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Mito e pensamento lógico: do dogmatismo ao diálogo na perspectiva da compreensão como método

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Academic year: 2021

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rdinariamente, o pensamento ocidental moderno, chamado “ortopédico” por Boaventura de Sousa Santos, contrapôs de forma radical o logos e o mito, entendendo o pensamento lógi-co lógi-como exemplar, entre outras razões, por se manter distante das linguagens não conceituais. A partir dos trabalhos de Gilbert Durand, Mircea Eliade e Martin Buber, pretende-se compreensivamente aproximar conceito e imagem simbólica, destacando que ambos nascem da relação vin-culante de tipo Eu-Tu (Buber) e podem reconduzir à atualidade dessa rela-ção, ou, ao contrário, levar a um fechamento dogmático e empobrecedor da existência humana.

Palavras-chave: comunicação; mito e razão; imagem simbólica; a compre-ensão como método.

Dimas A. Künsch

Doutor em Ciências da Comunicação, docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero.

E-mail: dimaskunsch@casperlibero.edu.br

Paulo Emílio de Paiva Bonillo Fernandes

Mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero e integrante do projeto de pesquisa “A compreensão como método”, da mesma instituição. E-mail: pauloemiliofernandes@outlook.com

ao diálogo na perspectiva da compreensão

como método

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1. Texto

original-mente apresentado por Paulo Emílio de Paiva Bonillo Fer-nandes no V Con-gresso Internacional de Comunicação e Cultura - V Comcult (São Paulo, Faculda-de Cásper Líbero, 11 a 13/11/2015), com o título: “Do inefável ao dogmático: sobre o nascimento do mito, a multivalên-cia de seus símbolos e suas más interpre-tações”. Revisto e ampliado, assumin-do a dupla assinatura para esta edição.

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Myth and logical thinking: from dogmatism

to a dialogue under the perspective of

comprehension as a method

The modern western thinking, labeled as “orthopedic” by Boaventura de Sousa Santos, has regularly and radically confronted logos and myth, understanding logical thinking as a standard, among others reasons, for keeping itself distant from nonconceptual languages. Based on the works of Gilbert Durand, Mircea Eliade and Martin Buber, we aim to approximate concept and symbolic image in a comprehensive manner, stressing that both are born of the bonding exchange I-Thou (Buber) and may guide us once again to the actuality of such exchange or, in opposition, to a debilitanting, dogmatic closure of human existence.

Keywords: communication; myth and reason; symbolic image; comprehension as a method.

Mito y pensamiento lógico: desde el dogmatismo

hasta el diálogo bajo la perspectiva de la

comprensión como método

El pensamiento ocidental de la modernidad, llamado “ortopédico” por Boaventura de Sousa Santos, ha ordinariamente contrapuesto de manera radical logos y mito, enten-diendo el pensamiento lógico como exemplar, entre otros motivos, por mantenerse alejado de las lenguajes no conceptuales. Con básis en la obra de Gilbert Durand, Mircea Eliade y Martin Buber, pretendemos compreensivamente aproximar concepto y imagen simbólica, resaltando que uno y otro son nacidos de la relación vinculante de tipo Yo-Tú (Buber) y pueden reconducir a la actualidad de esa relación o, en contrario, llevar a un cerramiento dogmático y empobrecedor de la existencia humana.

Palabras clave: comunicación; mito y razón; imagen simbólica; la comprensión

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Um pensamento iconoclasta

Gilbert Durand, em mais de uma ocasião, aponta um “iconoclasmo en-dêmico” das pedagogias – isto é, dos discursos e sistemas hegemônicos de pensamento – do Ocidente, iconoclasmo que remontaria à confluência entre uma lógica binária de busca da verdade, para a qual há apenas dois valores (falso e verdadeiro), e a tradição religiosa de interdição das imagens (2011, p. 9). Na história desse pensamento iconoclasta a que se refere Durand, podem ser enumerados diferentes métodos de depuração das narrativas e dos sím-bolos míticos (Armstrong, 2005; Durand, 2011; Eliade, 2013; Brisson, 2014). Quando diferentes discursos começaram a tomar forma, como o histórico e o filosófico, “favoreceram uma contestação radical do discurso poético. [...] O poeta era o homem não mais de um aparecer necessário, mas de um parecer enganador e imoral” (Brisson, 2014, p. 284).

O historiador das religiões Mircea Eliade (2013, p. 134) lembra que, já “nos tempos de Tucídides (460-400 a. C), o adjetivo mythodes significava ‘fa-buloso e sem prova’, em oposição a qualquer verdade ou realidade”. Com maior dose de condescendência, ainda segundo Eliade (2013, p. 135), pretendeu-se, desde o tempo dos estoicos e séculos afora, com o auxílio do método alegó-rico, distinguir nos mitos helênicos o que havia de “verdadeiro” em meio aos seus “conteúdos fantasiosos”. Nesse contexto, os deuses foram reduzidos “a princípios físicos ou éticos”, ou foi dito que seus nomes “representavam quer as faculdades humanas, quer elementos naturais”, ou, ainda, como Evêmero no século 3 a.C., que os deuses seriam “antigos reis divinizados”.

Tal era a atitude crítica frente ao mito, adotada por parte expressiva da filosofia grega: reduzi-lo ao verossímil (Veyne, 2014)2. Um “tipo de sabedoria

inadequada” é como Sócrates se refere aos mitos no Fedro, pois, em sua vi-são, os mitos se ocupam de “coisas estranhas”. Por que desperdiçar o tempo precioso que se deve dedicar ao conhecimento de si mesmo, questiona-se Sócrates, com coisas que, na voz de Platão, o autor do Fedro, não passam de mera “sabedoria camponesa”? (apud Cassirer, 2013, p. 16).

