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Sístoles e diástoles :de tempos e vidas

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA INSTITUCIONAL

PAULA RAMOS SMITH

SÍSTOLES E DIÁSTOLES:

DE TEMPOS E VIDAS

VITÓRIA

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PAULA RAMOS SMITH

SÍSTOLES E DIÁSTOLES:

DE TEMPOS E VIDAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Institucional.

Orientadora: Ana Paula Figueiredo Louzada.

VITÓRIA 2012

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PAULA RAMOS SMITH

SÍSTOLES E DIÁSTOLES: DE TEMPOS E VIDAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Psicologia Institucional.

Comissão Examinadora

________________________________ Profa. Dra. Ana Paula Figueiredo Louzada Universidade Federal do Espírito Santo

________________________________ Profa. Dra. Leila Domingues Machado Universidade Federal do Espírito Santo

________________________________ Prof. Dr. Kleber Jean Matos Lopes Universidade Federal de Sergipe

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RESUMO

Trata-se de uma pesquisa, que por via da escrita e da experimentação, intenciona tomar contrações e dilatações do tempo, em suas relações com o modo como vivemos, aquilo que se convencionou chamar de tempo no contemporâneo. Em contraposição, há uma tentativa de experimentar um tempo, que precisamente forja desvios e desalinhos, em meio aos quais, delineia-se conceitualmente um tempo rizomático. Para tal, a pesquisa primou pela processualidade em seus fazeres, forjando seus aliados: pela troca de cartas que se encontram aleatoriamente dispostas de modo a acionar uma temporalidade outra; pela conversa, acompanhando olhares da cidade de Vitória (Espírito Santo) em oito de seus habitantes, por meio das quais se dialogam com os modos de habitar a cidade e sua relação com uma produção de subjetividade; pelas narrativas e transcrições de histórias de que apostam em produzir outras relações com a vida e o tempo, que ousam em divergir. E trouxe também como ferramenta os diários de borda. Em outras palavras, uma pesquisa que embrenhou-se pelos desatinos que potencializam a vida, em suas temporalidades. Para tanto, nas trilhas, especialmente, de Pélbart, Deleuze e Foucault encontrou-se seus intercessores.

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ABSTRACT

It‟s a research that by writing and experimentation tends to take contractions and dilatations of time. Risks to trace processes of subjectification on the contemporaneous, and a “substancialization” of time. In contrast, there´s an attempt of an experimentation of a time that precisely forges diversion and disorder, amid which, outlines conceptually a rhizomatic time. For that, the research topped by processuality on its makings, forging its allys: by the exchange of letters that meet randomly disposed in order to put in action another temporality; by conversation, accompanying views from the city of Vitória (Espírito Santo) by eight of its citizens, by each is possible to dialogue with ways of dwelling the city and its relationship with a production of subjectivity; by narratives and transcriptions of stories that ensure on building other relations with life and time, that dare on diverge. And as a strategy, brought also as a tool the registry made on research field. In other words, research entered by the follies that potentiate life in its temporalities. To achieve this, on tracks, specially, found on Pelbart, Deleuze and Foucault its intermediators.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, agradeço, agradeço...

talvez, uma gratidão infinita... talvez, uma gratidão qualquer... talvez, uma gratidão.

Gratidão, carinho, troca...

encontros, potencialidades, mais uma vez: grata. Grata, imensamente, por todos.

Grata, pelo brilho nos olhos.

Grata, em demasia, pela coragem construída nas afirmações da vida. Grata, pelo que não foi, pelas agonias, pelos desassossegos, pelo que se desfez.

Grata, pelo que ficou, pelo que se criou, pelo que se construiu. Grata, pelos toques: no corpo, na voz, na vida.

Grata, pelos acolhimentos: sempre tão generosos.

Este é um trabalho que se constitui em meio a esta gratidão. Grata à vida, única e irremediável.

Grata aos caminhos abertos

Grata aos caminhos que se fecharam Grata aos desvios: tão potentes. Extremamente grata.

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SUMÁRIO

ARROUBOS: DE UMA PESQUISA QUE INSURGE PELO MEIO p. 9

Um mestrado: três gestações, três tempos e muitos 'faz de conta' p. 10

Rabiscos, desvios e atalhos de uma pesquisa p. 13

CAPÍTULO I: SÍSTOLES E DIÁSTOLES DO TEMPO p. 17

Sístoles e diástoles do tempo p

p. 18 Apreendendo pelas palavras certas temporalidades p. 22 Um pensamento, um tempo e uma escrita: linhas que se constroem no fora p. 24 De uma outra troca: o canto das sereias de Blanchot e como escrevinhar

um tempo que se desfaz p. 29

CAPÍTULO II: UM TEMPO, UM CON(TEMPO)RÂNEO, UMA CIDADE ALGUMAS VIDAS

p. 32

Das conversas em meio à cidade: fragmentos p. 33

Tempo, tempo, tempo, tempo p. 35

Das conversas em meio à cidade: fragmentos – outros p. 39

Sempre em frente, não temos tempo a perder p. 41

Das conversas em meio à cidade: fragmentos – outros – outros p. 47

Temos todo tempo do mundo p. 52

CAPÍTULO III: DE TUDO QUE MOVE p. 59

Criadores de brechas e de armas: de tudo que move p. 60 Da primeira brecha: Maria bonita que se desmonta para se montar de novo p. 76

