que pro-cura desa�ar e derrubar as estruturas sociais, políticas e

epis-têmicas da colonialidade – estruturas até agora permanentes – que mantêm padrões de poder enraizados na racialização, no conhecimento eurocêntrico e na inferiorização de alguns seres como menos humanos. É a isso que me re�ro quando falo da

de-colonialidade.

Falar de uma política epistêmica da interculturalidade, mas também de epistemologias políticas e críticas, poderia servir, no campo educativo, para colocar os debates em torno da inter-culturalidade em outro nível, transpassando seu fundo enraiza-do na diversidade étnico-cultural e focalizanenraiza-do o problema da “ciência” em si; isto é, a maneira através da qual a ciência, como um dos fundamentos centrais do projeto da modernidade/co-lonialidade, contribuiu de forma vital para o estabelecimento e manutenção da histórica e atual ordem hierárquica racial, na qual os brancos, e especialmente os homens brancos europeus,

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    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s permanecem em cima. Permite considerar a construção de

no-vos marcos epistemológicos que pluralizam, problematizam e desa�am a noção de um pensamento e conhecimento

totali-tários, únicos e universais, partindo de uma política e ética que sempre mantêm como presente as relações do poder às quais foram submetidos estes conhecimentos. Assim, alenta novos processos, práticas e estratégias de intervenção intelectual que poderiam incluir, entre outras, a revitalização, revalorização e aplicação dos saberes ancestrais, não como algo ligado a uma localidade e temporalidade do passado, mas como conhecimen-tos que têm contemporaneidade para criticamente ler o mundo, e para compreender, (re)aprender e atuar no presente.14

De maneira ainda mais ampla, proponho a interculturalida-de crítica como ferramenta pedagógica que questiona conti-nuamente a racialização, subalternização, inferiorização e seus padrões de poder, visibiliza maneiras diferentes de ser, viver e saber e busca o desenvolvimento e criação de compreensões e condições que não só articulam e fazem dialogar as diferenças num marco de legitimidade, dignidade, igualdade, equidade e respeito, mas que – ao mesmo tempo – alentam a criação de modos “outros”15 – de pensar, ser, estar, aprender, ensinar,

so-nhar e viver que cruzam fronteiras. A interculturalidade crítica e a de-colonialidade, nesse sentido, são projetos, processos e lutas que se entrecruzam conceitualmente e pedagogicamen-te, alentando forças, iniciativas e perspectivas éticas que fazem questionar, transformar, sacudir, rearticular e construir. Essa for-ça, iniciativa, agência e suas práticas dão base para o que cha-mo de continuação da pedagogia de-colonial.

14 Considerar os saberes ancestrais como conhecimentos, ciências e tecnologias, cujo ensino é válido e importante para o conjunto da população, desde a escola até a universidade, é avan-ço da nova Constituição equatoriana, aprovada em referendum público em 28 de setembro de 2008. Ver Catherine Walsh, “interculturalidad, plirinacionalidad y decolonialidad: las insurgên-cias político-epistémicas de refundar el Estado”,Tabula Rasa (Bogotá), 9, julho-dezembro 2008, p. 131 - 152.

15 Falar de modos “outros” é tomar distância das formas de pensar, saber, ser e viver inscritas na razão moderno-ocidental-colonial. Por isso, não se refere a “outros modos”, nem tampouco a “modos alternativos”, mas aos que estão assentados sobre as histórias e experiências da dife-rença colonial, incluindo as da diáspora africana e sua razão de ser, enraizada na colonialidade. Essas histórias e experiências marcam uma particularidade do lugar epistêmico – um lugar de vida – que recusa a universalidade abstrata. Ver Mignolo, op.cit.