Há exemplo mais recente da tentativa de destilar verdades científicas de narrativas míticas: no livro Oxford Annotated Bible, cuja primeira edição data de 1962, lê-se, por exemplo, numa referência à passagem bíblica das chamadas “pragas do Egito”, que “a praga do sangue aparentemente reflete um fenômeno natural do Egito: isto é, a coloração avermelhada do Nilo, mais intensa no verão, devido a partículas vermelhas de terra ou talvez a organis-mos diminutos” (apud Segal, 2004, p. 13)3.

No entanto, é bom que se diga, com Brisson, que “a atitude do ‘histo-riador’ e, sobretudo, a do ‘filósofo’ em relação ao mito foram, em quase toda

2. Ver especialmente

o capítulo Quando a

verdade histórica era tradição e vulgata.

3. Tradução nossa

do original em in-glês: “The plague of blood apparently re-flects a natural phe-nomenon of Egypt: namely, the reddish color of the Nile at its height in the summer owing to red particles of earth or perhaps minute organisms”.

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a sua totalidade, marcadas por uma ambivalência muito grande” (Brisson, 2014, p. 284). Em outras palavras, nunca é bom forçar demais as tintas na expressão da ruptura do logos em relação ao mythos, na Grécia Antiga como em qualquer outra época. Há por vezes mais espaço para um diálogo possí-vel, e até um namoro, do que para uma luta acirrada entre ambos, como em geral se pretendeu ver nos livros de história da filosofia.

Sócrates pode servir de exemplo. Com efeito, em sua defesa diante do tribunal que o acusava, entre outras coisas, de desviar a juventude e de in-duzi-la a não acreditar nos deuses, além de invocar o auxílio de Zeus em sua fala, apoia-se num oráculo divino, enunciado no templo de Delfos, ao tentar provar que sua missão lhe fora confiada pelo próprio Apolo, “o deus”, razão pela qual, segundo o seu argumento, jamais lhe poderia ser imputada a culpa de não acreditar nos deuses ou de não agir segundo os seus ditames. Sócrates, que, como se sabe, não deixou nenhum escrito, fala, na Defesa de Sócrates (1996), por meio da boca de Platão, seu discípulo e, segundo a tradição, um crítico do mito, tanto ou mais do que o seu mestre. Ou seja: o mesmo Sócrates que, no Fedro, se diz indisposto a perder tempo com “coisas estranhas”, para não se desviar das virtualidades do logos, aqui, diante do tri-bunal, se apresenta como filósofo e religioso, seguidor fiel do oráculo divino.

Quase vinte séculos depois, o Francis Bacon (1561-1626) do Novum or-ganum, um dos pais do método empírico e fiel devoto do poder salvacionista da ciência contra o que entendia ser as trevas da ignorância, nem parece o mesmo quando, na obra A sabedoria dos antigos, presta as mais elevadas honras à sabedoria dos “tempos recuados”, merecedora, em sua opinião, de “suma veneração”. Ele quer, assim, na contemplação dos mitos, “contribuir para a compreensão das dificuldades da vida e os segredos da natureza” (apud Künsch, 2008, p. 175).

Também, se nos distanciarmos com alguma ousadia do viés tradicio-nalmente racionalista do cogito cartesiano, é possível identificar, em René Descartes (1596-1650), um pensamento de tipo compreensivo, que, sem ab-dicar do rigor a que se propõe em sua procura incansável pelo método, con-versa sem pudores com a ideia de narrativa, ao ponto de chamar de fábula a história que conta de si mesmo, para que outros, ele sugere, se disponham a contar a sua (Künsch, 2008, p. 178-180).

Portanto não se trata aqui de afirmar que o pensamento filosófico tenha feito mal, ao se contrapor à leitura mítica do mundo; não fosse tal ímpeto, não saberíamos dizer de que modo as virtudes da filosofia e da ciência teriam emergido. Idêntico raciocínio pode ser observado em Boa-ventura de Sousa Santos quando ele se refere à ruptura epistemológica, processada, sobretudo, a partir do século 19, da ciência em suas várias

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disciplinas frente ao senso comum. Ora, um saber afirma-se diante de ou-tro saber – e Santos, como nós aqui, pode ser útil observar, eleva o senso comum, com suas potencialidades e seus limites como qualquer outra for-ma de conhecimento, à dignidade de um saber ao lado de outros saberes, científicos e não científicos – delimitando com vigor o seu próprio campo de abrangência, seus códigos e suas linguagens (Santos, 1989, 31-34).

O que Santos critica, na sequência, ao propor a “ruptura da ruptura” – da ciência em relação ao senso comum – é o que chama de “dogmatiza-ção da ciência”, tendo esta se constituído, segundo ele, em “um paradigma que pressupõe uma única forma de conhecimento válido, o conhecimento científico (idem, p. 34), que “produz um discurso que se pretende rigoro-so, antiliterário, sem imagens nem metáforas, analogias ou outras figuras de retórica” – um pensamento “iconoclasta” (Durand) –, “mas que, com isso, corre o risco de se tornar (...) um discurso desencantado, triste e sem imaginação” (idem, p. 35).

Sob o domínio do logos

Voltando ao tema do diálogo, às vezes dif ícil, entre mythos e logos, é pertinente lembrar neste contexto a noção de “ideias gerativas”, de Susanne K. Langer (2004, p. 20). Na história das ideias, cada período histórico dispõe de um horizonte intelectual que compreende as noções gerais que se tem do que seja a realidade, onde se encontram os “conceitos básicos à disposição das pessoas para analisar e descrever suas aventuras para o seu próprio en-tendimento” (idem, p. 18. Grifo da autora).

