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Do mito original ao mito ideológico: alguns percursos

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Academic year: 2017

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Trans/ F o r m / Ação, São P aulo 7 : 9- 1 9, 1 984.

DO MITO ORIGINAL AO MITO IDEOLÓGICO:

ALGUNS PERCURSOS

R a u l F IKE R*

R ES UMO: Este artigo é parte d e uma Dissertação d e Mestrado - "Mito e Paródia: s u a estrutura e nunção no texto literário" - denendida em no vembro de 1983 no Instituto de Estudos da L ingua­ gem / Unicamp . A passagem aqui reproduzida pertence ao capitulo que trata da conceituação do mito. Ela procura apreender alguns de seus aspectos básicos dinam icamen te, na transição de sua norma origi­ nai, tal como ocorre nas sociedades prim itivas e arcaicas, para seu sucedâneo ideológico, n o con texto das sociedades h istóricas.

UNI TER MOS: Mito; mitologia; consciência m ítica; ideologia; sagrado e pronano; narrativa.

o conceito de m i t o , de maneira geral , se refere a um procedi m e n t o m e n t a l n o s q uadros d a c u l t u ra arcaica o u selvagem . Neste sentido, u m m i to a p e n a s o é até q u e sej a percebido como tal n u m a ava l i ação externa, entrando assim em crise. O prisma q u e va­ mos abordar agora reflete o sentido oposto: para o pensamento não arcaico o u selva­ gem , um mito passa a sê-lo depois d e i d e n t i ficado como tal , e sua conotação mais d i re­ ta é a de uma crença rudimentar e enganosa, uma ficção , u m a mentira, e n fim .

É

neste contexto q u e se cha m a " mi t i m a n o " ao m e n tiroso compulsivo .

No primeiro caso , devido a deslocamentos profundos n a superestrutura de deter­ minad a cultura, q u e podem provir d e m u danças operadas n a i n fra-estrutura e n a i nte­ ração entre ambas dentro d e u m processo histórico - como é o caso das transforma­ ções no m u n d o grego entre 8 e 4 a . C . (2 1 ) - ou por i n te r ferência abrupta e radic a l d e elemento externo - d a civ i lização européia nas c u l t u ras d itas p r i m it ivas, p o r exem p l o - a consciência m í t ica e o u n iverso s o b r e e l a estruturado e n t r a m em crise e s ã o s u b s t i ­ t u í d o s por outra epistem e : os mitos d o u n iverso ago nizante d e i x a m d e s e r m i t o s n o pri­ meiro sentido passando a sê-lo n o seg u n d o . N o outro caso, n o contexto desta n ova episteme, algum elemento, até e ntão não problematizado é a u m a certa altura posto em q uestão - passa a ser percebido como fals o , o u se percebe q u e algo era tomado c o m o o que n ã o era, o u se l h e d e n u ncia o caráter fetichista e p a s s a a s e r u m " m i to " . A p a l a­ vra é usada neste espectro - com a l g u m a'variação - q u a n d o se diz q u e ' ' a d e m ocracia social escandinava é u m m i to " , isto é , u m a ficção , o u " M ar i l y n M o n roe foi u m mito sexual dos anos 5 0 " e o utros c l ichês j o r n a l ísticos d o gênero " Pelé, os Beatles o u S t a l i n são mitos " , isto é , desuman izados e revertidos à con dição d e í d o l o o u fetiche como a l ­ v o de adoração ( o u d e ojeriza ) . Este .prisma diz respeito a esta passagem : q uando o m i­ to deixa de ( o u começa a) sê- l o , i s t o é , passa a ser rec o nhecido cc,mo t a l ? Quais as

ca-* Departamento d e Antropologia, Filosofia e Politica � Instituto d e Letras. Ciências Sociais c Educaçào - UNESP _ 14.800 - Araraquara - SP.

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FI K E R , R . - Do m i t o o r i g i n a l ao m i t o ideológico: a l g u n s perc u r s o s . Trans/ Form/ A ç ã o , São Paulo, 7 : 9- 1 9 , 1 98 4 .

racterísticas desse mito dessacralizado, ostensivamente fictício - ou, se formos adap­ tar o modelo d e Lév i - S t rauss a este n í vel - desse modelo lógico q u e j á não resolve nem atenua as c o ntradições básicas em relação às quais fira elaborado e q u e talvez mesmo as agrave? C o m o é o mito nesse seu momento, quando a m i tologia clássica, já posta em q uestão e satirizada desde Evemero (ver mais adiante , p. 1 4) , alegorizada e precon izada como artifício de reforço à autoridade constituída ( pelos neoplatin ico.s e estóicos ) , é explícita e usualmente desprestigiada n a era helenística? Ou q uando o ro­ mance d e cavalari a , veículo d o m i t o básico d e uma época, sofre sua m orte póstuma com o Dom Quixote? Quais são as caracterí sticas do m i t o de nossa época?

