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Pluralidade na experiência: diálogo entre as noções do conhecer filosófico-teológico em Ivone Gebara e Friedrich Schleiermacher

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Pluralidade na experiência: diálogo entre as noções do conhecer filosófico-teológico em Ivone Gebara e Friedrich Schleiermacher

Raphaelson Steven Zilse1

1. Introdução

O viver gera o conhecer. A despeito das distintas situações, incluindo a condição dinâmica geográfica, histórica e sexual, este é um pressuposto em comum entre o filósofo e teólogo prussiano Friedrich Schleiermacher e a filósofa e teóloga brasileira Ivone Gebara. Busca-se apresentar aqui possíveis analogias entre o pensamento de ambos, que, com uma profunda crítica filosófica e teológica a uma noção dualista de ser humano, iniciam sua reflexão na unidade da vida das pessoas, perspectiva que desemboca numa nova compreensão do conhecer como um dinâmico e relativo processo individual e comunitário. Com pressupostos antropológico-filosóficos similares, seus desenvolvimentos teológicos também possuem analogias interessantes, como a conscientização da individualidade experiencial de cada pessoa no quesito da fé, além da própria forma com a qual ambos desenvolvem sua noção de Deus.

A despeito disto, é também imperativo compreender que há distinções entre ambos, em especial, os aprofundamentos e expansões hermenêuticas que o desenvolvimento de Gebara faz a uma matriz antropológico-filosófica similar à de Schleiermacher. Isto pode ser compreendido em sua explicitação da mulher (e do ponto de partida de gênero) como sujeito na construção cotidiana do conhecer, incluindo especificamente no próprio fazer teológico. Esta modificação identifica e ressalta o que, muitas vezes, é generalizante no pensar de Schleiermacher, e cujas consequências, apesar de ele ainda ter importantes

1 Mestre em Teologia e doutorando em Teologia pelas Faculdades EST. Bolsista CNPq. Membro dos grupos de

pesquisa Teologia Pública em Perspectiva Latino Americana (Prof. Dr. Rudolf von Sinner) e História do Cristianismo na América Latina (Prof. Dr. Wilhelm Wachholz). E-mail: raphaelson.zilse@gmail.com.

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reflexões sobre a mulher e a figura feminina e construções de gênero,2 são o obscurecimento da diversidade constituinte da própria humanidade e de seu fazer teológico. Levando em conta suas peculiaridades, o intento neste ensaio será o de ressaltar as características análogas nas análises antropológico-religiosas de Schleiermacher e Gebara, ressaltando as posições que conceitos como experiência, sentimento, emoção e linguagem têm dentro de seus determinados sistemas filosóficos e teológicos e suas possíveis relações para uma noção de fazer teológico.

2. A humanidade teológica em Friedrich Schleiermacher

Numa situação muito distinta da de Ivone Gebara e nossa própria, o pensamento de Schleiermacher (1768-1834) possui contribuições significativas quando se trata de críticas intra-europeias a uma forma de pensar absolutizante e universalizante oriundas do racionalismo e idealismo modernos. Inserido num contexto onde Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e sua construção filosófica se tornara norma, este sendo seu companheiro (numa relação mutuamente conflitante) docente na Universidade de Berlim, o pensar de Schleiermacher teve características muito distintas daquela que ainda predominaria por muito tempo como o último grande sistema filosófico. Tais características o levaram a ser rotulado pelo próprio Hegel de relativizador, o que pode ser encarado como enfatizando o caráter marginal de Schleiermacher na história moderna daquilo que seria uma grande dialética que culminara no saber absoluto eurocêntrico hegeliano.

