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A crise da ciência política behavioralista e a emergência dos think tanks nos Estados Unidos 1

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A crise da ciência política behavioralista e a emergência

dos think tanks nos Estados Unidos

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José Victor Regadas Luiz (Fiocruz)

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A formação do espaço dos think tanks, atualmente o principal meio institucional de ligação entre poder político e produção intelectual nos Estados Unidos, foi elemento crucial para a ascensão do moderno movimento conservador. É comum na literatura historiográfica sobre o conservadorismo estadunidense o emprego de termos como “conservative counterintelligentsia” (O’Connor, 2008), “counter-establishment” (Blumenthal, 1986; Himmelstein, 1990), “new power brokers” (Hacker e Pierson, 2006), “shadow establishment” (Horwitz, 2013), entre outros, para aludir ao papel destas instituições no desmonte do chamado “consenso liberal” do pós-guerra. Contudo, mais do que apenas se contrapor à ordem liberal, definida pela atuação, ainda que limitada, do Estado como regulador da economia e garantidor do bem-estar social, promovendo um novo conteúdo para as políticas públicas baseado na intransigente defesa do livre mercado e da responsabilização dos indivíduos, sem menci-onar dos valores fundamentalistas cristãos, os think tanks conservadores forjaram um novo modelo de produção discursiva caracterizado pelo que se convencionou chamar de “mercado de ideias” e que mais tarde, por prolongamento semântico, desaguaria nas “guerras culturais”.

Essa “nova matriz discursiva”, por assim dizer, estaria fundamentada na compreensão de que a esfera pública de debate não deveria ser orientada por critérios como objetividade do conhecimento científico e neutralidade partidária, componentes que, conforme acusariam os conservadores, não sem

1 Paper produzido para apresentação no GT “Ciências Sociais: contextos sociais, institucionais e desafios em

perspec-tiva global, nacional e local”, coordenado por Carlos Benedito Martins e Lidiane Soares Rodrigues, no 44° Encontro Anual da ANPOCS, dezembro de 2020.

2 E-mail: jose.regadas@fiocruz.br

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razão, haviam servido de véu para o predomínio da ideologia liberal, mas, em vez disso, deveria ser regulada pela noção alternativa de equilíbrio da oferta entre distintas perspectivas ideológicas. Como argumentou o historiador Jason Stahl (2016, p. 47) em seu estudo sobre os think tanks conservadores e a cultura política nos Estados Unidos após 1945, “embora o termo [“mercado de ideias”] já tivesse sido usado no passado, a elite conservadora, especialmente aquela nos think tanks, começou a adotar o termo como uma forma de minar o consenso tecnocrático liberal”, substituindo “valores como apar-tidarismo, neutralidade e objetividade” por outros, “como balanceamento e abertura”, e com isso cri-ando brechas para ocupar o espaço público e disputar a sua hegemonia. Assim, os think tanks teriam sido responsáveis por introduzir uma “nova matriz discursiva” na vida política dos Estados Unidos, sem a qual o ideário conservador, e todo seu cortejo de políticas públicas, dificilmente teriam logrado destronar o antigo “consenso liberal”.

O objetivo deste trabalho é apresentar parte dos resultados de uma pesquisa mais ampla sobre o papel da formação dos think tanks na constituição do movimento conservador nos Estados Unidos. Questionamentos sobre a emergência dos think tanks e de sua nova matriz discursiva levaram a uma investigação sobre a crise do “consenso liberal” nos Estados Unidos e de sua correspondente matriz, ancorada na linguagem da objetividade e neutralidade científicas que prevalecera no discurso público do país com o fortalecimento das chamadas “behavioral sciences” no pós-guerra. O trabalho parte de uma análise crítica em duas frentes. Primeiro, a apreciação da literatura sobre os think tanks e o mo-vimento conservador nos Estados Unidos, cujas explicações, mesmo as menos convencionais, sobre a origem desse fenômeno deixariam algumas importantes lacunas, principalmente no que se refere ao papel da crise do complexo acadêmico liberal na criação das condições de emergência deste novo tipo de intelectual coletivo.

Segundo, o exame da historiografia disciplinar sobre as ciências sociais estadunidenses, em especial sobre a “revolução behavioralista” na ciência política, que, devido a deficiências inerentes a sua abordagem “internalista” predominante, deixaria não apenas de apreender a real dimensão dos vínculos entre o behavioralismo e o contexto político geral da Guerra Fria, como vem sendo demons-trado por uma prolífica literatura no campo da historiografia das “cold war social sciences”, como também tenderia a restringir as repercussões do movimento antibehavioralista ao âmbito puramente disciplinar, sem reconhecer como a sua sublevação, ao extrapolar os muros que cercam a “torre de marfim”, construiu uma “nova imagem” para a ciência política que, ao priorizar a relevância ao rigor metodológico, a defesa dos valores em oposição à descrição factual e o posicionamento ideológico à imparcialidade política, ajudou a pavimentar inovadoras alternativas institucionais avessas às formas tecnocráticas liberais marcadas pela retórica cientificista dos behavioralistas, o que, eventualmente, acabou contribuindo para a proliferação dos think tanks nos Estados Unidos.

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No curso desta revisão crítica, examino mais detidamente os laços intelectuais e institucionais que atrelavam a ciência política behavioralista à fabricação do “consenso liberal” no pós-guerra, para, finalmente, abordar a crise daquele consenso liberal e de sua estrutura de sustentação institucional a partir de um estudo de caso mais delimitado sobre a produção intelectual e as perspectivas organiza-cionais do Caucus for a New Political Science, principal vetor da oposição à ciência política behavi-oralista, que também serviria de base, como tento mostrar sumariamente, a vários intelectuais que, buscando um conhecimento politicamente engajado, participaram da construção do Institute for Po-licy Studies (IPS), um think tank radical de esquerda que logo serviria de modelo a ser copiado por congêneres conservadores, como a Heritage Foundation.

No que se refere ao primeiro ponto, é notável que parte significativa dos estudos sobre os think tanks é acompanhada de uma introdução, geralmente breve, sobre a gênese dessa espécie de institui-ção. E, embora haja uma grande variação de interpretações sobre qual seria o primeiro think tank nos Estados Unidos, alguns apostando, por exemplo, na Brookings Institution, fundada em 1916 (McGann, 1992), outros, na National Conference of Social Welfare, de 1873 (Linden, 1987), outros ainda, na Russell Sage Foundation, de 1907 (Abelson, 2009), além dos que buscariam essa origem num passado ainda mais remoto, apostando na American Social Science Association, de 1865 (Smith, 1991), em geral, todos esses autores tendem a concordar que o fenômeno deita raízes na Era Progres-sista, período em que intelectuais, filantropos e empresários resolveram mobilizar as ciências sociais para formular políticas públicas que mitigassem os conflitos sociais decorrentes do desenvolvimento de uma pujante sociedade industrial. Desde então, em sucessivas “ondas”, prossegue a narrativa pa-drão, cada vez mais e mais think tanks, resultados de diferentes impulsos históricos, como a Primeira Grande Guerra, a Grande Depressão, a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria (as periodizações variam apenas ligeiramente), teriam se agregado aos primeiros até que, a partir dos anos 1970, teria ocorrido um verdadeiro boom na criação de think tanks, a ponto de que aquilo que se contava às dezenas, hoje se contaria aos milhares.

