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Cotidiano, imaginário e o discurso da ciência na série de TV Cosmos

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÍDIA E COTIDIANO (PPGMC)

Alexandre Freitas Campos

COTIDIANO, IMAGINÁRIO E O DISCURSO DA CIÊNCIA NA SÉRIE

DE TV COSMOS

Niterói, RJ 2019

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ALEXANDRE FREITAS CAMPOS

Cotidiano, imaginário e o discurso da ciência na série de TV Cosmos

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Mídia e Cotidiano, da Universidade Federal Fluminense, como requisito para a obtenção do título de mestre em Mídia e Cotidiano.

Área de concentração: Discursos midiáticos e práticas sociais

Linha de pesquisa: Linguagens, representações e produção de sentidos

Orientadora: Profª Drª Denise Tavares da Silva

Niterói, RJ 2019

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BANCA DE DEFESA

_______________________________________________ Profª Drª Denise Tavares da Silva

________________________________________________ Profª Drª Renata Rezende

________________________________________________ Profª Drª Denise Siqueira

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Ao meu pai, João, um típico homem do cotidiano (até no nome), dono de uma inteligência, de uma expertise cotidiana que eu nunca tive e jamais conseguirei.

À minha avó, Iara, minha primeira colega de profissão, tão doce, em nossa bancada imaginária.

Ambos partiram durante a realização desta pesquisa. A ambos, meu amor e gratidão eternos.

Este projeto me ajudou a suportar a dor. Escrever é uma forma de se lidar com a morte. Coincidentemente, esta pesquisa também trata desse assunto.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, João e Nancy, por tudo. Tudo mesmo. Tudo que nem cabe em palavras e papel. Eles são a razão e o sentido.

À minha irmã, Fernanda, pelos suportes técnicos, exemplos práticos de dedicação e perseverança e pelo amor fraterno. O dia em que ela nasceu foi o mais importante da minha vida, que se divide em antes e depois dela.

À minha namorada, Juliana, pela paciência, pelo amor, pela sorte (a minha) da coincidência do encontro das águas.

À professora Denise Tavares, minha coordenadora e orientadora, pela confiança, paciência, carinho, dedicação e sabedoria.

Aos meus gatos, Chewbacca e Yuri Gagato, pela companhia. Muito próxima, aliás. Ao lado do netbook em que esta pesquisa foi feita, em cima da mesa de trabalho, em baixo da mesa de trabalho...

À Capes, pela oportunidade dada a mim e a tantos. Lutemos pela pesquisa brasileira! Aos professores e funcionários do PPGMC/UFF

Aos amigos Adler Ariel M. Mendes, Ana Carolina Afonso Seabra dos Santos, Ana Carolina Cometi Oliozi (Any), Ana Paula Muller Soares, Carlos Alberto M. Briggs Junior, Gabriel Faza Guedes de Souza, Jesiel Carvalho Lima de Araújo, Larissa de Oliveira Cesar, Leandro Marlon Barbosa Assis, Letícia Carolina dos Santos Moreira, Lilian Wilson de Oliveira Ferreira Tropiano, Luciana Aparecida Carlos Ribeiro, Maria Cristina Guimarães R. do Amaral, Mirian Aranha Sampaio, Pâmela Passos Mascarenhas, Patrícia Fernandes Viana Franco Castro, Rafael Torres Sobreira, Renata Palitó de Carvalho, Rodrigo Moraes Bittencourt S. Alonso. Eu precisava citar todos nominalmente, para que aqueles que um dia lerem esta dissertação saibam do privilégio que tive em ser da mesma turma que eles.

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“...Mas eu posso estar errado.” Carl Sagan

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RESUMO

Esta dissertação foca nas duas temporadas da série Cosmos (1980; 2014), tendo como objetivo central analisar suas estratégias narrativas e de linguagem na perspectiva de discutir como estas buscam promover a racionalidade científicae, concomitantemente, divulgar a ciência e sua importância para a compreensão do mundo em que vivemos e para além dele, ou seja, o próprio universo.Para tanto, a pesquisa vale-se, principalmente, de autores como Agnes Heller, Mikhail Bakhtin, Michel Maffesoli, Juremir Machado, Marcelo Gleiser e Benvenido León, pois seu percurso metodológico problematiza questões relacionadas ao cotidiano, aos dialogismos e gêneros discursivos, ao imaginário e, também,à construção narrativa do audiovisual de não-ficção de temática científica. Interessa, em especial, os modos como a série busca “atingir o imaginário” social, articulando em seu discurso narrativo dísticos como ciência e crença e/ou razão e emoção, construindo, paradoxalmente, uma visão poética e espiritualista do empreendimento científico. Destaca-se, também, que a dissertação tem em seu horizonte abordar a relação do audiovisual com a popularização da ciência.

Palavras-Chave: Cosmos;audiovisual de não-ficção; cotidiano; imaginário; divulgação científica.

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ABSTRACT

This dissertation focuses on the series Cosmos (1980; 2014) and aims to analyse the narrative and the language seeking to discuss the scientific rationality, promote the science and explain how important it is to understand the world that we live and the universe. This research uses as a base the work of authors as Agnes Heller, Mikhail Bakhtin, Michel Maffesoli, Juremir Machado, Marcelo Gleiser and Benvenido León, which his methodological route approach daily questions, dialogism and discursive genre to the construction of the audiovisual narrative in the non-fiction science-themed. This dissertation also approach how the series Cosmos aims to reach the social imaginary using paradoxical concepts as science and belief and reason and emotion, building a poetic and spiritualistic vision of the science. The research focuses on the relation between audiovisual and the dissemination of science.

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LISTA DE IMAGENS

Imagem 1:pintura representando Galileu Galilei divulgando suas descobertas...42

Imagem 2: fumaça roxa representando o CO2...70

Imagem 3: fumaça roxa representando o CO2...70

Imagem 4: plano geral do passeio de Tyson com o cão...77

Imagem 5: Tyson e o cão. “Fique de olho no homem e não no cachorro”...77

Imagem 6: Sagan em uma espécie de corredor transcendental...80

Imagem 7: Sagan em uma espécie de corredor transcendental...80

Imagem 8: calendário cósmico na primeira versão...93

Imagem 9: calendário cósmico completo na nova versão...94

Imagem 10: Tyson caminha pelo dia 31 de dezembro do calendário cósmico...94

Imagem 11: imagem popularizada do planeta Terra...96

Imagem 12: projeção computadorizada do movimento das estrelas...108

Imagem 13: a vida pacata e estática dos monges...109

Imagem 14: site de humor Um sábado qualquer. A ciência tomando o espaço de Deus...114

Imagem 15: nave utilizada no futuro por uma espécie humana interplanetária...122

Imagem 16: “cogumelo atômico” como representação visual da autodestruição...127

Imagem 17: a Terra como uma bola de calor...128

Imagem 18: a Terra como uma bola de gelo...129

Imagem 19: alagamento decorrente das mudanças climáticas...129

Imagem 20: gases e relâmpagos: a atmosfera sombria de Vênus...133

Imagem 21: Vênus, com seu solo desértico e distorcido, representando o inferno...133

Imagem 22: a flor representa a beleza, a vida e o paraíso terrestre...134

Imagem 23: a Nave da Imaginação de Tyson voa pelo cenário sombrio de Vênus...135

Imagem 24: Sagan, na ocasião de sua tese de doutorado...136

Imagem 25: Venera 13 destruída no solo de Vênus...136

Imagem 26: nomes importantes da ciência em forma de desenho animado...138

Imagem 27: Tyson, uma rocha carbonada e três borboletas representando o carbono...139

Imagem 28: borboletas, superfície desértica e superfície congelada...140

Imagem 29: tamanho normal da falésia de Dover...140

Imagem 30: falésia de Dover ampliada...141

Imagem 31: avião lançando fumaça roxa, que representa o CO2...141

Imagem 32: avião lançando bombas: estética da Guerra Fria no discurso ambiental...143