Mais um gole de suco, para continuar a conversa

Da segunda brecha: um grande coração cigano de Maria

p. 81

De Armários e gavetas p. 89

De uma Fabíola guerrilheira p. 96

Da segunda brecha: maria maria é um dom, uma certa magia p. 99 Da terceira brecha: uma ética ciclística e um olhar com a cidade p. 117

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Da quarta brecha: da moça que se faz... e atrapalha o fluxo p. 125 Da quinta brecha: um duo que reverbera em toques à terra p. 130 CAPÍTULO IV: DIÁRIOS DE BORDA – INTERSTÍCIOS INTEMPESTIVOS p. 137 Interstícios intempestivos: do como contar um processo plural p. 138

Acompanhando o caminhar das formigas p. 138

Diário de borda: de como cheguei aqui p. 143

Dos tateios e tropeços: um pouco do corpo/trajeto desta pesquisa(dora) p. 146 O primeiro caminho proposto (do anteprojeto de pesquisa, 2010) p. 147

Um transbordamento: uma certa escuta do tempo p. 148

Conclusões inconclusas: do nosso modo de fazer p. 154

Diário de borda: caminhamos pela transversal p. 156

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ARROUBOS: UMA PESQUISA QUE

INSURGE PELO MEIO

A meio caminho entre a filosofia, a clínica, o manifesto, a literatura, o gênero híbrido corre o risco óbvio de desgostar a todos. Aos profissionais do conceito, pelo aspecto ligeiro, aos da transferência e da vida, pelo caráter aleatório e duvidoso. Teriam um quê de razão, uns e outros, não fosse a circunstância particular de que determinadas experimentações teóricas e vitais têm na divagação e na digressão sua matéria-prima. Pois na sua textura mais íntima, mesmo quando atreladas a aparatos acadêmicos rigorosos, as experimentações teóricas comportam um quinhão irredutível de ficção (PELBART, 1993, p. 11).

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Arroubos de uma pesquisa que insurge pelo meio

Como adentrar em meio a esse trabalho, sem apagar-lhes os vestígios, sem esmagar as entrelinhas, o muito que perdeu-se ao ser composto esse plano de organização textual dissertativo? Não, leitor. Não farei desse texto um plano organizativo, imediato. Venha comigo, pelas entrelinhas, quase crateras, que insistem a curvar as linhas, transformando-as em desenhos-rabiscos, indefinidamente por fazer, certamente tortos... arroubos insurgentes.

Um mestrado: três gestações, três tempos e muitos 'faz de conta'

[…] precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde cintilante (LISPECTOR, 1998, p. 14)

agosto, 2012.

Deparei-me com este livro da Clarice, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, lembro-me que tentei lê-lo em outro momento e não consegui, não por gosto, mas por qualquer outro motivo, talvez tenha me prendido muito a pequenos detalhes naquela ocasião.

No passado, costumava ler um livro sempre com um pequeno dicionário ao lado e um caderno onde anotava as palavras que me encantavam e seus significados. Quando não encontrava o significado de alguma palavra, buscava o dicionário maior, vez ou outra, lia com os dois para não ter que parar a leitura e buscar o dicionário maior. Algumas palavras novas me cativavam e delas me apropriava, aumentava meu vocabulário como uma senhora vaidosa que está sempre cheia de adornos, carregava nos adjetivos como quem carrega na maquiagem: gostava de escrever peremptoriamente. Algumas outras palavras me causavam estranhamento e não conseguia fazer-lhes pérolas às minhas linhas vaidosas-textuais. Alguns significados me deixavam confusa ou por sua imensa variedade, ou por sua objetividade demasiada.

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11 Voltando à Clarice, aqui no nosso Programa temos nos referido muito a ela, na maior parte das dissertações do PPGPSI, certamente encontraremos referência a Sra. Lispector. Confesso que fiquei até com certo pudor em usá-la. Pensava que fazer isso poderia ser como seguir algum tipo de modelo, mas percebi – a tempo – que o que nos atrai tanto em Clarice é menos o modelo de um padrão de dissertação e mais suas características tão peculiares de dizer das coisas, de nos fazer aperceber certas nuanças que nos passam, na maior parte das vezes, anônimas e soltas. Sua forma de fazer operar em nós afetos, sua escrita é do tom da filosofia.