2 Aqui é fundamental reconhecer a reflexão de Schleiermacher sobre sua própria pessoa em relação com as

mulheres. A despeito de ele partir de um pressuposto, pode-se dizer, essencialista de características do que constituiria o “feminino” (sentimento, emoção, imaginação), ao mesmo tempo, ele também buscou relativizar tais constructos, ao reconhecer nele mesmo tais características, portanto, até certo ponto, questionando distinções naturalizantes de gênero em voga em seu tempo. Além disto, ressalta a importância destas suas relações ao dizer que “é através do conhecimento do coração e da mente feminina que eu aprendi a conhecer o que o verdadeiro valor humano é” (SCHLEIERMACHER, apud CLEMENTS, 1991, p. 21-22), e até mesmo que “se eu me encontrasse, por diversão, desejando algo impossível, seria que eu fosse uma mulher” (SCHLEIERMACHER, 1860, p. 382). Apesar de seu desenvolvimento ambíguo nesta questão (ainda preso a uma mentalidade patriarcal moderna), e ser um assunto polêmico, como Thendeka busca ressaltar, Ruth Richardson apresenta em sua obra “O papel da mulher na vida e no pensamento do jovem Schleiermacher (1768-1804)” que Schleiermacher “ardentemente professa limitações de gênero e a importância da fusão de Geschlechtscharaktere [características baseadas em sexo/gênero] masculinas e femininas (e até mesmo sua eventual extinção como entidades separadas)” (RICHARDSON, apud THANDEKA, 2005, p. 302).

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Schleiermacher parte do fim da metafísica clássica kantiana, contudo, o radicaliza numa re-leitura de Baruch de Espinosa na tentativa de ontologicamente (poderia até ser dito biologicamente) unir aquilo que ainda estava dual em Immanuel Kant, o próprio conhecer. A partir de uma unidade dialógica fundamental entre o ser e o pensar, desenvolvidos, sobretudo, em suas aulas sobre seu fundamento filosófico, a Dialética, o conhecimento (Erkenntnis) – como substantivo utilizado por Kant – torna-se o conhecer (wissen) – verbo preponderante em Schleiermacher –, num processo dinâmico e intra-histórico atrelado ao ser humano e ao próprio contexto no qual emerge, incluindo a linguagem. Este conhecer surge na vivência humana relacional (entre si e com o mundo), cuja experiência real não é um ideal abstrato construído unicamente pela razão, mas surge de uma ação original e independente de um exterior. Assim, a despeito de utilizar a estrutura transcendental kantiana e seus dois momentos da recepção e sintetização, Schleiermacher relê-los a partir da unidade ontológica espinosiana (mas com uma conscientização maior da unidade biológica, por causa da crítica kantiana) e os conceitua como “função orgânica” e “função intelectual”, sendo a linguagem uma ferramenta intermediária entre o material e o imaterial que possibilita a construção dialógica intra e interpessoal. A partir disto, “Schleiermacher, de acordo com a natureza linguística do pensamento, transforma as condições a priori do conhecimento dos objetos em condições linguísticas. [...] que substitui a universalidade lógico-transcendental com uma universalidade linguística” (FLAMERIQUE, 2014, p. 205-206).

As consequências desta nova fundamentação epistemológica são perceptíveis em sua crítica às tentativas de universalização do conhecimento, já que este seria intrinsecamente um conhecer, ou seja, um processo dinâmico de construção dialógica, inclusive, retroativamente, limitando o conhecer histórico, “que está misturado com incertezas” (SCHLEIERMACHER, 1963, p. 248), à experiência humana de se encontrar já lançada em gerações e suas tradições. Fundamentado em tal perspectiva filosófica, com uma estrutura antropológico-filosófica que preconiza o ser anterior ao pensar, ele pode abrir o diálogo para uma multiplicidade de conheceres baseado numa multiplicidade de experiências e contextos nos quais tais surgem. Condizente com sua perspectiva de uma unidade do ser humano que

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produz seu conhecer em relação com suas experiências de existência, ele leva adentro da epistemologia teológica seus pressupostos.