Imagem 33: explosão - causas antiarmamentista e ambiental se misturam...143

Imagem 34: reconstituição da Terra, pela janela da Nave da Imaginação...146

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Imagem 36: interior da Nave da Imaginação na nova versão...147

Imagem 37: externa da nave da nova versão...148

Imagem 38: Tyson na cabine de controle da nave...148

Imagem 39: interpretação de Sagan...150

Imagem 40: interpretação de Sagan...150

Imagem 41: Nave da Imaginação enfrentando turbulências...151

Imagem 42: interpretação de Tyson...152

Imagem 43: cena de Jupiter and beyond the infinity………...152

Imagem 44: Nave da Imaginação fura gota de orvalho...154

Imagem 45: Tyson vê um confronto entre microorganismos...155

Imagem 46: maquinário industrial dentro de um cloroplasto...156

Imagem 47: espaço interno da nave de Sagan/semelhança com a perspectiva kubrickiana ...158

Imagem 48: interior da nave de 2001 – uma odisseia no espaço...158

Imagem 49: Sagan desce escadas semelhantes a um DNA do jardim botânico...160

Imagem 50: Sagan passeia pelo jardim botânico levando uma maçã...160

Imagem 51: Sagan fura o próprio dedo (imersão)...161

Imagem 52: interior de uma célula...162

Imagem 53: representantes da indústria vão à sala de Clair Patterson tentar aliciá-lo...170

Imagem 54: nomes da ciência e divulgação científica representados como deuses...177

Imagem 55: sátira a curas espirituais e ao tele-evangelismo...178

Imagem 56: ciência e consumo: cientistas formam a Santíssima Trindade...178

Imagem 57: a série é interpretada nos termos da religião...179

Imagem 58: caranguejo com “feições” de samurai...192

Imagem 59: Sagan, ao lado da imagem de Shiva...208

Imagem 60: Sagan assopra bacia de água e sabão/comparação entre bolhas e galáxias...210

Imagem 61: imagem religiosa relacionada à violência da colonização espanhola...215

Imagem 62: clérigo representado de forma sombria e traços malévolos...219

Imagem 63: Giordano Bruno preparado para ser queimado na fogueira da inquisição...219

Imagem 64: a árvore da vida...221

Imagem 65: Einstein em sua sala de trabalho com fotos de outros cientistas...225

Imagem 66: Humphry Davy em uma de suas apresentações de “mágica”...235

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1: figuras de linguagem e construção argumentativa...75 Tabela 2: dualidades...85 e 86 Tabela 3: ciência e pensamento mágico...103

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...13

1: CIÊNCIA, DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA, TELEVISÃO E A PROPOSTA DE COSMOS.. 31

1.1: Ciência, conceitos e métodos...31

1.2: Divulgação científica: marcas dos conceitos e conflitos entre ciência e religião...39

1.3: Séculos 20 e 21: televisão e contexto brasileiro...46

1.4: Cosmos: a democratização como objetivo, e o misticismo como obstáculo... 52

2: A ESTRUTURAÇÃO (E DESCONSTRUÇÃO) DA LINGUAGEM... 64

2.1: Gêneros do discurso e dialogismo...65

2.2: Figuras de linguagem e narrativa audiovisual...71

2.3: Quadros de análise e suas especificações ...81

3: COSMOS, COTIDIANO E IMAGINÁRIO...88

3.1: A ciência como suspensão do cotidiano ...88

3.2: Ciência e imaginário ...98

3.3: Cotidiano, imaginário e as mudanças que vieram do céu...106

3.4: A busca pela eternidade: razão e transcendência histórica...113

4: ENTRETEXTOS E ENTREIMAGENS: ESTÉTICAS E ABORDAGENS ...124

4.1: Da Guerra Fria ao aquecimento global...125

4.2: Simbolismo religioso: autodestruição e discurso apocalíptico ...129

4.3: Documentário científico pós-moderno e o alerta em forma de imagens...136

4.4: Aspectos lúdicos...143

4.5: Imersão e fotossíntese ...152

CONSIDERAÇÕES FINAIS...163

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...183

ANEXO 1: Descrições das dualidades da versão original ...191

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INTRODUÇÃO

A série audiovisual Cosmos foi uma das mais bem-sucedidas experiências de divulgação científica para o público amplo na TV no século passado, apontada como um marco da divulgação científica mundial pela grande popularidade alcançada e por traduzir conceitos complexos de forma compreensível para o público. Sua primeira versão foi apresentada pelo cosmólogo Carl Sagan, lançada em 1980 pela TV PBS. Estima-se que essa versão foi exibida em 60 países e assistida por mais de 500 milhões de pessoas.

Cosmos ganhou uma nova versão em 2014. Desta vez, a série foi apresentada pelo astrofísico Neil deGrasse Tyson, que chegou a ser aluno de Sagan. A segunda versão, que assim como a primeira é composta por 13 capítulos, foi exibida, logo em sua estreia, no NatGeo, em 170 países e precedida por um vídeo de apresentação do então presidente americano Barack Obama. Nele, Obama falou sobre o espírito de “sonhar alto”, “de descoberta”, que Sagan sintetizou na versão original. A série bateu recorde de maior lançamento global da história da TV1. Essa segunda versão foi escrita novamente pela

pesquisadora e divulgadora Ann Druyan, viúva da Sagan, e pelo físico Steven Soter, ambos coautores da versão original, juntamente com Sagan.

As duas versões de Cosmos, distanciadas uma da outro por 34 anos, servem como registro histórico das pautas, discussões e preocupações da comunidade científica; e também das mudanças estéticas e técnicas das narrativas audiovisuais. Mas não “apenas” isso. Cosmos exemplifica, interage, registra, em vários aspectos, as interações entre ciência e cultura (ciência e imaginário, ciência e cotidiano etc). Por exemplo, a versão apresentada por Sagan encarnava traços culturais da década de 1970, impactada pela chegada do homem à Lua (em 1969) e pela corrida espacial, que foi um dos principais fenômenos da Guerra Fria, amplamente discutido e com reflexos no imaginário da época. Do mesmo modo, a nova versão faz os mesmos movimentos de assimilação e interação como, por exemplo, quando focana questão climática e na busca pela substituição dos combustíveis fósseis por energias renováveis.

Esse diálogo com o contexto sócio-econômico-cultural de cada período histórico é uma das principais “macrodiferenças” entre as versões. Outra questão que interessa a este trabalho está relacionada às formas narrativas. Na primeira versão, acompanhando os planos

1 <https://gauchazh.clicrbs.com.br/educacao-e-emprego/noticia/2014/04/ann-druyan-revela-que-negou-serie-cosmos-a-tres-emissoras-para-proteger-legado-de-carl-sagan-4463694.html> e

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mais lentos e episódios de maior duração, parece haver um certo aprofundamento de digressões filosóficas; enquanto a nova versão, de planos curtos, rápidos e com imagens que trazem um regime de objetividade garantido (em grande parte em função dos avanços tecnológicos), parece trazer pensamentos também mais objetivos.Os próprios títulos dos episódios fazem essa sugestão. Sagan apresentou episódios nomeados com certa inspiração poética-filosófica, como O limiar da eternidade (sobre comparações entre as teorias quanto ao nascimento do universo e a cosmologia do hinduísmo) ou A espinha dorsal da noite (sobre como as explicações de povos antigos a respeito do universo e da natureza foram substituídas, em parte, pela ciência, em uma contraposição entre cosmos e caos). Já os episódiosde Tyson trazem a justeza e pragmatismo de títulos como Sala limpa (sobre a pesquisa em busca da idade exata da Terra e seu “achado lateral” sobre os riscos do chumbo para a saúde humana) e Os imortais (sobre a perenidade da escrita e também das formas de vida)2.