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    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s

Pedagogia de-colonial a partir da interculturalidade crítica

Como projeto político, social, epistêmico e ético, a intercultu-ralidade crítica expressa e exige uma pedagogia e uma aposta e prática pedagógicas que retomam a diferença em termos re-lacionais, com seu vínculo histórico-político-social e de poder, para construir e a�rmar processos, práticas e condições

diferen-tes. Dessa maneira, a pedagogia é entendida além do sistema educativo, do ensino e transmissão do saber, e como processo e prática sóciopolíticos produtivos e transformadores assenta-dos nas realidades, subjetividades, histórias e lutas das pesso-as, vividas num mundo regido pela estrutura colonial (WALSH, 1991). Tal sentido tem muito a ver com o expressado pela cari-benha Jacqui Alexander (2005, p. 7):

[...] Pedagogias entendidas de maneira múltipla: como algo dado e revelado; [que faz] abrir caminho, transpassar, interromper, deslocar e inverter práticas e conceitos herdados, estas metodologias psíquicas, analíticas e organizacionais que usamos para saber o que cremos que sabemos, para tornar possível conversas e solidariedades diferentes; como projeto tanto epistêmico como ontológico ligado a nosso ser e, portanto, aliado à formulação que fez Freire da pedagogia como me-todologia imprescindível. Pedagogias [que] convocam conhecimentos subordinados, produzidos no contexto de práticas de marginalização, para poder desestabilizar as práticas existentes de saber e assim cruzar os limites �ctícios de exclusão e marginalização. (tradução minha)

De fato, essas perspectivas se aliam com as da chamada pe-dagogia crítica iniciada por Paulo Freire nos anos 1960 e reto-mada por muitos educadores e ativista-intelectuais por todo o mundo até os anos 1990, quando começou sua diminuição16.

Sem entrar em uma análise do porquê de seu decréscimo, vale a pena assinalar a coincidência entre essa diminuição e o auge do projeto neoliberal. Além disso, e de forma interrelacionada, está a concomitância entre a quase desaparição de uma

agên-16 Vale a pena mencionar meu vínculo próximo com Freire durante os anos em que esteve no exílio nos Estados Unidos e minha participação ativa na rede de pedagogia crítica desse país até o início dos anos 1990. Apesar da baixa deste movimento nos anos 1990, há autoras como Peter McLaren e Henri Giroux que, nos Estados Unidos e Canadá, mantiveram a aposta a partir de uma postura de multiculturalismo revolucionário e radical.

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    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s cia e projeto de esquerda nos anos 1990 e o conservadorismo

crescente das universidades – incluindo as ciências sociais e hu-manas 17-, como da instituição de educação em seu todo.

No entanto, e diante das mudanças vividas na América Lati-na Lati-na última década, a insurgência social, política, mas também epistêmica de movimentos afro e indígenas, e a emergência cada vez mais forte de propostas, agenciamentos e projetos que apontam para a descolonização, é oportuno pensar e sig-ni�car hoje uma perspectiva pedagógica – ou de pedagogias

– que se enlace(m) com os projetos e perspectivas de intercul-turalidade crítica e de-colonialidade. Pedagogias que dialogam com os antecedentes crítico-políticos, ao mesmo tempo em que partem das lutas e práxis de orientação de-colonial. Pe-dagogias que enfrentam o que Rafael Bautista (2009) colocou como “o mito racista que inaugura a modernidade [...] e o mo-nólogo da razão moderno-ocidental”; pedagogias que se esfor-cem por transgredir, deslocar e incidir na negação ontológica, epistêmica e cosmogônico-espiritual que foi – e é – estratégia,

�m e resultado do poder da colonialidade; isto é, “pedagogia(s)

de-colonial(ais)”.