O mito moderno é em geral abordado em termos de analogias superficiais com comportamentos arcaicos a i d e n t i ficar, entre costumes vestigiais já desprov idos de substrato m í ti c o , " bolsões m í t i c o s " n a " era c i e n t í fica " (como o próprio m i t o d a c iên­ cia, os s í m bolos nacionais etc . ) e d e tentativas de substitu i ção dos mitos rel igiosos ( 3 , 6) . O q u e escapa a esta visão é q u e o mito moderno, n u m perc urso paralelo e alterna­ tivo ao que efetua desde o m i to original para se transformar, através d e sucessivas cri­ ses, em teoria filosófica o u c i e n t í fica, se torna ideolog i a . N este caso, mais do q u e trans­ formação , ocorre perm anência, havendo m udança apenas no sentido de adaptação ao novo contex t o . Esta adaptação , n o entanto, se dá a partir de um descolamento básico e não consegue s uperá-lo - a não ser através de descaracterização radical do m i t o , e e n ­ t ã o j á se t r a t a como q u e d e outra coisa e não c a b e r i a falar de m i t o . Se no antigo contex­ to, o m i t o fornecia refere n c i al para um u n i verso em relação ao qual ele próprio era ele­ mento c o n s t i t u i n t e , n o novo, q u e é constituído a partir de outro q uadro mental , ele fornece apenas falsa consciência, se prestando neste sentido - ainda que com pouca eficácia - a i nstrumento d e d o m i n ação .

Ass i m , a tentativa de recuperação da consciência m í tica pode s i g n i ficar várias coi­ sas : para o " ex-pr i m i t i v o " colon izad o , o resgate d e sua consciência original anu lada pelo i n vasor europeu , e para este, a retomada de u m a u n idade perdi d a consigo mesmo e com o m u n d o . No m o m ento mesmo d a mudança, n a G réc i a , por exem plo, vemos u m P í n daro o u u m A r i s t ó fanes empenhados n u m a resistência ambígua: engaj ados na ago­ nia contra o que vêem como decadência . Por outro lad o , a defesa do mito pode ser a defesa - engaj ada ou i n ocente - da falsa consciência e do papel q u e esta geral mente represen t a nos q uadros d a d o m i n ação política. O m i t o " tec n i fícado " , por exemplo -segu ndo a d e f i n ição de K erén y i ( 1 3 , p . 1 53 - 6 8 ) - é u t i l i zado i n tencionalmente com f i n s b e m deter m i nados , geral m e n t e políticos . E h á também o uso, i n t e n c i o n a l ou não, atra­ vés das formas nas q uais o mito se degrad a . A q u i , porém , já não estamos no d o m í n'io do mito mas d o meramente m í t ico(2 ) , q u e se exprime através do clichê e , no n í vel d o texto l i terário , p r o d u z s u b l iteratura . P o i s q ua n d o o m i t o se t o r n a clichê, o l u g a r de t o ­ d o s os lugares se transforma em lugar-c o m u m .

Exam i n aremos em segu i d a algu n s n í v e i s da passagem d o mito original para o m i t o ideológico .

I. Do cosmos à fan tasmagoria

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abran-FI K E R , R . - Do m i t o original ao m i t o ideológico: alguns perc u r s o s . Trans/Forml Ação, São P a u l o , 7 : 9- 1 9 , 1 984.

ge, em msior ou menor grsu , slgumss delss . As csrscteríst icss d e unic idsde e de conci­ lisr contrsdições, por exe m p l o , c o m o será visto, csbem qusse i n teirsmente no d o mí n i o do cos m i ficsnte, cstegoriss c o n s t i t u t i v s s , ordensdorss, que são .

Que o m i t o i nstsurs u m u n iverso pode ser visto nss váriss cosmogoniss , descrições ds crisção por u m d e m i u rgo, deus ou sncestrsl mítico, d o mundo físico e de seus h s b i ­ tsntes, às vezes e m seguids e no processo mesmo de u m com bste com forçss que repre­ sentsm o csos d i s forme e i ndeterm i nsdo . E s tss descrições se fszem gerslmente segui r de listss geneslógicss c o m o ss que se encontrsm ns Teogonia de H e síod o , referente sos deuses olímpicos, ou no Gênesis, no relsto d o Jsvists referente sos descendentes d e Adão . O Enuma Elish ( Poems d s Crisção) b s b i l i n i c o exe m p l i fics notsvelinente o m o ­ d e l o cosmoginico c s o s x cosmo s .

É

u m s nsrrstivs que se refere so com bste entre o deus Msrduk e Tismst, o monstro que represents o csos . Vencedo r , Msrduk cris o cosmos com o corpo d i l scersdo de Tismst e o h o m e m com o ssngue do deminio K i n ­ g u , slisdo de Tismst ( 7 , p . 67 -9; 4 , p . 74-85; 1 0, p . 676-7 ). T s i s enfrentsmentos e n t r e p o­ tênciss cósm icss e csóticss, estss gers l m ente representsdss por m o n stros, d rsgões e serpentes, ocorrem tsmbém ns Bíb l i s , nos com bstes que Jeová move contrs Rssb (Jó-26 1 2- 1 3 ) e Levistã (Jó-4 1 ; S s l m o 74: 1 4) . N s m i tologis gregs são i n ú meros os en frents­ mentos entre ss potênciss o lí m p icss e os t itãs e entidsdes ctinicss . No Ragnarok ou Gótterddmmerung h á u m retorno so csos strsvés ds derrots do psnteão teu tinico pe­ lss forçss do msl .