Por diferentes motivos e em diferentes circunstâncias (cuja investigação foge ao escopo deste artigo), tais noções gerais – pressupostos tão enraiza-dos no olhar daqueles que partilham uma visão particular de mundo que não chegam nem mesmo a ser enunciados, servindo como limite para as “pergun-tas claras e sensa“pergun-tas que podemos propor” (Langer, 2004, p. 18) – são modi-ficadas, vistas por outras perspectivas, sob outras luzes, o que gera simulta-neamente novos espaços de sombra. Assim, a passagem do mito à filosofia e depois à ciência não implica inferioridade de nenhuma dessas diferentes aproximações da realidade frente às demais. Em suma: não a hierarquia dos desiguais, e, sim, a sinfonia dos diferentes.

“A Filosofia nasceu realizando uma transformação gradual nos mitos gregos ou nasceu por uma ruptura radical com os mitos?”, pergunta-se, a propósito, Marilena Chauí (2003, p. 34), desqualificando, em sua respos-ta, como “exageradas”, tanto a tese da ruptura total – defendida no final do século 19 e início do século 20, “quando reinava um grande otimismo

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com relação aos poderes científicos e capacidades técnicas do homem” – quanto a da não ruptura – defendida a partir da metade do século 20, como resultado de estudos antropológicos e históricos que acabaram por atestar “a importância dos mitos na organização social e cultural das so-ciedades” (Chauí, 2003, p. 36).

De qualquer maneira, nos parece um erro pretender investigar o pen-samento mítico a partir de uma postura cognitiva compreensiva (Künsch, 2008), se por “compreensão” se entende algo assim como uma santificação, construindo para o mito uma espécie de altar na história das ideias. É pre-ciso reconhecê-lo, a fim de escapar de uma leitura demasiadamente cândida e ingênua do mito. Com efeito, não se combate um tipo de reducionismo de sentidos ou, pior, de dogmatismo (Santos, 1989), apelando-se para um redu-cionismo invertido, ou para uma nova forma de dogmatismo, disfarçado às vezes de pensamento crítico.

Assim, tanto o mito, com seus símbolos, quanto a ciência, com seus métodos, podem se prestar a um pensamento dogmático. O dogmatismo, tema sobre o qual voltaremos adiante, tanto pode frequentar o território do logos quanto o do mythos. Vista a questão sob outro ângulo, positivo, é possível ao mesmo tempo afirmar que ambos podem se compreender, ou se abraçar, no sentido original evocado pelo verbo latino comprehendere, que se traduz, para nós neste texto, na ideia de um método da compreensão.

O pensamento mítico tem uma racionalidade que lhe é própria, sua verdade (Armstrong, 2005; Campbell, 2007; Eliade, 2013),4 que não é

neces-sariamente mais ou menos virtuosa que outras racionalidades e outros sabe-res, como os científicos ou tecnológicos. Lévi-Strauss, em Mito e significado (1978), ocupa-se em desmontar a falsa hierarquia, para não nos referirmos ao total desprezo, que o arrogante cientificismo construiu entre si mesmo e o mito. Este, com efeito, para os povos “não letrados” (erroneamente no-meados “primitivos”, sublinha Lévi-Strauss), liga-se predominantemente às “lógicas do concreto”, sendo capaz, tanto quanto a ciência, de produzir “pen-samento desinteressado”, como parte da eterna busca do ser humano por compreender a si mesmo e ao mundo em que vive:

O que tentei mostrar, por exemplo, em Totémisme ou La Pensée Sauvage, é que esses povos que consideramos estarem totalmente dominados pela necessidade de não morrerem de fome, de se manter em num nível mínimo de subsistência, em condições materiais muito duras, são perfeitamente capazes de pensamento desinteressado; ou seja, são movidos por uma necessidade ou um desejo de compreender o mundo que os envolve, a sua natureza e a sociedade em que vivem. Por outro lado, para atingir este

4. Para Campbell,

em O herói de mil faces, os símbolos míticos, com sua gramática própria, afirmam a seu modo as “verdades bási-cas que têm servido de parâmetros para o homem, ao lon-go dos milênios de sua vida no planeta” (Campbell, 2007, p. 11-12).

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objetivo, agem por meios intelectuais, exatamente como faz um filósofo ou até, em certa medida, como pode fazer e fará um cientista. Esta é a minha hipótese de base (Lévi-Strauss, 1978, p. 19).

Entretanto, afastar os olhares maniqueístas que podem surgir quando o assunto é ciência e mitologia não deve nos impedir de dizer, retomando um tema já apontado em momento anterior deste texto, que, em termos gerais (e por isso sujeitos a críticas e ajustes), o Ocidente, na estrutura epistemológica que veio a construir, se quis “o único herdeiro de uma única verdade” (Durand, 2011, p. 7), atingível pelo raciocínio puramente abstrato, conceitual, logocêntrico – um pensamento destituído de imagens. Arlindo Machado destaca que, para Platão, o artista plástico “imita a aparência das coisas, sem conhecer a verdade delas e sem ter a ciência que as explica” (Machado, 2001, p. 9. Grifos nossos).

Não causa espanto algum constatar que, num momento histórico cuja tônica está grandemente no impulso da explicação dos fenômenos da natureza e do espírito, a imagem, que “pode se desenovelar dentro de uma descrição infinita e uma contemplação inesgotável” (Durand, 2011, p. 10), seja vista com desconfiança. O que espanta é a racionalidade oci-dental tê-la expulsado continuamente do rol de métodos de investigação e de produção de conhecimento.

Nesse cenário, a objeção de que o mundo ocidental sempre produziu mais imagens do que o mundo oriental não tem lá muita força. Sobre isso, Durand dirá que essa profusão de imagens figurativas no Ocidente se deu numa “total gratuidade epistemológica ou pedagógica” (1982, p. 18). No Islã, que cultivou as artes abstratas e caligráficas, houve, diz Durand ao se referir ao livro L’Imagination créatice dans le soufisme d’Ibn’Arabî, de Henri Corbin, uma “interiorização do imaginário” e um “desenvolvimento prodigioso da imaginação criadora” (idem, ibidem).