Nesse sentido, a pedagogia ou as pedagogias de-coloniais estariam construídas e por construir em escolas, colégios, uni-versidades, no seio das organizações, nos bairros, comunidades, movimentos e na rua, entre outros lugares. São elas que visibi-lizam tudo o que o multiculturalismo oculta e dilui, incluindo a geopolítica do saber, a topologia do ser (MALDONADO-TOR-RES, 2006) e a teleologia identitária-existencial da diferença co-lonial. Aquelas pedagogias que integram o questionamento e a análise crítica, a ação social transformadora, mas também a in-surgência e intervenção nos campos do poder, saber e ser, e na vida; aquelas que animam uma atitude insurgente, de-colonial e rebelde18. Aquelas pedagogias evidenciadas nos trabalhos

17 Para uma análise sobre as “ciências neoliberais” ver Edgardo Lander, “ La ciência neoliberal”, emRevista Venezolana de Economia y Ciências Sociales, Vol. 11, No. 2, Caracas, Universidad

Cen-tral, maio de 2005, p. 35 - 69.

18 Sobre estas atitudes ver Nelson Maldonado-Torres, “La descolonización y el giro des-co-lonial” em Comentario Internacional,No. 7, Quito, Universidad Andina Simón Bolívar, 2007, p. 64-78; Catherine Walsh, “Interculturalidad y colonialidad del poder: Un pensamiento y

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posicio-    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s

“casa adentro” de muitos intelectuais-líderes afroamericanos e indígenas, e aquelas pedagogias que também, e seguindo as ideias de Dussel (1993, p. 75), se comprometem e poderiam se comprometer com a racionalidade do Outro:

À diferença dos pós-modernos, não propomos uma razão crítica como tal; mas sim, aceitamos sua crítica de uma razão violenta, coercitiva, ge-nocida. Não negamos a semente racional do racionalismo universalista do Iluminismo, só seu momento irracional como mito sacri�cal. Não

ne-gamos a razão em outras palavras, mas a irracionalidade da violência gerada pelo mito da modernidade. Contra o racionalismo pós-moder-no, a�rmamos a “razão do Outro”. (tradução minha)

Considerada dessa maneira, a pedagogia de-colonial, como a pedagogia crítica, é “em última instância, um sonho, mas um sonho que se sonha na insônia da práxis. Isso se deve a que um indivíduo não pode dizer que realizou a pedagogia crítica (ou a pedagogia de-colonial) se deixa de lutar por consegui-la,” (MCLAREN, 1998) se deixa sua insurgência social, cultural, po-lítica, epistêmico-intelectual e educativa. Com essa referência, não estou somando a pedagogia de-colonial à pedagogia críti-ca, nem sugerindo a primeira como manifestação contemporâ-nea da última. De fato, a pedagogia de-colonial tem sua própria genealogia – sem ter que necessariamente denominá-la assim – enraizada nas lutas e práxis que as comunidades afro e indí-genas vêm exercendo há anos, que recentemente estão saindo à luz e sendo reconstruídas e revitalizadas como parte de uma postura e projeto políticos.

A intenção aqui é estabelecer um diálogo crítico entre am-bas, mais particularmente entre Paulo Freire e Frantz Fanon, o intelectual frequentemente citado por Freire, mas sem pro-fundidade quanto a sua postura racial-político-epistêmico-on-tológica e sua chamada a uma “pedagogia para construir uma nova humanidade questionadora”. Este diálogo tem o desejo de ressaltar as contribuições de Freire – mais que tudo, sua

cri-namiento otro desde la diferencia colonial”, em Interculturalidad, descolonización del Estado y del conocimiento(Catherine Walsh, Álvaro García Linera y Walter Mignolo), série El desprendi-miento, pensamiento crítico y giro des-colonial. Buenos Aires: Editorial Signo, 2006.

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    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s ticidade e atitude política – como suas limitações – incluindo

sua posição humanista e sua cegueira racial – e, ao mesmo tem-po, distingui-las das contribuições de Fanon, que nos parecem acertadas para a aposta de-colonial.

