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AS CIGARRAS E AS FORMIGAS : A COLONIALIDADE DO PODER E A CLASSE TRABALHADORA BRASILEIRA

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AS “CIGARRAS” E AS “FORMIGAS”: A COLONIALIDADE DO

PODER E A CLASSE TRABALHADORA BRASILEIRA

RENATHA CÂNDIDA DA CRUZ1

Resumo

O presente texto objetiva relação entre o discurso de surgimento de uma ‘nova classe média” em 2012 com as estratégias de supressão dos direitos sociais, trabalhistas e das políticas públicas no Brasil atual. Sabe-se que as intensas desigualdades sociais, de renda e acesso à riqueza no país não é um fato atual. Nos documentos da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE, 2012) as complexas metodologias da economia apontavam para o surgimento de “uma nova classe média” e nesta concepção urgia a necessidade de “repensar as políticas públicas” visto que as famílias brasileiras possuíam renda suficiente para garantia dos direitos Constitucionais. No discurso da “nova classe” haveria também uma redução entre as diferenças entre ricos e pobres, fomentada pelo aumento na renda das famílias. A institucionalização do conceito deu-se com o estudo do governo federal chamado Vozes da Classe Média (2012), onde as famílias da “classe C” recebiam entre R$ 291,00 e R$ 1.019,00 num contexto de salário mínimo de R$ 620,00, ou seja, recebiam menos de meio a pouco mais de dois salários mínimos mensais per capita. O conceito foi utilizado anteriormente pelos meios de comunicação, mas também pela Fundação Getúlio Vargas(FGV). Dentre os argumentos da Instituição há a associação entre o crescimento econômico ao aumento de “formigas” e redução de “cigarras” no país, numa referência à fábula de La Fontaine, evidente leitura depreciativa direcionada à classe trabalhadora com baixa renda. Porém, no mesmo período, diferentes pesquisadores, a exemplo de Pochmann (2012), Souza (2012), Chauí (2013), Cruz (2015) questionaram os argumentos sobre a “nova classe média”, assumindo as melhorias econômicas no país, mas percebendo apenas mudanças na classe trabalhadora. Pochmann (2012) admite haver uma classe trabalhadora renovada e alertava para a maneira estratégica como as propagandas sobre essas mudanças econômicas tendiam a orientar as políticas públicas, justificando a diminuição dos investimentos em áreas como saúde, educação e previdência social. Em algumas pesquisas há a ausência dos sujeitos transformadores, bem como, a invisibilização das lutas e resistências, algo perceptível nos estudos sobre a “nova classe média” que, além de invisibilizar as lutas e as vozes dos grupos historicamente subalternizados, ainda apresentam as precárias condições de vida e de exploração do trabalho de maneira naturalizada, desvaloriza os esforços individuais e coletivos, bem como, subestima a importância das profissões menores remuneradas ou sem registro profissional. No atual estágio da pesquisa podemos afirmar que há intrínseca relação entre os discursos da “nova classe média” e das “cigarras” e “formigas” com a manutenção da colonialidade do poder, da ascensão do desgoverno golpista e posteriormente fascista e as propostas de “Reforma da Previdência” apresentada em 2019. A geografia nos permite fazer uma reflexão crítica acerca das estratégias de manutenção da desigualdade e da descaracterização da classe trabalhadora a partir de fábulas e discursos arquitetados para manipulação dos sujeitos do trabalho. Permite ainda realizar uma aproximação dos grupos de renda média para desconstruir as artimanhas do poder, além de reforçar a importância das lutas e resistências diante dos retrocessos à classe trabalhadora, intensificados no país nos últimos anos.

Palavras-chave: classe trabalhadora, direitos constitucionais, discursos.