Outro aspecto da série, presente em ambas as versões e que motivou a pesquisa, é o fato de Cosmos, mais do que abordar descobertas e acontecimentos científicos, destacar o método científico, focando no ethos da ciência, no modo como ela é feita. Tal abordagem, entre outras consequências, mobiliza na narrativa diversas considerações que se relacionam com a história, filosofia e sociologia da ciência, o que a torna mais complexa e amplia nosso propósito em discutirmos o modo como ela se insere no campo da divulgação científica, algo que também interessa a este trabalho. Isto é, uma das questões-chaves desta pesquisa é verificar como a série aciona estratégias de aproximação com o público amplo, uma proposta que, para nós, tem origem na própria biografia de Sagan conforme apontaremos nesta dissertação e, também, em como ele definia ciência: “Ciência é muito mais uma maneira de pensar do que um corpo de conhecimento”3, afirmava o cientista. Concordando com ele,

ressaltamos que este projeto parte do entendimento de que a ciência, incluindo suas descobertas e seus métodos, ajuda as pessoas a entender o mundo em que vivem, o que é vital para as escolhas que fazem e o modo como agem.

Por isso também esperamos que este trabalho seja uma contribuição ao campo da popularização da ciência. A expectativa surge de convergências que envolvem formação e interesses deste autor. Quanto à primeira, as graduações em cinema e jornalismo nos

2A relevância da narrativa de Cosmos pode ser medida ainda por sua versão impressa. Em 2012, o livro Cosmos, até hoje apontado como o livro de divulgação científica mais vendido da história, foi incluído pelo Congresso americano na lista dos 88 livros que deram forma aos Estados Unidos (GARCIA, 2014). Na mesma lista estão incluídas obras como O caminho da riqueza, de Benjamin Franklin; Pragmatismo, de William James; e O

mágico de Oz, de L. Frank

Baum.<http://www.mapinguanerd.com.br/carl-sagan-nao-morreu-livros-para-conhecer-seu-legado/>

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levaramao documentário e/ou audiovisual de não-ficção. Já em relação aos interesses, o gosto pela ciência conduziu à divulgação científica e à popularização da ciência, particularmente pela contribuição do audiovisual, mais especificamente dos documentários científicos. Assim, a proposta aqui adotada, que passa pela abordagem das diferenças entre pensamento científico e pensamento dogmático, foi sendo maturada aos poucos, bem antes do início formal da dissertação, a partir de experiências cotidianas que envolveram, entre outros acontecimentos, discussões quanto ao papel da ciência, das crenças e as relações entre ambas. Uma delas ocorreu há cerca de seis ou sete anos, quando um colega de trabalho criticou médicos e nutricionistas por nunca se decidirem se, afinal de contas, ovo e abacate fazem mal ou bem para a saúde humana. Frente ao que considerava um impasse, esse colega decidiu que não daria mais ouvidos aos “especialistas”, ratificando uma posição muito presente no senso comum, isto é, a de esperar que a ciência tenha uma palavra imutável sobre algo. Um dado fundamental deste breve relato é que este amigo era integrante de uma ordem autodenominada mística, presente na maior parte do Brasil. Referindo-se a ela, ele sempre afirmava que esta era científica e que, por isso, “podem vir cem cientistas dizendo outras coisas que pouco importa...”. Ora, se a ordem mística se baseia em estudos científicos, por que a resistência, negativismo ou mesmo aversão em relação à comunidade científica? E será que a postura de acreditar em uma “verdade” e fechar-se para posteriores apontamentos no sentido contrário feitos por cientistas é um comportamento que, de fato, condiz com o modo como a ciência funciona? Como dizer que os próprios postulados defendidos são científicos e, ao mesmo tempo, negar-se à abertura para refutação?

Em outras palavras, o fato é que o instituto do “cientificamente provado” é frequentemente utilizado pela mídia quando quer atribuir a algo o status de verdade. Nesse sentido, as opiniões de especialistas entram em cena na função de palavra final. O que parece contribuir para incompreensões quanto às diferenças entre pensamento científico e pensamento dogmático, o que repercute, às vezes tragicamente, nos julgamentos dos próprios humanos. Um exemplo clássico desta incompreensão remete a um caso ocorrido na Itália. Em 2009, houve um terremoto na cidade de L’Aquila que matou mais de 300 pessoas. De acordo com autoridades e parte das vítimas, os cientistas que faziam parte da comissão italiana para “grandes riscos” não previram que a catástrofe aconteceria, o que impossibilitou que as autoridades pudessem se precaver. Três anos depois, a palavra final sobre o ocorrido: a justiça italiana condena os sete especialistas incapazes de prever a tragédia, o que, de acordo com Brum (2012), localiza este tribunal sintonizado ao senso comum que avalia o conhecimento científico como dogma.

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A ciência e o método científico são o oposto do dogma. Esta é justamente a sua beleza. Ao contrário da religião, onde a premissa do fiel é a fé, na ciência é preciso duvidar. O processo científico não é impulsionado por certezas, mas por dúvidas. E é por causa delas que usufruímos das descobertas impressionantes que se fazem presentes em todas as áreas do nosso cotidiano. Enquanto na religião é imperativo crer, na ciência é obrigatório duvidar, testar, provar. A incerteza é, portanto, matéria primordial da ciência. É sua força – e não sua fraqueza (BRUM, 2012).

Isso vale tanto para terremotos quanto para o ovo e o abacate. O problema é, como diz Brum, quando a ciência é interpretada a partir das premissas da religião. A busca por certezas, seja na ciência ou na religião, parece vir juntamente com a indisposição em abandonar essas certezas e rever opiniões. Um debate entre o cientista e divulgador Bill Nye e o criacionista Ken Ham é ilustrativo. O moderador pergunta a ambos o que os faria mudar de opinião. Nye responde que mudaria de opinião caso apresentado a qualquer evidência sólida. Ham diz que, por ser a Bíblia a palavra de Deus, não muda de opinião de jeito nenhum. A resposta do criacionista e a “coerência” de suas convicções provocaram aplausos entusiasmados da plateia4.

Como popularizar o pensamento científico, mais do que popularizar as descobertas da ciência? Jorge Duarte (2018) afirma que educar para a ciência não significa apenas “divulgar a última novidade saída dos laboratórios, mas ajudar a pensar cientificamente”. Sagan diz que “nós aceitamos os produtos da ciência, mas rejeitamos os seus métodos” (COSMOS, 1980, ep. 13). Em ambas as afirmações, há a percepção da necessidade de difusão de um modo de pensar, para que as pessoas vejam o mundo sob a ótica científica. Na estruturação desse modo de pensamento, a comunicação tem papel fundamental. Entendemos a comunicação, primeiramente, como parte da produção científica. Na medida em que a ciência é um empreendimento coletivo de somatório de conhecimentos, transmitidos e reprocessados de geração para geração (COSMOS, 1980, 2014), é imprescindível o papel da comunicação nesse processo. Descoberta científica guardada a sete chaves não produz resultados para a sociedade. Produzir ciência implica também a sua publicação. Então, mesmo no campo restrito da comunidade científica, a comunicação já se faz presente e necessária, ainda que consideremos apenas a troca de informação entre pares e os protocolos de validação dos trabalhos científicos.

Em um âmbito mais amplo, para além da comunidade científica, compreendemos a divulgação científica como um elo que liga o público em geral à produção de ciência. Para Dorothy Nelkin, um dos principais propósitos da divulgação científica é “facilitar para as

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pessoas o acesso a um conhecimento especializado, já que, com frequência, se enfrentam decisões e eleições – tanto de repercussão pública como privada – que requerem certa compreensão científica” (apud LEÓN, 2010, p 29-30). Uma vez que ninguém pode ter conhecimento especializado sobre todas as coisas (nem mesmo os próprios cientistas), a divulgação científica surge para traduzir conhecimentos complexos, produzidos por aqueles que estão imersos em determinados segmentos de pesquisa, para outras pessoas que, direta ou indiretamente, são afetadas pela produção desses conhecimentos específicos. É, portanto, um modo discursivo que serve de plataforma para que as partes se entendam.