Este sspecto constitutivo i n tegrs tsnto ss sbordsgens trsdicionsis, snteriores so nstursl ismo ds segunds metsde d o séc u l o pssssdo , como ss tendênciss m odernss no estudo do mito, especislmente ss s i m b o l i stss . Psrs J . Camp b el l , nests vertente, os mi­ tos e ritos constituem eles mesmos u m mesocosmos - u m cosmos m éd i o , medisdor, strsvés do qusl o m icrocosmos d o i n d i víduo é posto em relsção com o m scrocosmos do todo . Todos os m itos e ritusis são gersdos ds concepção de ums ordem u n i verssl ds qusl eles são sgentes estr u t u rsntes , funcionsndo psrs tornsr s ordem h u m sns d e scor­

do com s celestisl (5 , p . 1 49-50) . Ns mesms vertente s i m b o l i sts, M. E l isde destscs s importâncis v i tsl que se stri b u i , no u n iverso mentsl do m i t o , so conhecimento dss ori­ gens; estss são dotsdss de prestígio m ágico, especislmente no que d i z respeito às c urss médicss . E o m i to d e origem depende d o m i to cosmoginico, modelo exemplsr d e tods crisção . Neste contexto , ocupsm posição centrsl os m i tos e ritos d e renovsção : s

reno vatio efetusds pelo r i tusl do sno novo é u m s reitersção ds cosmogonis ( 8 , p . 4 1 -52) . A csds ritusl d o sno novo h á u m recomeço d o m u ndo; sno e m u n d o são m u i tss vezes expressos pels mesms pslsvrs, e com o i nício de u m novo sno/ m u n d o sdvém um tempo " não ussdo " . Psrs E l isde, s progressivs h i s torizsção dos enredos srcsicos (en­ tre hebreus e cristãos, p . ex . ) tem por efeito tornsr o tempo cíclico l i nesr, com os even­ tos pssssndo s ser i r reversívei s . A " o ntologi s " dá lugsr à " h istóris " , c o m s ên fsse re­

csindo sobre squilo que acon teceu sos deuses, e não msis sobre squ i l o que eles criaram

( 8 , p . 98- 100) . A idéis ds " perfeição do pri ncípi o " foi projetsds tsmbém n u m futuro temporsl , e os m i tos do F i m d o M u ndo colocsm em evidêncis s m o b i l idsde d s orige m , que pssss s estsr tsmbém n u m· futuro mítico, psrs o n d e iguslmente s e trsnsfere s n o ­ ção de u m s Idsde de O u r o ( 8 , p . 52) . Os m itos do F i m d o M u ndo, i m plicsndo m s i s o u menos clsrsmente s recrisção de u m novo u n i verso , e x p r i m e m s m e s m s i d é i s srcsics e extremsmente d i fundids ds " d egrsdsção " progressivs do cosmos, requerendo sus des­ truição e recrisção periódicss (8, p. 3 8 ) .

O elemento constitutivo é evidente tsmbém no procedimento gersl d o q u e Lévi­ Strsuss chsms de "penssmento selvsgem" , isto é , os processos mentsis dos povos totê­ micos . Estes d ispõem de ums lógics tão exigente qusnto s do penssmento positivo e não muito di ferente dests . Tsl d i ferençs " se deve menos à quslidsde dss opersções que

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FI K E R , R . - Do m i to o r i g i n a l ao m i t o ideológico: alguns percursos. Trans/Form/ Ação, São Pau l o ,

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à nsturezs dss coisss sobre ss qusis se d irigem essss opersções " ( 1 5, p. 265) . Lévi­ S trsuss com psrs o procedimento deste penssmento com s stividsde do bricoleur, isto é, squele que trsbslh s com meios que não pertencem à tecnologis normsl e , so invés de mstériss-primss, utilizs pedsços e sobrss d e mstéris já elsborsd s . " O s ritos e m i t o s , à msneirs d o bricolage (que ss sociedsdes i n dustrisis não msis tolersm senão como pss­ sstem

p

o) decompõem e recompõem conjuntos scontecimentsis (no plsno psíquico, socio-h i s tórico ou técnico) e deles se servem como d e o u trss tsntss peçss indestrutíveis em vists dos srrsnj os estrutursis que exercem , slternstivsmente, o pspel de fins ou de meios " ( 1 6 , p. 55) . O dispositivo mít i c o , procedendo neste â m b i t o , constitui ums or­ dem coerente s psrtir d o csos d e elementos d i sponíveis, procedsm estes ou não d e ou­ trss ordens , sinds constituídss ou j á csotizsdss .

E s tes processos concorrem psrs s formsção de um horizonte coerente e signi ficsti­ vo onde se desenvolvem , em seus respectivos níveis , no in terior de um feixe complexo de i ntersções, ss stividsdes humsnss e d i v i n ss . A reslidsde, psrs o homem primitivo ou srcsico, q u e vive num s ordem de coisss sscrslizsds, consiste no conjunto de signifi­ csdos derivsdos, d i rets ou i n d i retsmente, do mito básico de sus cul turs, veiculsdo strsvés d e ums cosmogonis espec i fics.