No presente momento, me alinho com Clarice no que diz respeito à sua vida, em determinada época. Clarice tinha filhos, como eu. E se dividia entre a vida de mãe de filhos e “sra. de um lar”, e escritora. Ou melhor, ela não se dividia, ela se multiplicava, configuravam ali, em seu cotidiano, inúmeras Clarices, tantas que sempre nos surpreendemos com seus textos – tamanha sua imensidão em ser outro, em outrar-se.

Clarice me faz pensar no muito, nos muitos, nas coisas que são, mas mais ainda nas que virão a ser... no estar, no estado estranho das coisas. Comecei o mestrado querendo falar do tempo. Lá em 2010, quando entrei, estava completamente apaixonada. Tinha encontrado o livro de Pélbart: Tempo não reconciliado, e achava tudo muito pertinente, era como um despertar, havia percebido o tempo de outra forma com essa leitura e precisava pesquisar, conversar mais, saber mais sobre isso. Hoje, 2012, meados... não sei mais da mesma forma, já me outrei em relação ao tempo, à pesquisa.

Às vezes, penso que o tempo se concretiza em nossas vidas de forma diversa e que cada vida carrega um tempo, dá forma a um tempo, mas aí vejo que de fato existe um tempo cronológico em que vivemos que nos marca, também. No entanto, para Deleuze, como será dito adiante, não é o tempo que é composto por nós, e sim, compomos um tempo.

Quantos tempos nas composições dos livros de Clarice. Ainda hoje, multiplicidades temporais em seus livros, mesmo que tenham sido escritos na década de 60 ou 70. E penso, também, no tempo que a cercava na época que

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12 ela escreveu tal ou qual obra. Acredito que as confluências do tempo de sua época e de um determinado tempo que se agencia e atualiza em uma vida, criam ainda um outro tempo.

Como tomar o tempo nessa mistura? Como uma conclusão inconclusa, como uma gestação infinita, como um filho que nasce: nada se sabe sobre ele, quem é, quem será, o que virá a ser... mas ele vem, ele está e esta imprevisibilidade, este acaso é que o faz, é o que é.

E, durante esse tempo que passei/passo no mestrado, tive três gestações: a primeira o trabalho a que me propus. A segunda, o filho primeiro que tive no primeiro ano de mestrado. A terceira, o filho segundo que tive no terceiro ano. Este trabalho está altamente afetado por todas essas gestações e seus filhos, meus. Antes, quando pensava em falar sobre isso, me encontrava em dificuldade... Como vou falar do meu processo de maternidade?

Então, hoje, dia 13 de agosto, quando meu segundo filho completa 10 dias de vida, entendi... não tive dois filhos durante o mestrado, mas três. Um desses filhos foi/é este trabalho... E como é bom entender isso, pois um filho é algo sempre em mutação, indefinido. E assim afirmamos que desse mesmo modo é esta dissertação: aberta – de pernas pro ar, de cabeça para baixo, dando cambalhotas, se contorcendo, espremendo... Ela não tem conclusão, mesmo que aqui tenha um subtítulo com esse fim. É faz de conta, como disse Clarice, “... faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta...” (LISPECTOR, 1998, p.15).

Afinal, nossas dissertações não são um faz de contas? Afinal, nós mesmos não somos um faz de contas? Afinal, nossas vidas não são? Afinal, o que não é faz de conta não deveria ser? Será que o que precisamos, em grande medida, não é defender nosso corpo faz de conta? Nossa vida faz de conta? Não um faz de conta de historinha da Disney, não um faz de conta da carochinha, mas o faz de conta, a dimensão da inventiva, da criação, o que nos faz ser e não ser e para além e atravessa, e rompe com os nossos limites e o que achamos que são nossos limites... e o que achamos, sempre achamos.

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13 Faz de conta que aqui tem uma dissertação...

Faz de conta... Fabulações... Fabular ... ações...

Rabiscos, desvios e atalhos de uma pesquisa

Rabiscos como paradoxos de uma pesquisa na qual se quer colocar em análise o modo como vivemos, aquilo que se convencionou chamar de tempo no contemporâneo. Um tempo que se faz inexato, que força a aquilo que “em”-forma. Pensando nesse sinuoso ato de escritura, esse trabalho se cons trói no quase, no entre, no absurdo. Não se quer tratado, não é nenhum esmero. Tudo aqui foi feito repentinamente, como um jorro. Num tempo encontrado como possível, num tempo criado para dar conta de tantas coisas que atravessam uma vida – a desta pesquisadora, neste processo literalmente gestacional de pesquisa.

Essa pesquisa foi feita, como já afirmado, aos solavancos. Movimentos e paradas. Precisa-se parar. A vida urge. A pesquisa, ao longo do mestrado, foi feita de paradas, às vezes, quase coma. Mas uma pesquisa tão entranhada na vida (como cavar outros modos de existir que não estejam tão afe itos às acelerações sufocantes) insiste, resiste, e teimosamente transmuta-se em outras, desvia-se.

Um quê de menos atordoa; mas não eram esses os planos iniciais, quantas mirabolantes estratégias foram moduladas em meio ao tateamento de intervenções urbanas? Algumas feitas, outras desfeitas, alinhavos puídos, deixados à beira do caminho.