Uma primeira característica ressaltada é sua crítica às tentativas contemporâneas de desenvolver uma religião natural, por exemplo, a de Kant com sua redução ética da esfera religiosa. A despeito de Schleiermacher ser reconhecido pelo desenvolvimento de uma noção da essência religiosa como sentimento de dependência absoluta (do fundamento transcendente/transcendental do Todo), é imprescindível reconhecer que tal não se dá por si mesmo, mas apenas como relação já sempre histórica, reflexiva, atrelada à linguagem e uma determinada visão de mundo. Como Reinhold Niebuhr expõe, o foco de Schleiermacher era “nem o fenômeno religioso abstraído de seu total sentido subjetivo, nem o tema isolado de seu mundo natural e social, mas era, ao invés, o conteúdo psíquico de consciência que preenche o sujeito [fills the self] em e através do nexo de sua existência-relacionamento e que, a partir daí, reduplica a si mesmo e simboliza a si mesmo nestas mesmas relações” (NIEBUHR, 1964, p. 143). Este enraizamento individual-social humano o levou a se posicionar contra toda abstração/idealização teológica que circunscrevia os desenvolvimentos teóricos contemporâneos, que os levavam a excluir as religiões em suas construções históricas, preconizando vias racionais de, se não conhecer a Deus em sua essência absoluta, pelo menos pensa-lo como uma ideia reguladora. Esta sua reflexão sobre a construção religiosa a partir de baixo, a partir da vivência humana concreta diária, não foi apenas teórica e inserida dentro do meio acadêmico, mas o levou a ver problemas sociais em sua época, por exemplo, ao defender uma inserção social plena da comunidade judia e sua aceitação como cidadãos e cidadãs sem a necessidade de uma relação com o cristianismo, defendendo, assim, sua pertença à sua própria tradição religiosa, reconhecido por Hannah Arendt, compreendendo também outras limitações, como uma posição excepcional dentro de seu contexto (BIRMINGHAM, 2006, p. 98).

Condizente com sua ótica da dinamicidade da existência humana, tanto a filosofia se torna um fazer filosófico, um “filosofando” (zur philosophiren), quanto a própria teologia, um fazer teológico em constante necessidade de refazeres teológicos. Tal perspectiva sobre o fazer teológico é exposta tanto em sua obra de 1811, de estruturação do estudo teológico,

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quanto sua obra doutrinal “A fé cristã”, de 1821 e 1822. Na primeira, a característica recai sobre a individualidade (mesmo que relativa) final do estudo teológico, onde, em última análise, cada um deve fazer sua própria reflexão teológica, já que a ótica é relativa à situação à qual é feita: “cada estudante de teologia deve formar sua própria perspectiva histórica para si mesmo, no que diz respeito tanto ao conhecimento do curso total do cristianismo quanto ao do momento da história na qual vive” (SCHLEIERMACHER, 1966, p. 49). Além da subjetivação do fazer teológico, criticando formas teológicas que recaiam num sistema de doutrinação e re-doutrinação comunitária objetivista, aqui ele apresenta os dois polos que, para manter viva e significativa a teologia, necessitam estar em constante relação: a ortodoxia, como “todo elemento de doutrina que é construído com o intento de se assegurar àquilo que já é comumente reconhecido” (SCHLEIERMACHER, 1966, p. 74), ou seja, o polo de tradição, e a heterodoxia, como “todo elemento construído pela inclinação de manter a doutrina móvel e criar espaço para ainda outros modos de apreensões”, o polo de inovação.

Sua teologia parte deste fundamento na existência humana, donde as experiências vivenciadas geram a própria linguagem teológica. Isto está em relação com as emoções suscitadas num momento de experiência religiosa, que é desenvolvida com diversas formas linguísticas, como poética e retórica, antes de se desenvolver como fórmula doutrinal, a exemplo da leitura do surgimento popular e poético da noção de “omnisciência” (§51.2) (SCHLEIERMACHER, 1963, p. 202). Ainda assim, para Schleiermacher não há um desenvolvimento doutrinal definitivo, mas há a necessidade da relação com as experiências de cada novo momento, visando o espírito ao invés da letra (§27.2), o que requer que “o tão frequentemente sistemas filosóficos mudem dentro desses limites [do conhecimento psicológico, ético, físico, metafísico], deve ser também as revoluções na linguagem dogmática” (§28.1) (SCHLEIERMACHER, 1963, p. 118). Portanto, mesmo que limitado ao seu próprio contexto, assinalando também para a necessidade de novos olhares.