É

o gesto divino de instsursção d o cosmos que estsbelece s ordem em torno e em função ds qusl se desenrolsm ss relsções concretss dos homens entre s i ou c o m s reslidsde b ruts circundsnte . Como bem o mostrs Lévi­ Strsuss, ests Weltanschauung comports ums lógics própris em nsds i n ferior à sus cor­ respondente européis . P o r msis que seus elementos surj sm como slgo exótico, cspri­ choso e irrscionsl , sos olhos d o homem d e ums sociedsde moderns tecnológics, eles constituem u m sistems í ntegro funcionsndo normslmente em termos de sdsptsção so meio sm biente, v i s b i l izsndo sociedsdes que c h egsm s ser com plexss .

Já nss sociedsdes modernss, onde são outros os psrâmetros que i n formsm o hori­ zonte d e questionsmento ( 2 2 , p . 1 1 1 ) , os mitos não i n tegrsm o sistems d e msneirs h sr­ minics, crisndo ums região d e d iscrepânc i s . M s n i festsções vestigisis de um proced i­ mento snscri n i c o , os mitos básicos que csrscterizsm ums épocs formsm um m u ndo desvinculsdo d s resl idsde, crisndo e preservsndo vslores-fsntssmss cujs relsção psrs­ digmátics com ss práticss concretss d s sociedsde em questão é spenss csricsturs! . Se no contexto p r i m i t i v o ou srcsico o mito l i m ps, delineis com precisão os signi ficsdos e revels ums ssbedoris em c o n formidsde funcionsl com squele sistems, no contexto mo­ derno ele em bsçs os signi ficsdos e contribui psrs s elsborsção de ums fslss consciên­ cis. A l i ele m i t i fics o res l , squi e l e o m i s t i fics.

O m i t o como ocorre neste contexto, o m i t o ideológico, instsurs ums fslss ordem , um pseudocosmos povosdo de fsntssmsgoriss que , so invés de i n formsr sobre o con­ creto, torns-o msl-sssom brsdo . Seu sspecto psrsd igmático deixs ums bords à smbi­ güidsde: não estsrá o vslor p o r ele veiculsdo sendo sbsorvido como um slto ideal s ser slcsnçsdo? Como fim e modelo, como se dsvs com os deuses em H omero? (20, p. 1 8 -9) . Ou tsl vslor j á é escsncsrsdsmente convencionsl , msscsrsndo um conjunto de prá­ ticss que psrs se perpetusrem p rocursm s justi ficstivs de se colocsrem como elementos preservsdores d o vslor em questão , embors este não exists e ss tsis práticss sej sm ns verdsde suss sntípodss?

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susers-FI KER, R. - Do mito original ao mito ideológico: alguns percursos. Trans/"orm/ Ação, São Paulo,

7:9-19,1984.

nia, para o discurso amoroso (11, p. 253-99). Estes valores, na relação entre os sexos, tinham tanto a ver com a realidade quanto nas sociedades modernas o têm os valores c parâmetros cristãos, democráticos e socialistas nos países que se intitulam como tais. Estes véus mitológicos criam para uma época um universo inexistente, cujas imagens transparentes podem ser atravessadas pelos corpos como eles passam através de um fantasma. Sua superposição embaça o mundo real das relações concretas entre os ho­ mens, cujo panorama, visto do outro lado das projeções fantasmagóricas, se torna opaco e carente de significa<,:ào densa e instantânca (como a que fornecc o mito). Os va­ lores neles produzidos constituem pontos de referência ritualísticos vazios c a intersec­ ção entre o discurso manifeslO e seu conteúdo latente ocorre no avcsso de cada parte. E

não faltam os grandes motivos do mito original, vestígio a identificar o (deslocado) procedimento geral: se o cavaleiro andante tem entre seu repertório arquetípico a tare­ fa de matar um dragão (representação do caos nas cosmogonias arcaicas) e salvar a princesa (imagem que nos chega exausta como elichê e motivo de paródia), já para o homem moderno nas sociedades tecnológicas, entre as imagens mais freqüentcs do dis­ curso ideológico que envolve seu conjunto de valores-fantasma, está o de que estes va­ lores devem ser preservados (no mais das vezes contra eles mesmos, em sua versão real) para evitar que o "caos" e a "treva" que amea,çam "nosso mundo" terminem por descosmificá-Io de vez.

2. Do sagrado ao dogmático

A cosmificatão é inseparável da consagração. A instauração de um cosmos, cons­ tituindo uma ordem universal, abre um espaço sagrado no qual impera o necessário. Ordem e necessidade são os elementos de caráter sagrado constituintes do cosmos, em npositão ao caos, qu� é profano e dominado pela contingência. Quando o deus, de­ miurgo ou ancestral primordial estabelece o espaço organizado, tal território sagrado garante sentido às coisas. Nenhuma atividade levada a cabo nesta região ficará ao desa­ brigo do sentido (7, p. 35-6).