O conhecimento e produção científicos, abrangendo tecnologia, saúde e meio ambiente, repercutem diretamente na vida cotidiana dos indivíduos de quaisquer sociedades. Como se sabe atualmente, bem além da visão positivista que prevaleceu na sociologia e filosofia da ciência no século 19, “a ciência possui objetivos econômicos, políticos e culturais, e o direito à informação, particularmente a informação científica e tecnológica, insere-se nesse contexto como uma condição indispensável para a consolidação da cidadania” (CUNHA, 2007, p. 10). E a divulgação científica está diretamente ligada à formação da cidadania e em consonância com o que se entende por comunicação pública, como veremos adiante. É sob este horizonte, portanto, que definimos a série Cosmos como nosso objeto de estudo. A ela se atribui o mérito de levar a divulgação científica ao público de massa pela TV. Esta posição deve muito à linguagem audiovisual, pois entendemos que por ela dispor de mais recursos – som, imagem e movimento – pode ampliar as possibilidades de traduções da fala científica para a população. Ou seja, as explicações da ciência sobre os corpos celestes e as espécies, por meio de recursos imagéticos e sonoros, dentro dos parâmetros narrativos do documentário de TV (ou, podemos dizer também, da série de não-ficção ou série documental), além de poderem ganhar “mais vida”, ganham uma embalagem que é familiar ao telespectador comum poispúblico leigo pode não ser familiarizado com a ciência, mas é familiarizado com a TV. Como disse Neil deGrasse Tyson, apresentador da nova versão da série: “As pessoas têm um repertório de cultura popular e são especialistas nele. Percebi que posso vincular a ciência que tento ensinar a esse repertório” (apud OLIVEIRA, 2017, p 32).

Produções audiovisuais como Cosmos, chamadas por Ramos (2008) de “documentários cabo” e por Barca (2008) de “infotainment” são massificadas pelo mundo por canais a cabo, que possuem grande penetração em diversos países. Embora, no Brasil, parte da programação desses canais seja nacional, o fato é que, independentemente da nacionalidade da produção, os canais fazem parte do cotidiano de boa parte da sociedade

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globalizada, e produções americanas como Cosmos já estão, há tempos, hegemonizadas na cultura global. Isso explica a escolha de uma pesquisa brasileira por um objeto produzido nos Estados Unidos, o que não impede que alguns pontos sobre divulgação científica no Brasil sejam discutidos.

Nosso problema de pesquisa é como a linguagem audiovisual tem procurado atingir o público amplo e não iniciado, disseminando conhecimento científico e contribuindo com a popularização da ciência. A divulgação científica com frequência busca aproximar os conhecimentos difundidos à realidade cotidiana das pessoas que formam sua audiência. Com a série Cosmos não é diferente. O objetivo principal deste trabalho é compreender como o audiovisual em Cosmos é utilizado para enaltecer a racionalidade científica. Outros objetivos são: analisar e comparar as duas versões da série, levando em conta tanto as mudanças nos recursos tecnológicos utilizados quanto nos temas científicos abordados e suas relações com os contextos históricos em que as versões foram produzidas; e refletir sobre as relações entre ciência e crenças, pensamento científico e pensamento dogmático, ciência e senso comum.

As crenças estão inseridas na pesquisa porque parte-se da hipótese que a série usa a religião e diversas formas de expressão do pensamento mágico, situando-os como elementos formadores do senso comum, para, a partir deles, criar uma “ponte” entre ciência e senso comum, apropriando-se de elementos sígnicos do campo da fé, dos mitos e da crença e enaltecendo o pensamento científico. Dentro do contexto das apropriações dos elementos do cotidiano para divulgar a ciência, as crenças e mitos parecem exercer um papel de destaque, enquanto, eles próprios, elementos do cotidiano e parte do imaginário. Não pretendemos nos restringir às religiões formais institucionalizadas (islamismo, cristianismo, judaísmo...) e sim abranger as crenças de um modo geral – lendas, superstições, mitos, misticismo – entendidos aqui como manifestações do pensamento mágico, termo definido por Isaac Epstein em uma contraposição ao pensamento científico:

Sem contar as objeções das filosofias idealistas de um lado, e das epistemologias relativistas de outro, o pensamento científico postula, na prática, uma natureza objetiva. Suas forças e leis existem fora dos propósitos e intenções humanas. Pelo menos essa é uma das características que diferenciam o pensamento mágico do pensamento científico. No primeiro, são invocados poderes extraordinários para alterar a nosso favor, ou contra outrem, o curso dos fenômenos. No segundo, esta invocação é substituída pelo conhecimento científico (EPSTEIN, 2012. P. 17).

Como pretendemos mostrar e discutir, em alguns de seus episódios, da primeira e da segunda versão, o roteiro de Cosmos parece construído de modo a polarizar, de um lado, a ciência, identificada como manifestação da razão, e, do outro, os mitos, religiões, misticismos

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e superstições, representando o pensamento mágico, as crenças. Desta contraposição constrói-se um discurso que enaltece a ciência e o ceticismo. A primeira, como um caminho a constrói-ser seguido pela humanidade; o segundo, como um filtro imprescindível para a nossa percepção do mundo. Nosso entendimento de “crenças” segue a conceituação de Mbarga e Fleury (2017) Crenças são uma maneira de explicar o universo atribuindo-lhe capacidades, qualidades, sentimentos e emoções. (...) Dão às coisas um significado intrínseco. Por exemplo, para algumas pessoas o número 13 é considerado um mau agouro. Em algumas culturas, o arco-íris é um aviso de que as coisas ruins estão para acontecer – ele é a espada de Deus – enquanto em outras (...) é um bom presságio. (MBARGA e FLEURY, 2017, p. 99).

O uso das crenças por Cosmos pode ser entendido não só em contraposição com os conceitos científicos, mas como uma forma de se criar analogias para inserir as explicações desses conceitos. Exemplos: usar a astrologia como gancho para falar de astronomia; a comunicação com os mortos para falar da importância da escrita ("Um livro é a prova que os seres humanos são capazes de fazer magia", uma famosa frase de Sagan, dita por ele no episódio 11); a arca de Noé para falar de panspermia5; a ideia de fantasmas para falar de

supernovas; e preceitos do hinduísmo para introduzir as teorias científicas sobre a criação e expansão do universo. Deste modo, a série parece apropriar-se de elementos sígnicos da fé e da crença como recurso narrativo e para enaltecer a ciência, explorando a polarização, mas também um tipo de mescla entre os polos discursivos.

Quanto aos modos como a série se vale de elementos do senso comum e das representações cotidianas para disseminar o conhecimento científico, partimos da perspectiva de que, além das metáforas, analogias, contraposições e esforços de simplificação recorrentes na divulgação científica, a própria linguagem audiovisual televisiva já é uma forma de uso de um elemento cotidiano familiarizado pelo público. Logo, isso significa dizer que nossa perspectiva é de que a série Cosmos se vale de elementos cotidianos tanto no conteúdo – analogias, metáforas e simplificações – quanto na forma – linguagem de TV. Também recorremos aos estudos sobre o cotidiano, de Agnes Heller (2000). Para ela, “a vida cotidiana é a vida de todo homem. Todos a vivem, sem exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do trabalho intelectual e físico” (2000, p. 17). Heller, entretanto, vê alguns caminhos para a suspensão do cotidiano, formas de o indivíduo elevar-se da cotidianidade trivial. Ela cita os exemplos da arte e da ciência, e é justamente essa visão de ciência, enquanto suspensão do cotidiano, que acionamos aqui para sustentar nossas reflexões.

5 Segundo esta teoria, microrganismos ou precursores químicos da vida se encontram presentes no espaço, sendo capazes de dar surgimento a ela quando atingem um planeta com ambiente adequado.

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(...) o reflexo artístico e científico rompem com a tendência espontânea do pensamento cotidiano, tendência orientada ao Eu individual-particular. A arte realiza tal processo porque, graças à sua essência, é autoconsciência e memória da humanidade; a ciência da sociedade, na medida em que desantropocentriza (ou seja, deixa de lado a teologia referida ao homem singular); e a ciência da natureza, graças ao seu caráter desantropomorfizador (HELLER, 2000, P. 26).