Esse big-bang dos think tanks, por sua vez, seria, via de regra, explicado pelo intenso processo de polarização ideológica do debate político nos Estados Unidos no final do século vinte, engendrado pelos grandes conflitos sociais e políticos dos anos 1960, responsáveis por estilhaçar de vez o alarde-dado “consenso liberal” do pós-guerra. Nascido como reação a tais eventos, ou ao menos fortalecido por ela, um vigoroso movimento conservador emergiu na cena política estadunidense, graças ao forte apoio do empresariado que, articulado por figuras como William E. Simon, Lewis F. Powell, Irving Kristol, e William Buckley, Jr., verteu rios de dinheiro através de um conjunto de novas e impetuosas fundações conservadoras, como a Scaife Foundation e John M. Olin Foundation, no projeto de cons-trução de uma rede de institutos e centros de pesquisa orientados para a promoção agressiva do ideário conservador como contraponto ao establishment tecnocrático liberal, o que desencadeou, no processo,

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a politização atual dos think tanks. De acordo com essa versão, sustentada pela maioria dos estudiosos sobre os think tanks e o movimento conservador, esta ideologização dos think tanks contrastaria enor-memente com a sua disposição anterior, guiada pela aspiração científica de busca por um conheci-mento objetivo e desinteressado. Apenas para ilustrar com um exemplo, dos múltiplos possíveis num universo bastante repetitivo, citemos uma recente e elogiada investigação sobre o movimento conser-vador, Dark Money, de autoria de Jane Mayer. Diz ela que “os primeiros think tanks lutavam para promover o interesse público geral, não interesses estreitos e partidários. Na tradição do movimento progressista, eles professavam se orientar pela ciência social, não pela ideologia”, porém, “nos anos 1970, com o financiamento de um punhado de doadores extremamente ricos, como Scaife, assim como com o apoio de algumas grandes corporações, toda uma nova forma de ‘think tanks’ emergiu, mais empenhada em vender uma ideologia predeterminada a políticos e ao público do que empreender pesquisas acadêmicas” (Mayer, 2017, p. 96). Tais narrativas são o senso comum nos estudos sobre think tanks e sobre o movimento conservador. Como arrematou o cientista político James G. McGann (1992), um dos pesquisadores mais citados na literatura sobre os think tanks, a emergência dos think tanks conservadores teria levado à passagem, na esfera de debate público, do predomínio “de acadê-micos para ideólogos”.

Ainda que sublinhemos que a nova matriz discursiva implementada pelos think tanks conser-vadores, o dito “mercado de ideias”, de fato se baseia ostensivamente na defesa da livre oferta das opiniões ideológicas em vez do apelo à neutralidade e à objetividade científicas característico da an-tiga matriz discursiva liberal, o que mais surpreende nessa narrativa é que elas tende a tomar acriti-camente esta última pelo seu valor de face. Dessa forma, o conhecimento convencional é de que, até os anos 1970, essas instituições eram apartidárias e objetivas, respaldadas nas ciências sociais, e que, desde então, uma vez dominadas por incansáveis conservadores empenhados numa feroz “guerra de ideias”, elas teriam se degradado à condição daquilo que se costuma denominar de “advocacy think tanks”, o que, por seu turno, teria provocado um deletério impacto no debate público, não mais ilus-trado pelo conhecimento objetivo e desinteressado de cientistas sociais, mas sim tumultuado por uma cacofonia de opiniões ideológicas infundadas fabricadas sob medida para atender a interesses espe-cíficos.

O sociólogo Thomas Medvetz contestaria de forma bastante convincente esta narrativa histó-rica sobre os think tanks. Em oposição à narrativa hegemônica, segundo a qual os think tanks parecem ter surgido como uma instituição pronta e acabada desde o final do século dezenove e início do século vinte, Medvetz argumenta que o surgimento daquilo que ele chama, inspirando-se na teoria dos cam-pos sociais de Pierre Bourdieu, de “espaço dos think tanks”, teria começado, a rigor, somente a partir de meado dos anos 1960, como resultado do embate entre dois tipos de intelectuais coletivos antagô-nicos: de um lado, o “establishment tecnocrático liberal”, e, de outro, um grupo de intelectuais

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ativistas, segundo ele majoritariamente conservador. Os think tanks, em suma, seriam o produto even-tual da colisão entre dois tipos distintos de organizações intelectuais ou “conjuntos de posições no campo da expertise” nos Estados Unidos (Medvetz, 2012, p. 115) – o primeiro formado por vários centros de pesquisa criados na primeira metade do século vinte com base na “crença comum em soluções técnicas para as crises do capitalismo” e que desempenhariam muitas das vezes funções equivalentes à burocracia oficial, o que ele denomina de “proto-think tanks”; e o segundo constituído por intelectuais ativistas, principalmente à direita, críticos da “razão tecnocrática” da ordem liberal, cujo principal apoio viria de um “crescente movimento empresarial a favor do livre mercado, que procurava ter o controle sobre o campo econômico” (ibid., p. 54). “O principal resultado desse pro-cesso foi a formação de um novo subespaço de produção de conhecimento com a sua própria ortodo-xia, convenções e normas internas” (ibid., p. 17).

Medvetz, ao contrário da imensa maioria dos estudiosos sobre o fenômeno dos think tanks – é preciso excluir dessa lista estudiosos alinhados à chamada “teoria crítica das elites”, como Joseph G. Peschek (1987) e William G. Domhoff (2013) – rejeita fortemente aquela versão idealizada sobre o passado dessas organizações. O que Medvetz chama de “proto-think tanks”, isto é, o conjunto da-quelas instituições que integravam a tecnocracia liberal, cada qual percebida até os anos 1960 como sui generis, e que eventualmente passaram a se reconhecer mutuamente e a serem reconhecidas no discurso público como think tanks, era tudo, exceto neutro e objetivo – muito embora este fosse o seu discurso de legitimação. Todavia, se o sociólogo identifica corretamente os “proto-think tanks”, em que pese a sua retórica tecnocientífica de legitimação, como profundamente ideológicos, seu trabalho inexplicavelmente é omisso justamente em relação à instituição mais importante do aparato tecnocrá-tico liberal do pós-guerra que seria frontalmente nos anos 1960 e 1970 por “intelectuais ativistas”, a saber, a universidade.

Em sua recapitulação histórica sobre as sucessivas ondas evolutivas dos “proto-think tanks” no século vinte, em nenhum momento Medvetz menciona o papel das universidades, muito menos chega perto de sugerir que elas pudessem compor, juntamente com os chamados “proto-think tanks”, a tecnocracia liberal, muito embora o discurso de objetividade e neutralidade científicas adotado por essas instituições fosse inegavelmente produto do campo acadêmico (ibid., p. 47-72). Aliás, Medvez não apenas retira as universidades da tecnocracia liberal, como opõe constantemente os think tanks ao que alude como “intelectuais mais autônomos” ligados à academia. É nesse sentido que especula, por exemplo, que “na falta de um espaço dos think tanks altamente desenvolvido nos Estados Unidos, o conhecimento sociocientífico autonomamente produzido provavelmente desempenharia um papel maior no delineamento dos termos e condições do debate sobre políticas públicas depois dos anos 1960” (ibid., p. 211).

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Desta forma, se, por um lado, Medvetz não trata os “proto-think tanks” como um manancial de conhecimento neutro e objetivo, identificando, muito corretamente, o seu papel na legitimação de determinados interesses de classe, por outro lado, ao excluir as universidades da tecnocracia liberal, ele ignora que essa instituição, talvez mais do que qualquer outra, foi um dos principais sustentáculos ideológicos da ordem liberal no contexto da Guerra Fria. É por isso que, estranhamente, quando ele aborda o ataque lançado pelos intelectuais ativistas à tecnocracia liberal, ponto alto de seu argumento sobre a emergência do “espaço dos think tanks”, ele afirma que:

Primeiro, é crucial reconhecer que, ao desafiar a autoridade dos tecnocratas, os ativistas en-frentavam um problema fundamental. Com virtualmente nenhuma credencial ou título aca-dêmico para mostrar, e nenhum corpo de conhecimento reconhecido sob seu domínio – isto é, nenhuma forma de expertise – eles não podiam se constituir facilmente como críticos em-basados no debate político. E nem poderiam exercer qualquer controle de propriedade sobre o seu conhecimento e, por extensão, reivindicar qualquer dividendo material ou simbólico normalmente pago a um especialista. Consequentemente, o seu conhecimento estava sempre em risco de ser cooptado por outros especialistas, incluindo tecnocratas. Com respeito a sua posição no campo da expertise, os ativistas enfrentavam o problema de excessiva abertura. Como resultado, muitas de suas atividades durante os anos 1960 e 1970 podem ser compre-endidas como elementos de uma estratégia de fechamento, uma tentativa de “certificar” o seu conhecimento e se constituir como experts de novo tipo. O elemento principal de sua estra-tégia foi estabelecer uma série de centros de pesquisa politicamente orientados e sem fins lucrativos que serviu como uma função de autocredenciamento. Organizações como o

Insti-tute for Policy Studies (fundada em 1963) e a Heritage Foundation (1973) exemplificam essa

estratégia. Por volta de meados dos anos 1980, centenas de centros de pesquisa em políticas públicas ideologicamente orientados emergiram nos Estados Unidos. (Ibid., p. 91)

