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Laços familiares e memória nos idosos

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Academic year: 2021

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Laços familiares e memória nos idosos

Sandra Regina Pelisser Souza ato de lembrar, possibilitado pela memória, é uma propriedade individual, porém, vemos em Neri (2008, p.134) que:

Os processos de lembrar e esquecer, assim como os processos de criação, construção e exposição de estilos narrativos e de articulação entre lembrança e

esquecimento, dependem das relações sociais

vivenciadas nos âmbitos familiar, de vizinhança, profissional, político, religioso e das próprias de uma dada geração.

A partir das relações estabelecidas no grupo de socialização primário - a família e seus laços constituídos - que o ser humano desenvolve-se, descobre o mundo e a si mesmo, aprende e expressa sua individualidade, constrói sua identidade, através da capacidade de registro, elaboração e compartilhamento do vivido, o que é possibilitado, principalmente, a partir das funções desempenhadas pelas memórias.

Faz-se necessário trabalhar com os familiares no sentido de perceberem e valorizarem a fonte de experiência e de sabedoria presente em cada idoso,

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manancial de história e de cultura, que possibilita a construção de elos que unem as gerações presentes às passadas, à tradição, e às suas origens através das memórias, resgatadas e compartilhadas.

A possibilidade de promover e estimular relações intergeracionais, principalmente no âmbito familiar, pelo contato entre idosos, crianças, jovens e adultos (Park (2000, 2003), citado por Neri (2008, p.135):

[...] enriquece a vida dos mais velhos, permite-lhes realizar a função de elo entre o passado e o presente e, além disso, ajuda a combater o preconceito com relação aos idosos.

A rememoração, enquanto papel e função social de lembrar desempenhada pelos idosos, não é simplesmente recontar fatos passados, mas resgatando-os, recriar todos os sentidos possíveis de experiência, possibilitando o compartilhamento com o presente para assim criar, a cada vez, outros e novos sentidos.

Assim, a memória quando presentificada, ressignifica o sentido de vida, enquanto identidade contemporânea desse idoso, como também o insere no âmbito das experiências coletivas de uma época histórica. O ato de rememorar, como observamos frequentemente nos idosos, pode se tornar terapêutico quando nos propomos a uma escuta atenta das suas histórias, pois muitos deles são carentes de vínculos familiares e sociais. A rememoração praticada pelos idosos constitui uma contribuição para a memória social para a qual muito acrescentam, com suas vivências e visão de mundo.

Pesquisando a etimologia da palavra memória para esta reflexão, verificamos que memória, em grego, é Mnemosyne, derivada do verbo mimnéskein que significa “lembrar-se de”, com a conotação de consciência, verdade. Na mitologia grega, Mnemosyne é a mãe das musas que preside diversas formas do pensamento e irmã de Chronos, o deus do tempo, o que denota o aspecto da memória associado com o aprendizado e o tempo.

A Mnemosyne se opõe a Lethé, que em grego quer dizer, literalmente, esquecimento. Embora sejam antagonistas por natureza, memória e esquecimento podem ser, no âmbito da compreensão do campo mnemônico, complementares, pois o ato de memorizar parte de um processo seletivo de ampliação e retração, onde nem tudo pode ser incorporado e nem tudo rejeitado.

A memória, enquanto registro de informações, como vemos em Alves Júnior (2008), pode ser dividida em função, conteúdo e duração.

Quanto à função - a “memória de trabalho” serve para contextualizar a realidade imediata. Mantém durante alguns segundos, no máximo poucos minutos, a informação que está sendo processada no momento. Analisa as

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informações que chegam, não produzindo arquivos. Para discriminar e selecionar quais correspondem ou não a memórias preexistentes.

Quanto ao conteúdo - podem ser de dois tipos: “memória declarativa” e “memória procedural”. A “memória declarativa”, que registra fatos, eventos ou conhecimentos, divide-se em outros dois tipos: episódicas - referentes a eventos aos quais participamos ou assistimos, são autobiográficas e semânticas, referentes a conhecimentos gerais, conceitos, significado de palavras. A “memória procedural” se refere ao registro correspondente às habilidades motoras.