Trata-se de super-relativização do conceito e atrofia da imagem e da imaginação simbólica. Deve-se notar que a expressão “imaginação simbóli-ca” pode soar estranha, e até mesmo redundante. Porém, ela deixa claro estar se referindo a um tipo de símbolo diferente daquele destacado em algumas semióticas e que conta entre seus caracteres a arbitrariedade e a convenção. Entendemos, com Durand (2012, p. 29), que “o analogon que a imagem cons-titui não é nunca um signo arbitrariamente escolhido, é sempre intrinseca-mente motivado, o que significa que é sempre símbolo”. Para o símbolo do qual estamos a falar, antes de haver uma motivação linguística, isto é, arbi-trária, há uma motivação metafórica (Cassirer, 2013), não enquanto recurso da linguagem e, sim, do pensamento poético.

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Não será demais insistir, tendo por princípio a compreensão como método, que não se trata de demonizar o conceito, especialmente lá onde este se refere àquilo que é concebido, ou que se forma no espírito, na ideia. Ora, sem conceitos não se vive, tanto quanto só de conceitos a vida do conhecimento não vinga. Trata-se, antes, de criticar o pressuposto de que o caminho correto do raciocínio é não metafórico, “puro de imagens”, e que estas não passam de “um ‘impedimento’ para o processo ideativo” (Durand, 2012, p. 28). Desta forma, tal hipertrofia do conceito resulta no que Santos (2008, p. 15), no seguimento das ideias de Ortega y Gas-set, chama de pensamento ortopédico. Com a finalidade de “endireitar” o pensamento, a epistemologia ordinária do Ocidente acabou por enrije-cê-lo, de modo que se excluíssem do âmbito das investigações científicas todas aquelas questões para as quais a ciência não pode dar respostas segundo seus mais eficazes modelos metodológicos, adequados para in-vestigar muitos objetos, porém não de todo tipo. A pluralidade de saberes sobre a experiência humana do mundo (idem, p. 26) ou foi desacreditada completamente, ou reduzida ao que dela se pudesse dizer segundo as formulações consagradas da ciência, como vimos nas páginas anteriores.

É inegável que esse pensamento ortopédico produziu resultados bas-tante concretos, no bom e no mau sentido. Frans de Waal, etólogo espe-cialista em primatologia, recupera uma teoria do campo da psicologia, o comportamentalismo, que partia do pressuposto de que “o comportamento é tudo o que a ciência pode observar e conhecer, e, por essa razão, a única coisa a ser levada em conta” (2010, p. 26). Segundo de Waal, John B. Watson (1878-1958), o pai dessa teoria, gozava de grande respeito da opinião públi-ca e suas ideias “não podem ser consideradas atípipúbli-cas” (idem, p. 320) para a época. De fato, a teoria comportamentalista foi posta em prática em orfana-tos nas primeiras décadas do século 20, onde os órfãos eram

mantidos em berços separados por lençóis brancos, privados de estimulação visual e de contato corporal. Seguindo as recomendações dos cientistas, os adultos nunca haviam falado com ternura a essas crianças, e jamais fizeram cócegas nelas ou as carregaram no colo. Os bebês pareciam zumbis, com rostos imóveis e olhos arregalados e sem expressão (Waal, 2010, p. 26).

Também na Romênia a experiência foi conduzida. Após a queda da Cortina de Ferro viu-se que, nessas instituições, “os órfãos não eram capazes de rir ou chorar, passavam o dia em posição fetal ou se balançando, e nem mesmo sabiam brincar. Os brinquedos oferecidos a eles eram arremessados contra a parede” (idem, p. 28-29).

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Ora, um pensamento que cada vez mais se entendeu como livre de ima-gens – especialmente as simbólicas –, exclusivamente racional, abstrato e his-toricista (em outros termos, desmitificado), que desvalorizou o pensamento mítico/metafórico – “esse grande semantismo do imaginário” (Durand, 2012, p. 31) –, mostrou ter, ele próprio, forte coloração simbólica. A sociologia de Comte e o historicismo de Marx, por exemplo, encontram paralelo no pensa-mento do abade calabrês nascido no século 12, Joachim de Fiore, que versava sobre três épocas sucessivas pelas quais passaria a humanidade, sendo a úl-tima, a do Espírito Santo, a época da paz universal (Durand, 2011, p. 46-47; 1982, p. 42); o que, por sua vez, nos remete a uma ideia – ou imagem – cara às narrativas míticas: a imagem de um tempo mítico, illud tempus (Eliade), que ou foi deixado para trás ou permanece por ser alcançado.

Se fôssemos arriscar uma síntese das contribuições para a história do pensamento dadas por campos científicos tais como a etnografia, a antropo-logia, a psicologia e os estudos de mitoantropo-logia, para citar alguns, diríamos que, pelo menos uma das maiores foi fazer compreender, compreensivamente, que entre o pensamento racional/abstrato/conceitual e o imagético/mítico/ simbólico não há esse aparente antagonismo maniqueísta; há, antes, “coerên-cia funcional” (Piaget apud Durand, 2012, p. 30), ou, em termos mais sim-ples, diálogos possíveis – entre o universo da explicação e o dos significados. Ambos são construções do espírito humano que podem levar a uma vivência do mundo de tipo aberta ou fechada.

