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limites de uma investigação preliminar, contribuir para o conhecimento desta realidade tão cruel quanto "tranqüila-mente" aceita neste sistema que perpetua as desigualdades e valoriza os privilégios. Se este objetivo fizer avançar o debate sobre as causas e soluções, terá valido a pena o contato - mt:smo que simplesmente através da notícia ou da entrevista - com esse mundo bárbaro da tortura, do "Esquadrão da Morte", dos linchamentos ... bem como da corrupção, do arbítrio, da covardia. Insista-se ainda uma vez: a questão da defesa dos Direitos Humanos não é ape-nas de ordem moral. Insere-se, definitivamente, em toda e qualquer proposta de ampliação da cidadania. Insere-se, portanto, na proposta maior da abertura política no país. Da democracia, enfim.
Maria Victoria Benevides Abril 1983
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Violência e imprensa:
as manchetes do medo
',}"Você vai morrer, você iai morrer ... " "Os homens da chacina. "
"Atentados sexuais viram hábito na rotina dos assal-tos."
"Acompanhe: os assassinos do jovem Satow vão mos-trar como foi o crime. "
"Rio, uma cidade gritando por socorro!"
"São Paulo, capital da violência, vive no medo." •• A mobilização do pânico. "
"Pega, mata, enforca!"
"Para vingar tenente, PMs ameaçam matar inocen-tes. "
As manchetes acima foram retiradas de jornais da "grande imprensa" entre 1979 e 1982: O leitor desavisado, surpreendido em sua cena familiar de classe média, imagi-nará um mal-entendido: estaria, por acaso, lendo os "popu-lares" sensacionalistas, aqueles "que pingam sangue"?
A perplexidade é transitória; transforma-se, em pouco tempo, em sentimentos cada vez menos difusos de insegu-rança e medo. Trata-se da síndrome causada pela divulga-ção maciça, em todos os meios de comunicadivulga-ção, do que se convencionou chamar de "onda da violência". O supostº aumento da criminalidade violenta transformou-se em
pro-(1) Jornal da Tarde (27.11.79 e 20.12.791; Jornal do Brasil (4.11.791; Jornal da Tarde (9.12.801; O Estado de S. Paulo (11.1, 7.4 e 24.5 de 1981 I;
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blema nacional e, como tal, tratado em Congressos e
Semi-nários de várias origens, e "reproduzido" na imprensa, sobretudo no período compreendido entre o segundo se-mestre de 1979 e inícios de 1982. (A partir de então predo-minariam debates sobre as reformas partidárias e eleitoral, enfocadas pelo óbvio interesse das eleições previstas para novembro de 1982. No plano institucional predominariam as questões relativas ao alcance e aos limites da abertura, sobretudo em função dos riscos da "desestabilização do regime" com os atentados terroristas no Rio de Janeiro.) A 14 de agosto de 1979 o então ministro da Justiça, Petrônio Portella, assinava uma portaria para a constitui-ção de um grupo de trabalho, composto por juristas e cien-tistas sociais, que deveriam apresentar "um minucioso es-tudo interdisciplinar sobre o crime e a violência no país, acompanhado de sugestões que sirvam de base para as providências executivas do governo nesta matéria". O pri-meiro "considerando" destacava o dever do governo "na salvaguarda e proteção dos cidadãos atingidos pela cres-cente onda de criminalidade e violência que lavra nos cen-tros populosos do país, vitimando pessoas de todas as clas-ses sociais e destruindo patrimônios". Do ponto de vista desta pesquisa, interessa destacar as considerações, feitas no "Relatório dos Juristas", referentes à influência dos meios de comunicação sobre os problemas sócio-criminais: "Esse grande elemento de informaç'ão que é a imprensa honesta, sóbria e dignificante, está sujeito, em alguns casos, a uma orientação errônea que altera e perverte o fato, fazendo flutuar a opinião pública, opinião desprepa-rada culturalmente, para rumos incertos, desconhecidos e até perigosos, na apreciação dos julgamentos penais. A
Justiça Criminal, para ser distribuída, fica, não raro, ao sabor do posicionamento da imprensa, que orienta a opi-nião pública ao sabor de seu desejo, nem sempre coinci-dente com os mais altos propósitos das decisões penais.