Quanto à duração - que se refere ao tempo de armazenamento da informação - as memórias podem ser: de curta duração que dura de 3 a 6 horas; e de longa duração por dias, anos, décadas.

Já quanto às funções psicológicas exercidas pelas memórias, importante fator de equilíbrio psicológico nos idosos, descritas por Watt e Wong (1991) citados em Neri (2008, p.138), atuam frequentemente sobrepostas na velhice: integrativas, instrumentais, transmissivas, escapistas e obsessivas.

As funções integrativas da memória permitem que o idoso consiga construir o senso de integridade do ego, produto da resolução dos conflitos psicossociais vividos durante seu ciclo vital, resultando em esquemas de self positivos e realistas, permitindo uma reconciliação com a pessoa que realmente é e também, com os outros.

Possibilita a rememoração de experiências positivas e a integração e redimensionamento das experiências negativas, com a reconstrução do senso de significado pessoal. Essa função tem por objeto no idoso lidar e ressignificar as perdas no contexto em que foram vividas e também lhe possibilita a aceitação da finitude da vida.

A segunda das funções psicológicas atribuídas às memórias são as instrumentais, que envolvem três procedimentos: lembrança de planos orientados a metas no passado; aproveitamento do que foi vivido, como experiência para possibilitar a resolução de problemas atuais e, por último, a rememoração do modo como se enfrentou determinadas dificuldades.

A principal finalidade dessas funções instrumentais é possibilitar que o idoso preserve o senso de domínio, difícil de manter nessa época da vida, permeada por perdas físicas, psicológicas e sociais. Funcionam como modos de se adaptar a novas situações, já que promovem a autoestima e motivação, frente ao desamparo e sentimentos de inferioridade propiciados pelas condições vividas na velhice.

Outra das funções psicológicas é a transmissiva, que incluem as histórias orais e narrativas pessoais como forma de transmissão de conhecimentos especializados, experiências, lições morais. Memórias narrativas e contar histórias constituem subcategorias dessas funções transmissivas, que incluem

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autobiografias e relatos anedóticos, que não pressupõem necessariamente avaliações.

As quartas e quintas funções, escapistas e obsessivas funcionam como mecanismos de defesa e/ou estratégias para enfrentamento de situações problemáticas do passado ou do presente.

As funções escapistas ocorrem quando o idoso se coloca a glorificar ou negar o passado, depreciar o presente ou idealizar o futuro, sem nexos com sua realidade vivida, visando a reconstruções que são adaptativas. Essas funções são, frente a eventos de transição ou enfrentamento de crises, momentaneamente benéficas. Porém, a médio e longo prazo não permitem que o self do indivíduo possa se integrar, pois são baseadas em percepções falsas do self verdadeiro e, portanto, não cumprem funções integrativas do ego. As funções obsessivas resvalam para o lado desadaptativo, quanto ao ajustamento de personalidade do indivíduo ao seu meio social imediato. Há uma excessiva elaboração do passado, em detrimento do presente e do futuro. Envolvem sentimentos e emoções vividos pelo idoso que podem comprometer seu ajustamento social e sua saúde mental. Assim, sentimentos de vergonha, culpa, desapontamentos, ressentimentos e desespero se repetem sem que o idoso consiga integrar seu passado, com todas suas intercorrências, com os aspectos positivos experienciados, num self integrado e uno, presente no momento vivido.

Uma atenção da rede social próxima do idoso, quanto a esses aspectos de vida, pode ser útil para que se consiga ajuda e favoreça possiblidades de recuperação do senso de valor do idoso e sua melhor adaptação social.

A preservação da identidade cultural, social e psicológica do idoso é tão importante que, com a finalidade de preservar a função social de compartilhar, o Estatuto do Idoso através da lei Nº 10.741 de 1º de outubro de 2003, estabelece dispositivos legais específicos, como o art.3º, Inciso IV, que promove a viabilização de formas alternativas de participação e convívio dos idosos com as demais gerações, e o art.21-§2º, que estabelece que os idosos participem das comemorações de caráter cívico ou cultural, para transmissão de conhecimentos e vivências às demais gerações, como importante meio de salvaguardar a memória e identidade cultural.