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A reflexão teológica de Ivone Gebara parte de uma conscientização da íntima relação entre o conhecer teológico, a noção epistemológica que antecede tal e a sociogênese desta. Esta ótica acarreta posições éticas e políticas, pois critica reivindicações de universalidade epistemológica e hierarquizações altamente discriminatórias para com aquilo que ela denomina de epistemologia da vida ordinária. Assim, antes de lidar com a reflexão teológica, seu ponto de partida é a compreensão de que esta, quando se trata da linha predominantemente desenvolvida, está baseada numa epistemologia dualista excludente, historicamente construída, mas que é naturalizada:

A valorização de uma maneira de conhecer mais do que de outra está ligada à própria hierarquia e conveniência das pessoas dentro de um contexto preciso. É uma valorização contextual, circunstancial, cultural, política e social, além de responder a interesses grupais e individuais. (GEBARA, 2008a, p. 32)

Criticando esta hierarquização dualista de formas de conhecer que preconiza as produções ideais abstratas, Gebara parte para uma construção positiva de uma noção epistemológica que consiga abarcar diferentes formas de saber e de conhecer que permeiam a vida cotidiana: “o conhecimento da vida cotidiana é, nesse sentido, anterior à vida científica e condição para que ela se realize” (GEBARA, 2008a, p. 34). Fundamentado nisto, há uma sinalização contra perspectivas que busquem uma neutralidade ou objetividade acadêmica, que priorizem o imaterial, abstrato e teórico sobre o material, concreto e prático. Para ela, necessita-se estar consciente de que o conhecer é múltiplo e valorizável em si, o que, todavia, requer uma relativização da reivindicação de condição absoluta do saber científico, tomando o conceito de Gianni Vattimo, poderíamos dizer seu enfraquecimento.

Em seu ponto de partida, Gebara associa o conhecer com a experiência, como “o conjunto de processos que interagem no interior de cada indivíduo com seu meio” (GEBARA, 2008a, p. 33). Especificando ainda mais sua noção de experiência em outra obra, relaciona-o também com o próprio sentimento:

O sentimento aqui [que está também em relação com a religião] não é um sentimento intimista, mas algo que tem a ver com nossa constituição ontológica, com a percepção do mundo e por isso mesmo com o nosso conhecimento.

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Não apenas pensamos o mundo, mas sentimos o mundo. (GEBARA, 2008b, p. 39)

A partir da crítica filosófica a uma noção dualista e hierarquizante de epistemologia, cujas consequências concretas são visíveis em exclusões sociais de outras formas de saber e conhecer, baseada numa nova noção epistemológica que busca surgir da experiência cotidiana, na vivência humana, e não apenas do ser humano racionalizante, Gebara desenvolve sua desconstrução e reconstrução crítica do fazer teológico. Para ela, o fazer teológico necessita ter sentido (não meramente existencial, mas libertador) para a situação na qual ocorre, ou seja, a teologia necessita surgir de e para um lugar ordinário, o que a leva a afirmar que teologia “não é o logos sobre Deus, mas a experiência humana na complexidade de suas vivências e na irredutibilidade a uma razão explicativa única [...] perspectiva [que] nos abre para entender a palavra teologia como palavra de poder, e poder sobre os outros a partir de um conceito limitado de Deus” (GEBARA, 2008a, p. 37). Isto pressupõe, em analogia à sua crítica a uma idealização racionalizante de filosofia, tecer críticas a uma idealização espiritualizante (e manipuladora) de teologia.

Para Gebara, a reflexão teológica como atualmente se dá é, na realidade, muito mais uma recitação de fórmulas doutrinárias do que uma reflexão propriamente dita. Poderíamos compreender isto em paralelo com as críticas de Gebara aos ideais abstratamente construídos pela reflexão filosófica e suas reivindicações de universalidade e subsequentes naturalizações, já que supostamente seriam produtos da neutralidade racional, com sua isenção de relações situacionais e corporais, ou seja, históricas. A teologia dualistamente fundamentada também gera tais reivindicações, sobrepujando a história presente, desprezando-a com histórias passadas ou ideais de pureza desenvolvidos em cima disto. Nisto, vê-se as absolutizações de suas formulações, supostamente neutralmente construídas a partir de textos neutralmente escritos, “e, com isto, nem permitimos à vida presente de expressar-se porque acreditamos que há uma verdade de fé (que, na realidade, é pura construção conceitual) que preside tudo e que é inquestionável” (GEBARA, 2008a, p. 39). Este silenciamento teológico, que ocorre não apenas academicamente, mas na vivência cotidiana das comunidades religiosas, é desdobramento da imposição epistemológica de uma noção estática de Verdade teológica, inconsciente de sua própria historicidade.