Assim como se fala da violência institucionalizada da Po-lícia, seria possível falar-se da violência que os meios de comunicação resolveram institucionalizar. Páginas inteiras falando com linguagem desabrida, adjetivação
escanda-VIOL~NCIA. POVO E POLIcIA 21
losa, das liberdades sexuais, das luxúrias, dos costumes, da libertinagem das criaturas humanas; falando dos crimes de sedução, de estupro, de assalto, de roubo, de seqüestro, de extorsão, como se isto tudo fosse o grande e principal ele-mento de cultura para inteligência do povo brasileiro". O "Relatório dos Cientistas Sociais", por outro lado, afirma que "não há provas concludentes do relacionamento dos meios de comunicação com a criminalidade". 2
Entregues os relatórios, a súbita morte do ministro criou evidentes problemas de administração interna e de política nacional no tocante às prioridades da Pasta da Jus-tiça. O tema da violência e ':tia criminalidade permaneceu
,
envolto em discussões e projetos, e a "onda" atingiu níveis considerados "paroxísticos" pelo novo ministro da Justiça.3 Meses depois de baixada a portaria ministerial, a violência tomou de assalto as páginas mais nobres dos principais jornais do país. Fala-se da escalada da violência e da crimi-nalidade em termos que vão desde "neurose coletiva de insegurança" a "guerrilha urbana", passando por "clima alucinatório" e "barbárie avassaladora". A imprensa tor-nou-se o veículo natural para a divulgação cotidiana de noticiário de violência e de criminalidade, assim como o espaço para a discussão de suas causas e de propostas para seu combate e repressão.O primeiro dado a ser considerado, portanto, se refere a essa mudança de atitude da imprensa tradicional em relação à violência. Jornais "contidos" - a imprensa "ho- . nesta, sóbria e dignificante" , d~ que fala o "Relatório dos Juristas" - passaram a destacar manchetes em primeira página e a dedicar amplo espaço aos temas da delinqüência violenta. O exemplo do Jornal do Brasil é o mais explícito: , em janeiro de 1981, o jornal passou a publicar uma rubrica especial, intitulada Violência, no alto da folha, com o mesmo destaque das tradicionais rubricas Política e Go-verno, Internacional, Esportes, etc. Além dessa inovação,
(2) Criminalidade e Violência - Relatório dos Grupos de Trabalho '
de Juristas e Cientistas Sociais, Ministério da Justiça, 1980, pp. 92 e 352.
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inédita no jornalismo nacional, o JB inaugurou uma seção de primeira página, com a cronologia dos eventos violentos na cidade do Rio de Janeiro ("A Violência de Ontem"). O Estado de S. Paulo, embora de forma mais discreta, passou a reservar maior espaço ao tema, destacando-se edi-toriais sobre as causas da violência e o papel da repressão policial. 4 A Folha de S. Paulo editou cadernos especiais sobre violência, e, além do amplo noticiário, abriu espaço para o tratamento do tema por analistas. O Jomal da Tarde - vespertino da empresa O Estado de S. Paulo - publicou reportagens em série (como "Cuidado São Paulo: registro instantâneo de uma violência interminável", em janeiro de 1980); especializou-se no acompanhamento diário dos "ca-sos especiais" ("Acompanhe: começa a grande caçada ao estuprador", em agosto de 1982) e abriu maior espaço para cartas dos leitores sobre o tema. Revistas semanais dedica-ram capas à violência urbana (Veja chegou a qualificá-la como "guerra civil").
O que explicaria essa mudança de atitude?