Não será exagero ou ingenuidade partilhar com Eudoro de Souza a convicção “de que, em todos os tempos, não seja mítica a terra em que se firma e de que se nutrem as mais fundas raízes da racionalidade” (Souza, 1984, p. 30). Campbell expressa essa mesma ideia ao se referir ao “círculo básico e mágico do mito”:

Não seria demais considerar o mito a abertura secreta através da qual as inexauríveis energias do cosmos penetram nas manifestações culturais humanas. As religiões, filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico, descobertas fundamentais da ciência e da tecnologia e os próprios sonhos que nos povoam o sono surgem do círculo básico e mágico do mito (Campbell, 2007, p. 15).5

A vida, terreno, as teorias, mapa

Antes de nos referirmos ao “nascimento” do mito, convém explicitar, ainda que de forma breve, mas necessária, o que entendemos ser o mito. Pro-pomo-nos, para tanto, a resumir algumas das noções que têm do mito as

teo-5. “A consciência teórica, prática e estética, o mundo da linguagem e do conhecimento, da arte, do direito e o da moral, as formas fundamentais da comunidade e do Estado, todas elas se encontram origi-nariamente ligadas à consciência míti-co-religiosa”, afir-ma Cassirer ((2013, p. 64).

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rias de que tratamos até aqui, para chegarmos a uma visão, a nosso juízo mais madura, em dia com estudos contemporâneos significativos sobre o tema, no âmbito dos quais quisemos inscrever este nosso esforço dialógico, compreen-sivo, entre logos e mythos, conceito e imagem, ciência e não ciência.

Algumas teorias do mito, construídas a partir de um olhar naturalista, dirão que o mito se restringe a sociedades pré-científicas, posto que seriam tentativas de, a seu modo, reconhecidamente tosco, explicar os fenômenos f ísicos, concluindo-se, como consequência, que o mito é uma enunciação falsa. Outras o reabilitarão, de alguma forma, dizendo, como adiantado em trecho anterior deste texto, que são alegorias e não explicações. Historicamente, conforme se descolava de sua dimensão religiosa, a mitologia greco-latina foi se tornando objeto de interesse da elite intelectual erudita, tendo atravessado o pensamento helenístico, medieval, renascentista e moderno através da arte, em grande medida (Eliade, 2013, p. 135-140).

Porém, numa perspectiva compreensiva do conhecimento, o pensamento mítico e seus símbolos são também exercícios “da alma humana à procura dos segredos do mundo, como o fazem, cada uma a seu modo, a religião e a filosofia, os saberes comuns, a ciência e a arte” (Künsch, 2008, p. 177). Adotando a mesma postura, Durand utiliza o termo démarche (que, segundo ele, “traduz bastante bem o grego méthodos”) para se referir tanto ao método (démarche) científico quanto ao mítico (do mythos) (Durand, 1982, p. 38-39).

Não esquecendo das definições do mito como uma história sagrada que narra as ações de criaturas sobrenaturais, ocorridas em tempos primordiais, ou como narrativas que “dramatizam” energias psíquicas individuais e co-letivas, preferiremos, em virtude do que foi dito anteriormente, uma das reflexões feitas por Durand (1982, p. 35) na ocasião de uma conferência pro-ferida no Instituto Francês de Lisboa, quando ele se refere ao mito em suas possibilidades enobrecedoras e também terrificantes

O mito não é uma fantasia que se opõe ao real perceptivo e racional. É realmente alguma coisa que se pode manipular para o melhor e para o pior: entendo pelo melhor o desenvolvimento individual e coletivo, o desenvolvimento das virtudes do homo sapiens, porque o homo sapiens tem virtudes bem específicas, virtudes de coordenação coletiva, virtudes de elevação mental; e pelo pior a arregimentação de aventuras tais como as que conhecemos na primeira metade deste século [20].

Uma vez que se entenda o mito como um dos muitos saberes huma-nos, podemos avançar em seu entendimento enquanto criação cultural, para depois, compreensivamente, enxergar intersecções entre ele e os demais

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saberes, e ampliar nosso entendimento do homem. Afinal, “os limites e as possibilidades de cada saber residem [...], em última instância, na existência de outros saberes e, por isso, só podem ser explorados e valorizados na com-paração com os outros saberes” (Santos, 2008, p. 28). Assim, o mito é mais do que uma tentativa frustrada de explicar a natureza, e tampouco é a simples codificação fantasiosa que a imaginação desenfreada de alguns indivíduos habilidosos aplicam às faculdades psíquicas do homem ou aos fenômenos da natureza, analogias esperando olhares eruditos para decifrá-las.

Pensando na interdisciplinaridade desta investigação, que abarca (ou tenta) os diversos fios da tessitura maior que é a vida e o cotidiano, Durand declara preferir o termo Ciência do Homem a Ciências Humanas. Essa visão epistemológica, permitimo-nos dizer, é, sobretudo, humilde, pois faz perce-ber que as pessoas e o cotidiano são terreno, e as teorias, mapa. Não mais se pode confundir uma modalidade de saber com a própria experiência da vida, declarando essa modalidade soberana em relação aos demais saberes. De nossa parte, acrescentaríamos aos mapas também as narrativas.

O nascimento do mito: mundo aberto, mundo fechado

Modernamente, a mitologia foi objeto de intenso interesse científico nos séculos 19 e 20. Nesse período, inúmeras narrativas de povos ditos “pri-mitivos” – que Lévi-Strauss, mais uma vez, prefere chamar de “sem escrita” – foram coletadas, e desenvolveram-se variadas teorias sobre o fenômeno do mito. Segal (2004) nos mostra que, de modo geral, em todos os autores e teorias que se ocuparam com o mito, há três grandes questões centrais: sua origem, sua função, seu objeto – ou referente, isto é, sobre o que o mito trata. A questão da origem é a que nos interessa no momento. Limitando--nos agora aos estudos de caráter científico conduzidos nos dois últimos séculos sobre a origem do mito, Segal (2004) nota que não interessou tan-to determinar histan-toricamente essa origem. Embora esse seja um aspectan-to importante e devidamente estudado do fenômeno, tratou-se muito mais de investigar por que e como o mito surge, onde quer que venha a surgir. Devemos nos ocupar com o que Segal chama de “origem recorrente” do mito em contraponto à origem histórica.