Embora a utilidade de uma noção pouco precisa como a de sagrado para o conhe­ cimento do mito possa ser posta em dúvida (17, p.66), a frequência com que esta carac­ terística do mito é empregada para diferenciá-lo - com êxito - de outras narrativas que se lhe assemelham é indicadora de que tal procedimento pode ser proveitoso. M.

Eliade, por exemplo, define o mito como o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, descrevendo as diversas irruptões do sagrado (ou do sobrenatural) nn mundo. "É essa irruptão do sagrado que realmente fundamenta o mundo e o con­ verte no que é hoje" (8, p. 11). Sendo uma história sagrada, o mito é, portanto, consi· derado uma "história verdadeira", porque sempre se refere a realidades(R,p.121.

À medida em que a narrativa mítica se desprega de seu caráter sagrado, dá-se si­ multaneamente que a realidade dos eventos a que se refere é contestada e seu poder so­ bre os homens - já esvaído - passa a ser objeto de manipula,·ão. Numa fase já mais adiantada deste processo e paralelamente a ele, já não é sequer a narrativa original ou seus elementos que pretendem o status de sagrado e reivindicam autoridade, mas seu sucedâneo meramente mítico e não necessariamente narrativo.

Este processo de dessacralizatão seguido de manipulatão pode ser nitidamente acompanhado em seu percurso diacrônico, a partir, por exemplo, de cerca do século 6 a.C na Grécia. É por esta época, segundo conventão geralmente aceita (19, p. 12), que

o mito já é objeto de avaliação externa, com Teagenes de Regium, que inrlllgur a na tra­

diçào pagà a a/egorizatão de Homero, afirmando serem realidades personificadas cada

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u m dos personsgens homéricos. A i nterpretsção sofists ( sécu l o 5 s. c. ) dos mitos trsdi­ cionsis como slegoriss s revelsrem verdsdes nsturslistss e morsi s , continus em uso en­ tre os filóso fos neoplstinicos e estóicos do período helenístic o , que vism nels u m s ms­ neirs de p reservsr s sutoridsde d s trsdição e ss prerrogstivss religiosss do E stsdo. Os filósofos epicuri stss , desde os tempo dos p ré-socráticos stomistss Leucipo e Demócri­ to, considersm os m itos c o m o d i storções de eventos históricos e nstursis introduzidss psrs reforçsr s sutoridsde de reis e sscerdotes. Cercs de 3 1 6 s. C. , s expressão clássics

s ests corrente de penssmento é dsds pelo m scedinio Evemero, sutor de ums História

Sagrada ns qusl é nsrrsds u m s visits do sutor s u m s i lhs imsgináris, Psnkses , no

Ocesno Í n d ico. L á ele fics ssbend o , s psrtir de ums inscrição no templo de Zeus , que este deus ers um c retense de nsscimento que visj o u psrs o leste e lá foi sclsmsdo deus

sntes de retornsr psrs Crets, onde m o r reu. Evemerismo tornou-se o nome psrs todss

ss explicsções p u rsmente históricss do m ito.

N o i n ício ds ers cristã os srgumentos epicuristss e o evemerismo são u ssdos pelos teólogos contrs os m i tos psgão s , enqusnto os filósofos estóicos e neoplstinicos - que sempre concordsrsm em que os m i tos não devism ser tomsdos l iterslmente - com bs­ tem s pretensão cristã à revelsção divins exc l u sivs. Teólogos cristãos e hebreus como Filo e S. Agostinh o , i n terpretsrsm ss nsrrstivss do Velho ,Testsmento slegórics e l i te­ rslmente, dispenssndo trstsmento diverso sos mitos psgãos , que s psrtir dsí começs­ rsm s ser vistos n o Ocidente como " m itos" no sentido de nsrrstivss fsbu l osss e ind ig­ nss de créd ito.

Com o sdvento ds Rensscençs ns E urops, nos séculos 1 5 e 1 6 , renovou-se o inte­ resse pelos m i tos gregos e romsnos, cujs i n terpretsção como slegorias morsis ou repre­

sentsções poéticss e srtísticss dss emoções e sspirsções h u m snss ers tolersds pels Igre­

j s Cstólics.

Nos séculos 1 6 e 1 7 , s m i t o l ogis sssume u m csráter morslizsnte, exem plsr : se J ú­ piter sssume s forms de u m touro o u Apuleio é trsnsformsdo em ssno, isto pode spe­ nss signi ficsr "que um homem que se entregs à luxúris não pssss de u m snimsl " ( Ro­ bert Burton, T H E A N AT H O M Y OF M E LA N C H O L Y , Londres, 1 652, i i i. 2. 3. ).

O movimento dos teólogos contrs os mitos psgãos no i n ício ds ers cristã é de certo modo invertido pelos i l u m i n i stss n o século 1 8. E les procursm equ ipsrsr ss escriturss hebrsico-cristãs sos m i tos psgãos como supertições irrscionsis em sus tentstivs de substituir s religião ds fé pels religião ds rszão. N ests etsps, se i n icis com G iovsnni Bstists V ico s tendêncis de recupersção d o m ito que prevslecerá no romsntismo. O método de i n terpretsção de V ico pode ser csrscterizsdo como " evemerismo slegórico" ns medids em que procurs red uzir os heróis cultursis do mito s s í m bolos de clssse ds sociedsde.