Se há marcas fortes nesse trabalho são as insistentes e tonteantes paradas. Um trabalho, uma pesquisa que começa e para, e então começa outra vez e, de novo, para e segue com longas paradas. E quando retomada, já se constitui por

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14 outros vieses, ou se desfaz. Uma pesquisa que para “por muito tempo” (em qual marcação? para quem?), que precisa parar, que precisa do tempo da parada para se refazer, para existir, para criar contornos... um pouco mais de fôlego... para ritmar uma outra cadência, que a joga para outro canto, compõe -lhe outro rosto.

Uma pesquisa que se perde em uma esquina, em um canto qualquer. Várias pesquisas existiram aqui e se perderam, entre as paradas necessárias ao caminhar que se estabeleceu neste processo. Quantos tempos desejados? Quantos outros vestígios esquecidos? Pistas deixadas? Quanto mudou desde o anteprojeto de pesquisa arrojado e intelectualizado, apresentado quando da seleção? Quanto ficou? Não sei dizer, talvez, num exercício forçoso, consiga entrever o como.

Não é inútil lembrar que o tempo da criação artística ou do pensamento também exige algo dessa ordem. Do dar tempo e paciência para que o tempo e a forma brotem a partir do informe e do indecidido. O desafio é propiciar as condições para um tempo não controlável, não programável, que possa trazer o acontecimento que nossas tecnologias insistem em neutralizar. Pois importa, tanto no caso do pensamento como da criação, mas também no da loucura, guardadas as diferenças, de poder acolher o que não estamos preparados para acolher, porque este novo não pôde ser previsto nem programado, pois é da ordem do tempo em sua vinda, e não em sua antecipação. É quase o esforço inimaginável, não da abolição do tempo, mas de sua doação. Não libertar-se do tempo, como quer a tecnociência, mas libertar o tempo, devolver-lhe a potência do começo, a possibilidade do impossível, o surgimento do insurgente. Trata-se aí de um tempo que escaparia à presença, à presentificação, à continuidade, dando lugar a outras aventuras temporais (PELBART, 1993, p. 23).

Criação e pensamento, informe e indecidido. O tempo em sua vinda... Um tempo para acolher o que ainda não estamos preparados para acolher, explodem com as previsões e programações tecnocráticas. Uma doação, uma libertação do tempo, possibilitar o insurgente, possibilitar aventuras temporais. Um canto ao embate que atravessa a pesquisadora tomada pela incerteza.

Um novo desvio de rota: essa dissertação não é feita de paradas, mas de intensa luta que arrasta um modo de fazer pesquisa no contemporâneo (com toda sua

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15 produtividade, prazos e financiamentos), e um corpo que pede calma para gestar, para possibilitar o insurgente. Um canto1 insiste em tomar o corpo:

Mesmo quando tudo pede Um pouco mais de calma Até quando o corpo pede um pouco mais de alma A vida não para... Enquanto o tempo acelera e pede pressa Eu me recuso faço hora Vou na valsa A vida é tão rara... Enquanto todo mundo espera a cura do mal E a loucura finge que isso tudo é normal Eu finjo ter paciência... O mundo vai girando Cada vez mais veloz A gente espera do mundo E o mundo espera de nós Um pouco mais de paciência... Será que é tempo Que lhe falta pra perceber? Será que temos esse tempo Pra perder? E quem quer saber? A vida é tão rara.

Assim, entre solavancos e desalinhos, avanços apressados e bruscamente interrompidos, produção de pausas; necessariamente, tem-se um trabalho mais simples que se forja. E faz-se necessária essa simplicidade, como se fosse um ensinamento da vida que pede passagem e grita e bate e quebra e escancara: que uma pesquisa-vida não segue cartilhas, nem leis universais, que o caminho se faz com o caminhar. Aprendi isso. Pesquisa e vida... como conjugar um verbo em comum para essas duas instâncias aparentemente distantes, aparentemente distintas? Uma pesquisa se faz em uma vida, uma pesquisa que atravessa uma vida, uma vida que dá forma a uma pesquisa... é possível confluir, é possível encontro.

Para isso, nessa pesquisa optamos por alguns rabiscos metodológicos, tantas vezes feitos, desfeitos, refeitos:

1

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16 problematizar os conceitos de tempo, em Deleuze: fiando linhas

rizomáticas que compõem a pesquisa;

atravessar o texto-dissertação-temporalidade-linearizada-numa-sucessão-de-páginas-ordenadas, com cartas, inscritas em outros regimes de temporalidades não lineares, afeitas aos sentidos, ao que vaza/rasga as sucessões;

analisar, junto a oito moradores de Vitória, como se constitui um modo de tracejar diferentes temporalidades. E ainda, como – mesmo com a homogeneização das vidas, dos espaços e com a rarefação do tempo –, vidas destoantes produzem escapes a essas lógicas;

compor, através de narrativas e transcrições, histórias de que apostam em produzir outras relações com a vida e o tempo, que ousam em divergir.