É preciso ter claro que essa violência noticiada pela "grande imprensa" com destaque refere-se aos delitos dos já chamados "marginais" - como roubos, assaltos, furtos, "trombadas" - e que passaram a atingir, de forma espe-tacular, os bairros de classe média e da burguesia. O inte-resse em divulgá-la, portanto, contribuiu para reforçar a estigmatização das "classes perigosas" 5 - o pobre será
(4) Uma rápida leitura das edições de domingo do JB e do ESP
exemplificam essa mudança de ênfase. No JB de 18.1.81 encontramos, explicitamente sobre violêl1cia urbana: editorial de meia página; cartum do Ziraldo; artigo de Fernando Pedreira; página inteira com entrevistas de auto-ridades policiais; página inteira com estatísticas de "casos"; duas notas na coluna social de Zózimo; artigo de página inteira no Caderno B, sobre com-pra de armas; crônica do humorista Carlos Eduardo Novaes. No ESP do mesmo domingo encontramos: editorial sobre polícia e escalada da violên-cia; coluna inteira de Carlos Chagas, na seção "Notas e Informações"; duas páginas inteiras de noticiário policial;entrevistas com autoridades policiais; noticiário sobre violência nas páginas dedicadas ao interior do Estado.
(5) Para uma abordagem histórica, ver, de Alberto Pa~sos Guima-rães, As Classes Perigosas, Rio de Janeiro, Graal, 1982. Para um estudo
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VIOLENCIA, POVO E POLIcIA 23
sempre o suspeito, o bandido em potencial, quando não "de nascença" - e para dramatizar o quadro da violência urbana (os grandes crimes contra a economia popular são naturalmente minimizados - não costumam empregar vio-lência física explícita - quer no noticiário, quer nos edi-toriais). A declaração do delegado Edgar Façanha, da Se-cretaria de Segurança do Rio de Janeiro, é insuspeita: "O que ocorreu é que os bandidos que assaltavam na Baixada Fluminense, onde no máximo podiam levar da casa do pobre um aparelho de tevê em preto e branco, passaram a atacar mansões ... De repente a sucessão de assaltos come-çou a tomar conta dos espaços dos jornais. Como mexeu com os ricos, criou-se logo uma crise no apareUio de -segu-iança: ~~. Baixada, quem vai dizer que a casa de um pobre lavrador foi assaltada?" (JT, 13.1.81).
Em outros termos, a socióloga Maria Lúcia de Oliveira aponta uma razão para a "novidade" do fenômeno: "o que há de novo na área urbana do Grande Rio, da Grande São Paulo ou da Grande Belo Horizonte, não é a presença dos 'marginais', a precariedade da vida nas favelas ou o crime não desvendado e não punido. O novo e assustador é o \
avizinhamento, que se faz cada vez mais próximo entre) essas coisas e nós, habitantes das zonas privilegiadas em . que violência, insegurança e medo sempre tiveram muito mais a ver com o que se passava dentro das paredes de cada casa, ou dentro da alma de cada um, do que com o desmo-ronar das frágeis barreiras que nos protegiam contra os ataques das 'classes perigosas' " (JT, 28.12.79).
Uma advertência parece, portanto, razoável: a propa-ganda e o medo teriam crescido muito mais que a própria criminalidade violenta. '[ra t.!l-=-s_~-,-'pQis. ... d€Ln~º~onb.I!lJ!.!L_a_ visibilidade de um fenô~eno com sua existência real. A hipótése ·aoJu·rista-Héii~ Bi~U:doé~·neS-s~ s·entidõ~
-digna
de nota: "Não acho que haja um grande surto de criminali-da de nas cicriminali-dades como Rio e São Paulo. Qqueexiste ..é
VIllaP.E~l)_~gaI1(::la intensa do cresçil1}.~nto da cri~inalid~de, com
especifico ver, de Percival de Souza, A Maior Violência do Mundo (Baixada Fluminense do Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, Traço Editora, 1980.
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vistasa-se. a1cança.r--'~hl~~---.S-º-mo-ª----Climinuição da idade de Am1?J.ltabilidade criIl!J!l!ll, ~e 1§ ,a.I!~s l'a~!l_16 ou, 14; a imposição de penas mais graves para os delitos contra o patrimônio; a instituição da prisão cautelar, e até mesmo a peQ.a pe morte" (JB, 25.4.80). E o criminalista Tércio Lins e 'Silva confirma: "Os meios de comunicação têm sido responsáveis pela criação de uma ideologia capaz de desen-volver um sentimento que pode ser identificado por uma certa sede de vingança, que pode ser materializada ou ex-pressa através do linchamento em via pública ou aceitação de penas mais elevadas" (JB, 28.12.80).