N o decorrer deste p rocesso constsnte de dessscrsl izsção do m i t o , expresso strsvés de sus svslisção externs o u objetivsção, de sus slegorizsção , msnipulsção e mesmo de sus tentstivs de resgste (que existe sobre o reconhecimento dests dessscrslizsção) , desenvolve-se, psrslelsmente, s substituição d o próprio ssgrsdo pelo simplesmente dogmático. E ste processo psrslelo já não está spenss em função do m i to proprismente dito, mss tsmbém de elementos não originsrismente m í t icos. Ass i m , se no u niverso sr­ csico ou primitivo, ocorre u m d i scurso sscerdotsl , às vezes spoisdo ns técnics restrits

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discurso " c ientífico" spenss, mss sbrsnge tsmbém o d i scurso bschsrelesco em gers l , cuj s função básics é reitersr s sutoridsde d o grupo q u e ocups o poder . T s l discurso vs­ zio e grsndiloqüente, rechesdo de l ugsres- comuns pomposos - entre os qusis não fsl ­ tsm , inclusive, slusões m i to l ógicss clássicss ornsmentsis - equivsle, em proced i m en t o e em função, à m áscsrs stemorizsnte d o feiticeiro p ri m itivo .

3 . Do extra temporal para fora do tempo certo

o evento m í tico, c o m o foi visto s propósito dss cosmogoniss , tem por csrscterísti­

cs ocorrer fors do tempo . Ele é extrstem porsl , efetusndo-se ab origine, i n illo

tempore. As ocorrênciss primordisis se dão sntes que h sj s tem p o , sbrindo o percurso cíclico deste e m d i reção s seu próprio iníc i o . " O tempo ssgrsd o " , diz E l isde ( 7 , p. 6 3 -4 ) , -4; periodicsmente restuslizsdo n s s religiões pré-cristãs ( sobretudo n s s rel igiões sr­ csicss) é u m Tempo m ítico, quer dizer, um tempo primord i s l , não identi ficável no pss­ ssdo h istórico, um Tempo original, neste sentido em que brotou "de golpe " , que não

foi precedido por outro tempo, porque nenhum tempo podis existir an tes da aparição

da realidade narrada pelo m ito ". Alguns sutores, como G . S . K i r k ( \ 4 , p . 3 1 -4 1 ) , u t i l i ­ zsm e s t s csrscterístics temporsl psrs especi ficsr o m i t o em relsção so c o n t o folclórico: enqusnto o m i t o se pssss no tempo primordis l , d u rsnte s crisção, o " ers ums vez" d o conto folclórico j á situs s sção d e n t r o do t e m p o históric o .

E s t s extrs-temporsl idsde, in tegrsds s um sistems o n d e e l s se revezs c o m o tempo cíclico proprismente d i t o , n u m contexto dessscrslizsdo e m srcsdo pelo t e m p o li nesr e histórico, pssss s ser problemstizsd s . N este contexto , s fixsção no e x t rs-tem porsl j á é psssível de conotsção ideológics, i m p l icsndo , de certs form s , ums fugs ds H i s t ó ris . Mss squi o que i mports é menos ests trsnsição e o deslocsmento por els produzido d o q u e o contrsste e n t r e s posição tem porsl do m i t o originsl e s do m i to ideológico . E s t s pode s e r exempli ficsds p e l s msni festsção d o m í tico que Bsrthes m o s t r s s p r o p ó s i t o d s csrscterizsção do r o m s n o snt igo no cinems smericsno ( I , p . 2 7 - 3 0 ): s presençs ds p e ­ quens frsnj s r o m s n s - s i g n o ds romsn idsde - em rostos c uj s morfologis - em a s ­ socisção fixsds p e l o p r ó p r i o cinems - é s d o gsngster ou xerife , c o n s t i t u i um qusdro gersl de snscro nismos h i stóricos onde tudo se encontrs fors de épocs .

De msneirs gers l , o m i t o ideológico - sej s no nível destss inocentes m s n i fests­ ções do mersmente m í ti c o , sej s strsvés dos grsndes ritusis d e msssss nos qusis nszistss e fsscistss procursvsm reviver m i tos srcsicos smplsmente d i storcidos - está inevits­ velmente stolsdo no snscroni s m o . A s i m ples msni festsção dss formss própriss so m i ­ t o (embors posssm estsr veiculsndo elementos n ã o originsrismente m í ticos mss que

procursm i mpor-se à msneirs dsqueles) n u m contexto que não msis ss comports, já

configurs u m desencsixe, u m equívoco, ums trspsl hsds. Este seu sspecto Kitsch, seu

desscordo com o contexto e seu eststuto sberrsnte, com portsm possi b i l idsdes c i m i co­ burlescss relscionsdss so snscron i s m o h i s tórico com.o dispositivo psród ico .