Por outro lado, é notória a carência de escuta atenta e o esquecimento dissimulado proposto, muitas vezes, pelas instituições, do que poderia ser incentivado e estimulado de memórias vividas e a ser compartilhadas pelos idosos. Ocorre, então, o favorecimento de um presente vivido em rotinas e hábitos institucionais padronizados, nas mais diversas instâncias: família, ILPI’s, em que o idoso transita, no qual o espaço para falar e ser ouvido é frequentemente estéril e minimamente confortável para que ele possa se colocar, favorecendo o sentimento de esvaziamento ou encolhimento, tornando a sensação de finitude cotidianamente presente.

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Ao sentar-se para ouvir histórias, quando buscamos tempo dentro do dia a dia corrido em que vivemos, podemos gerar saúde mental individual, também como reflexo de saúde social, quando se considera o contexto social em que o idoso se expressa e está inserido.

Para Candau (2011, p.118), “Transmitir uma memória e fazer viver, assim, uma identidade não consiste, portanto, em apenas legar algo, e sim uma maneira de estar no mundo”.

Entendemos que, para o autor, a transmissão de saberes, e a experiência registrada na memória a partir de memórias cumulativas são, igualmente, constitutivos da identidade da pessoa, que sem tais memórias ou sem o ato de compartilhamento não poderia se constituir como identidade.

Segundo o mesmo autor (2011, p. 59) “A perda de memória é, portanto, uma perda de identidade”. Quando impossibilitado esse exercício provoca um empobrecimento para todos, pois os idosos deixam de contribuir com o legado que é inerente à sua faixa etária: os dados das experiências, memórias, conhecimentos, vivências, dores e acertos, toda uma vida a ser contada e compartilhada.

O processo de re/vigor/ação propiciado pelo resgate das memorias permite que o idoso se aproprie/resgate sua identidade e possa, em contraposição, valorizar o presente e que também possa se apropriar de um futuro, a ser criado, como o fez no passado, e a ser vivido.

Para o idoso, quando possibilitada, a função social própria de rememorar, permite através do resgate dos fatos vividos e buscados pela experiência, selecionar aspectos que considere importantes no seu presente.

A rememoração, quando espontânea e natural, possibilita ao idoso o ato de compartilhamento, pelas memórias evocadas, a partir de narrativas de histórias resgatadas no tempo. Quando ocorre, principalmente num contexto de vida institucionalizada, pode ser benéfico e positivo, desde que se perceba na sua narrativa uma ação que pode propiciar, pelo resgate da sua identidade, uma humanização do vivido, no presente. Assim, por meio do resgate do registro das memórias, possibilitar ao idoso uma compreensão ampliada da própria cultura e da sua identidade nela submersa.

Referências

ALVES JR. Psicologia aplicada à Educação, 2008. Faculdades Machado de

Assis. Matéria semi-presencial. Disponível em

http://famanet.br/pdf/cursos/semipre/psicologia_educacao_md3_weber.pdf.

ESTATUTO DO IDOSO, Lei nº 10.741 de 1º de outubro de 2003, arts.3º inciso

IV e 21º parágrafo 2º

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CANDAU, J. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2011.

NERI, A.L. Palavras chaves em gerontologia. São Paulo: Alínea, 2008, 3ª.ed. PARK, M.B. (2000). Memória em Desenvolvimento na Formação de Professores. In NERI, A.L. Palavras chaves em gerontologia. São Paulo: Alínea, 2008, 3ª.ed.

___________ (2003). Memória em Desenvolvimento na Formação de Professores. In NERI, A.L. Palavras chaves em gerontologia. São Paulo: Alínea, 2008, 3ª.ed.

WATT, L. & WONG, PTP (1991). A Taxonomy of reminiscence and therapeutic implications. Journal of Mental Health Counseling,12, 270-278. In NERI, A.L. Palavras chaves em gerontologia. São Paulo: Alínea, 2008, 3ª.ed.

Data de recebimento: 08/12/2013; Data de aceite: 13/01/2014. ___________________

Sandra Regina Pelisser Souza - advogada, psicóloga, atua na área institucional em ILPIs, especializanda em Gerontologia-PUCSP - Campus Ipiranga. Email: sandra4929@terra.com.br

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