O crítico-político e de-colonial: um diálogo com Freire e Fanon

Em seus primeiros trabalhos, particularmente na Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire apresentou as bases para uma análise

social e política das condições vividas pelas classes pobres e excluídas a partir de um repensar crítico-político da pedago-gia no contexto educativo. Praticamente em todo o mundo, a chamada educação radical – especialmente nos anos 1970 e 1980- assumia os ensinamentos de Freire. Certamente o ponto de partida mais importante era o reconhecimento do ato de educar e de educar-se como um ato político: “sou substantiva-mente político”, disse, “e só adjetivasubstantiva-mente pedagógico” (Paulo Freire, 2003), ao mesmo tempo que fez entender a importância da prática educativa como lugar para intervir e lutar:

Não há prática social mais política que a prática educativa. Com efeito, a educação pode ocultar a realidade da dominação e da alienação ou pode, pelo contrário, denunciá-las, anunciar outros caminhos, conver-tendo-se assim numa ferramenta emancipatória.

O oposto de intervenção é adaptação, é acomodar-se, ou simplesmente adaptar-se a uma realidade sem questioná-la”. (FREIRE, 2004, p. 34)

Mas também, e ainda mais importante, destacou a respon-sabilidade de pensar criticamente, de aprender a ser o que se é em relação com e contra seu próprio ser, e a partir de uma éti-ca humana em e com o mundo, uma étiéti-ca inseparável da prá-tica educativa e enraizada na luta de confrontar as condições de opressão e suas manifestações, incluindo – como �cou mais

evidente em seus últimos trabalhos – a discriminação racial, de gênero e de classe (FREIRE, 1996).

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produ-    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s

ção e práxis intelectual, a educação era compreendida em sua perspectiva de “humanizar” o homem na ação consciente. Foi só nos anos anteriores à sua morte e talvez como resultado de sua experiência na África, particularmente em Cabo Verde e Guiné-Bissau, que Freire começou a pensar no poder que se exerce tanto pela raça e racialização quanto pela colonização. Essa mudança se evidencia em um dos últimos livros que es-creveu: A Pedagogia da Esperança, no qual repensa A Pedagogia do Oprimido, fazendo, ao mesmo tempo, uma autocrítica de si

mesmo, por suas próprias limitações em ver e compreender a complexidade da opressão e da libertação. No texto da Peda-gogia da Esperança fala mais da rebeldia como práxis político-pedagógica de existência, reexistência, da vida exempli�cada

nos quilombos entendidos como:

Momento exemplar daquela aprendizagem de rebeldia, de reinvenção da vida, de assumir a própria existência e a história por parte de escra-vas e escravos que, da “obediência” necessária, partiram em busca da invenção da liberdade. (Freire, 1993, p. 103)

Nesse texto, como também no da Pedagogia da Indigna-ção,  Freire mostra mais claramente um pensar em diálogo

com o afrocaribenho Frantz Fanon, passando de falar do opri-mido e da consciência da classe oprimida à consciência do ho-mem oprimido, da humanização à desumanização, e à relação

opressores-oprimidos, colonizador-colonizado, colonialismo-(não)existência. Além disso, fala do problema do projeto ne-oliberal, como também da “cor da ideologia” (FREIRE, 1993, p. 149). E é neste movimento de autocriticidade, ao repensar-se e repensar o mundo, que Freire demonstra a práxis crítica, não como algo �xo, identi�cável e estável, mas como uma prática e

processo contínuos de re�exão, ação, re�exão.

O que nos interessa não é só a maneira como Freire repensa seu pensamento, incorporando mais criticamente alguns ele-mentos de Fanon, mas também a contribuição pedagógica que faz Fanon ao enlaçar o político, o epistêmico e a existência raciali-zada dentro do marco da descolonização, da (des)humanização,

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    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s e da revolução social19. E é com este desejo que exploro a seguir

o pensamento de ambos, pondo em foco os eixos inter-relacio-nados da (des)colonização e (des)humanização.