1 - Introdução

1 Professora do Instituto Federal de Goiás – Câmpus Uruaçu e Doutoranda em Geografia pela Universidade Federal de Goiás 2016/2020. E-mail de contato: renatha.cruz@ifg.edu.br

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O Brasil vive um momento histórico particular. Em uma crise econômica com um período de recessão, alta inflação, juros crescentes, além do aumento da dívida externa e do desemprego, uma crise política que perpassa sucessivas denúncias de corrupção de diferentes políticos, descrédito das instituições estatais e ainda uma crise social onde os direitos coletivos estão cada vez mais ameaçados pelas reformas propostas pelo desgoverno brasileiro e com amplo respaldo no Congresso Nacional. Educação, trabalho, saúde e previdência são alvos de Propostas de Emendas Constitucionais (PECs) que dilaceram o povo brasileiro. Com a justificativa de reagir à recessão econômica e controlar os gastos públicos, as reformas constitucionais estão em destaque nos holofotes midiáticos. As estratégias para a aprovação da supressão dos direitos sociais e estímulo cada vez maior para conversão destes em serviços prestados pela iniciativa privada e, consequentemente, defesa da ação mínima do Estado, sobretudo, no que tange aos programas sociais, não são atuais. Uma das raízes que mostram a intencionalidade deste cenário tem relação com o debate sobre a mudança na estratificação social brasileira. Em 2012, dados do governo federal apontavam para o surgimento de uma “nova classe média” e com isso, neste discurso, era necessário repensar as políticas e investimentos públicos como resultado da pressão da nova classe (Brasil, 2012). Ainda segundo esse discurso, o boom à brasileira ocorreu principalmente pelo declínio da desigualdade entre ricos e pobres no país, graças ao aumento do poder de compra das famílias fomentado pela melhoria do salário mínimo e redução do desemprego, onde a maioria da população, 53%, estaria na condição de classe média em 2010.

A institucionalização do conceito deu-se com o estudo do governo federal chamado “Vozes da Classe Média”, onde as famílias da “classe C” recebiam entre R$ 291,00 e R$ 1.019,00 num contexto de salário mínimo de R$ 620,00, ou seja, recebiam menos de meio a pouco mais de dois salários mínimos mensais per capita (BRASIL, 2012). Em 2010 a Fundação Getúlio Vargas (FGV) divulgou uma série de estudos que reafirmando o “surgimento” de uma “nova classe média”. Dentre os argumentos da Instituição há a associação entre o crescimento econômico ao

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aumento de “formigas” e redução de “cigarras” no país, numa referência à fábula de La Fontaine2, e claramente depreciativa argumentação referente à grande parte da

população brasileira, como abordaremos neste ensaio. A formação da nova classe seria formada majoritariamente por jovens, mulheres e negros. E os dados acerca do crescimento econômico apresentam um cenário positivo: de aumento de registros formais de trabalho, aumento de consumo de bens móveis e imóveis, um cenário negativo: de agravamento de problemas urbanos, sobretudo na piora do trânsito, graças ao crescente número de veículos circulando, e um cenário eleitoral: a classe média seria maioria no país e capaz de decidir um pleito eleitoral.

Porém, no mesmo período, diferentes pesquisadores3 questionaram os

argumentos sobre a “nova classe média”, assumindo as melhorias econômicas no país, mas percebendo mudanças na classe trabalhadora somente. Já neste momento Pochmann (2012), afirmava que haviam modificações na classe trabalhadora, que chamou de “classe trabalhadora renovada” e alertava para a maneira estratégica como as propagandas sobre essas mudanças tendem a orientar as políticas públicas, justificando a diminuição dos investimentos em áreas como saúde, educação e previdência social. Na atual conjuntura percebemos que as críticas aos estudos da nova classe estavam certas, pois ofuscam, dentre outros elementos, a precarização da vida e do trabalho (ALVES, 2000).

Admitindo que há algo de novo no mundo do trabalho como aponta Alves (2000) mas não se trata de uma renovação possibilitada pelo aumento da renda ou políticas sociais dos primeiros anos do século XXI, mas parte da nova morfologia do trabalho, ou seja, tem relação com o discurso apresentado acerca da “nova classe média” brasileira nos apresenta um debate que tem relação com a colonialidade do poder. Isso porque ao debater a nova estratificação brasileira divide o país, como dissemos, em dois grupos: as “cigarras” e as “formigas”. Essa relação nos aponta para a urgência partir para uma epistemologia do sul e para a criação de conceitos próprios para análises particulares distantes do eurocentrismo de ideias e de

2 Chagas (2005).

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conhecimento. Nesse ensaio questionamos a ideia de desenvolvimento e propomos a valorização dos sujeitos, de seus conhecimentos, suas trajetórias, suas lutas, suas resistências cotidianas e reforçar a urgência em desconstruir a fábula da classificação social a partir da renda.