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Em contraposição a esta forma de ver, fazer e viver a teologia, Gebara apresenta uma – como poderíamos denominar em paralelo com a de Schleiermacher – empoderadora. Tal fazer teológico, portanto, não parte de cima, mas emerge a partir de baixo, tendo como “matéria prima” a experiência vivida das pessoas, com seus sofrimentos, dúvidas e necessidades. Esta perspectiva epistemológica do pensar teológico, todavia, possui sérias consequências para a vivência, sendo condizente com sua fundamental reivindicação das relações intrínsecas entre epistemologia, ética e política, a partir de onde também critica qualquer teologia que não consiga abarcar as experiências das mulheres em sua própria noção de fazer teológico. Em contraposição ao desprezo apriorístico pelo cotidiano a partir das antiepistemologias teológicas (como Gebara define o bloco de verdades absolutas que obscurece a episteme e a criatividade da vida), esta noção dinâmica da história e da vida humana é parte do presente e das pessoas que vivem o presente, sem, contudo, abrir mão do passado, ressignificando-o para incluir o presente e o futuro:

É este presente que flui sem cessar que nos convida a criar nossa relação com o passado [...] Valorizar o presente é valorizar o passado como presente passado e apostar para que as novas gerações não repitam nosso presente como dogma estático, mas que criem o seu presente e se lembrem do passado que foi outrora presente. (GEBARA, 2008a, p. 49)

Desta forma, Gebara parte da experiência, ou, mais especificamente, do sentimento como aspecto ontológico, a partir de onde desenvolverá o sentimento religioso:

Pode-se dizer que sentir a vida cotidiana, as pessoas, as situações alegres ou tristes, as esperanças e temores, se mostra através de uma linguagem emocional que muitas vezes escapa dos conceitos racionais e dos padrões habituais de pensamento. [...] É aqui que se situa uma chave antropológica importante para a presente reflexão.

Afirmo o sentimento religioso como uma variação do sentimento próprio a todos os seres humanos, com uma conotação de sentido indicando a afirmação de uma transcendência misteriosa que envolve, entrecruza ou atravessa a realidade humana. (GEBARA, 2008b, p. 39-40)

Para Gebara, a limitação (e verdadeira potencialidade) da reflexão teológica está tanto em relação com as categorias de sentimento, experiência e emoção, quanto com a própria linguagem. Segundo ela, “as emoções [assim como as experiências que vivemos] são fundamentais na construção da linguagem religiosa” (GEBARA, [s.d., p. 31]). Este aspecto

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subjetivo da religião, todavia, também é construído comunitariamente, e tais construções comunitárias de interpretações de experiências e emoções são o fundamento para o desenvolvimento de uma forma de crença, assim, ressaltando o caráter histórico e contextual de tais desenvolvimentos que se desdobram em diferentes religiões: “Desde experiências e emoções diferentes, nascem crenças diferentes” (GEBARA, [s.d., p. 31]).

4. Conclusão

A partir do exposto, são diversas as analogias que podem ser feitas entre os desenvolvimentos de Schleiermacher e Gebara, especialmente quando se foca as estruturas da constituição antropológica em sua relação com a religião e o desenvolvimento do fazer teológico. Aqueles ressaltados aqui são a relação que a experiência religiosa possui com a característica ontológica do sentimento humano (em ambos transcendendo conotações intimistas e emotivas), e como isto se dá em relação com a emoção, a linguagem, e o contínuo processo de fazer teológico. A despeito de tais paralelos, é importante frisar que Gebara ressalta outra base teórica para lidar com a relação entre religião e sentimento, numa afirmação que pode ser um tanto questionável: “creio que devemos a Feuerbach [1804-1872] o mérito de ter refletido de forma sistemática sobre o assunto, especialmente em referência ao cristianismo” (GEBARA, 2008b, p. 41).3 Não obstante, é importante compreender que o desenvolvimento de Gebara, apesar deste reconhecimento, é uma tentativa de superar a redução antropocêntrica feuerbachiana da religião, ao trabalhar,