(Des)colonização – (des)humanização

A relação entre colonização-desumanização e descolonização-existência-humanização tem ressonância tanto no trabalho de Fanon como no de Freire. Vejamos primeiro como ambos tra-tam o assunto de (des)humanização como componente central do seu pensamento-projeto.

Freire inicia seu textoPedagogia do Oprimido com o

proble-ma da huproble-manização:

O problema de sua [dos homens] humanização, apesar de sempre haver sido, de um ponto de vista axiológico, o seu pro-blema central, assume, hoje, caráter de preocupação iniludível.

Constatar esta preocupação implica, indiscutivelmente, em reconhe-cer a desumanização, não apenas como possibilidade ontológica, mas como uma realidade histórica. É também, e talvez, sobretudo dessa do-lorosa constatação, que os homens se perguntam sobre a outra possi-bilidade - a da sua humanização. Ambas na raiz de sua inconclusão, que os inscreve num permanente movimento de busca. Humanização e de-sumanização dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão. (FREIRE, 1970, p. 27)

A desumanização – entendida como “o resultado de uma

19 De fato, o trabalho de Fanon é muito mais conhecido no âmbito da psicanálise e com rela-ção à ontologia existencial do sujeito racializado. No entanto, é importante ressaltar como seus trabalhos dão um sentido prático e concreto às lutas de descolonização, libertação e humani-zação, concebidas em termos tanto individuais como coletivos. Nesse sentido, ao apresentar a descolonialização não simplesmente como problema político, mas como uma prática pedagó-gica de intervenção que implica a criação de homens novos, Fanon dá bases vertebrais para se pensar pedagogicamente o de-colonial como aposta de existência-vida.

Neste aspecto ver também: Stephan Nathan Haymes, “Race, Pedagogy and Paulo Freire”, em

Memórias: Conferência Internacional a Reparação e a Descolonização do Conhecimento, Salvador, Bahia: UFBA/Atitude Quilombola, 2007, p.55-66; Kenneth Mostern, “Descolonization as Lear-ning: Practice and Pedagogy in Franz Fanon’s Revolutionary Narrative”, em Between Borders. Pedagogy and Politics of Cultural Studies, Henry Giroux e Peter McLaren (Eds.) New York: Rout-ledge, 1994, p.253-272.

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    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s

ordem injusta que gera a violência dos opressores, o que, por outro lado, desumaniza os oprimidos” – é, para Freire, uma distorção da vocação de fazer-se mais plenamente humano. Enfrentar esse problema, fazendo que o homem chegue a ter consciência desta condição e que reconheça a necessidade de lutar pela restauração de sua humanidade, são passos necessá-rios – mas não únicos – em sua pedagogia e práxis humanista e libertadora para a emancipação (FREIRE, 1970, p.74). A criação de estruturas sócio-educativas que equipem os oprimidos com ferramentas necessárias para (des)velar as raízes de sua opres-são e desumanização, identi�car suas estruturas e atuar sobre

elas, também são componentes centrais.

Na Pedagogia da Esperança, Freire retoma a dupla de

hu-manização-desumanização, conectando-a mais concretamen-te “às amarras reais, concretas, de ordem econômica, política, social, ideológica etc., que nos estão condenando à desuma-nização” (Freire,1993, p.95), e a dialética entre o conhecimen-to e a transformação da realidade como polos distinconhecimen-tos mas interconectados. Embora neste trabalho e nos subsequentes, faça uma consideração mais ampla da opressão e dominação produzidas por esta ordem, a estrutura mestra da dominação e opressão continua sendo a econômica; a estrutura que nos condiciona, mas que não deve nos determinar. Esclarece que “a luta de classes não é o motor da história, mas certamente é um deles” (Freire, 1993, p. 86); no entanto, para Freire, é a classe que serve como ponto de interseção para os outros pontos de opressão e dominação, como raça e gênero, desatendidos nos primeiros textos.