2 - Metodologia de análise

2.1 - A colonialidade do poder: servidão e desigualdade histórica

Para compreender a colonialidade do poder serão analisadas uma série de literaturas que nos auxiliam a compreender a reprodução da desigualdade e da imposição de discursos à classe trabalhadora. Quijano (2005) apresenta um histórico acerca da servidão e da desigualdade social na América Latina. O autor fala de um novo padrão de poder pautado na naturalização da situação de inferioridade a partir de uma diferenciação racial, ou seja, num discurso colonial, um grupo seria biologicamente inferior a outro, no caso os conquistados, os povos originários e os escravizados. Essa ideia colonial legitimou a dominação dos povos originários da América Latina, e ainda comparece em diferentes discursos relacionados à raça e ao desenvolvimento. Refere-se também a um controle mundial das formas de trabalho, recursos e produtos a partir do capital e do mercado tendo como centralidade os padrões analíticos eurocentrados.

Fernandes (2005) complementa que o estabelecimento de um território quase sempre indica a destruição de outro. No caso brasileiro o exemplo máximo dessa afirmação dá-se com a colonização do país. Para Quijano (2005) a ideia que temos de raça foi instaurada a partir da imposição de um padrão de poder eurocentrado que produziu novas id-entidades geoculturais e atribuindo nomenclaturas de conotação racial: índios, negros, brancos. Esses neologismos apenas tratou de legitimar a diferenciação; uma maneira de enaltecer ou subalternizar os sujeitos4,

desconsiderar culturas, religiosidades e demais singularidades dos povos. Produziu também hierarquias, classificações e relações sociais novas a partir desta visão. Aqui destacamos que a imposição de um padrão de poder e criação de novas

4 “Enaltecidos” referem-se aos povos europeus que vieram ao país e “subalternizados” referem-se aos povos originários e os extirpados de suas origens.

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entidades a partir da colonialidade negou aos subalternizados suas origens, espiritualidade, ancestralidade e no contexto mais recente no que tange à expropriação/desterritorialização movida por uma “urgência” da modernização do território brasileiro, negou-lhes sua campesinidade. Para Quijano (2005) há também o estabelecimento de uma nova maneira de controle do trabalho a partir do sistema capitalista. A escravização de grandes populações, de sujeitos extirpados de suas origens com toda forma de controle, não só de sua força produtiva, mas também de seus corpos, sua sexualidade, impõe-lhes uma condição de luta pela vida, por sobrevivência. Nesse contexto as resistências são apresentadas como insubordinação ou transgressão visto à naturalização do padrão de controle que justificam os discursos de aprovação da ação militar contra a população pobre ou a sujeitos que buscam os direitos coletivos, a exemplo dos militantes de movimentos sociais, bem como das desigualdades sociais a partir de um pensamento liberal como nos aponta Maranõn Pimentel (2014).

Quijano (2005) apresenta a distribuição do trabalho durante o período colonial que permitia à nobreza os mais altos postos de trabalho tanto na administração da Colônia, como nos âmbitos civil e militar. Houve a reprodução da estrutura de servidão colonial e de controle das decisões acerca da vida dos subalternizados. Então, ao analisar historicamente a hierarquia social latino-americana, e em específico a brasileira, os altos postos, salários e “prestígio social” tem relação ao enaltecimento europeu. Nesse sentido, ao nascer, os sujeitos herdaram as características fenotípicas e consequentemente sua condição de “superioridade” ou “inferioridade”5. Herdaram também características sociais associadas às condições

de vida e de trabalho. Assim, a luta de classes é resultante de uma existência de condições anteriores (Bartra, 2008). A naturalização em atribuir o trabalho não-pago, não-assalariado, ímprobo aos “inferiorizados” era e é comum, visto que o pagamento

5 Destacamos que as condições de “superioridade” e de “inferioridade” são postuladas pela colonialidade e não em uma perspectiva decolonial. São essas condições utilizadas implicitamente com frequência em algumas análises economicistas sobre a classe trabalhadora, inclusive na abordagem sobre as “cigarras” e as “formigas”.