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CAPÍTULO I

SÍSTOLES E DIÁSTOLES

Nem treva nem caos. A treva implora Olhos que possam ver, como o ouvido. Têm o som e o silêncio requerido. E o espelho, a forma que ali mora. Nem o espaço nem o tempo. Afinal, sequer a deidade que premedita

O silêncio anterior à primordial Noite do tempo, que será infinita. O grande rio de Heráclito, o Obscuro, Seu curso misterioso não empreendido, Que do passado flui para o futuro, Que do olvido flui para o olvido. Algo que já padece.

Algo que implora. Depois a história universal.

Agora.

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CAPÍTULO I: SÍSTOLES E DIÁSTOLES

Tempo.

Seria como versa Borges em Cosmogonia? Um enigma? Ou, seria, ainda, como um rio seguindo seu curso? Seria algo que passa? Entidade, série de diversos momentos, ciclos, movimento, finitude, infinitude, conciliação? Deus, sábio, velho?

O que é o tempo? Ou torcendo a pergunta, como fabricam-se tempos e suas noções?

Quando nos propusemos a pensar e elaborar problematizações sobre tal conceito, não sabíamos que seria uma empreitada tão caleidoscópica, na qual, conforme mudássemos de mirada, estaríamos em contato já com um outro conceito, noção ou apreciação do tempo, não sabíamos o quão movediço e movente é este conceito.

E, se procuramos referências por aí, temos no senso comum, uma usual concepção: o tempo como algo que passa; o tempo dos relógios, que pode ser contado e que nos falta, por ser repartido, espacializado. Ou, ainda: tempo como clima, um tanto mais enigmático, se pensarmos que não sabemos quando vai chover e quando vai fazer sol, ou nevar. Entre outras formas usuais de se relacionar o tempo como momento, como época, como falta.

Os filósofos, que se desafiaram a contribuir para o entendimento dessa noção um tanto abstrata, diferem bastante em direções. Uns, o compreendem como uma noção humana forjada no interior de cada psicologia, aos moldes de Santo Agostinho, que concebe o tempo como uma distensão da alma, portanto, com um caráter psicológico.

Outros, o entendem como ontológico, como um ser em si, que existe e basta -se por si. Outros, ainda, o apreciam bem metafisicamente, como algo que transcende ao ser e que o põe em irremediáveis dualismos, como: eterno e finito, material e anímico.

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Neste capítulo, nos alinharemos às noções de tempo em Deleuze (também atravessadas por outros pesquisadores); contudo, deixando claro: em nosso trabalho elas tornam-se, já outra coisa. Estaremos, ainda, em consonância ao tempo em suas linhas éticas, nessa intricada composição rizomática; onde, nos vemos imersos, ora em um, ora em outro conceito, cavalgando as distintas linhas que se encaminham por este trabalho.

Faremos, no presente capítulo, uma breve conceituação do tempo como rizoma, por entendermos que essa noção perpassa o trabalho e os tempos aqui convocados. Não falaremos em momento algum da concepção bergsoniana de tempo, mas tocaremos em ressonâncias deleuzianas ao analisarmos atual e virtual, no Capítulo IV Tudo que move.

E, com todas as dificuldades acerca do tema, podemos nos arriscar em algumas afirmações. Experimentamos o tempo a partir de nosso nascimento. Daí para frente, somos induzidos a entender o tempo em etapas, dividido em passado, presente e futuro. O que nos faz ter uma concepção de tempo sucessiva, logo, cronológica e “compartimentalizada”. Mas será que o tempo Cronos é o tempo por excelência? Ou ainda, uma outra formulação: será que existe apenas este tempo dos relógios a se agenciar com nossas vidas?

Com isso, uma afirmação metodológica, para seguir adiante: este capítulo, como essa dissertação, é um risco, e se entende como tal. Sabe-se, que a noção de tempo e sua conceituação são extremamente difíceis, e que poucos filósofos se arriscaram nesta jornada, sendo que alguns que fizeram, perseguiram isso por toda a sua filosofia.

O que intentamos, todavia, não é nada disso – uma nova conceituação –, mas atravessar alguns questionamentos deleuzianos acerca do tempo, fazendo um corte, que é justamente o direcionamento que daremos a este trabalho.

Um ponto marcante em nossa caminhada é que não distanciamos tempo e vida. Entendendo este duo como composições de um tempo tomado por sua via ética, pensando ética como um exercício de vida; com isso, trazemos, aqui, as ressonâncias que atravessam essa via com a qual nos enamoramos. Afirmamos tempo como vida, como uma vida a se atualizar e vice-versa – um forjando outro,

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outro forjando um.2 O múltiplo dos devires, a afirmação da vida como devir, como potência.