Ainda sobre referenciais teóricos, o trabalho de Carl Sagan vai bem além da série Cosmos e constitui uma considerável base teórica. Além de cosmólogo e divulgador científico na prática, Sagan possui um trabalho teórico amplo sobre divulgação científica com imbricações entre ciência, mídia e filosofia da ciência. Recorreremos às suas obras nesta pesquisa, pois as consideramos importantes para entendermos qual a visão de ciência do autor da série, e, deste modo, qual a visão de ciência que a própria série propaga. Entretanto, sabemos do risco que é usar a obra teórica de um autor para analisar um objeto desse mesmo autor. É preciso cuidados para que a revisão bibliográfica não fique tautológica. E acreditamos que um dos modos de evitar uma eventual redundância é recorrermos, também, a outros autores que discutem a popularização da ciência.

De Sagan, o livro O mundo assombrado pelos demônios (2006) será o mais utilizado, pelos apontamentos filosóficos sobre ciência e conhecimento e considerações sobre o papel da mídia na sedimentação de um pensamento científico. Quanto aos outros autores ligados à divulgação científica, o biólogo britânico Richard Dawkins (2016) e o físico brasileiro Marcelo Gleiser (2001) propõem alguns de nossos principais embasamentos. O primeiro traz conceitos fundamentais, como diferenciações entre realidade e sobrenatural – importantes para demarcarmos diferenças entre ciência e pensamento mágico – e especificações sobre magia, principalmente o conceito de “magia poética”. Tal conceito nos permite refletir sobre imbricações entre ciência/divulgação científica, emoções e poesia. A principal obra de Dawkins aqui utilizada é o livro A magia da realidade(2012), um esforço de divulgação científica voltado para o público infanto-juvenil.Talvez por isso em linguagem tão objetiva e com tantas e tão marcantes ilustrações6. Em Marcelo Gleiser, interessa-nos algumas

de suas considerações sobre a história da ciência e sobre as convergências e divergências entre ciência e religião, principalmente o modo como o discurso apocalíptico, que em grande parte da história da humanidade ficou por conta dos profetas, aos poucos foi absorvido e

6 Essas ilustrações, que servem para reforçar e fazer presente a relação entre ciência e arte, ficaram por conta do desenhista Dave McKean O artista é conhecido pelas parcerias com o escritor e roteirista Neil Gaiman e por alguns quadrinhos da DC.

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reprocessado pelos cientistas. Ideia que ele desenvolve no livro O fim do céu e da Terra (2001).

Cabe aqui uma ressalva. Embora o trabalho aborde questões sobre a relação entre ciência e crenças, não cabe nele estabelecer um tipo de embate entre ambas como seu foco. Isso possivelmente demandaria um referencial teórico mais denso e amplo sobre filosofia e sociologia da religião. Muito mais afeita à proposta desta pesquisa é discutir o modo como os empreendimentos de divulgação da ciência podem se apropriar de elementos do cotidiano e do imaginário, o que inclui o universo das religiões, além de mitos, superstições e lendas, para difundir o conhecimento científico e até o próprio método científico (algo característico de Cosmos). Por isso, nossa base teórica é retirada da ciência e da divulgação científica, até mesmo para fazer considerações sobre fé, religião e manifestações do pensamento mágico. Essas considerações são feitas, portanto, da perspectiva da ciência. Obras que debatem a relação entre ciência e religião de uma perspectiva confessional não fazem parte do nosso principal referencial teórico.

A relevância desta pesquisa se dá, primeiramente, por acreditarmos na importância de se discutir ciênciana sociedade atual. Outro motivo é que a série Cosmos é uma obra que consideramos referencial, por tudo que já foi colocado, para se compreender como uma narrativa pode ser utilizada em função da legitimação de um discurso, no caso, o discurso da razão e da racionalidade científica, ao mesmo tempo em que essa legitimação serve de contraponto ao pensamento mágico e também ao pensamento pós-moderno relativista. O projeto também pode ser justificado por analisar o conflito e a disputa entre discursos, ao abordar dualidades discursivas: uma delas é a tensão entre razão e fé, entre o pensamento científico, que se relaciona com o ceticismo e a metodologia científica, e o pensamento mágico e religioso, fundamentado na crença. A sociedade global se polariza: enquanto algumas partes passam por um franco processo de secularização, outras se destacam pelo crescimento do radicalismo religioso, vide o terrorismo islâmico ou as bancadas religiosas de inspiração teocrática no Brasil. Destaca-se também a relevância de se ter como objeto de pesquisa uma série de divulgação científica que, mais que tratar das descobertas e teorias da ciência, difunde o método científico, o modus operandi da ciência, o ethos da ciência. No cenário atual, em que muito se discute a pós-verdade7 – situações em que são criados “fatos

7 Pós-verdade foi eleita a palavra do ano em 2016 pelo Oxford Dictionaries, departamento da universidade de Oxford responsável pela elaboração de dicionários. O termo denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais. A eleição de Donald Trump, nos EUA, e o referendo que decidiu pela saída da Grã-Bretanha da União Europeia (UE), apelidada de “Brexit”, vêm sendo analisados, segundo a Universidade de Oxford, no contexto da “pós-verdade. Disponível

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alternativos”, em que as crenças e emoções contribuem mais para as tomadas de decisão do que análises concretas de fatos –, cabe a reflexão do quanto “a ciência enquanto modo de pensar”pode contribuir dentro desse contexto.

Outro aspecto que destacamos quanto à expectativa de contribuição desta dissertação é que há poucos trabalhos sobre a série Cosmos em língua portuguesa, conforme constatamos em nossa pesquisa. Um dos que consideramos de maior destaque e que também foi relevante para o desenvolvimento de nossas reflexões foi a dissertação de Danilo Nogueira Albergaria Pereira, da Unicamp, A visão de ciência propagadapor Carl Sagan (2013), que analisou a obra do cientista e divulgador em sentido amplo, sob a ótica da comunicação e, principalmente, da filosofia da ciência. Destacamos ainda a dissertação de mestrado de Carlos Loiola de Souza, Carl Sagan: A Exploração e Colonização de Planetas (2006) no programa de História da Ciência da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que analisa as ideias de exploração interplanetária na obra de Sagan relacionando-as à ficção científica e à imaginação futurística do século XX. Há também a tese de doutorado de Gisnaldo Amorim Pinto, Divulgação científica como literatura e o ensino de ciências, (2007) da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), que analisa como narrativas de ficção científica, dentre elas o romance Contato, de Sagan, podem incrementar e renovar o ensino de ciências.

Entretanto, há poucas considerações sobre Cosmos nesses trabalhos, ou mesmo nenhuma. Especificamente sobre a série, encontramos o artigo A religação dos saberes a partir da Série Cosmos, de Carl Sagan (2018), em que a obra televisiva é analisada no campo da educação, conforme o pensamento de Edgar Morin, como estratégia frente à fragmentação no processo de ensino-aprendizagem da educação básica. Em língua inglesa também pouca coisa foi encontrada e, quase sempre, abrangendo a obra de Sagan de forma ampla. Destacamos a tese The cosmic perspective: Carl Sagan's rhetorical view of the universe (1982), de Thomas Lessl, que examinou o trabalho do cosmólogo com base na análise do discurso, tendo feito pelo menos um artigo específico sobre Cosmos chamado Science and the sacred cosmos: The ideological rhetoric of Carl Sagan, no qual, sob a mesma base teórica e metodológica, levantou discussão semelhante a nossa, quanto às intercessões entre ciência e religião no discurso da série. Outra tese que destacamos e que aborda aspectos religiosos da visão de Sagan eBioastronomy and Myth: A Close Encounter with Carl Sagan (2002), de Candida Hadley. Não conseguimos, entretanto, o acesso online a esses trabalhos na íntegra.

em <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/11/16/O-que-%C3%A9-%E2%80%98p%C3%B3s-verdade%E2%80%99-a-palavra-do-ano-segundo-a-Universidade-de-Oxford>