Não apenas as universidades e os seus inúmeros centros de pesquisa são excluídos da tecno-cracia liberal, como os próprios “intelectuais ativistas” são retratados como verdadeiros outsiders, desprovidos de certificação acadêmica, sem vínculos com as instituições universitárias, o que é uma percepção bastante limitada, tanto acerca da tecnocracia liberal, que teve nas universidades uma de suas instituições mais atuantes, quanto dos chamados intelectuais ativistas, cujas trajetórias eram cla-ramente ligadas à academia. Medvetz, porém, não é o único que exclui ou subestima consideravel-mente o papel das universidades e de seus intelectuais na constituição do aparato tecnocrático liberal nos Estados Unidos. Stahl, por exemplo, apesar de ter o mérito de reconhecer ao menos o papel das disciplinas de ciência política, economia e psicologia na “despolitização” da visão de mundo do “con-senso liberal”, argumentaria que, “embora muito do pensamento acadêmico do con“con-senso liberal al-cançou poder através de instituições tradicionais de ensino superior, think tanks como a Brookings também eram parte integral, especialmente no que se referia ao poder de produção de políticas públi-cas. Eles serviam como ponte institucional para o Estado de um modo que a maioria das universidades não poderia competir” (Stahl, 2016, p. 12). Stahl cita, nesse sentido, o trabalho do historiador Nils Gilman (2003) sobre as origens da ideologia da modernização durante a Guerra Fria, a fim de corro-borar o seu argumento de que seriam os think tanks (ou o que Medvetz chamaria de proto-think tank) e não as universidades o principal elemento daquela tecnocracia. Acontece, porém, que o “think tank” mencionado em alusão à obra de Gilman era o Center for International Studies (CENIS), uma

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reconhecida instituição acadêmica de pesquisa vinculado ao Massachusetts Institute of Technology (MIT), dirigida por muitos anos pelo cientista político Ithiel de Sola Pool. Ademais, segundo o pró-prio Gilman, antes da teoria da modernização se consagrar naquele centro universitário, ela teria se originado no Departamento de Relações Sociais de Harvard, com apoio financeiro do Social Science Research Council, através do seu Committee on Comparative Politics, coordenado, por sua vez, pelo cientista político Gabriel Almond. Assim, o que não deixa de ser curioso, a informação apresentada por Stahl, no lugar de corroborar a sua proposição, a fragiliza ainda mais.

Esta pesquisa parte da compreensão correta de Medvetz de que o “espaço dos think tanks” foi, de fato, o produto do choque entre dois conjuntos de intelectuais: por um lado, aqueles que integravam o aparato tecnocrático e, por outro lado, aqueles chamados de “intelectuais ativistas”. Mas, diferen-temente deste autor, argumento que: 1) as universidades eram uma parte integral da tecnocracia liberal da Guerra Fria; 2) muitos dos considerados proto-think tanks estavam diretamente ligados às univer-sidades, quando não diretamente, ao menos se espelhavam no seu modo de produção discursivo; 3) o ataque sofrido por tais instituições a partir do final dos anos 1960 não foram desferidos somente por “intelectuais ativistas” externos, mas antes por intelectuais devidamente assentados no interior de sua estrutura, com fortes credenciais acadêmicas; 4) tais ataques, por sua vez, voltavam-se contra o núcleo teórico e metodológico das ciências sociais no pós-guerra, ou seja, contra o behavioralismo, precisa-mente a abordagem que enfatizava a objetividade e a neutralidade como aspectos basilares do conhe-cimento legitimamente científico e que, através da teoria democrática pluralista a ela estreitamente associada, servia de esteio ideológico à ordem liberal da Guerra Fria; 5) por fim, aquilo que possibi-litou a emergência do “espaço dos think tanks” não foi meramente o ataque de “intelectuais ativistas” preponderantemente conservadores ao aparato tecnocrático liberal, por mais que estes eventualmente tenham sido seus grandes beneficiários, mas, principalmente, a crise no interior da própria academia, impulsionada pela rebelião estudantil nos campi universitários e pela insurgência de profissionais nas associações disciplinares, predominantemente à esquerda, e que repercutiu profundamente no ques-tionamento epistemológico e político às “behavioral sciences”, especialmente a que proponho anali-sar adiante como um caso exemplar, a ciência política.

A “revolução behavioralista” e o “consenso liberal” na Guerra Fria

A chamada “revolução behavioralista” na Ciência política dos Estados Unidos teve uma im-portância singular para a reconfiguração intelectual da disciplina e o seu desenvolvimento institucio-nal nas duas décadas posteriores à Segunda Guerra. A ascensão do movimento behavioralista, lide-rado por cientistas políticos como David Easton, Heinz Eulau, Bernard Berelson, V. O. Key, Austin Ranney, Robert Dahl, David Truman e Gabriel Almond, para mencionarmos alguns de seus

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expoentes, desempenhou um papel crucial na reorientação teórico-metodológica da disciplina. Por um lado, moveu-a acentuadamente no sentido de uma “ciência básica” mais “moderna”, de teor “em-piricista” e mesmo “positivista”, focada na observação pretensamente “neutra” e “objetiva” do com-portamento dos indivíduos a partir do uso sistemático de um conjunto inovador de técnicas de pes-quisa e de análise de dados, de caráter sobretudo quantitativo, em oposição a uma alegada disposição “tradicional”, mais “filosófica” e “historicista”, ora considerada demasiadamente afeita a especula-ções normativas, ora ingenuamente comprometida com a busca prematura de conhecimentos aplicá-veis. Por outro lado, ajudou a fundamentar e propagar as “teorias pluralistas” sobre o funcionamento dos governos democráticos nos Estados Unidos e, por extensão, de todo Ocidente desenvolvido, e também, correlatamente, no âmbito da análise política comparada, as “teorias da modernização”, que juntas dominaram, não sem relevantes, porém marginais contestações, todo cenário intelectual disci-plinar da época. Ao mesmo tempo, os behavioralistas, motivados por toda uma retórica revolucioná-ria, foram em larga medida propulsores da definitiva consolidação profissional da disciplina após a guerra.

O desenvolvimento institucional da Ciência política nos Estados Unidos pode ser rapidamente aferido em algumas cifras e informações. O número de membros da American Political Science As-sociation (APSA), que em 1946 era de cerca de 4 mil, passou em 1967 para mais de 14 mil. A quan-tidade de departamentos de Ciência política nas universidades, assim como de cursos de pós-gradua-ção e, consequentemente, de profissionais formados, também se elevou exponencialmente, o que, por sua vez, intensificou a tendência de profissionalização do campo, com a exigência cada vez maior por diplomas de doutorado para a ocupação de posições acadêmicas em instituições de ensino e pes-quisa que até pouco tempo antes não o consideravam indispensáveis. Somente entre 1960 e 1967, o total de departamentos acadêmicos de Ciência política passou de 466 para 500, e em outros 300 a disciplina era oferecida de forma combinada. Entre 1953 e 1962 foram contabilizadas 64 instituições que ofereciam um ou mais cursos de doutorado em Ciência política, e em 1967 este número chegaria a 75 departamentos em todo o país. Somente os dez maiores cursos de pós-graduação na área forma-ram, entre 1958 e 1965, 2.185 doutores. Novas associações regionais de ciência política, sob o manto da APSA, também foram criadas após 1945: a Pacific Northwest Political Science Association, a New England Political Science Association, a Puerto Rican Political Science Association, e a Western Political Science Association, que se somaram a outras duas fundadas anteriormente, a Midwest Con-ference of Political Scientists e a Northeastern Political Science Association. Duas dessas associações fundariam os seus próprios periódicos, o Western Political Quaterly (1948) e o Midwest Journal of Political Science (1957). E a publicação de livros acadêmicos em Ciência política, de acordo com a contabilização de resenhas e notificações de lançamento em periódicos, passou da casa dos mil anuais no final dos anos 1960 (Somit e Tanenhaus, 1967, p. 145-172, passim). Por tudo isso, como concluiu

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acertadamente Terence Ball (1993, p. 216), “mensurados em quase todos os aspectos – verbas aloca-das, escopo e magnitude dos fundos provenientes das fundações, cátedras universitárias criadas e preenchidas, bolsas de estudo concedidas, pesquisas de opinião conduzidas, número de livros e arti-gos publicados, teses escritas, diplomas conferidos, etc. – os anos pós-guerra foram uma época gene-rosa para a ciência política”.