A afirmação é o mais alto poder da vontade. Mas o que é afirmado? A Terra, a vida... mas que forma tomam a Terra e a vida quando são objetos de afirmação? Forma desconhecida por nós, que só habitamos a superfície desolada da Terra e só vivemos estados vizinhos do zero. O que o niilismo condena e se esforça por negar não é tanto o Ser, porque o Ser, sabe-se já há muito tempo, parece-se com o Nada como um irmão. É de preferência o múltiplo, é de preferência o devir (DELEUZE, 2009 c, p. 31-32).

Nessa empreitada, contamos com intercessores: Matéria em movimento: a ilusão

do tempo e o eterno retorno, de Regina Schöpke; A experiência do fora Blanchot, Foucault e Deleuze, de Tatiana Salem Levy; e Tempo não reconciliado, de Peter

Pál Pelbart3; além de textos de autoria de Deleuze (2009a, 2009b, 2009c, 2004). Logo abaixo, trazemos um trecho, em forma do diálogo, do filme O Mahabharata,4 em que um homem conversa com um rio: uma das simbologias do tempo. Na mitologia hindu, cinco irmãos estavam em exílio, atrave ssando uma floresta. Depois de longa caminhada por aquela, se encontravam com extrema sede. Avistaram um rio, e logo, um a um, se achegaram a ele.

Assim que lhe imergiam, o rio lhes dizia: “Não beba! Responda, primeiro, as minhas perguntas, e então poderá saciar a sua sede.” Os quatro primeiros homens, não resistindo à sede, beberam das águas do rio. Caíram mortos. O quinto e último irmão, ao encontrar os outros quatro caídos em volta do rio, assustou-se, e pensativo, tentou entender o que poderia ter matado seus irmãos, já que não havia sangue, nem qualquer vestígio de que haviam sido atacados. Logo, adentra ao rio e tenta beber suas águas. O rio lhe alerta com a mesma advertência que deu aos irmãos. O homem, para. Parado, escuta o rio e assim, se dá o diálogo entre eles. O rio, enigmático, faz as perguntas, o homem, pensativo, responde.

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Essa discussão será mais ampliada no capítulo Tudo que move.

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Os autores citados trazem alguns vieses deleuzianos do tempo. 4

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Um enigma, que nos remete, em alguma medida, talvez, às relações do homem com o tempo, logo, com a vida. Para nos confundir ainda um pouco mais, o belo trecho, abaixo:

─ O que é o mais rápido que o vento? ─ O pensamento. ─O que é capaz de cobrir a terra? ─ Escuridão ─ Quem é maior em número, vivos ou mortos? ─ Vivos, porque os mortos não mais existem. ─ Dê-me um exemplo de 'espaço'. ─ Minhas duas mãos, como uma só. ─ Um exemplo de dor. ─ Ignorância. ─ De veneno? ─ Desejo. ─ Um exemplo de derrota. ─ Vitória ─ O que veio antes: o dia ou a noite? ─ O dia, mas somente um dia adiantado. ─ Qual é a causa do mundo? ─ Amor. ─ Qual é o seu oposto? ─ Eu mesmo ─ O que é loucura? ─ Uma 'estrada' esquecida. ─ E a revolta? Por que os homens se revoltam? ─ Para encontrar a beleza, na vida ou na morte. ─ O que, para cada um de nós, é inevitável? ─ Felicidade. ─ E qual é a máxima maravilha? ─ A cada dia a morte nos ataca, ─ e nós vivemos como se fôssemos imortais,

esta é a grande maravilha.5

Pensando, ainda potencializados pelo diálogo, no entre tempo e vida, esbarramos em algumas linhas, e suas variadas encarnações do tempo. Tempo e pensamento, tempo e escrita, tempo e corpo, tempo e fora, tempo e subjetividade: entrecruzamentos que proliferam tempos ao longo do trabalho.

O que traremos nesta pesquisa é esse miscigenado cruzamento de linhas, que, se cruzam potencializando a composição para uma noção de tempo: tempo rizomático, que flui suas linhas indefinidamente. Mais do que um cruzamento: expansões de linhas. O tempo tomado a partir de seu viés complicado,

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22 rizomático, sem conciliação, sem ciclos e sucessividades, um tempo outro para um pensar outro (PELBART, 2007).

Rizoma, para nós, é uma abertura, são os virtuais e suas atualizações. Um sistema não de pontos, mas de linhas. “Uma multiplicidade não tem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mudem de natureza” (DELEUZE, 2009, p. 16).

Rizoma como heterogeneidade que opera variações infinitas, que subtrai o único da multiplicidade a ser constituída. Tem como principal característica as múltiplas entradas.

A estes sistemas centrados, os autores opõem sistemas a-centrados, redes de autômatos finitos, nos quais a comunicação se faz de um vizinho a um vizinho qualquer, onde as hastes ou canais não preexistem, nos quais os indivíduos são todos intercambiáveis, se definem somente por um estado a tal momento (DELEUZE, 2009, p. 27).