Evidentemente, essa tal origem recorrente do mito é um fenômeno complexo, na acepção que Morin, em sua vasta obra, confere ao termo. Po-deríamos elencar diferentes autores, teorias e escolas para dar conta do as-sunto, e seguramente não o esgotaríamos – a psicanálise freudiana, a psico-logia analítica junguiana, a semiótica russa com seus estudos eruditos sobre literatura, a antropologia estruturalista, enfim. Entretanto, manteremos a

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“conversa” entre três autores específicos e algumas noções trabalhadas por eles em suas obras: Gilbert Durand, Mircea Eliade e Martin Buber.

Durand inicia aquela que é considerada sua obra máxima, As estruturas antropológicas do imaginário, tecendo críticas às filosofias e psicologias que têm uma concepção puramente empirista da imagem, fazendo-a equivaler aos dados mais imediatos da sensação, que depois serão elevados ao pata-mar da racionalização lógico-abstrata. Critica também a forma, segundo ele redutora, com que Freud concebe as imagens.

É indiscutível o lugar de honra que Freud ocupa na história da reabi-litação dos conteúdos inconscientes, do mito, da imagem. Porém, na teoria freudiana, tais imagens são, no mais das vezes, sintomas de uma doença, erupções de um recalcamento. Na esteira de todo um grupo de estudiosos, Durand – que participou do Círculo de Eranos6 por vinte e cinco anos, de

1960 a 1985, tendo proferido vinte palestras, a primeira delas em 1965 (Bar-ros, 2014, p. 3; 5) – critica essa visão redutora, dizendo que “as imagens não valem pelas raízes libidinosas que escondem, mas pelas flores poéticas e mí-ticas que revelam” (Durand, 2012, p. 39).

Essas flores revelam “situações-limite” (Eliade), nas quais o homem vive uma relação tal, com o entorno cósmico, que leva a uma “tomada de consciência existencial [...] em relação ao Cosmos e a si mesmo” (Eliade, 2012, p. 176). Essa relação é a do homem com aquilo que ele traz de a-his-tórico, ou de arquetípico, aquilo que Eliade designa por Imagem, com “i” capitular, diferente de “imagem”:

Os sonhos, os devaneios, as imagens de suas nostalgias, de seus desejos, de seus entusiasmos etc., tantas forças que projetam o ser humano historicamente condicionado em um mundo espiritual infinitamente mais rico que o mundo fechado do seu “momento histórico” (Eliade, 2012, p. 9).

As imagens dessas nostalgias particulares, restritas ao indivíduo ou a uma determinada coletividade, direcionam para aquilo que há de universal na psique da espécie, ou poderíamos dizer que a imagem faz vislumbrar o caminho que leva à humanidade. Dessa forma, um objeto, seja da natureza, seja feito pelas mãos do artífice, torna o mundo “aberto” (cf. Eliade, 2013, p. 123-128). As várias Vênus pré-históricas, de Willendorf, de Laussel, de Bras-sempouy etc., apresentam características comuns, mas são distintas umas das outras: são imagens diferentes construídas por culturas diferentes. Há um certo grau de convenção em suas formas, que variam entre uma socie-dade e outra. Mas podemos arriscar que todas se referem a uma mesma Imagem, a da Grande Mãe. Arquetípica e multivalente em seus significados,

6. Fundado em 1933

pela anglo-holan-desa Olga Fröbe--Kapteyn, o Círculo de Eranos reuniu, por cerca de setenta anos, intelectuais de diferentes orienta-ções de pensamento para longos debates – as conferências tinham duração de oito dias –, num lo-cal próximo à cida-de suíça cida-de Ascona, às margens do lago Maggiore. Gilbert Durand, Carl Gustav Jung, Mircea Eliade, Joseph Campbell e Martin Buber foram alguns dos muitos nomes de partici-pantes.

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pertencente ao universo infinitamente rico da alma que tem sido narrado desde a aurora da humanidade na Terra, pode ser encontrada nos momentos de uma contemplação aguçada e sensível da pujança dos ciclos e das inevita-bilidades cósmicas, biológicas, psíquicas; dos movimentos lunares, da fertili-dade feminina, do sonho, da morte. Assim, tais símbolos, ou imagens, fazem com que o mundo deixe de ser “uma massa opaca de objetos arbitrariamente reunidos” e se revele como linguagem (Eliade, 2013, p. 125), e, para que se a decifre, basta ler os símbolos, basta seguir os passos dos heróis de outrora.

Essa abertura do mundo – melhor dizer para o mundo –, pensamos que seja uma atividade elevada do espírito, que se ocupa de coisas que chamare-mos aqui de transcendentes, ou que estão para além da imediaticidade prag-mática das tarefas do cotidiano. Mesmo que as Imagens responsáveis por essa abertura não versem sobre coisas celestiais e divinas, mas umbráticas e demoníacas, ainda assim apontam o caminho, de que falávamos, até a huma-nidade. Afinal, “os monstros do inconsciente também são mitológicos, uma vez que continuam a preencher as mesmas funções que tiveram em todas as mitologias: em última análise, ajudar o homem a libertar-se, aperfeiçoar sua iniciação” (Eliade, 2012, p. 10).