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era privilégio aos brancos. Essa condição materializa-se nos corpos, dilacera a alma dos subalternizados e condicionados a viver e morrer pelo trabalho historicamente.

As “novas id-entidades geoculturais” discutidas por Quijano (2005) foram estabelecidas em igual lógica tendo a Europa como centro do capitalismo mundial e como periferias os continentes da África, América, Ásia e Oceania, afirmação quem também compareceu nas análises de Composto e Navarro (2014). O estabelecimento de uma ordem cultural global demonstra um padrão hegemônico que produz lentes na qual lemos o mundo, ou seja, questionamos as desigualdades, o desenvolvimento com os mesmos critérios coloniais. Escobar (2014) nos alerta, como dissemos, para a emergência em descolonizar o pensamento e as análises acerca da América Latina, inclusive com a propositura em utilizar léxicos decoloniais. Para Quijano (2005) há uma pretensão eurocêntrica em deter e produzir modernidade e considera que o “desenvolvimento” dos povos não-europeus não lhes é própria, mas uma apropriação europeia, assim sendo, desconsidera os saberes e fazeres dos povos por serem destoantes do europeu. Apresenta a nova subjetividade que refere-se a uma outra maneira de relacionar com o tempo por um outro padrão de poder. Há que se debater a apropriação do capital não apenas a partir formas econômicas, mas também das expressões culturais e folclóricas, que nos alerta Gramsci. Discutiremos a seguir a relação entre “cigarras” e “formigas” apresentadas em alguns discursos econômicos brasileiros.

3 – Discussão

3.1 - As “cigarras” e as “formigas”: compreendendo a fábula de La Fontaine no contexto brasileiro

As fábulas são narrativas literárias onde os personagens são animais com características humanizadas e seguidas por uma lição, uma moral. “A cigarra e a formiga” foi contada por Jean de La Fontaine e é atribuída ao historiador grego Esopo (Chagas, 2005). Na fábula a formiga trabalha durante todo o verão e guarda provimentos para o inverno enquanto a cigarra passa todo o tempo cantando. A formiga na fábula de La Fontaine representa a burguesia; “honesta” e “avarenta”,

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conforme Chagas (2005). Em sua leitura, a formiga é trabalhadora, que cuida da família, planeja o futuro e prevê as intempéries. É aquela que não faz empréstimos e que acumula toda riqueza produzida com seu labor. É aquela que questiona ajudar a quem não se propõe ao trabalho digno. A cigarra é a artista, que, na visão de Chagas (2005), parece não perceber seus deveres perante o trabalho e a vida. É aquela acostumada a receber migalhas e nos momentos de dificuldade valha-se a pedir ajuda à formiga e que inevitavelmente morrerá, uma suposição a partir da fábula original, por não se comprometer com o necessário à sua sobrevivência.