Todo esse vigoroso desenvolvimento institucional da disciplina não teria sido possível sem o respaldo de uma densa rede de instituições públicas e privadas empenhadas no fomento das iniciativas “behavioralistas” na disciplina. A “abordagem behavioral” (Dahl, 1961a) ou a “persuasão behavioral” (Eulau, 1963) encontrou amplo suporte em fundações filantrópicas como a Russell Sage Foundation, a Carnegie Corporation, a Rockefeller Foundation e, principalmente, a Ford Foundation, um “novo gigante” que, ao longo dos anos 1950 e 1960, numa visão “conservadora”, custeou sozinho o equiva-lente a quase 90% dos incentivos à pesquisa em Ciência política oferecidos por todas aquelas grandes fundações reunidas (Somit e Tanenhaus, 1967, p. 167), além de ter sido pioneira ao criar o Behavioral Sciences Program, que “deu forma ao behavioralismo, acelerou o seu crescimento, e ajudou-o a se enraizar na Ciência política” (Hauptmann, 2012, p. 154). Juntas, essas fundações, como os próprios behavioralistas forçosamente admitiriam, mesmo com ressalvas, significaram um “marco no desen-volvimento das modernas ciências sociais” (Eulau, 1951, p. 117), exercendo um “considerável efeito sobre a comunidade acadêmica” (Dahl, 1961a, p. 765). De fato, a dependência das pesquisas behavi-oralistas em relação às fundações foi imensa. Seria “quase impossível imaginá-las prosperando como aconteceu desde a Segunda Guerra Mundial sem a enorme generosidade de fundações e outras fontes de financiamento” (Ball, 1989, p. 76). “Nesta perspectiva”, como argumentou Peter Seybold (1987, p. 186), “o triunfo dos behavioralistas na ciência política não foi principalmente o resultado do humor dos cientistas sociais, tampouco o resultado do desenvolvimento pelos behavioralistas de um retrato mais acurado de como o sistema funciona. Em vez disso, foi uma consequência da operação de forças sociais mais abrangentes na economia política, tal como mediadas pela Ford Foundation”.

Os behavioralistas também contaram, além de fundações filantrópicas, com o auxílio de agên-cias de fomento à pesquisa como o Social Science Research Council (SSRC), presidido, entre 1948 e 1968, por Edward Pendleton Herring, entusiasta da nova perspectiva, que, além de ter ajudado a promover o behavioralismo quando presidente da APSA, de 1953 a 1954, teve atuação decisiva na fundação de dois comitês centrais ao patrocínio do movimento junto aos departamentos universitários do país, o Committee on Political Behavior e o Committee on Comparative Politics, cuja coordenação deixou a cargo de dois proeminentes behavioralistas, Truman e Almond (Hauptmann, 2006; Solovey, 2004), e a National Science Foundation, que, em 1954, após articulações do Diretor Executivo da APSA, Evron M. Kirkpatrick (figura influente que, assim como Herring, possuía estreitas conexões com as esferas legislativas e governamentais, em especial com órgãos de inteligência), finalmente

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reconheceu a Ciência política como uma “behavioral science”, abrindo os seus cofres para o financi-amento das pesquisas behavioralistas, ainda que em valores bem menores quando comparados aos vultosos subsídios destinados às ciências naturais (Harris, 1967; Kleinman e Solovey, 1995; Solovey, 2001, 2013, 2019).

Graças a esses incentivos, os cientistas políticos behavioralistas puderam fundar e dirigir di-versos centros universitários de investigação que, nutridos, ademais, por verbas provenientes direta-mente de contratos com diversas agências federais de governo, muitos dos quais camuflados, funci-onavam como núcleos irradiadores da nova perspectiva, a exemplo do Center of Advanced Studies in the Behavioral Sciences (da Universidade de Stanford), do Survey Research Center (Michigan), do Bureau of Applied Social Research (Columbia), do Russian Research Center (Harvard), e do Center for International Studies (MIT) – estes dois últimos, rebentos do Project TROY, desenvolvido pelo Office of Naval Research com recursos da Central Intelligence Agency (CIA) para desenvolver táticas de “guerra psicológica” para romper a “cortina de ferro” soviética (Engerman, 2009; Gilman, 2003; Lowen, 1997; Needell, 1998; Oren, 2003; Rohde, 2009, 2011, 2013; Simpson, 1994).

A profunda transformação, seja intelectual, seja institucional, induzida pela “revolução beha-vioralista” na Ciência política estadunidense teria implicações que extrapolariam os limites estreitos da disciplina, reverberando de modo determinante na própria modelação da paisagem ideológica da época. Entre o final dos anos 1940 e o começo dos anos 1950, consolidou-se, não apenas em reduzidos e isolados círculos intelectuais, mas no discurso público mais abrangente, a tese de que o país vivia sob o domínio de um ubíquo “consenso liberal”, conforme expressão cunhada mais tarde para desig-nar o “sistema de pressuposições” prevalecente no período, e para cuja constituição a Ciência política behavioralista fora um componente chave (Hodgson, 1976, p. 67).

Em um sentido mais geral, o alardeado consenso sustentava-se no entendimento de que o traço mais característico da história dos Estados Unidos seria a persistente ausência de embates ideológicos fundamentais, derivada da aceitação generalizada, e em grande medida irrefletida, dos valores liberais como princípio da ordem sociopolítica do país. Essa premissa de fundo nortearia um amplo, variado e significativo conjunto de obras intelectuais de grande penetração no debate público, não restringido ao campo específico da Ciência política, desde a crítica literária de um ensaísta como Lionel Trilling (2008 [1950], p. xv), para quem “nos Estados Unidos de hoje, o liberalismo não é apenas a tradição intelectual dominante, mas a única tradição intelectual”, até o trabalho de historiadores tão contras-tantes como Daniel J. Boorstin (1953, p. 1), enaltecedor do “gênio” democrático estadunidense como fruto não de uma doutrina política sistemática, mas do próprio caráter geográfico e histórico irrepli-cável do país, e Richard Hofstadter (1973 [1948], p. xxviii), naquele momento ainda um severo crítico do “clima de opinião comum” marcado pela “crença compartilhada no direito de propriedade, na filosofia do individualismo econômico e no valor da livre competição” que tendia a fazer da nação

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muito mais “uma democracia da cobiça do que uma democracia da fraternidade”. O cientista político Louis Hartz talvez tenha sido quem melhor expressou os contornos gerais desse suposto consenso em seu premiado best-seller The Liberal Tradition in America. Para Hartz (1955, p. 5, 6), o liberalismo nos Estados Unidos seria simplesmente um “fenômeno natural” a ponto da própria “universalidade da ideia liberal” parecer estar ali fortemente assegurada por “um tipo de mecanismo autossuficiente”.

Para além dessa conceituação mais geral e um tanto vaga do consenso liberal, baseada em certo discurso de fundação que identificaria uma homogeneidade imutável do pensamento liberal nos Estados Unidos, existe, todavia, um sentido mais preciso para o fenômeno percebido por Godfrey Hodgson, qual seja, o de que o “consenso liberal” emergente no pós-guerra seria historicamente de-limitado a partir da conjugação de duas dimensões contextuais, uma interna e outra externa. No plano da política nacional, ele seria caracterizado pela afirmação do caráter positivo da ação do Estado democrático liberal na garantia das condições básicas do bem-estar social da população e, acima de tudo, da manutenção da prosperidade da economia capitalista por meio de políticas anticíclicas de orientação keynesiana, e, no plano da política internacional, pela imposição da liderança dos Estados Unidos como guardião incontestável do “mundo livre” contra a ameaça comunista soviética, con-forme as diretrizes estabelecidas na Guerra Fria.

Nesse sentido mais específico, o “sistema de pressuposições” que conformaria o “consenso liberal” encontraria sua síntese mais acabada no discurso do “fim da ideologia” reivindicado por in-telectuais como Arthur Schlesinger Jr., Edward Shils, Daniel Bell e Seymour Martin Lipset. O seu propósito, enfim, seria sustentar um “centro vital”, conforme expressão usada pelo militante do grupo liberal anticomunista Americans for a Democratic Society para exortar seus companheiros a cerrar fileiras em torno de uma “filosofia da democracia” que, ancorada no “valor do indivíduo” como “força essencial da democracia contra o totalitarismo”, garantisse a “domesticação dos conflitos de classe” e, com isso, afastasse extremismos de toda sorte, sejam as investidas da direita para restaurar uma vetusta ideologia do laissez-faire, sejam as ingênuas e potencialmente perigosas aspirações utópicas da esquerda para radicalizar as reformas sociais introduzidas com o New Deal (Schlesinger Jr., 1988 [1949], p. 248, 174).