Por outro lado, a imprensa costuma ser responsabili-zada pelo "descrédito" das instituições policiais, na medida em que veicula notícias sobre a violência e o arbítrio da polícia bem como sobre o envolvimento de policiais em quadrilhas do crime organizado ou nos sinistros "Esqua-drões da Morte". A queixa é antiga, explícita nas entre-vistas de várias autoridades, desde o diretor-geral da Polícia Federal em 1980, coronel Moacir Coelho - que apontava a responsabilidade da imprensa "na divulgação de violências contra presos" (FSP, 6.3.80) - até o recém-nomeado secretário de Segurança de São Paulo, Manoel Pedro Pi-mentel, para quem a imprensa é culpada ao dizer que "a polícia mata e que a ROTA é composta de assassinos"
(FSP, 29.3.83).
O objetivo desta pesquisa não é investigar o papel da imprensa na "dramatização" da violência. 6 Os dados de imprensa são especiaLmente relevantes para uma apreensão dos fatos e, principalmente, da "imagem" da violência que é "passada", seja através das entrevistas das autoridades, seja através dos artigos e reportagens. Uma pesquisa espe-cífica sobre a responsabilidade da imprensa deveria levar em conta outras questões, tais como:
(6) Ver, de João Manuel de Aguiar Barros, liA utilização
político-.'f. ideológica da delinqüência", in Educação e Sociedade, n? 6, São Paulo,
Cortez, junho 1980; de Ramão Gomes Portão, Criminologia da
Comunica-ção, Rio de Janeiro, Traço Editora, 1981; de Ruben George Oliven,
Violên-cia e Cultura no Brasil, Petrópolis, Vozes, 1982. Aguarda-se, sobre o
mesmo tema, o trabalho de Volanda Catão.
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VIOLENCIA. POVO E POLICIA 2S
o aumento do espaço concedido pela imprensa à violência corresponde, e em que medida, ao ef~tivo au-mento do índice de criminalidade na população como um todo?
_ a opinião de cada jornal (editoriais e artigos assi-nados) apresenta um nível de coerência que permita apon-tar uma determinada "linha"?
_ existe relação entre o noticiário e as respostas go-vernamentais de repressão e controle da violência e da criminalidade?
Tais questões extrapol~m, evidentemente, os limites
desta pesquisa. :
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•
--Na primeira fase da pesquisa foi realizado um intenso e cotidiano trabalho de levantamento de dados, classifi-cação e formação de dossiês de imprensa 7 que abrangem,
apenas, modalidades de criminalidade violenta urbana, individual ou coletiva e de violência institucional (a repres-são policial quando extrapola os limites impostos pela lei). São excluídos os chamados crimes passionais ou "patoló-gicos", na medida em que não são considerados, direta-mente, "sociais". São excluídos, igualdireta-mente, dados de vio-lência rural (geralmente associada a conflitos de terra) e de violência política (tanto a de contestação quanto a institu-cional, da repressão política).
A pesquisa tem como objeto próprio de análise dados de e sobre violência urbana noticiados pela imprensa. Isso significa uma reconhecida limitação quanto à apreensão do fenômeno global, pois se é sabido que apenas uma parte reduzida dos casos é registrada pela polícia, menor ainda será a proporção relatada na imprensa. É importante ter igualmente claro que a influência da imagem difundida pelos chamados prestige papers deve ser relativizada, tendo (7) Os dossiês encontram-se à disposição do público no Setor de Documentação do CEDEC.
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em vista seu público leitor, sua vinculação quase que exclu-siva com certas camadas da população.