Em análise semelhante, a FGV (2009) diferencia os “filhos deste solo” como “cigarras” e “formigas”. Ou melhor, “consumidores” e “produtores”. Nessa leitura, a riqueza produzida no país no contexto atual nos permitiu deixar de ser maioria “cigarras” e passar a ser “formigas”, distanciando das “altas taxas de inflação, desigualdade e criminalidade históricas tupiniquins”. Aliás, a expressão “tupiniquim” tem relação a um povo indígena, os Tupis, e é apresentada constantemente quando se questiona o desenvolvimento brasileiro e o compara com países colonizadores. Nessa leitura, o desenvolvimento brasileiro é arcaico, superado, com aspectos negativos, com sentido de “atraso”. Mas, na verdade, deveria conotar uma relação harmônica com a natureza, diversidade cultural, envolvimento com a ancestralidade, respeito ao conhecimento dos mais velhos, enfim, tudo aquilo é está presente na cultura dos povos originários, Daí a urgência por neologismos decoloniais, inclusive com nomenclaturas que identifiquem os povos a partir de sua própria cultura e distantes dos termos coloniais depreciativos. Nesse sentido, Escobar (2014) propõe a desconstrução da ideia de desenvolvimento com a discussão de alternativas ao modelo atual, ou seja, oferecer interpretações alternativas do mundo. Mas, o que há de novo na classe trabalhadora? Há que se pensar na nova morfologia do trabalho discutida por Alves (2000). Admitimos que o aumento da renda, sobretudo a partir de políticas públicas pós-20036, mas se discutirmos a classe a partir de rendimentos

6 Várias políticas públicas para transferência de renda foram efetivadas a partir de 2003 nos governos de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff do Partido dos Trabalhadores. O Bolsa Família é um exemplo de ação governamental com o objetivo de reduzir a pobreza após a unificação dos programas: Cartão-Alimentação, Auxílio Gás e Bolsa Escola. O valor varia de acordo com o rendimento per capita das famílias.

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negamos a concepção fundamental da classe, que refere-se a posse ou não dos meios de produção. Assim, mascaramos a apropriação da mais valia, a precarização do trabalho e, sobretudo, suprirmos a trajetória dos sujeitos que vivem e sobrevivem do trabalho.

Essa compreensão das classes sociais nos solicita uma reflexão em Marx e Engels (1999) de que a classe tem relação a posse ou não dos meios de produção e distantes dos agrupamentos de renda. Thompson (1999) contribui com a leitura da classe a partir da consciência da mesma, sendo assim, manifestando-se de maneira semelhante em contextos históricos e geográficos diferentes. Para Chauí (2012) as mudanças sociais e econômicas no Brasil atual tem relação com a criação e ampliação dos programas sociais destinados à erradicação da pobreza e ampliação dos empregos no país e estes produziram mudanças nos costumes das famílias beneficiadas, mas que conduziam para a recuperação de direitos sociais dos grupos populares.

O que admite-se é que em cada contexto histórico particular há condições diferenciadas que influenciam a classe, mas em um sistema semelhante mesmo havendo mudanças econômicas, a cultura, as relações sociais e a reprodução das desigualdades coloniais se mantêm e acentuam-se (Composto e Navarro, 2014). Em nossa leitura para desconstruir um conceito é necessário questionar o método, mas também mostrar que este não se sustenta nem mesmo a partir da base em que se fundamenta, ou seja, a partir da renda. Posteriormente é necessário problematizar outros elementos desconsiderados na análise sobre a nova classe, nesse caso destacamos a trajetória, as vivências, as experiências, os modos de vida dos sujeitos que vivem do trabalho. Assim, teremos uma consistência teórica e metodológica para não apenas questionar o estudo sobre a renovação da estratificação social brasileira, mas ampliar o debate e dar visibilidade às resistências cotidianas da classe trabalhadora.

Como dissemos, o conceito da nova classe se baseia na renda per capita, escolaridade, no trabalho formal, consumo e nas políticas públicas. Sem qualquer um desses índices a “nova classe média” não se concretiza. Propõe-se que a classe