Esta imagem de um “centro vital”, projetada no final da década de 1940, seria rapidamente tratada, no início da década de 1950, como uma realidade consumada. A evocação do “fim da ideo-logia” teria precisamente essa dupla conotação: primeiro, pretendia constatar a exaustão de conflitos fundamentais no ocidente, principalmente os conflitos de classe, graças aos méritos demonstrados pelos regimes democráticos liberais em regular a economia de mercado; segundo, acusava o desloca-mento da centralidade dos conflitos para o plano geopolítico numa era nuclear, notadamente o en-frentamento da ameaça comunista internacional. Por um lado, observaria Lipset (1960, p. 403, 406), “em anos recentes a democracia no mundo ocidental tem passado por algumas importantes mudanças

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à medida que sérios conflitos intelectuais entre grupos representando diferentes valores têm declinado drasticamente”, o que “reflete o fato de que os problemas políticos fundamentais da revolução indus-trial foram resolvidos”. Por outro lado, afirmaria Bell (1980 [1960], p. 10): “Hoje, a política não é mais um reflexo de qualquer divisão interna em classes, mas é modelada pelos acontecimentos inter-nacionais. E a política externa – uma expressão da política – reage a muitos fatores, o mais importante dos quais é a estimativa das intenções soviéticas”. Em suma, uma economia próspera capaz de satis-fazer as crescentes demandas materiais e culturais das massas, uma política democrática que permitia que interesses divergentes fossem dirimidos em uma barganha legítima em busca do consenso, e um inimigo externo capaz de forjar um grande acordo suprapartidário nacional – tais seriam as principais condições que teriam concorrido, em meados do século passado, para decretar o (tão celebrado) “fim da ideologia”.

A disseminação desta ideologia do fim da ideologia, ou desse “slogan de complacência”, como a batizou um dos poucos críticos da época, seria levada adiante, principalmente, por um tipo emer-gente de porta-voz intelectual, os cientistas políticos behavioralistas, caracterizados pelo mesmo crí-tico como aqueles “intelectuais administrativos”, presos a uma “cultura burocrática”, que “chefiam atualmente os carteis semioficiais de pesquisa”, e cujas “pretensões científicas”, eivadas de “conser-vadorismo sem exame”, os teriam levado a formar uma “coalizão mais ou menos frouxa, e em grande parte inconsciente”, a fim de “criar um espírito nacional, firmado na conformidade, e nos termos do qual se fazem e desfazem reputações e carreiras” (Mills, 1965, p. 100). Diferentemente daquela nar-rativa fundacional que configurava a acepção mais genérica do “consenso liberal” – baseada em uma vaga noção de “pré-formação”, tomada emprestada de uma obsoleta teoria biológica segundo a qual “todas as partes de um organismo preexistem em miniatura perfeita já na semente”, ou ainda na “exe-gese” textual típica da “história constitucional” (Boorstin, 1953, p. 10, 18) – a retórica do “fim da ideologia” se apoiou fundamentalmente na linguagem analítica ou “burocrática”, como denunciava C. Wright Mills, da emergente Ciência política behavioralista.

Com efeito, a preocupação intelectual dos cientistas políticos behavioralistas não era com a ascendência remota das instituições e das ideias políticas, mas, principalmente, com as condições de seu funcionamento no presente. E, embora figuras como Bell e Lipset pertencessem, de fato, a uma “geração de transição”, como sublinhou Russell Jacob (1990), eles claramente endossaram a corrente behavioralista, e buscaram, com maior ou menor êxito, a ela se acomodar. O próprio livro The End of Ideology consistiu numa reunião de artigos coligidos para compor uma tese de doutorado exigida como condição para que Bell pudesse continuar como professor na Universidade de Columbia. E se, por um lado, ele admitia ter escrito seu texto “para um público não especializado, porém educado”, no que se considerava afastado de muitos cientistas sociais que preferiam “falar de hipóteses, parâ-metros, variáveis e paradigmas”, ele não só considerava válida esta perspectiva, como fazia questão

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de apresentar seu trabalho como parte do mesmo empreendimento “científico”, distinto só na lingua-gem (menos “abstrata”, portanto, mais acessível ao público leigo) e na ênfase (menos “experimental”, e mais descritiva). Sua obra, assim, foi apresentada como um trabalho de “sociologia perspectiva”, escorada numa análise “contextual”, distinta da mera análise “textual” própria da “crítica literária” (Bell, 1980, p. 11).

Lipset, por seu turno, não tinha reservas em “falar de hipóteses, parâmetros, variáveis e para-digmas”. Em seu livro The Political Man, ele abordou a questão do consenso exatamente sob a pre-missa de que ela deveria ser tratada como uma hipótese de investigação, sujeita aos mesmos métodos e técnicas de pesquisa das modernas ciências sociais “behavioralistas”. O seu compromisso com um dos principais postulados do behavioralismo, a “unidade básica da ciência”, “assim como a aceitação de conceitos e métodos comuns” às ciências naturais, era declarado (Lipset, 1960, p. 9). A principal intenção de sua obra, neste sentido, era demonstrar que a democracia deveria ser estudada como parte integral de um sistema social, tal como propusera David Easton em seu manifesto behavioralista, The Political System (1953). Assim, embora ele, à semelhança dos chamados “historiadores do consenso”, preferisse dar mais peso à formação e à manutenção do consenso social, em vez de enfatizar as divi-sões e os conflitos, argumentando, nesse sentido, que o requisito fundamental para a existência de qualquer ordem política democrática seria a existência de um acordo básico sobre os fins, sem o qual seria impossível cogitar qualquer disputa legítima sobre os meios, Lipset se empenhava em conferir um tratamento “científico” àquele problema, fazendo do consenso uma hipótese a ser testada através do exame estatístico de diversos fatores ou variáveis, e não concebendo-o como algo historicamente dado desde a origem e apreensível por meio da “exegese” textual.

Esse procedimento “científico” no trato da premissa do “consenso liberal” teria consequências importantes. O que na literatura historiográfica do consenso tendia a ser tratado como uma realidade particular, quando não excepcional e irreplicável, na literatura dos cientistas sociais do “fim da ideo-logia” pôde ser codificado em variáveis abstratas o bastante para servir de parâmetro geral de com-paração. Uma vez articulado por uma teorização sistemática a partir do discurso das ciências sociais, o “consenso liberal” perdeu o seu caráter único, convertendo-se, em vez disso, numa condição gene-ralizável e potencialmente universal – o “gênio político” dos Estados Unidos, sua democracia liberal, uma vez teorizada sob a forma de “paradigma”, “parâmetro” e “modelo”, tornou-se uma mercadoria padronizada e pronta para exportação, como atestou inúmeros trabalhos no campo da política com-parada inspirados na noção de “cultura cívica” (Almond e Verba, 1965), que se dispuseram a estabe-lecer ranqueamentos geográficos de países mais ou menos democráticos no mesmo momento em que economistas buscavam enquadrá-los em etapas temporais de desenvolvimento (Rostow, 1960).

A emergência deste discurso sociocientífico do “fim da ideologia”, responsável por cimentar o “consenso liberal” durante a Guerra Fria, só pode ser apropriadamente explicada à luz das grandes

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transformações provocadas no campo de produção intelectual estadunidense pelo avanço da “revolu-ção behavioralista”. Da mesma forma, conforme argumentou Terence Ball (1993, p. 207), “o desen-volvimento da Ciência política não pode ser compreendido separadamente dos contextos políticos e históricos em transformação nos quais se insere e aos quais reage”, de modo que “a revolução beha-vioralista e a virada em direção à ‘ciência’ em certo sentido positivista podem, assim, ser vistos poli-ticamente como uma resposta racional e interessada da disciplina ao ambiente e ao temperamento da época”. De fato, se “a história da ciência política nos Estados Unidos é, sob importantes aspectos, parte da história da política dos Estados Unidos”, as “reivindicações sobre seu status ‘científico’, sua ‘neutralidade de valores’ e sua relevância política, sua imunidade à ‘ideologia’ e influências estran-geiras diversas – estas e outras facetas e elementos da ciência política americana só se tornam inteli-gíveis (e, de fato, interessantes) quando situados no contexto político e intelectual mais amplo em que esta disciplina procurou construir o seu espaço e a sua legitimidade no âmbito da política americana” (Ball, 1995, p. 41-42). Nesse sentido, é fundamental destacar os íntimos laços de interdependência entre o desenvolvimento da Ciência política behavioralista e a construção do Estado de Segurança Nacional durante a Guerra Fria, uma conexão que tende a ser relaxada ou abafada por uma parte ainda hegemônica da historiografia disciplinar.