4. Da conciliação ao disfarce das contradições

O m i t o , como procurs mostrsr Lévi-Strsuss, so menos psrs suss msni festsções entre povos totem istss , tem por objetivo s resolução de contrsdições no seio de u m s culturs . Lévi-Strsu s s , s psrtir de u m proced imento que consiste em red uzir os e l e m e n ­ tos nsrrstivos do m i to s m itemss( \ 5 , P . 242- 3 ) e experimen tsr sucessivsmente d i versss. disposições destes, guisndo-se pelos princípios que servem de bsse à snálise estrutursl

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F I K E R , R . - Do m i to o r i g i n a l ao m i t o ideológico: alguns perc u rsos . T r a n s / F n r m / A �' ã n , S ã o P a u l o , 7 : 9 - 1 9 . 1 9R 4 .

(econom ia de expl icação , un idade dc solução, possibil idade de reconst i t u ir o conj u n t o a part ir de um fragmento e de prever os desenvolvimentos u lteriores a part ir d o s dados atuais), chega, para o mito de Edipo às segui stes coscl usões : O mito de Édipo " expri ­ m i ria a i m possibilidade em que se encostra uma sociedade que professa a crença na au­ toclonia do homem( . . . ) de passar, desta teoria, ao recon hecimento do fato de que cada u m d e n ó s nasceu realmente da u nião de um homem e de uma mulher. A di ficuldade é i n " l l perávcl . Mas o mito de Édipo o ferece uma espéc ie de i nstrumento lógico que per­ m i te lançar uma ponte entre o problema i n icial nascemos de um ú n ico ou de dois? -e o problema derivado, que se pode formular, aproxim<!damente: o mesmo nasce do mesmo ou de outro? Por este meio, uma correlação se evidencia: a superestima do pa­ rentesco cossasgüíseo está para a subestima deste, como o esforço para escapar à au­ toctonia está para a im possibil idade de consegui-lo. A experiêscia pode desmentir a teoria, mas a vida social cosfirma a cosmologia na medida em que ambas traem a mes­ ma estrutura costraditória. E ntão, a cosmologia é verdadeira" ( 1 5 , p . 249-50) .

N o sível do mito ideológico são há uma tentativa de conciliar as contradições cul­ turais e sociais, mas de d i s farçá-Ias, varrendo-as para baixo do tapete da falsa cons­ ciência . O disfarce pode consistir de uma total camu flagem pelo mito ideológico - co­ mo vimos so primeiro elemento deste eixo quanto à pseudo-cosmi ficação , constituindo um cosmos i lusório a em baçar a visão do u n i verso real interpondo-se estre ele e o ob­ servador -, ou pode se dar como pseudo-conciliação . N o primeiro caso sequer se reco­ nhecem costradições a serem conciliadas, enquanto que no segundo, osde elas chegam a constar, a cosciliação ocorre como uma formalidade, no nível das aparências . Exem­ plo desta modalidade é a cena fisal de " Metropolis" ( \ 926), filme expressionista de Fritz Lang no qual, após uma prolosgada e esquemática exacerbação das contradições entre o capital e o trabal ho, estes são sim bolicamente (e de forma voluntariamente cari­ catural, ao que tudo ind ica) conciliados no caloroso aperto de mãos entre os represen­ tantes das partes em cosfl i t o .

5 . D a un icidade à desagre;;ação

Em q ualq uer coscepção da divi ndade, ela abrange simultaneamente todos os atri­ butos, o que faz da zosa de tras scesdêscia uma região de usidade . A cossciêscia místi­ ca instaura um sentido de u nião do homem consigo mesmo e com o m undo . Ele é parte de um todo orgâsico e sigsificativo . Técsicas místicas h i sdus - a V oga e o Tastrismo - buscam a istegração de priscípios opostos, do tipo dos represestados pelo sol e pela lua, como cosdição prévia para a i stegração do homem , para além da oposição estre as coisas, so cosmos, usidade primordial . M itos de reistegração são escostrados por toda parte sa história das religiões, suma i s fi sidade de variações (9, p . 1 46-7 , 1 79 , 1 85 ) . Esta necessidade de abolir dualismos e existêscias fragmestárias s e escostra tame bém so culto do mito pelo Romastismo e se expressa através de um pasteísmo de um mosismo que identifica Deus e o mundo, corpo e espírito, sujeito e objeto (24, p . 1 28-1 98 ) .

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F I K E R , R . - Do m i t o original ao m i t o ideológico: alguns percu rsos . Trans/Form/ Açãu. São P a u l o . 7 : 9- 1 9 , 1 984.

6 . Da narrativa e da sabedoria ao mítico desarticulado e ao lugar-com um

o mito ocorre basicameste como sarrativa, e é esta sua forma- l i terária.

É

preciso, no estasto, guardar alguma reserva q uasto a esta somesclatura, pois o m ito se dá ori­ gisalmeste a partir da sarrativa oral , são disposdo em si mesmo de " forma literária" . Esta lhe é dada a posteriori, ao ser escrito ou asotado, com fisalidades sacerdotais, por exemplo - so i sterior aisda do usiverso m ítico mas j á su bordisado a uma sis taxe d i ­ versa da do esusciado oral, ou j á fora de s e u ambieste origisal , como tema li tcrário ou espécimes coletado pelo etsólogo, arq ueólogo ou algum outro habitaste do logos.