Rizoma como a força que opera nesta pesquisa várias entradas e saídas, sem começos e fins, uma pesquisa que se fabrica, em grande medida, pelo meio é, forçosamente, rizomática: “um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo” (DELEUZE, 2009, p. 37).

Apreendendo pelas palavras certas temporalidades

É importante, então, assim se faz, que pensemos um tempo que componha e comporte uma escrita, já que este trabalho é um trabalho escrito. Sendo assim, puxaremos fios, aqui, que nos remetem às linhas que se desenrolarão ao longo do trabalho e que estão, também, em sua composição.

Com isso, sabe-se que uma dada escrita está em uso neste percurso-trabalho. Uma escrita que é cheia de curvas, que não é ritmada, nem contínua, tampouco linear. Ela vai, ela vem, ziguezagueia, tonteia. Este trabalho é marcado por uma escrita fragmentária e descontínua, que se apresenta de variadas formas, conforme suas paradas e entradas. É marcado, ainda, por uma escrita que não é uma, já que se escreve em momentos distintos, em contextos variados, esta

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escrita é mais uma escritura do tempo, de tempos que se constituem diferenciados em seu fazer.

Não vamos ter explicações, elucidações, mas um texto que vai seguindo um fluxo alinear, fluxo da memória, memória que nos força a pensar. Notamos que precisávamos de molejo para comportar uma escrita tão torta, de uma escritura que se perceba e faça desengonçada e que com tantas movimentações nos apresenta crucialmente isto: as variadas entradas e composições deste trabalho forjando nele uma temporalidade.

Portanto, a escrita torna-se tradutora, em parte, de parte do pensamento que a acompanha e que se constitui com ela. Conseguir criar continuidade entre um parágrafo e outro, entre uma frase e outra é, muitas vezes, uma tarefa hercúlea e desnecessária se analisamos o pensamento à luz do fora, do plano de imanência.

O que aqui se propõe é justamente não ceder a uma escrita que homogeneíza, que confina o pensamento e atravanca o processo, pessoaliza e se enraíza, sem poder sequer roçar o fora, quanto mais acompanhar seus “passos”. Acompanhar esse fluxo de pensamento-escrita, escrita-pensamento, tentando, ainda, trazer para o texto esse processo, essa construção.

Numa espécie de escrita-tempo, um corpo é convocado através das palavras e para além delas. Onde se produz uma construção de um tempo outro, por se tratarem da mesma coisa: a dobra do fora é a subjetivação e o tempo. No nosso trabalho, ao longo dele, encontra-se essa direção na escrita, uma escrita que pode ser entendida como uma tentativa de escrita de s.i6

O pensamento que se afirma aqui não é da ordem da razão, contudo, é necessário um pouco desta para exercer esta escrita, numa coexistência de planos, planos que realizam em si coisas distintas, mas que se entrecruzam a todo instante: “[...] todos os planos, [...] todas as multiplicidades encontram -se num único e mesmo plano. Não há mais a separação entre o mundo e um além,

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Uma das práticas de si, dos gregos antigos, no qual o exercício de si, dava-se, também, pela escrita; ver em Resende (2008).

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pois todos os mundos se englobam no plano de imanência” (LEVY, 2011, p. 102).

Sobretudo, marcamos este paradoxo para que fique evidente: uma afirmação não nega ou invalida a outra; caminham juntas, ainda que, possivelmente, por trilhas distintas, pensamento paradoxo do qual este trabalho se pretende apropriar naquilo que se apropria.

Tensões, vias, desvios, pensamentos que nos direcionam a pensar o tempo das mais variadas formas. Tratam-se de junções, torções, rizomas, tateios, devaneios, sístoles, diástoles, interstícios, arroubos e afins.

Um pensamento, um tempo e uma escrita: linhas que se constroem no fora

Escrever é uma das formas de pôr a matéria pensamento a se mover, de impulsionar-lhe ao fora, e, assim, roçar o tempo:

O pensamento de Deleuze não cessou de explorar tais imagens de tempo, como se elas expressassem não só a variação do tempo, mas do próprio pensamento. E, de fato, mais e mais o tempo aparecerá ao pensamento como sua matéria mais íntima, como a força que a força ir ao seu limite, como seu Fora inapelável. O tempo à luz do Fora, e o sujeito como uma sua dobra defasada (PELBART, 2007, p. 189).

O pensamento7 não tem o cuidadoso aprumo das palavras ordenadamente elaboradas; surge, insurge, irrompe, brota, emerge – no quase, no entre, trata-se de um outro tempo – um tempo ainda não corporificado. Um pensamento que não é uma coisa nem outra; é, pode ser, uma coisa e outra, e ainda tantas várias. Veloz, não conseguimos seguir seus passos. Tentamos. Paramos. E nessa tentativa, transcrevemos como num quase sonho; quase acordados, escrita em transe – tempo dos incorporais.