A narrativa historiográfica mais convencional sobre a Ciência política estadunidense costuma atribuir o surgimento do movimento behavioralista a uma convergência entre dois fenômenos: de um lado, certas evoluções intelectuais espontâneas anteriores à Segunda Guerra, que remontariam, pelo menos, à proposição de uma “new science of politics” por Charles Merriam e às teorias democráticas “pluralistas” de Harold Laski e George Catlin nos anos 1920; e, de outro lado, a acentuação daquelas tendências a partir do florescimento de um senso mais realista acerca do funcionamento do governo entre cientistas políticos arregimentados no esforço de guerra, que passaram a reivindicar uma ciência mais objetiva e tecnicamente aprimorada, e, ao mesmo tempo, de uma postura mais intransigente de defesa da democracia liberal estadunidense frente às duras críticas, à esquerda e à direita, realizadas por uma quantidade expressiva de intelectuais europeus refugiados (Adcock, 2007; Adcock e Bevir, 2005; Dryzek, 2006; Farr, 1988, 2003; Gunnell, 1988, 1991, 1993, 2004a, 2013). Sob muitos aspec-tos, aliás, esta narrativa disciplinar, de caráter predominantemente “internalista”, ou seja, mais preo-cupada em reconstruir a coerência interna dos debates teóricos e conceituais do que em investigar os contextos políticos, sociais e institucionais mais amplos que os condicionam ou determinam, não difere tanto dos próprios relatos com que os behavioralistas buscavam explicar – e justificar – o seu empreendimento (Almond, 1966, 1996; Dahl, 1961a; Easton, 1962; Eulau, 1963; Herring, 1945, 1953; Truman, 1955, 1965). Afinal, como nos contam tais militantes behavioralistas, aqueles contex-tos não teriam passado de “poderosos estímulos” que aceleraram o desenvolvimento de “atitudes e predisposições geradas na cultura americana” (Dahl, 1961a, p. 763) ou, no máximo, “forças

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acidentais” que ajudaram na “popularização do nome das behavioral sciences” (Easton, 1962, p. 14). Esta aproximação pode esclarecer, inclusive, porque tais narrativas (uma elaboração predominante-mente, não por coincidência, de cientistas políticos) insistem em “retirar o estudo da ciência social na Guerra Fria das sombras das revelações dos anos 1960” (Engerman, 2010, p. 400) ou buscam evitar os “termos agora um tanto primitivos da controvérsia dos anos 1960 entre o behavioralismo e o estudo da história da teoria política” (Gunnell, 1991, p. 24), assim como tendem a rebaixar o momento beha-vioralista na Ciência política a uma simples “reforma”, longe de ser, em todo caso, uma “verdadeira revolução” (Gunnell, 1988, 1993, 2004b) ou, quando muito, uma “revolução sem inimigos” (Dryzek, 2006).

Como bem observou Ira Katznelson (1997, p. 239), o que mais chama a atenção nesta “peri-odização convencional” que interpreta o “movimento positivista-behavioralista” como o produto ne-cessário de uma gradual e espontânea evolução intelectual, é que “o impacto específico do período de Guerra Fria é mascarado, porque as duas décadas depois de 1945 são concebidas para caber em uma longa e contínua era”. “Ao tratar a história da ciência política quase exclusivamente como um exercício metodológico, esta narrativa tradicional subestima significativamente a peculiaridade da disciplina no pós-guerra”, qual seja, a viva “apreensão em relação à segurança do regime liberal ame-ricano”, traço ausente nos “esforços mais complacentes e desinteressados dos anos anteriores” e que, longe de ser uma marca “idiossincrática” deste ou daquele cientista político em especial, seria “em-blemático do projeto de ciência política dos Estados Unidos do pós-guerra” (Katznelson, 1997, p. 239, 238, 234).

Neste sentido, a Guerra Fria, ao “colocar limites” e “exercer pressões” sobre a disciplina, teria tido um papel “muito mais do que contextual”, porém, “intrinsecamente causal” na determinação “dos contornos e conteúdo de sua produção acadêmica”, algumas vezes de forma evidente, como na reconfiguração da área de Relações Internacionais ou nos estudos de política comparada, bem como na própria invenção de um vasto campo multidisciplinar de “estudos de área”, cuja orientação original era claramente atrelada às demandas da política externa estadunidense, outras vezes, todavia, de modo “menos transparente”, como nos “estudos empíricos sobre a política americana”, o que, segundo ele, constituiriam o próprio “núcleo da disciplina” (Katznelson, 1997, p. 237, 236). Com efeito, poucas vezes o viés político e ideológico das pesquisas behavioralistas dependentes de financiamento e apoio institucional de governo, fundações e empresas seria claramente revelado. Ao contrário, como diria Ball (1993, p. 217, 218), “eles tendiam a ser de tipo mais sutil, relacionados aos tipos de assuntos abordados, às premissas inarticuladas de que partiam as pesquisas e às questões que permaneciam em silêncio”, o que seria compreensível, pois, “na medida em que os cientistas políticos dependem do financiamento do governo e das fundações, eles são menos propensos a se indagar certos tipos de questão, sobretudo questões sobre o lócus, a distribuição e o uso do poder”.

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Uma das maneiras de se aferir os limites e pressões impostos pela Guerra Fria à Ciência polí-tica estadunidense seria desvelar a “base normativa do behavioralismo” (Ball, 1995, p. 55) nos “ar-quetípicos trabalhos de referência do período” (Katznelson, 1997, p. 240). A partir do exame contex-tualizado das obras de Dahl (1956, 1961b), Truman (1971[1951]), Key (1961), Downs (2013[1957]), Almond e Verba (1965), Bell (1980[1960]), Lipset (1960), Berelson (Berelson, Lazarsfeld e McPhee, 1954; Lazarsfeld, Berelson e Gaudet, 1948), etc., o que emerge é a imagem de uma ciência política avessa à qualquer forma de democracia mais participativa, sobretudo quando o regime político es-tadunidense era posto em contraste com o exemplo das democracias europeias em crise às vésperas da ascensão nazifascista e dos governos autoritários comunistas. Das pesquisas sobre voto conduzidas por Berelson e outros que destacavam o caráter “funcional” da “apatia” dos cidadãos para a “estabi-lidade democrática” e defendiam a necessidade de uma “divisão de trabalho” segundo a qual caberia às “elites” conduzir de forma consciente os assuntos políticos sob risco do “extremo partidarismo” e do “rígido fanatismo” das “massas” “destruir os processos democráticos”, à orgulhosa defesa de Dahl da “pior das poliarquias” como a própria “terra prometida” quando comparada às “brutais ditaduras” “onde a apatia era encorajada somente nos campos de concentração”, passando pela “teoria econô-mica da democracia” de Downs, e as variadas teorias da “escolha racional” que explicavam a “abs-tenção racional” dos cidadãos como resultado da “primazia dos interesses sobre a ideologia”, o que faria as democracias liberais “imunes a excessos de entusiasmo”, até a apologia consumada do “fim da ideologia” nas obras de Bell e Lipset, cujos apontamentos sobre os “requisitos funcionais para uma democracia viável” seriam incorporadas à obra de Almond e Verba sobre a “cultura cívica” a fim de enaltecer a democracia estadunidense diante de outros tipos de democracia mais participativas, e por-tanto mais instáveis, o behavioralismo predominante na Ciências Política do pós-guerra demonstrava estar firmemente assentado nas “bases normativas” vigentes na Guerra Fria (Ball, 1995, p. 56-64, passim).

Como observaram Raymond Seidelman e Edward Harpham (1985, p. 150), o behavioralismo, movido por um profundo sentimento de “desencanto” em relação às lutas políticas da primeira metade do século, apesar de sua retórica revolucionária, expressaria um “recuo do ativismo” reformista que marcara as gerações anteriores de cientistas políticos, instigado pelo “receio desenvolvido nos círcu-los acadêmicos no final dos anos 1940 e início dos anos 1950 em relação aos movimentos políticos à direita e à esquerda” que os induzira a pensar que toda “mudança política em si mesma era conside-rada perigosa”. Daí a tendência marcadamente “neopositivista” de investigações empíricas behavi-oralistas focadas exclusivamente no “comportamento observável das pessoas”, pretensamente alheias a todo tipo de “avaliação ética” (ibid., p. 152). Afinal, “para a racionalidade triunfar na América do pós-guerra”, avaliavam, “era preciso colocar um fim à ideologia” (ibid., p. 150).