No entanto, é preciso reconhecer, com Eliade (2013, p.128), que as Ima-gens e as narrativas míticas não são garantia nenhuma de bondade ou excelsa moral. Os símbolos, ao mesmo tempo que, em seus significados múltiplos, são promessa de engrandecimento afetivo/cognitivo, podem também levar a um enrijecimento dessas faculdades do homem – em outras palavras, podem levar a uma leitura fechada, dogmática, do mundo:

A história das religiões é abundante em interpretações unilaterais e, consequentemente, aberrantes de símbolos. Não encontraremos um grande símbolo religioso cuja história não seja uma trágica sucessão de inúmeras “quedas”. Não existe heresia monstruosa, orgia infernal, crueldade religiosa, loucura, absurdo ou insanidade mágico-religiosa que não seja “justificada”, no seu próprio princípio, por uma falsa – porque parcial, incompleta – interpretação de um grandioso simbolismo (Eliade, 2012, p. 12. Grifo do autor).

Duas “esferas” são particularmente relevantes para a investigação desse movimento de dogmatização dos símbolos e dos mitos: uma seria a do indivíduo em sua relação pessoal e íntima com os símbolos e narrativas míticas, em que se encontram sempre abertas as portas da incompreensão e do preconceito; a segunda esfera seria a do coletivo, em sua constante tarefa de criar e manter uma unidade social, onde se constituem as rela-ções de poder, que muitas vezes se fazem acompanhar de grandes

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arbitra-riedades, e onde também alguns reclamam para si o título de exclusivos e legítimos guardiões e intérpretes dos símbolos e narrativas.

No campo social, é reconhecida a função que o mito desempenha na formação de uma identidade comum, de uma comunidade, organiza-da ao redor de valores e práticas particulares. Bronislaw Malinowski foi um dos que notou intersecções entre mito e coesão social (Eliade, 2013, p. 23). Eliade (2013) mostra que, nas sociedades sem escrita, o mito é entendido como uma história exemplar – aquela, cujo exemplo o homem deve reproduzir – que, consequentemente, organiza as ações práticas e cotidianas dos membros do grupo. Também Martín Sagrera dedica-se ao assunto, e escreve que “el mito es [...] la expresión cognoscitiva por exce-lencia de la unidad social” (1967, p. 70).

Entretanto, se o mito é um dos vetores que concorrem para a configu-ração da sociedade, também ela, recursivamente, conjuga o mito, apropria--se dele, modifica-o. Desse modo, entre os vários aspectos da cultura que se valem das narrativas míticas – talvez isso se faça mais claro na religião e na arte –, também se encontram as atividades políticas. O mito, então, assume uma função política – isto é, uma função na coordenação da vida so-cial – e, tal como pode acontecer no domínio da religião, também se presta a fundamentar posicionamentos conservadores e retrógrados, totalitários, às vezes: “La intolerancia no es algo inherente al mito en cuanto tal, sino a su función política” (Delaisi apud Sagrera, 1967, p. 71). A necessidade de conservar a unidade política diante de situações de opressão e dominação cultural, de impor costumes e regras a povos subjugados, ou de evitar situa-ções belicosas dentro do próprio grupo, cria aquilo que Sagrera (1967, p. 73) chama de “mitos dogmáticos”7.

Já no âmbito do indivíduo, para investigar como a confecção simbólica conduz do inefável ao dogmático, entendemos a Imagem (podemos também usar o vocábulo “arquétipo”) como evento que se apresenta para o indivíduo disposto a contemplá-lo, tornando-se uma presença.

Para Martin Buber (2013, p. 58), “presença não é algo fugaz e passa-geiro, mas o que aguarda e permanece diante de nós”. Durand (1982, p. 52) conta-nos que Paracelso distinguia dois tipos de tempo, um de “maturação qualitativa”, de “pura duração”, e um cronológico. A Imagem, como presença, apresenta-se nesse imensurável momento de maturação qualitativa, em que o homem se relaciona com aquilo que “aguarda” o encontro e “permanece” mesmo após o fim dessa atitude contemplativa. É o momento da “intuição do ser” (Von Zuben)8, seja o seu próprio ou o das coisas da natureza9. Da

racionalização do encontro, no tempo cronológico, resulta o símbolo em sua materialidade – em seu grafismo, sonoridade, movimento, a imagem, sem

7. Cf. o capítulo 5 de

Mito y sociedad para uma discussão mais detalhada sobre o assunto.

8. “A inteligência, o

conhecimento con-ceitual que analisa um dado ou um ob-jeto é posterior à in-tuição do ser” (Von Zuben, Newton Aquiles, In: Buber, 2013, p. 33).

9. Com efeito, Buber

fala em três esferas de relação: o ho-mem, a natureza e os seres espirituais (Bu-ber, 2013, p. 53; 116).

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o “I” capitular. Afinal, “para exprimir o inexprimível é preciso um meio de expressão” (Durand, 1982, p. 54).

A questão do mundo aberto ou fechado repousa então no símbolo, ou na imagem simbólica: da intuição do ser à racionalização, podemos ser re-conduzidos à inefabilidade do acontecimento, à sua totalidade, seu ser Tu (Buber), que não pode ser decomposto e classificado, mas sim vivido; ou po-demos impedir sua inesgotável maturação, reduzi-lo àquela unilateralidade dogmática, tão conhecida do universo religioso, mas também do científico.

Mas entre esses dois extremos, o inefável e o dogmático, há gra-dações. Afinal, algo percebido como um Tu, presente e total, deve, no momento seguinte, tornar-se um Isso, reconhecível pelas suas qualidades particulares, objeto de conhecimento. Não há nada de mal no Isso. Buber apenas dirá que a relação ontológica (Eu-Tu) precede a relação cognosci-tiva (Eu-Isso). De resto, ainda segundo Buber, tanto quanto é possível fa-zer de um Tu um Isso, desumanizando-o, é igualmente possível construir relações vinculantes, de tipo Eu-Tu ou, diríamos também, sujeito-sujeito, lá onde uma visão de matriz objetivante não consegue superar a relação, às vezes fria, de um Eu-Isso, sujeito-objeto, nada mais que isso.