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média estipulada no estudo foi assim definida com base na impossibilidade de retorno à condição anterior, ou seja, de vulnerabilidade social. Mas, sem a renda, a exemplo do contexto de crise econômica e aumento do desemprego sobretudo aos que possuem as menores remunerações, e como consequência da redução das contratações com registro formal e mesmo das demissões crescentes pós-2016 perde-se a sustentação monetária para manutenção da vida no sistema atual, bem como da aquisição do básico para a alimentação e circulação na cidade, aumentando a legião de pessoas em trabalhos informais, sem seguridade social. Sem a renda que mantém a sobrevivência, as relações sociais, o trabalho também mudam. Isso porque os trabalhadores sem vínculo empregatício formal não entram nos índices da “nova classe média”, porém são trabalhadores e suas lutas não devem ser negligenciadas. Assim, há a possibilidade de retorno à condição anterior, como dissemos. Mesmo admitindo os dados do estudo em questão, o grupo chamado de “nova classe média” é diferente da classe média tradicional, ou seja, não possui alguns fatores inerentes: não há heranças ou suporte financeiro dos progenitores. Isso porque a classe trabalhadora que se apresenta nos estudos da mudança na estrutura social brasileira se comprometem financeiramente com a aquisição da casa própria, ou reformas, com a compra de eletrodomésticos e móveis, meios de transporte particular e/ou familiar, possibilitado pelo aumento da renda. Historicamente, a classe média tradicional adentra a vida adulta com uma série de privilégios em relação aos trabalhadores com as menores remunerações; com frequência herdam bens ou condições de aquisição destes com maior facilidade. Com a renda comprometida outras formas de reprodução da vida também são comprometidas. Esse cenário mostra traços da colonialidade que se apresenta no debate sobre as “cigarras” e as “formigas”. Vale ressaltar que a formalização da prática laboral garantiu uma série de direitos às famílias da classe trabalhadora. Porém, há que se problematizar o aumento no número de horas trabalhadas, por exemplo. Há ainda a diferencial remuneração quanto ao gênero e a raça que não aparecem nos estudos. Isso significa dizer, que os estudos sobre a “nova classe

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média” não contemplam a multiplicidade das formas de trabalho. Outro fator a considerar é o deslocamento para o trabalho.

Escobar (2014) propõe estudos pós-coloniais onde os subalternos têm suas vozes ativas e não negligenciadas. Para o autor, a diversidade epistêmica do mundo é muito maior do que estabelecida pelo viés eurocêntrico. Reforça que é necessário inverter a lógica estabelecidas pelas hierarquias do conhecimento, ou seja, é necessário transcender o modelo de modernidade e produzir conhecimento a partir de uma ontologia, de um pluriverso. Há que se ter uma relação com a terra, uma autonomia, interpretações alternativas de mundo onde se leva em consideração a espiritualidade, as relações comunais, a reafirmação das identidades. A propositura de Escobar (2014) nos faz propor um estudo que questiona a ideia de “cigarras” e “formigas” em análise depreciativa da classe trabalhadora brasileira e que continua a enaltecer um grupo hegemonizado e reprodutor de desigualdades. Um grupo que apresenta suas posses como conquistas do e pelo trabalho, porém ofusca as relações de exploração e subjugo dos povos originários e dos extirpados de suas origens. Numa análise a partir das contribuições de Escobar (2014) afirmamos que é necessário produzir conhecimento a partir dos movimentos, ou seja, dos sujeitos.

Para se ter uma ideia, o aumento da renda apregoado pelos estudos de Brasil (2012) e FGV (2010) apontam para uma crescente renda a partir do “assistencialismo oficial”, ou seja, a grande maioria dos sujeitos que “ascenderam socialmente” não tem relação ao suor do próprio trabalho, mas com as políticas de transferência de renda, como Bolsa Família por exemplo. Nessa visão que reproduz a colonialidade do pensamento, as “formigas” trabalhadoras necessitam se desdobrar para sustentar as “cigarras” aventureiras e descompromissadas. É necessário reconhecer que o aumento da renda das famílias brasileiras foi benéfico para a melhoria da qualidade e reprodução das condições de vida e trabalho. Mas, em si, a renda não descaracterizou a classe trabalhadora, mas sim, atribuiu-lhe possibilidades de acesso a bens e serviços. Atribuir vinculação entre renda e desenvolvimento não permite a discussão do cerne da problemática da desigualdade e reforça estereótipos hegemonizados.