Um outro elemento em torno da humanização em Freire é a ética. Para Freire, a luta política, a transformação social e a su-peração da “injustiça desumanizante” devem ser empreendidas na perspectiva da ética universal dos seres humanos (Freire, 2004, p.35), uma ética enraizada na consciência re�exiva – na

presença com outros no mundo e com o mundo. Para Freire, reconhecer que somos condicionados, mas não determinados por este mundo – e pela própria opressão, estimula a possibili-dade que é a existência humana:

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    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s

É quando se dá conta e vive a história como possibilidade que se pode experimentar a capacidade de comparar, fazer juízos, escolher, decidir e desprender-se. É assim como homens e mulheres fazem ético o mundo, ao mesmo tempo que mantêm sua capacidade como transgressores da ética. (FREIRE, 2004, p. 26)

Portanto, “fazer o mundo ético é uma consequência neces-sária da produção da existência humana, ou de estender a vida na existência” (Freire, 2004, 98). E embora a preocupação pela existência humana e pelo “fazer-se no ser/ do ser” seja central, este pensamento humanista de Freire, sua aposta pedagógi-ca, não está tão voltado para a situação ontológica existencial dos oprimidos – nem tampouco ao padrão de poder instaura-do com o capitalismo e a modernidade/colonialidade que cria essa situação e a racialização inerente a ela – mas ao ato de conhecer: conhecer a realidade para transformá-la. Esse ato de conhecer está enraizado no que Freire chama uma “curiosidade epistemológica”. Nesse sentido, para Freire, a desumanização não é produto ou resultado da colonização. E é a partir desse enfoque que podemos ver sua diferença com Fanon.

Tanto para Freire como para Fanon, o processo de huma-nização requer ser consciente da possibilidade de existência e atuar responsavelmente e conscientemente sobre – e sempre contra – as estruturas e condições sociais que pretendem negar sua possibilidade. A humanização e libertação individual requer a humanização e libertação social, o que implica a conexão en-tre o subjetivo e o objetivo; quer dizer, enen-tre o interiorizado da desumanização e o reconhecimento das estruturas e condições sociais que fazem esta desumanização. A esse respeito, é possí-vel assinalar a in�uência crescente de Fanon em Freire, algo que

Freire comenta na Pedagogia da Esperança,  quando reconhece

que o assunto não é tanto a “aderência” do oprimido ao opressor, mas a maneira através da qual o oprimido se distancia dele, colo-cando-se “fora de si, como diria Fanon” (FREIRE, 1993, p. 47).

Para ambos, a desumanização e humanização são projetos enraizados numa realidade e contexto históricos concretos; mas enquanto para Freire “tanto a humanização como a desu-manização são possibilidades para o homem como ser

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incom-    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s

pleto consciente de sua incompletude”, para Fanon o problema também se radica no projeto incompleto da descolonização. A desumanização para Fanon é componente central da coloniza-ção. A humanização, portanto, requer a descolonizacoloniza-ção.

Para Fanon, é o colonialismo, “o arsenal de complexos de-senvolvidos pelo ambiente colonial” (FANON, 1967, p. 30), que envolve e promove a desumanização, dando assim uma espe-ci�cidade ao contexto de opressão e dominação que é a

condi-ção colonial.

“No contexto colonial, o colono não se detém em seu trabalho de críti-ca violenta do colonizado, mas quando este último reconheceu em voz alta e inteligível a supremacia dos valores brancos [...]. O colonialismo não se contenta com apertar o povo entre suas redes, com esvaziar o cérebro colonizado de toda forma e de todo conteúdo. Por uma espé-cie de perversão da lógica, orienta-se para o passado [...], o distorce, o des�gura, o aniquila. Essa empresa de desvalorização da história

an-terior à colonização adquire agora seu signi�cado dialético. (FANON,

1963/2001, p. 38)20

E é neste contexto que a negação da humanidade não é só ontológica, mas também um assunto de (não)existência histó-rico-racial. “Ontologia – quando é �nalmente admitida por