Aliás, foi esse o erro em que incorreu um grupo de especialistas em culturas do Oriente Próximo, liderados por Henry Frankfort e H. A. Frank-fort, que publicou em 1946 um livro10, no qual os autores apontavam a

supe-rioridade do pensamento filosófico e científico sobre o pensamento mítico, e diziam que os homens primitivos percebiam o mundo apenas como um Tu, incapazes que eram de nele distinguir a objetividade e as leis gerais que regem a natureza. O homem moderno, em oposição, percebe o mundo como um Isso (Segal, 2004, p. 40-42). Ora, porque Buber fala em dois modos de relação (Eu-Tu/Eu-Isso), é muito fácil fazer de sua obra uma leitura dualista, ora identificando com o mundo do Tu qualquer virtude moral e com o Isso toda vilania, ora, como fizeram os Frankfort, contrariando o que apontamos antes sobre o pensamento de Lévi-Strauss, inscrever a ingenuidade passio-nal, mítica, no domínio do Tu, e a objetividade racional no domínio do Isso.

Do dogmatismo ao diálogo: romper com a ruptura

Se é na atualidade da relação Eu-Tu que se intui a qualidade daquilo que é essencialmente humano, que se encontra uma abertura para o mundo, teremos que ver o símbolo, num primeiro momento, como um Isso. Um Isso que guarda o potencial de elevar novamente a alma àquele estado de relação profunda que, tal como a jornada do herói descrita por Campbell (2007), a cada vez que se realiza, expande o universo sensível e intelectual do

indiví-10. Intitulado The

intellectual adven-ture of ancient man: an essay on specu-lative thought in the Ancient Near East.

Em tradução livre: A aventura inte-lectual do homem primitivo: ensaio sobre o pensamento especulativo no An-tigo Oriente Próxi-mo (Segal, 2004, p.

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duo. Mas, possivelmente, um Isso que aprisiona as vivências e as concepções que se tem ou se pode ter do mundo. A “razão ortopédica” (Santos) pode então ser entendida como a incapacidade de reconduzir os saberes de volta ao afeto que em primeiro lugar os gerou. Nesse sentido, conceito e imagem simbólica são demasiado semelhantes. Isto é, imagem e conceito podem le-var a uma razão ortopédica ou a uma razão dialógica.

Enfim, a incapacidade de a razão ortopédica se abrir ao diálogo dos saberes, ora manifesta na ciência, ora na religião, parece ter dado a tôni-ca da maior parte da história da humanidade. E se, como sugere Cassirer (2012, p. 50), ao invés de definirmos o homem “como animal rationale, deveríamos defini-lo como animal symbolicum”, podemos dizer que nos-sos atos concretos são sempre fundamentados e legitimados por nossas representações simbólicas. No terreno das relações intersubjetivas, par-tindo do pressuposto de que as sociabilidades se iniciam no domínio do imaginário, isto é, dos discursos que nascem do afeto e da abertura para o mundo, diremos que um pensamento ortopédico acaba por criar alteri-dades radicais com as quais só se pode relacionar a partir de uma postura belicosa e intolerante. O estudo da mitologia nos chama a reconhecer a realidade do imaginário e das imagens simbólicas, bem como suas atuais – e persistentes – manifestações redutoras e dogmáticas.

“A grande doença da razão é a racionalização, que encerra o real num sistema lógico coerente, ao preço de terríveis mutilações”, afirma Morin (1984, p. 32), convocando para o exercício de um pensamento complexo, dialógico, compreensivo. Um pensamento que, fugindo ao binarismo de que trata Durand (2011, p. 9), conversa, inclui, se preocupa mais com a abertura de caminhos, ou às vezes rotas de fuga, que com a verdade acachapante de uma explicação redutora. Fazendo referência ao diálogo possível entre logos e mythos, e deixando claro que “a verdadeira razão” carrega tradicionalmen-te consigo as marcas da dialogicidade com as “formas de pensamento que não se lhe assemelham”, Morin conclui:

foi sempre a falsa racionalidade que tratou de primitivas, de mágicas, de pré-lógicas as populações onde havia uma complexidade do pensamento não só na técnica, no conhecimento da natureza, mas também nos mitos, e que se consideravam pobres populações infantis e atrasadas (1984, p. 125).

Na linha da compreensão como método, da busca às vezes mui-to sofrível por se educar a ver complementaridades lá onde a tradição dualista e redutora de pensamento só foi até hoje capaz de reconhecer oposição, é possível reforçar o coro das vozes de autores como

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Boaven-tura de Sousa Santos que convocam a ciência a aprofundar o diálogo de sua prática “com as demais práticas de conhecimento de que se tecem a sociedade e o mundo” (Santos, 1989, p. 16). Esse comportamento inclui a necessidade de se “romper com a ruptura” (idem, 31-45). O autor re-fere-se às relações entre ciência e senso comum, de maneira semelhante ao modo como, neste texto, se fala das relações entre mythos e logos.

A ruptura com a ruptura, no melhor sentido da opção por, e na aposta em um pensamento compreensivo, pressupõe que tanto o mito quanto o lo-gos assumam sua parte maior ou menor de responsabilidade na criação de caminhos, sem objetivos garantidos, de comunicação entre ambos. O sentido positivo dessa comunicação, no entanto, só pode ser, como expressa Santos, não o do jogo do perde ou ganha, dos vencidos e dos vencedores, e, sim, o da produção de uma “nova configuração do saber que se aproxima da phronesis aristotélica, ou seja, um saber prático que dá sentido e orientação à existên-cia e cria o hábito de decidir bem” (Santos, 1989, p. 41).

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