A Tabela 1 apresenta o número de matérias analisa-das, nos três maiores jornais pesquisados, discriminando-se o tipo de matéria (notícias, editoriais e artigos) e o conteúdo principal. Os dados não abrangem outros periódicOS pes-quisados _ como o Jornal da Tarde, o Jornal da República ou os semanários - porque nestes órgãos a pesquisa não foi sistemática. O Jornal da Tarde destaca-se pelo espaço reser-vado à seção de "Cartas dos Leitores" e pelos artigos de especialistas, como os jornalistas Percival de Souza e Fausto Macedo. O Jornal da República, de curta duração (agosto de 1979 a janeiro de 1980) foi especialmente consultado em virtude de sua proposta de tratar o noticiário policial não apenas como um fait-divers, mas em termos de uma ques-tão mais global, abrangendo os aspectos sociais e culturais de cada fato. 8
Observa-se que das 621 matérias analisadas pouco mais de um terço refere-se a denúncias e/ou queixas sobre a polícia _ quanto a atos de violência e arbítrio, quanto a omissão ou ao despreparo dos policiais. Neste item destaca-se o elevado número de editoriais do Jornal do Brasil (cinco vezes mais do que os outros); cumpre lembrar que o JB, neste período, movia intensa campanha contra a atuação da polícia no Rio de Janeiro, quer do ponto de vista da //violência e do arbítrio, quer do ponto de vista da corrupção e da cumplicidade com o crime organizado e a contraven-ção do "jogo do bicho". Datam deste período alguns casos famosos, que permaneceram várias semanas no noticiário da imprensa: o desenvolvimento do "caso Marli" (a empre-gada doméstica que ousou enfrentar a polícia Militar para identificar os assassinos de seu irmão); o "caso Misaque-Jatobá" (seqüestro e assassinato, por policiais, de pessoas supostamente envolvidas com tráfico de drogas) e o "caso
(8) Uma coleção completa do Jornal da República encontra-se no Setor de Documentação do CEDEC. Neste tema específico destacam-se matérias sobre a pena de morte e sobre linchamentos. Agradeço a espe-cial atenção do jornalista Mino Carta.
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28 MARIA VICTORIA BENEVIDES
Rosário", o jovem comerciário que morreu após ser tortu-rado na delegacia apenas porque se recusara a mostrar documentos numa "batida" policial nos ônibus da cidade.9 O "caso Marli", só no Jornal do Brasil, foi tratado, de abril
ajunho de 1980, em S9 notícias e 6 editoriais.
De--agosto -de 1979étagos1o.-de-1-980-foram levantadas, nos três maiores jornais,.diado.s. •. 298 notícias referentes--ã~ 126 casos de violência policial; destes, 22 são denúnciaS-~' . comprovàdas de torturas a presos ou suspeitos e 1S são
nq-tícias de seqüestros seguidos de morte envolvendo direta-mente policiais (não se trata d~_"Esqua<irãü", mas de pol~
ciais identificados).
Dê
3:gostode --1980 a julho de 1981foram levantadas 347 notícias, referentes a 14S casos de yiolência policial; contam-se 16 casos de tortuca compro~~ vada a presos ou suspeitos e 24 casos de proçessüsen-volvendopoliCiaisdenunciados por"'tortuia ou morte de presos.
No item "discussão de questões do Código Penal" destacam-se, pela freqüência com que foram noticiadas, a discussão sobre as modificações a serem introduzidas, tais como a "prisão cautelar" e a "prisão-albergue". H~uve,
com menor freqüência, noticiário sobre a diminuição da idade de responsabilidade penal para 16 anos, bem como sobre a pena de morte.
Este levantamento não inclui, especialmente, dados sobre a atuac;ão violenta da Polícia Militar nas ruas -como a ROTA, em São Paulo - pois tal pesquisa foi e continua sendo feita por Paulo Sérgio Pinheiro, em seus inúmeros trabalhos sobre o tema. Não inclui, igualmente, dados sobre linchamentos, já levantados e publicados pela autora, ou sobre violência policial contra menores. tO
(9) Ver, sobre o caso, o livro de José Barbosa Rosário, Quando B
Polícia Mata, Rio de Janeiro, Ed, Achiamé, 1983,
(10) Ver, de Paulo Sérgio Pinheiro, "Polícia e Crise Política: o Caso das Polícias Militares", e de Maria Victoria Benevides, "Linchamentos: Violência e 'justiça popular' ", ambos in Violência Brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1982; de Rosa Fischer Ferreira, Meninos da Rua, Comissão Justiça e Paz/CEDEC, 1980.
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O texto a seguir aborda o debate sobre causas (e solu-ções) da violência e da criminalidade, de acordo com a divulgação pela imprensa. Inclui a posição oficial - quan-do se destacam as declarações quan-do ministro da Justiça e outras autoridades do governo federal - e o chamado dis-curso "alternativo".
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