dei-xar a existência no caminho – não nos permite compreender o ser do negro” (Ibidem p. 110). Visto dessa perspectiva, a desu-manização, no caso do afrodescendente, requer uma compre-ensão (fenomenológica) do problema ontológico existencial da opressão racial (HYMES, 2007, p. 57). Por isso, a aclamação de Fanon “não sou o escravo da Escravidão que desumanizou meus ancestrais” (FANON, 1963/2001, p. 48), uma Escravidão construída sobre as costas, suor e cadáveres dos negros alimen-tando o bem-estar e o progresso europeu. Num mundo antine-gro, regido pela união do capitalismo, eurocentrismo branco-embranquecido e colonialidade do poder, a desumanização, o

20 Tal perspectiva parece ressoar com a de Freire: “Uma das características fundamentais do processo de dominação colonial ou de classe, sexo, tudo misturado, é a necessidade que tem o dominante de invadir culturalmente o dominado... O que na invasão cultural se pretende, entre outras coisas, é exatamente a destruição, o que felizmente não se consegue em termos concretos. É fundamental, para o dominador, triturar a identidade cultural do dominado” (Paulo Freire,Pedagogía de la tolerância, México: CREFAL/Fondo de Cultura Económica, 2006, p. 33).

(26)

    E     d   u    c    a    ç     ã   o     I   n   t    e    r    c    u     l   t   u    r    a     l   n   a     A   m     é   r     i   c   a     L   a   t     i   n   a    :    e    n    t    r    e    c    o    n    c    e    p    ç     õ   e   s  ,    t    e    n    s     õ   e   s    e    p    r    o    p    o    s    t    a    s racismo e a racialização estão sem dúvida entrelaçados. E essa

especi�cidade estrutural – central para entender a realidade do

passado e do presente latino-americano – que não se encontra em Freire.

Aqui a humanização é entendida como construção de uma nova humanidade como componente central do processo de descolonização e descolonizar-se.

A descolonização não passa jamais inadvertida, já que afeta o ser, mo-di�ca fundamentalmente o ser, transforma os espectadores oprimidos

pela falta de essência nos atores privilegiados, recolhidos de maneira quase grandiosa pela foice da história. Introduz no ser um ritmo próprio, como contribuição dos novos homens, uma nova linguagem, uma nova humanidade. A descolonização realmente é criação de homens novos. Mas esta criação não recebe a legitimidade de nenhuma potência so-brenatural: a ‘coisa’ colonizada se converte em homem no processo pelo qual se liberta. (FANON, 1963/2001, p. 31)

Para Fanon, a descolonização é uma forma de (des)apren-dizagem: desaprender tudo que foi imposto e assumido pela colonização e desumanização para reaprender a ser homens e mulheres. A descolonização só ocorre quando todos individu-almente e coletivamente participam em sua derrubada, ante a qual o intelectual revolucionário – como também o ativis-ta e mestre – tem a responsabilidade de ajudar ativamente e participar no “despertar”: “Educação política signi�ca abrir as

mentes, despertar [as massas] e permitir o nascimento de sua inteligência, como disse Césaire, ‘é inventar almas’” (FANON, In: MALDONADO-TORRES, 2005, p. 160).

O primeiro dever do poeta (mestre) colonizado é determinar claramen-te o claramen-tema popular de sua criação. Não se pode avançar resolutamenclaramen-te, senão quando primeiro se toma consciência da alienação. [...] Não basta não se unir ao povo nesse passado em que já não se encontra, nesse movimento oscilante que acaba de esboçar e a partir do qual, subita-mente, tudo vai ser impugnado. (FANON, 1963/2001, p. 206)

É a partir destes processos de (des)aprendizagem, inven-ção, intervenção e ação que podemos traçar a perspectiva e

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