3 A despeito de serem diversos os paralelos entre Schleiermacher e Feuerbach, em nenhuma condição

Feuerbach pode ser posto como um ponto inaugural de uma reflexão sistematizada sobre a construção da religião a partir de relações fundantes com o sentimento humano. György Lukács (1885-1971) é um pensador que reconhece em Schleiermacher um precursor desta forma de pensar teológico vista em Feuerbach – “Lukács, em contraposição, viu em Schleiermacher o precursor da fé moderna sem metafísica, que ele tomou [poderíamos dizer que numa leitura antropocêntrica] como sendo ateísmo” (PEITER, 2010, p. 8) – e, a despeito da relação teórica de Feuerbach com Schleiermacher ainda ser algo passível de pesquisa (já que aquele é normalmente posto dentro da linha filosófica da esquerda hegeliana), é fundamental compreender que Feuerbach estudou sob Hegel na Universidade de Berlim, mas também sob Schleiermacher (em suas aulas teológicas e filosóficas), pensadores que, como visto acima, possuem estruturas filosóficas fundamentalmente divergentes, sendo a posterior a que mais paralelos possui com Feuerbach e o materialismo histórico subsequente, tanto no aspecto teológico, como Lucáks reconhece, quanto no filosófico, já que o desenvolvimento teológico na tentativa de superação metafísica parte de uma noção antropológico-filosófica histórica.

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como ela diz, numa perspectiva ecocêntrica, buscando a superação de uma desigualdade ontológica entre Deus e o ser humano, o que a lança numa reflexão teológica similar à de Schleiermacher e sua noção de Deus como o Todo e o Donde há o sentimento de dependência absoluta humana, impelindo à vivência.

Schleiermacher, ao mesmo tempo em que parte da humanidade e dá abertura para novos sujeitos no fazer teológico, não o faz explicitamente para a mulher, apenas abrangendo a noção de teologia para além de uma denominação ou tradição cristã. Esta leitura de humanidade é perceptível em sua reflexão sobre a redenção feita por Cristo, que não é individualista, mas uma da raça humana, portanto, englobando a humanidade como um todo (em todas as suas contingências históricas) no próprio quesito soteriológico. Assim, a despeito de construir um fundamento filosófico que abarque uma pluralidade de individualidades, esta ótica geral o leva a desenvolver uma noção de reflexão teológica da humanidade. Ivone Gebara, partindo da humanidade, ao mesmo tempo em que têm paralelos, têm divergências. Uma destas é que ela conscientemente parte de uma diversidade que engloba indivíduos homens e mulheres, tanto em suas experiências, quanto na linguagem e na execução do fazer teológico. Assim, sua leitura teológica, apesar de lidar com a humanidade, não lê esta em sua generalidade, mas na vivência cotidiana de cada pessoa, mulheres e homens, onde a teologia deve ser significativa, mas também libertadora.

Desta forma, uma diferença fundamental entre Gebara e Schleiermacher é que, em sua busca por ressaltar a experiência cotidiana, social, de indivíduos, Gebara utiliza uma hermenêutica explicitadora da mulher. Como visto, pode-se dizer que ambos partem de um pressuposto hermenêutico da incapacidade de “recuperar a experiência dos antigos pastores porque não os somos, nem das comunidades agrárias originais” (GEBARA, [s.d.], p. 31), buscando, ao invés, o que poderíamos chamar o espírito por detrás da letra. Em Schleiermacher, isto implica na necessidade de revoluções da própria linguagem dogmática, já que, para manter uma reflexão teológica viva e em relação com uma vivência teológica, esta necessita estar em constante diálogo entre tradição e inovação. A despeito deste passo fundamental na relativização do fazer teológico, é com a teologia feminista, e, neste caso, com Gebara, que, com um novo sujeito no fazer teológico, se descontrói e se adquire uma

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chave específica advinda de sua(s) própria(s) experiência(s), sentimento(s) e emoção(ões) como mulhere(s) sob um domínio patriarcal, fundamental para uma construção e ressignificação do que ela chama de sabedorias antigas.

Findando esta reflexão, enquanto que em Schleiermacher vemos pressupostos essenciais análogos ao que Gebara utilizará para seu próprio desenvolvimento, vendo nele, como Luis Restrepo ressalta, um “pioneiro” na conscientização da subjetividade (mesmo que comunitariamente atrelada na linguagem) da reflexão teológica, é com Gebara e sua ótica de mulher, construída a partir da experiência de exclusão, sentimentos de opressão e emoções suprimidas, que ela deixa ainda mais humano o fazer teológico, reconhecendo o caráter não apenas cultural, mas político de libertação no cotidiano, não apenas do ser humano, mas do ser mulher e do ser homem.

Referências

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