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4 – Conclusões

O debate institucionalizado em 2012 sobre a “nova classe média” ainda carece de muito estudo. Admitimos que o conceito e os elementos decorrentes dele reproduz elementos coloniais. Para Bartra (2008) as classes sociais são entes históricos, não apenas produto das transformações de um momento. Para o autor as classes não nascem se fazem. Assim, podemos afirmar que as transformações interferem na classe, porém não as define. A classe sofre mudanças mas uma ruptura paradigmática necessita partir da classe e não o contrário. Defendemos que há uma urgência em desvincular as análises brasileiras de conceitos, nomenclatura eurocentradas e buscar, como propõem os autores decoloniais, uma Epistemologia do Sul, ou seja, buscar parâmetros próprios para análises próprias e, no caso da análise da luta de classe, é necessário compreender o que dá origem à classe: o modo de vida.

Quanto ao debate da nova classe, situações como as longas jornadas de trabalho e de deslocamento para esse fim, as baixas escolaridades, as dificuldades de acesso aos cursos superiores e as precárias condições de moradia faziam e fazem parte do cotidiano dos milhões de trabalhadores e trabalhadoras (CRUZ, 2015). São estes apresentados como pertencentes à “nova classe média” que são, na verdade, uma estratégia para descaracterização da classe trabalhadora e consequente tentativa de reduzir os direitos sociais e controlar os movimentos de luta. As reformas propostas no pós-impeachment materializaram grande parte dessas intencionalidades de uma tendência neoliberal no país, dentre vários discursos, destacou-se o da “nova classe média” como maioria no país e, monetariamente, capaz de arcar com os custos dos serviços de saúde, educação e previdência. Neste sentido, há um estudo em curso se propõe a compreender as mudanças sociais e econômicas a partir das trajetórias sociais dos trabalhadores e trabalhadoras de Goiânia e, assim, discutir o fenômeno atual além de problematizar a relação entre as intencionalidades em cunhar o termo “nova classe média” com as atuais propostas de PECs na saúde, educação, trabalho e previdência social. Com o

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impeachment em 2016, vemos que essas mudanças foram apropriadas por outro discurso, desta vez, de “reforma” e as sucessivas ações caminham para a perda de direitos sociais da classe trabalhadora, sobretudo, a exemplo da PEC 241/55, sobre o congelamento dos “gastos” públicos, PEC 287/2016 sobre as novas regras da seguridade social e PEC 300/2016 dentre outras proposições, uma jornada de trabalho de dez horas. A reflexão sobre as classes sociais permitirá a compreensão da formação de territórios, como assegura Corrêa (2005), ao ressaltar a posição dos grupos na cidade, em que, na visão do autor, a classe dominante se instala em lado oposto à classe pobre, distanciando a classe trabalhadora pobre dos bairros com maior disponibilidade de postos de trabalho e submetendo-a a longas horas de deslocamento, como afirma Carlos (1997). Nesses moldes as comunidades indígenas, quilombolas, campesinos são considerados atrasados em relação ao modelo de desenvolvimento que temos por lente. Se a lente em que lemos o mundo apresentar-se com critérios de uma Epistemologia do Sul ter-se-á o reconhecimento dos saberes e fazeres próprios de cada sujeito e/ou grupo na qual pertence. Equivale a reconhecer, também, as diferentes formas de religiosidade que se distanciam do cristianismo, por exemplo, e que socialmente sofrem intensa resistência. Para nós o que se apresenta no Brasil, na verdade, são dois grupos: os enaltecidos e os subalternizados. Os enaltecidos têm, geralmente, suas origens ligadas à colonialidade, seus bens são herdados e sua riqueza é reproduzida a partir da desigualdade. Os subalternizados têm origem vinculada aos sujeitos originários ou aos extirpados de suas origens. Tem pouco ou nenhum bem herdado e toda sua sorte vinculada à sua condição existencial atual. A reprodução de sua vida é parte da desigualdade, mas também de luta e de resistência cotidiana para manutenção no desigual sistema. Toda e qualquer conquista é comemorada, mas também questionada visto sua condição histórica de subordinação. Esses estereótipos necessitam de urgente mudança. A disseminação de ideias como as “cigarras” e as “formigas” são depreciativas e não abarcam a análise da pluralidade cultural, social e histórica dos sujeitos.

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5 - Referências bibliográficas

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