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Esta postura conformista teria levado a grande maioria dos cientistas políticos behavioralistas a “aceitar a crença de que o problema da reconciliação das tensões entre poder e legitimidade havia sido resolvido pelas instituições estatais” ou, dito de outro modo, que o “processo político nos Estados Unidos havia efetivamente solucionado as contradições entre o poder político e a legitimidade demo-crática” (ibid., p. 158, 174). Nesse sentido, os behavioralistas teriam coroado uma “nova visão da ciência e da política” que buscaria reconciliar dois compromissos muitas vezes incompatíveis por meio de uma “nova teoria democrática – uma que exaltasse as práticas e instituições liberais existentes e, ao mesmo tempo, encontrasse novas razões para aceitar os seus resultados por vezes decepcionan-tes no mundo real” (Ricci, 1984, p. 99). Isto só seria possível porque, de acordo com Joy Rohde (2009, p. 108), “ao equacionar ciência e democracia, tais acadêmicos definiam a democracia como um processo, em vez de um objetivo”, de modo que, “ao final dos anos 1950 os cientistas políticos raramente discutiam as finalidades do sistema político dos Estados Unidos além de um vago com-promisso com o avanço da liberdade humana. (...) A estrita separação entre meios e fins permitia aos cientistas sociais harmonizar a sua dedicação à pesquisa neutra em valores com o seu compromisso com a democracia americana e, assim, os autorizava a servir o estado de segurança nacional com um senso de correção e fé no seu desinteresse”. É desta forma que, apesar de advogarem uma “pura ciência da política”, os cientistas políticos behavioralistas não viam problema em suas obras terem como objetivo manifesto oferecer às elites políticas do país uma “compreensão sofisticada sobre a natureza do moderno sistema político”, indispensável à sua preservação (Seidelman e Harpham, 1985, p. 185). Na medida em que tais trabalhos buscavam alertar “como os elementos ingênuos e rústicos da ciência política anterior à guerra limitavam a capacidade da disciplina para proteger e fazer pro-gredir a democracia liberal contra os desafios de outros tipos de regimes”, “embora não fossem apo-logistas ou conservadores políticos, os americanistas do pós-guerra, de fato, assumiam o manto de guardiões do regime liberal” (Katznelson, 1997, p. 240, 243).

Segundo Truman (1971), o “processo político” nos Estados Unidos, baseado numa dinâmica e equilibrada disputa entre distintos “grupos de interesse” ou “grupos de pressão” em obediência a um conjunto básico de procedimentos ou, simplesmente, “regras do jogo”, deveria ser permanente-mente zelado pelas elites políticas concorrentes a fim de preservar a legitimidade do sistema político como um todo, permitindo a atenuação e conciliação de conflitos e garantindo, assim, estabilidade e eficiência ao regime liberal pluralista. Nesse sentido, Truman vinculava explicitamente à necessidade de “perpetuar um sistema viável” a existência de “guardiões das regras do jogo”, que limitassem a possibilidade de “desastres” potencialmente perigosos ao regime. Assim, a teoria de Truman, a des-peito de suas pretensões em criar uma “pura ciência do processo político”, não pretendia ser apenas uma descrição fidedigna da ordem política liberal. Ao “indicar as condições para a sobrevivência de longo prazo do sistema num contexto de conflito entre grupos de interesse”, ele acreditava estar

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oferecendo não só uma explicação teórica abrangente sobre o funcionamento efetivo da moderna democracia liberal, mas também uma orientação prática sobre como as elites dirigentes deviam agir para preservá-la (Seidelman e Harpham, 1985, p. 179). “A manutenção dos procedimentos não era para ser confiada aos cidadãos, mas às elites políticas esclarecidas que seriam capazes de se erguer para proteger as regras do jogo quando ameaçadas” (ibid., p. 182-183). Key, por sua vez, considerava como um fator vital para a salvação das democracias liberais a existência de uma elite comprometida com o sistema e incumbida de tutelar as massas. Como, para ele, o comportamento eleitoral da popu-lação revelava sobretudo apatia e desmobilização (sua intervenção seria apenas ocasional, sobretudo em momentos de “eleições críticas”, o que não era ruim, ao contrário, era um sintoma do bom funci-onamento do sistema político), e como as pesquisas de opinião pública revelavam a inexistência de uma vontade comum e muito menos consciente, mas, inversamente, mostravam desinformação e mesmo a ausência de consensos fundamentais sobre as crenças políticas, “o elemento crítico para a saúde da ordem democrática consiste nas crenças, padrões e competência daqueles que compõem os influentes, os líderes de opinião, os ativistas políticos da ordem” (Key Jr., 1961, p. 558). Assim, “a ciência behavioralista deveria ser a educadora de uma elite guardiã que protegia e preservava os va-lores incorporados ao sistema democrático existente” (Seidelman e Harpham, 1985, p. 178). Da mesma forma, segundo Dahl, os regimes democráticos liberais seriam melhor definidos como “poli-arquias”, isto é, governos de minorias competitivas em acordo sobre as regras do jogo, em oposição às ditaduras, ou seja, governos de uma única minoria coercitiva. Tais regimes de circulação de elites seriam percebidos como “sistemas relativamente eficientes para reforçar acordos, encorajar modera-ção, e manter a paz social num povo incansável e imoderado, operando em uma sociedade gigante, poderosa, diversificada e incrivelmente complexa” (Dahl, 1956, p. 151). Em suma, uma vez que cou-besse aos “ativistas políticos da ordem” exercer a função crucial de “guardiões das regras do jogo” a fim de “encorajar a moderação e manter a paz social”, não restaria outro papel à Ciência política, em que pese sua retórica favorável a “neutralidade” e “objetividade” científicas, senão custodiar essas elites para que cumprissem a contento o seu dever.

Obviamente, a nova ciência política requeria uma divisão do trabalho. Alguns acadêmicos focariam nos partidos e nas eleições, outros nos grupos de interesse, outros ainda na formação e no desenvolvimento da opinião pública. Independentemente de seus tópicos, contudo, eles se preocupariam com a sustentação do consenso acerca dos valores democráticos liberais e apostariam na elaboração de uma teoria orientada para um duplo movimento entre cidadãos e seus governos. Esta ciência política iria identificar e empregar os mecanismos que fizessem a democracia liberal efetiva e estável funcionar como um modelo atraente, engendrada para competir com seus adversários totalitários. Essas ferramentas incluíam regras para proteger grupos minoritários de cidadãos do forte cerco de controle por uma minoria ou maiorias po-pulistas (Dahl); um conjunto de instituições interligadas (escolas, mídia e partidos) que mol-dariam e aconselhariam a opinião pública (Key); identidade e associação em grupos de inte-resse sobrepostos (Truman); e um grupo de líderes que operaria tais instrumentos (Dahl, Key e Truman). (Katznelson, 1997, p. 246–247)

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Toda essa visão sobre a democracia não era apresentada como uma exortação, mas antes como uma descrição factual e imparcial de suas instituições e do comportamento efetivo dos seus atores. Todavia, segundo Katznelson, todas essas “bravas performances” estavam necessariamente vincula-das a “arranjos históricos específicos”, “carregados dos problemas ideológicos e sentido moral” pre-sentes na Guerra Fria, que não apenas condicionavam as suas questões teóricas, as suas perspectivas sobre a disciplina e as suas escolhas metodológicas, como também distorciam ou limitavam suas ênfases, conclusões e orientações. “Esses efeitos limitadores eram especialmente aparentes quando tais trabalhos eram confrontados com desigualdades estruturais profundamente arraigadas, em espe-cial aquelas baseadas em raça, no que se refere aos movimentos sociais, bem como ao Estado de Segurança Nacional”. Se tais “temas centrais” eram empurrados para uma “zona de silêncio”, isso se devia à “própria teoria que desenvolveram na tentativa de assegurar uma vibrante política antitotali-tária” (ibid., p. 252). Ao agirem desse modo, tais cientistas políticos deixariam de fora das suas equa-ções amplos setores sociais subordinados cuja participação no jogo político liberal como grupos de interesse legitimamente aceitos era restrito ou inexistente. E faziam isso porque de fato temiam que sua eventual entrada no jogo pudesse ser disruptiva ou subversiva, colocando em perigo as próprias bases da democracia liberal que tanto admiravam. É por esta razão que Truman alertaria para os riscos de uma “mórbida política”: “os cidadãos desancorados, não incorporados, o preocupavam muito por-que seriam os mais vulneráveis, ele especulava, para os apelos de ideologias e movimentos antide-mocráticos” (ibid., p. 253). A “decorrência implícita”, portanto, do projeto intelectual daqueles cien-tistas políticos seria a percepção de que era “muito melhor que os excluídos se mantivessem apolíticos do que desafiassem os segredos sujos do regime. O seu temor pela política de massa e pela desordem política havia se tornado parte integral de seu programa antitotalitário” (ibid., p. 255). O mesmo acon-teceria em relação à gritante omissão da “militarização da sociedade americana”. “Tais obras mar-cantes literalmente nada tinham a dizer sobre o Estado de Segurança Nacional (...). Eles não tinham um lugar para o iliberalismo deste petrificado poder estatal no interior dos sistemas de participação política relativamente benignos que haviam esboçado” (idem).