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Esta dissertação se divide em quatro capítulos e sua estrutura não segue a divisão “clássica” entre capítulos teóricos e capítulos práticos. Sabemos dos riscos dessa quebra de convenção, mas consideramos importante esse constante “ir e vir” entre conceituações e exemplificações práticas extraídas do objeto para que as discussões fossem brevemente ilustradas e de um modo que entendemos como mais dinâmico. O primeiro capítulo é onde apresentamos conceitos e recortes históricos importantes para as análises seguintes. Neste, começamos por trazer algumas demarcações históricas e conceituais – necessárias para delimitarmos nosso ponto de partida – sobre ciência, divulgação científica, a série Cosmos e seus realizadores (principalmente Sagan e Tyson, os frontmen). São contextualizações a respeito do que é divulgação científica8, o que é ciência e qual a visão de ciência que a série

propaga. Os subcapítulos seguem essa ideia e vão do geral ao específico: primeiro, de forma introdutória, falamos sobre a história e os conceitos da ciência e da divulgação científica, incluindo sua adaptação à TV; depois, sobre a série Cosmos, com um perfil dos realizadores e um pouco da visão de ciência que a série propaga, algo como uma discussão sobre a “linha editorial” de um veículo de comunicação, o que inclui reflexões sobre as diferenças entre democratização da ciência e misticismo.

No segundo capítulo, utilizamos a teoria da linguagem, de Bakhtin, com destaque para seu conceito de dialogismo (2006) e de gêneros do discurso (1997) e a leitura bakhtiniana de José Luiz Fiorin (2017). Além da linguística, o capítulo vale-se da estilística – figuras de linguagem e de retórica – e de elementos básicos da linguagem audiovisual para cunhar a categorização que será utilizada para compor o quadro de análise com o que chamamos de dualidades9. A proposta é mostrar o quanto essa estratégia é acionada nas duas

versões da série, enquanto abordagem padrão na construção narrativa dos episódios.

Com a hipótese do trabalho mensurada pelo quadro de análise, partimos para o terceiro capítulo, aquele em que iremos propor reflexões sobre cotidiano e imaginário. Nele, buscamos estabelecerum diálogo entre Agnes Heller, que discute o cotidiano e a história, e autores do imaginário, como Michel Maffesoli (2001) e Juremir Machado da Silva (2012). Enquanto Maffesoli faz importantes conceituações sobre o imaginário, inclusive trazendo e reprocessando conceitos de outros autores, Silva aplica esses conceitos às novas mídias ao

8Por ser um trabalho de comunicação e para manter a comunicação enquanto eixo de pesquisa, optamos por dar maior ênfase à divulgação científica do que à ciência. Do contrário, o trabalho rumaria para a filosofia, com discussões sobre o que é ciência (assunto bastante amplo, aliás). Tratar de perspectivas que envolvam a relação entre ciência e pensamento mágico religioso já é, por si só, um caminho que requer grande escopo filosófico. Daí o cuidado em pontuar a comunicação como norte.

9 Essas dualidades são explicadas, uma a uma, episódio por episódio, nos anexos, em uma espécie de decupagem técnica.

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tratar das “tecnologias do imaginário” (2012), fundamental para entendermos Cosmos e a popularização da ciência em tempos de Netflix, um híbrido entre TV e computador (FRAGA, 2017). Neste capítulo, ao tratar das formas como a série audiovisual se articula como ponte entre o conhecimento científico e o grande público, valendo-se de elementos do imaginário na suspensão do cotidiano, discutiremos como a série propõe a ciência enquanto possibilidade de transcendência, em um discurso de exaltação da razão paradoxalmente poético e espiritualista. O conceito de “transcendência histórica”, de Michael Shermer (2011), será utilizado para abordarmos esta questão tão complexa quanto subjetiva. Por meio dele, Shermer traça um paralelo entre as aspirações humanas de vida além da morte e as contribuições que um ser humano pode fazer para a produção do conhecimento, também uma forma de transcender. O capítulo discute ainda as forma de representação da razão.

No quarto capítulo, buscamos fazer uma análise comparativa entre as duas temporadas com foco nas imagens e aspectos estéticos a serviço da retórica, enquanto alerta para os riscos ambientais e da autodestruição, e da didática, na abordagem de temas difíceis de se traduzir em imagens. Buscamos abranger tanto a estética quanto as pautas – os assuntos abordados e as diferenças de abordagens nesses 34 anos que dividiram as duas temporadas. O primeiro subcapítulo trata das pautas, mais precisamente de como a preocupação deslocou-se do antiarmamentismo da Guerra Fria para a mudança climática antropogênica (fruto da ação do homem); o segundo discute o simbolismo religioso e discurso apocalíptico que ilustram as preocupações explicadas no subcapítulo anterior; o terceiro trata dos elementos audiovisuais e da linguagem televisiva, com Benvenido León e seu conceito de “documentários científicos pós-modernos” (2010); o quarto e quinto subcapítulos discutem ludicidade e “imersão”, um conceito utilizado por Janet Murrey (2001), frequente nos games studies e que aqui adaptamos ao audiovisual.

Finalmente, antes de concluirmos esta introdução, explicitemos brevemente o caminho metodológico da pesquisa. Como anteriormente exposto, parte-se da hipótese que a série usa a religião e diversas formas de expressão do pensamento mágico como um facilitador, uma ponte entre o conhecimento científico proposto e o senso comum. Por meio da descrição e enunciação de crenças, lendas, mitos, religiões e superstições, Cosmos estrutura sua narrativa situando-os como elementos formadores do senso comum e, a partir deles ou em uma relação dialógica com os mesmos, difunde e enaltece o pensamento científico. A hipótese surge naquilo que Fonseca Jr. chama de “leitura flutuante” (2012, p. 290), uma leitura inicial sem compromisso de pesquisa, sem ter claro que a série se tornaria

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objeto da pesquisa. Ou seja, assistindo à série apenas como mais um telespectador, por conta do interesse em seu conteúdo e para fins de entretenimento.

Nessa leitura flutuante e depois de alguns episódios assistidos – das versões original e nova – observamos, particularmente, o modo como Cosmos articula questões ligadas ao pensamento mágico, explorando, algumas vezes, o conflito10 entre as explicações científicas e

as decorrentes dos modos de manifestação daquele pensamento. Também nos marcou e, de certo modo, provocou o insight que suscitou a hipótese desta pesquisa, as sequências do episódio 7 da versão original, intitulado A espinha dorsal da noite. Por meio delas percebemos, pela primeira vez,a estratégia narrativa que aqui dissertamos. No episódio, Carl Sagan visita aGrécia para falar sobre o nascimento da ciência. Ele explica que lá,pela primeira vez, os homens conceberam o mundo e a natureza como fenômenos ordenados, que seguiam leis que poderiam ser previstas e descritas. Era o surgimento do cosmos, em oposição ao caos, que era a percepção da realidade como sujeita ao capricho dos deuses. A estrutura argumentativa apresentada no episódio, que contrapunha cosmos (ciência) a caos (deuses), parecia familiar para quem, naquela altura, já assistira a alguns outros episódios das duas versões. Ela aparentemente se repetia de variadas formas em outros momentos.