Os mitos do dilúvio usiversa l , por exemplo, aisda que sas mais arcaicas versões, assim como a épica de Gi lgamés ou o L ivro dos Mortos egípcio e o Popol Vuh l maia (estes últimos já com implicações sacerdotais) pelo sim ples fato de serem escritos já tra­ zem elemestos de elaboração literári a . Além do que, s u sca é demais issistir so pos t o d e q u e s ã o existe algo c o m o " o mito em si " : trata-se, obviameste, de uma abst ração à q ual se chega e são de uma realidade da q ual se parte. E , fisalmeste, em relação à pró­ pria etapa oral , devem ser lem brados os fatores de ela ooração presestes sa técsica do costador de histórias primitivo, são-letrad o .

É

o caráter sarrativo, oral ou escrito, q ue perm ite a especi ficação do mito em sua forma literária, seu "estilo" característico . E seste sestido são há melhor pista para es­ ta especificidade do que a origem mesma do termo: a palavra grega i-lVe O ç , além de de­ sigsar uma sarrativa coscerseste à gesealogia dos deuses, se refere também a uma sar­ rativa qualquer . E m seu emprego moderso - a despeito da permasêscia do sigsi fica­ do mais geral sa vigêscia da poética aristotélica - restou ao termo apesas o primciro sigs i ficado, mas é ao segusdo q ue temos de recorrer para capturar o elemesto sarr ati­ vo a que se resume o mito esquasto modalidade de discurso . E ste " estilo evêstico " , caracterítisco d a masifestação m í tica, é tradiciosalmeste saliestado por exegetas como N ietzche, J olles e Lévi-Strauss (23 , p. 2 8 ) .

Tal característica s e deliseia origisariameste sa G récia de estre os seculos fi e 4 a . c .

É

sesse período, de m udasças fusdamestais em todas as es feras do u siverso mes­ tal grego, que o termo lagos deixa de sigsi ficar apesas " palavra " assumisdo valor dc raciosalidade demosstrativa e passa assim a opor-se a myth os so que este termo i m p l i ­ c a certa magia da palavra q ue cos fere a o s di ferestes gêseros de declamação - poesia, tragédia, retórica, sofística - um mesmo t i po de eficácia. Esq uasto o myth os opera so sível da mimese e da participação emociosal , o lagos i sstaura um procedimesto de pesq uisa e exposição que apela someste para a i steligêscia crítica . Ass i m , segusdo J . P . Versast (22, p . 200) , e m seu misucioso exame desta isstauração, " tudo o que d á à pala­ vra seu poder de impacto, sua eficácia sobre o próximo, se escostra estão rebai.xado ao sível do myth os, do fabuloso, do maravil hoso, como se o discurso são pudesse gashar sa ordem do verdadeiro e do isteligível sesão perdesdo so mesmo golpe sa ordem do agradável , do emociosaste e do dramático " .

O mito serve de isício para a trassmissão de uma sabedoria e sua l isguagem sarra­ tiva é substituída paulatisameste pela li sguagem argumestativa própria do discurso ciestí fico, que j á são visa à sabedoria mas ao coshecimesto ( 2 3 , p . 30-4 ; 1 2 , p . 90- 1 , 1 00 ) .

A ascessão histórica d o discurso argumestativo tem portasto como costrapartida o desprestígio da seq üêscia sarrativa sas diversas es feras ( filosofia, teologia etc . ) .

À

ciêscia - assim como era fusção do mito, e aisda o é em algumas cult uras - cabe es­ tão explicar os fesômesos que ultrapassam a di messão do cotidiaso, tarefa que ela de­ sempesha com os recursos argumestativos do comestário, da expl icação ou da asálise . Com a dissociação progressiva dos assustos im portastes e do estilo sarrativo, C 0 l11 0

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F I K E R , R . - Do m i t o o r i g i n a l ao m i to ideológico: a l g u n s perc ursos. Trans/Form/ Ação, São P a u l o , 7 : 9 - 1 9 , 1 984.

nots Weinrich n o estudo scims mencionsdo, o princípio mesmo ds ciêncis nos o brigs s fslsr do m i to n u m s ligusgem srgumentstivs .

A dessrticulsção do elemento nsrrstiv o , bem como s dissol ução dss coordensdss do u n iverso mentsl que origins e n utre o discurso ds " ssbedoris" (que é elíptico , mets­ fórico e nsrrst i v o , em oposição so sspecto direto, lógico e srgumen tstivo ds posturs do " c o n h ecimento " ) se evidencism h istoricsmente strsvés de d iversss msni festsções . U m exemp l o é s ressurreição csricsts do discurso ds ssbedoris no u n i verso do conheci­ mento. E s t e fenimeno é responsável pels prod ução de textos que podem ser lidos como 'psródiss i n v o l u ntáriss d o estilo i n i ciático com suss m srcss csrscterísticss : receitss de sscese fornecidss em l i ngusgem slegórics, susêncis progrsm sds de definições d i retss e inexistêncis de textos de sutoris do mestre (Cristo e Buds, por exemp l o , e Sócrstes num certo sentido) , sendo ports-voz u m d iscípulo etc .

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K E Y-WOR DS: Myth; mytholol!.Y; myth ic conseiousness; ideolol!.Y; saered and pronane; narrative.

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Referências

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