Esta “nova matriz liberal” behavioralista, como argumenta David Ricci (1984), ao servir de “molde intelectual dentro do qual certas ideias eram patentemente válidas e recomendáveis, enquanto outras pareceriam equivocadas e, portanto, perigosas”, possibilitou que os cientistas políticos, longe de perceberem a apatia do eleitorado ou a existência de elites como uma deficiência a ser sanada, interpretassem tais evidências como, na verdade, fatores de estabilidade e, portanto, como uma ne-cessidade vital para o adequado funcionamento dos sistemas democráticos, algo, em suma, que de-veria ser não apenas suportável, mas almejado, o que os levaria a apreender toda participação popular mais intensa com inquietação (ibid., p. 101, 153-154). Um dos efeitos do behavioralismo para a ci-ência política teria sido, assim, o rebaixamento da teoria política a meras hipóteses empiricamente

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apuráveis que, ao jamais pôr em questão os objetivos últimos da sociedade, conduziriam os pesqui-sadores a atestar impreterivelmente a adequação das instituições e práticas políticas e sociais existen-tes, enaltecendo o regime liberal estadunidense como uma ordem política inerentemente perfectível e repudiando toda sorte de pensamento utópico como sendo a própria antessala do totalitarismo. “Esse otimismo tornou-se parte da consciência acadêmica durante a Guerra Fria, ao ponto de poder ser visto como o pressuposto tácito embasando a maioria dos escritos convencionais sobre a política americana até cerca de 1965” (ibid., p. 112).

A partir de meados dos anos 1960, contudo, o acirramento dos conflitos sociais e políticos nos Estados Unidos, como a radicalização das lutas do movimentos negro pelos direitos civis e políticos, bem como a intensificação dos protestos contra à Guerra do Vietnã, foi impulsionado de forma deci-siva pela rebelião estudantil nos campi universitários e de profissionais acadêmicos nas associações disciplinares, pondo um fim ao espírito de complacência do “fim da ideologia” que havia imperado durante os áureos anos do “consenso liberal” do pós-guerra.

O Caucus for a New Political Science e o clamor por “relevância e ação”

Durante o encontro de 1967 da American Political Science Association (APSA), em Chicago, um grupo de cientistas políticos indignados com o silêncio da associação em relação aos perturbado-res conflitos políticos da época, decidiu fundar, sob a convocação de Mark Roelofs (NYU) e Christian Bay (Alberta), o Caucus for a New Political Science (CNPS). Para os dissidentes a APSA era vista “como um aparelho controlado pelo establishment da Ivy League, politicamente ou apoliticamente casado com o status quo” (Bay, 1968, p. 36). Essa aliança seria cimentada pela visão behavioralista, cuja defesa da objetividade e neutralidade cientificas serviria na prática como álibi para a dissimulada sustentação da ordem. O CNPS se comprometia a “promover um novo interesse na Associação por nossas grandes crises sociais e uma nova e ampla oportunidade para realizarmos enquanto acadêmi-cos nossas obrigações com a sociedade e a ciência” (Bayer et al., 1968, p. 39). O tema da responsa-bilização dos profissionais acadêmicos com a sociedade foi, de fato, um ponto alto nos inflamados debates que agitaram a convenção da APSA naquele ano. Não era somente o silêncio da associação em relação aos turbulentos eventos políticos no país e no mundo, legitimado por sua adesão ao beha-vioralismo, o que perturbava muitos dos cientistas políticos presentes ao encontro. Era também a sua profunda cumplicidade com a ordem política liberal em desintegração. Se, por um lado, vários pro-fissionais denunciaram a irrelevância da organização por sua incapacidade de se posicionar diante do turbilhão de conflitos, outros, como Alan Wolfe (SUNY) e Charles McCoy (Monash, Melborne, Aus-trália), acusavam-na de ser relevante no sentido oposto, isto é, de operar como uma instituição que colocava a “ciência política a serviço do sistema” (Resenbrink, 1979, p. 58).

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Um dos estopins da rebelião do CNPS foi a revelação naquele ano, em reportagem de Neil Sheehan para o New York Times, de que a empresa Operations and Policy Research (OPR), fundada e presidida pelo Diretor Executivo da APSA, Evron Kirkpatrick, e pelo seu tesoureiro, Max Kampel-man, integrava uma vasta rede de instituições acadêmicas subordinadas ao aparato estatal de segu-rança e de inteligência, sendo financiada por fundações de fachada da CIA, como a Asian Foudation, para desenvolver pesquisas secretas e fabricar propaganda anticomunista na América Latina e na Ásia (Barrow, 2008; Nelson, 1968; Oren, 2003). Uma sindicância aberta pelo então presidente da APSA, Robert Dahl, concluíra que, por se tratar de uma atividade privada conduzida numa instituição inde-pendente, os dois dirigentes da associação não deveriam sofrer sanções. Ao contrário, os membros da sindicância fizeram questão de expressar o seu “reconhecimento à dedicação e aos serviço prestados por esses dois homens à Associação no passado e nossa total confiança no valor de seus futuros serviços” (Horowitz, 1969, p. 43).

Em resposta, os integrantes do CNPS apresentaram uma moção, que acabaria aprovada, para proibir funcionários ou nomeados da APSA de “engajar-se em atividades de inteligência e em outras atividades secretas e de usar suas posições para fazer avançar qualquer interesse político particular” (Nelson, 1968, p. 1117). Contudo, outras moções, que visavam comprometer mais seriamente a as-sociação nos embates políticos da época, não tiveram o mesmo sucesso. As propostas pleiteavam que o comitê de planejamento do programa para o encontro anual seguinte, em 1968, em Washington, reservasse um dia inteiro da convenção para debater a Guerra do Vietnã, que a APSA se incumbisse de realizar uma pesquisa com todos seus membros sobre seu posicionamento a respeito da guerra, e que, além disso, a ela repudiasse todas as tentativas da House of Un-American Activities Committee de obter uma lista dos participantes da organização envolvidos nas mobilizações recentes nos campi universitários (Bayer et al., 1968), todas foram sistematicamente rejeitadas sem julgamento de mérito, sob a alegação de que a constituição da APSA vetava o posicionamento político, a não ser em matérias diretamente relacionadas à profissão (Barrow, 2008; Bayer et al., 1968; Nelson, 1968).

Diante da inflexível disposição da APSA contra a “politização” da associação, Bay declararia que, “se a APSA não puder ser levada a colocar o interesse pela política acima das mais convenientes preocupações com relações públicas e governamentais, certamente precisaremos de uma nova Sociedade para o Estudo dos Problemas Políticos, para os que entre nós querem sair debaixo das asas de nosso próprio establishment” (Bay, 1967, p. 1096). Para ele, se o CNPS estivesse realmente disposto a alterar radicalmente o status quo, teria que considerar a possiblidade de ruptura com a APSA, no caso de esta não ser demovida de sua postura conivente. A disputa interna, em sua visão, não deveria aceitar os limites impostos pela associação. Além disso, o CNPS também deveria buscar uma visão em comum, seja em relação ao tipo de “nova ciência política” que se almejava construir, seja em relação aos princípios e objetivos da ação política que se aspirava para mudar a situação –

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