Restava saber qual a recorrência desse tipo de estrutura argumentativa e narrativa. Para a mensuração, foi preciso estabelecer um nível de categorização e uma investigação qualitativa e quantitativa que, a nosso ver, a análise de conteúdo poderia oferecer. De acordo com Fonseca Jr. (2012), esse método adaptou-se aos desafios tanto da comunicação quanto de outras formas de conhecimento ao longo dos anos. De modo geral, a análise de conteúdo “se refere a um método das ciências humanas e sociais destinado à investigação de fenômenos simbólicos por meio de várias técnicas de pesquisa” (2012, p. 280). Observa-se, assim, certa flexibilidade e também abrangência desta metodologia. Essa inferência também pode ser retirada a partir de Bardin (1979), para quem a análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das comunicações. Não um instrumento, mas um leque de recursos. Melhor definindo: é um único instrumento, mas marcado por uma grande disparidade de formas e adaptável a um campo de aplicação muito vasto: as comunicações.Enfim, para Bardin, a análise de conteúdo é

10Usamos aqui o termo “conflito” em seu entendimento usual nos estudos de narrativa, como uma confrontação de forças e personagens através da qual a ação se organiza e se desenvolve. O “conflito é o jogo de ação que se dá através do embate” (CAMPOS, 2007, p. 177). Em alguns episódios da série essa polarização entre explicação científica e visão do pensamento mágico religioso torna-se o próprio conflito do episódio, como no caso do primeiro episódio da nova versão, que mostra as agruras de Giordano Bruno ao contestar a visão de universo finito adotada pela igreja na época, na qual a Terra teria uma posição privilegiada e central. Entretanto, noinício do processo de pesquisa, não se sabia qual a recorrência dessa elaboração narrativa dualista.

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Um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, obter indicadores quantitativos ou não, que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (1979, p. 38).

Tributária do positivismo, no campo da comunicação a análise de conteúdo é uma técnica de pesquisa que propicia a descrição objetiva, sistemática e quantitativa, seja do material impresso ou das mensagens sonoras e audiovisuais, para citar os exemplos mais recorrentes (2012). Segundo Lozano, essa opção metodológica é “sistemática porque se baseia num conjunto de procedimentos que se aplicam da mesma forma a todo o conteúdo analisável” (apud FONSECA JR., 2012, p. 286) e também confiável e objetiva, “porque permite que diferentes pessoas, aplicando em separado as mesmas categorias à mesma amostra de mensagens, possam chegar às mesmas conclusões” (Ibid).

A análise de conteúdo possibilita ainda uma “metodologia própria, que permite ao investigador programar, comunicar e avaliar um projeto de pesquisa com independência de resultados” (KRIPPENDORFF apud FONSECA JR., 2012, p. 286). Essa metodologia possui três fases cronológicas: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento e interpretação dos resultados obtidos (Ibid). Na pré-análise, elaboramos a categorização que será apresentada, aplicada a todo o corpus selecionado, que consiste nos 26 episódios da série (13 da versão original e 13 da nova versão). A exploração do material foi a análise propriamente dita, em que assistimos a todos os episódios, com a transcrição de diversos trechos, conforme as regras previamente estabelecidas. Quanto ao tratamento e interpretação dos resultados obtidos, estes serão expostos ao longo do trabalho, porque entendemos que, em função do detalhamento da análise ter nos apontado um padrão que foi verificado em praticamente todos os episódios (ver anexo), caberia à dissertação, de acordo com o foco pretendido, verificar a relação que mais se articularia com a questão central do trabalho, isto é, conforme já colocado, como a série busca atingir o grande público e, portanto, participaria do ideário da popularização da ciência.

Esta posição nos levou a um caminho multimetodológico que, além de adaptar a metodologia de análise de conteúdo, também incorporou a revisão bibliográfica, em procedimento amplo e concomitante ao andamento da pesquisa e, ainda, procedimentos das análises documental e de imagem. A opção por um caminho multimetodológico se dá devido ao nosso objetivo de apreender e problematizar diversos aspectos das estratégias retóricas da linguagem audiovisual de Cosmos, sob variados ângulos: os modos como a série produz sentido ao construir e enaltecer o discurso da racionalidade científica; como dialoga com o

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cotidiano se apropriando de alguns de seus elementos e, ao mesmo tempo, propondo a ciência enquanto possibilidade de suspensão; os apelos para atingir o imaginário, os modos como incorpora e reflete o contexto da ciência e da sociedade das épocas em que suas versões foram produzidas.

Sobre a revisão bibliográfica, os autores e materiais aqui utilizados possibilitaram que partíssemos de pressupostos já amplamente debatidos e buscássemos novos enfoques, perspectivas originais. Por exemplo, a nós não bastaria, tão somente, propor como principal objetivo de pesquisa esclarecer qual a visão de ciência em Cosmos, visto que já há trabalho acadêmico que se propõe a discutir a visão de ciência da obra de Carl Sagan (ALBERGARIA, 2013). Por isso, nossa questão aqui é diferenciada e mais específica: como a linguagem audiovisual da série Cosmos produz sentido ao enaltecer a racionalidade científica, expondo um modo de uso do audiovisual como estratégia de divulgação científica. Ainda assim, a obra citada, de Albergaria, é uma das fundamentais enquanto ponto de partida para discussões sobre a visão de ciência de Sagan e como Cosmos adota uma perspectiva iluminista de ciência enquanto uma luz a nos guiar rumo a um progresso histórico (quase) linear. Sobre nosso caminho multimetodológico, Maria Maria Immacolata Vassalo de Lopes adverte a respeito da versatilidade dos estudos em comunicação:

Os métodos se particularizam segundo o desenvolvimento por níveis. A sondagem (survey) é tão própria da sociologia quanto o experimento em laboratório é da psicologia, o estudo da comunidade é da antropologia e a análise do discurso é da semiologia. A comunicação, que por natureza deve recorrer a vários níveis, não teria um só método apropriado. (apud MOREIRA, 2012, p. 270).

Conforme explica Sônia Moreira, “a análise documental compreende a identificação, a verificação, e a apreciação de documentos para determinado fim.” (2012, p. 271). Segundo a autora, “para o historiador, o documento representa o fio da meada, a indispensável referência para o registro histórico.” (2012, p. 269). Moreira afirma que o recurso da análise documental costuma ser utilizado nas pesquisas em comunicação no resgate da história de meios de comunicação, personagens ou períodos. Em nosso trabalho, parte-se da perspectiva de que o próprio material audiovisual da série é, por si só, um documento, haja vista que as duas temporadas analisadas refletem aspectos das épocas em que foram produzidas. Os 34 anos que dividem as duas versões representam tempo suficiente para mudanças significativas em nossa sociedade de rápidas transformações. E essas mudanças significativas que ocorreram nesses 34 anos nos legitimam a enxergar a própria série como um documento histórico, que traduz o pensamento científico e o contexto social de épocas

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diferentes. Essa visão do material audiovisual enquanto documento histórico passível de análise está em consonância com o que diz Moreira sobre a metodologia da análise documental utilizada na área de comunicação. A autora distingue as fontes de análise em primárias e secundárias, sendo essas últimas as mais utilizadas na análise documental aplicada à comunicação. Dentre as fontes secundárias, estão as produções audiovisuais. Essas fontes:

Constituem conhecimento, dados ou informações já reunidos ou organizados. São fontes secundárias a mídia impressa (jornais, revistas, boletins, almanaques, catálogos) e a eletrônica (gravações magnéticas de som e vídeo, gravações digitais de áudio e imagem) e relatórios técnicos (MOREIRA, 2012, p 272).

Já as fontes primárias são, por exemplo, “os escritos pessoais, cartas particulares, documentos oficiais, textos legais, documentos internos de empresas e instituições” (Ibid). Em nossa análise documental, utilizaremos as fontes secundárias, material com informação já processada, reunida, organizada. Principalmente o material audiovisual – os episódios da série –, mas não só isso. Também nos valemos de algumas reportagens e demais textos de veículos impresso e digital que, de alguma forma, contribuem para contextualizações, ou seja, ajudam a entender Cosmos e suas abordagens. “A análise crítica do material encontrado constitui importante fio condutor para a memória de eventos, pessoas e contextos” (MOREIRA, 2012, p. 274). Desde já, pode-se adiantar que, na primeira versão, período de Guerra Fria e corrida espacial, houve ênfase maior em assuntos ligados ao espaço e tecnologia aeroespacial; enquanto na segunda versão, as questões ambientais ganharam destaque.

Além da pesquisa do objeto específico, faz-se necessária a apuração paralela e simultânea de informações que complementem os dados coletados. A contextualização é imperativa para o pesquisador que pretenda concretizar um projeto de análise documental (MOREIRA, 2012, p. 275).

Moreira lembra que a análise documental é um método e também uma técnica. “Método porque pressupõe o ângulo escolhido com base em uma investigação. Técnica porque é um recurso que complementa outras fontes de obtenção de dados” (2012, p. 272). Logo, nossa opção de utilização pela análise documental como complementar, dentro de uma proposta multimetodológica, mantem-se em afinidade com essa proposição. Ao tratar do trabalho de análise crítica dos documentos coletados feito pelo pesquisador, Adriana Pimentel fala sobre a correlação entre a análise documental e a análise de conteúdo, metodologia que consideramos a mais estruturante de nosso trabalho.

Organizar o trabalho significa processar a leitura segundo critérios da análise de conteúdo, comportando algumas técnicas, tais como fichamento, levantamento quantitativo e qualitativo de termos e assuntos recorrentes, criação de códigos para facilitar o controle e o manuseio... A análise

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documental, muito mais que localizar, identificar, organizar e avaliar textos, som e imagem, funciona como expediente eficaz para contextualizar fatos, situações, momentos (apud MOREIRA, 2012, p. 276).

Portanto, a opção que fizemos considerou que incluir a pesquisa documental significaria trabalha-la de forma conjugada, inseparável de outras metodologias, como as análises de conteúdo e de imagem.No caso desta última, Iluska Coutinho explica que seu aspecto principal reside na “capacidade das imagens de comunicar uma mensagem” (2012, p. 330). Explicitar o uso da análise de imagem em uma pesquisa cujo objeto é uma série audiovisual de TV pode soar tautológico, mas tendo em vista que grande parte das nossas análises estão alicerçadas na palavra, na narrativa verbal, julgamos necessárias algumas considerações sobre essa opção metodológica que, assim, como as outras, é indissociável em nosso percurso e nossos objetivos.

Interessa à análise da imagem compreender as mensagens visuais como produtos comunicacionais, especialmente aquelas inseridas em meios de comunicação de massa: fotografias impressas em jornais, anúncios publicitários, filmes, imagens difundidas pela televisão ou ainda disponíveis na internet (COUTINHO, 2012, p. 331).

A sociedade comunicacional em que vivemos tornou-se cada vez mais imagética, e a força simbólica das imagens está por toda parte. A importância da análise das imagens nas pesquisas em comunicação pode ser avaliada pelo espaço ocupado pelos registros visuais na vida em sociedade. Mas a representatividade das imagens na vida dos seres humanos é antiquíssima. Para Coutinho, os registros visuais estão intrínsecos ao “próprio reconhecimento das origens do homem na concepção religiosa, que reforça os conceitos de imagem e semelhança na construção do ser humano” (2012, p. 331). No mesmo sentido, para Joly, “do mito da caverna à Bíblia, aprendemos que nós somos imagens, seres que se parecem com o Belo, o Bom e o Sagrado” (apud COUTINHO, 2012, p. 331).

A opção supostamente óbvia de incluir a análise de imagem em nossa proposta multimetodológica se deve ao fato de que, na análise de uma série documental audiovisual de TV, ou seja, com uma linguagem televisiva, em que as imagens são fortemente condicionadas pelo texto, esta metodologia possibilita captarmos o que é mostrado, mas não dito, ou aquilo que até é dito, mas insuficientemente, pelo texto verbal. Só para maior compreensão em relação ao que nos motivou citamos aqui o início do episódio 10 da versão original, em que Sagan, ao falar sobre a experiência do nascimento de um ser humano e as possíveis lembranças decorrentes, semelhantes, segundo ele, a transfigurações místicas, aparece envolvido em uma aura que faz lembrar algum tipo de aparição divina ou um limbo ou túnel

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de pós-morte. Ora, não marcarmos esta “interferência” imagética na narrativa significaria desprezar uma potente simbologia a marcar a interpretação da cena.

Vale mencionar, no entanto, que a análise de imagem, enquanto expressão e até enquanto proposta metodológica, é algo genérico, que aponta para muitas direções. Nas pesquisas de comunicação, ela é utilizada, principalmente, em três grandes grupos de estudo: “Uma das linhas de investigação considera a imagem como documento (1), outra propõe a análise desta como narrativa (2) e ainda há os que defendem a necessidade de se realizarem exercícios do ver (3)” (COUTINHO, 2012, p. 331). As duas primeiras linhas são as que nos interessam. A primeira é uma interseção com a opção metodológica anteriormente conceituada, a análise documental, já que entende que “os meios de comunicação são também documento histórico, das diferentes formas de ver e mostrar o mundo em dado contexto” (COUTINHO, 2012, p. 332). A segunda linha, por onde trilha a maior parte e o principal objetivo desta pesquisa, analisa a imagem a serviço da construção da narrativa; a imagem em busca do afeto, provocando apelo emocional; reforçando e redundando a palavra falada; auxiliando as explicações de conceitos complexos de divulgação científica, abordando, às vezes, aquilo que é difícil de mostrar: como mostrar um átomo, a fotossíntese ou um buraco negro? Por essa linha também segue um grande número de pesquisadores e correntes teóricas da comunicação. “Um significativo número de trabalhos se dedica à análise semiótica, enquanto há estudiosos que privilegiam os aspectos discursivos da imagem” (COUTINHO, 2012, p. 332).

Ao contrário dos estudiosos que se propõem a realizar a análise com enfoque documental, nas análises da imagem como narrativa não há uma predominância do estudo de registros visuais estáticos, mas a existência de significativo número de trabalhos que se dedicam à análise da imagem em movimento, seja ela televisiva, em vídeo ou ainda de filmes (cinema) (COUTINHO, 2012, p. 333).

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1. CIÊNCIA, DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA, TELEVISÃO E A PROPOSTA DE COSMOS

O objetivo deste capítulo é propor alguns recortes contextuais que serão o ponto de partida para nossas reflexões, visto que ciência é um conceito abrangente que abriga, inclusive, várias divergências. Aqui apresentamos algumas das visões predominantes sobre ciência, como as de Karl Popper, Thomas Khun e Paul Paul Feyerabend. Esses autores foram selecionados pois, além da relevância que possuem na filosofia da ciência do século passado, são representativos das discussões que se convencionou chamar de “guerra das ciências”, em que a ciência perdeu parte de sua aura de objetividade, chegando a ser caracterizada como mais uma crença, semelhante até à crença religiosa. Trata-se de um recorte contextual importante para uma pesquisa que se propõe discutir a relação entre ciência e crenças e como o discurso científico e religioso se fundem na narrativa audiovisual.

Também apresentamos o decurso da divulgação científica, tendo como marco o trabalho de Galileu Galilei, considerado um dos fundadores da ciência moderna. Isso porque o conceito de ciência moderna é fundamental para tratarmos da visão de ciência proposta pela série Cosmos, que reforça valores iluministas em contraposição à Idade Média. O texto ressalta o conflito entre o pensamento científico e a religião institucionalizada no decurso da divulgação científica e como a busca pela popularização da ciência adaptou-se às mudanças nas formas de comunicação, chegando até a TV, com algumas considerações sobre a popularização da ciência no Brasil.

A partir da discussão sobre audiovisual e ciência, abordamos a proposta de Cosmos, o modo como a série advoga pela democratização da ciência e vê no misticismo um obstáculo para esse processo de democratização. Nessa discussão, utilizamos a concepção de misticismo proposta por Bertrand Russel e o conceito de comunismo, do sociólogo americano Robert Merton, uma das características do ethos científico. Ao discutir a democratização do conhecimento no contexto de Cosmos, traçamos brevemente um escopo filosófico da divulgação científica, entendida como uma forma de partilha do conhecimento por meio da comunicação, valendo-nos das diferenças entre os pensamentos de Platão e Aristóteles.

1.1. Ciência: conceitos e métodos

O entendimento do que é ciência variou ao longo dos tempos. Etimologicamente, o termo se deriva do latim, scientia, que quer dizer “conhecimento.” De modo sintético, pode-se dizer que, até o século 17, entendia-se que ciência era o conhecimento das escrituras e de

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