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Gilles Deleuze propôs substituir o que ele chamou de uma imagem do pensamento por um pensamento sem imagem. Imagem do pensamento significa grosseiramente uma forma à qual o pensamento está submetido. Ao contrário, forjar o pensamento sem imagem de pensamento, isto é, sem uma imagem prévia do que seja pensar (será isto possível? Ou trata-se apenas de outra imagem do pensar?) pode implicar em abrir mão de uma forma, um modelo. Um pouco como fez a arte abstrata, que ao dispensar a figuratividade pôde liberar cores, linhas e uma série de virtualidades pictóricas até então aprisionadas debaixo da representação figurativa (PELBART, 1993, p. 24).

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Um pensamento que se processa ainda sem corpo, no combate de forças. Um pensamento que se estabelece e incorpora pelo coletivo, com ele – não é individualizante, não pertence a uma mente pensante, ou a um grupo especializado, nem, tampouco, tem autoria determinada. “Pensar é dobrar, é duplicar o fora com um dentro que lhe é coextensivo. A topologia geral do pensamento, que começa já „na vizinhança‟ das singularidades, se completa agora dobrando-se o lado de fora ao lado de dentro” (DELEUZE, 2005, p. 126). É, antes de tudo, um processo que se dá no coletivo, pré-individual. Uma batalha que se desenvolve no campo de forças virtuais e se atualiza, ganha matéria, se expressa, através de um corpo-pensamento, como um tempo a se compor, a ganhar forma. A escrita, que também não é de um autor, se torna uma incorporação de determinados pensamentos que se constituem sempre num aglomerado, coletivamente, na vida. Forças e linhas que se atravessam, justapõem, que concorrem, que se multiplicam, se descontrolam , que escapam. A escrita como um corpo-pensamento se torna um tempo brotando em palavras. E este pensamento, que não é ordenado, tampouco transcendente - estaria mais próximo da imanência: no faro de Deleuze, entendendo imanência como uma vida, como uma singularidade que se dá em uma vida, em uma escrita, em um tempo. Um tal pensamento não é da ordem da razão; é, antes, sensorial. Pensamento-arte que se desdobra em invenção a cada conexão, a cada descontrole. E nem por isso menos real e corpóreo.

Um pensamento que tem na escrita o barro a se moldar: o corpo, para lhe dar a forma da qual necessitava, o torna palpável, modulável. Um tempo que é convocado a esta tarefa artística, a este co-engendramento entre pensamento e escrita. Tempo que se traduz em palavras, que se constrói com elas, no encalço da vida. Um tempo que se constrói eticamente, que tem a ética da vida como direção, uma outra pista. Para essa tarefa escriturária outro tempo é convocado, construído, incorporado.

Tempo Aion para uma escrita-tempo, por um pensar outro. Logo, por não ser linear, nem concordar que início rima com fim, o pensamento que se afirma nesta pesquisa, se lapida em fragmentos, transbordamentos, em instantes,

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26 apontamentos, vai-e-vem, num balanço, numa cadência, que ora é samba e ora é rock‟n roll, numa mistura, numa quizumba – pelo meio:

[...] é que o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio (DELEUZE, 2009, p. 37).

É um convite, um convite a pensar de outro modo, a forçar o pensam ento a pensar o improvável, a criar uma brecha, uma rachadura – desmanchando as durezas sólidas e apostando no estado gasoso das coisas. Um pensamento que se processualiza no entre, e estes inúmeros entres que escapam e se incorporam, criam uma matéria que os faz dizer. Um corpo remendado para este pensamento fragmentado.

É preciso, então, ler e escrever. Ler para dialogar e aprender. Escrever para convocar essas forças, para fazer a escrita falar, para tentar colocar em expressão algo que traduza esse pensar sem significações estanques, um pensar da ordem das forças, que se faz e desfaz, conforme; pensamentos como imagens, não uma imagem fixa do pensamento, mas um pensamento que extrapola o verbo, sensorial.

É na escrita que o pensamento rende o mais que pode: a escrita convoca o trabalho do pensamento, e lhe traz maior acuidade e consistência [...] É um modo de exercer a escrita em que ela nos transporta para o invisível, e as palavras que se encontram através de seu exercício tornam o mais palpável possível a diferença que só existiria na ordem do impalpável. Escrever é traçar um devir. Escrever é esculpir com palavras a matéria-prima do tempo, onde não há separação entre a matéria-prima e a escultura, pois o tempo não existe senão esculpido em um corpo, que neste caso é o da escrita, e o que se escreve não existe senão como verdade do tempo [...] escrever é fazer letra para a música do tempo; e é esta música sempre singular, que nos indica a direção da letra, que seleciona as palavras que transmitam o mais exatamente possível seus tons, seus timbres, seus ritmos, suas intensidades (ROLNIK, s/d).

Nesse pensar que faz música com as letras do tempo, seguimos cheios de questões... Como é esse tempo e qual tempo é esse com o qual falamos? Aion e

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Cronos, como se diferenciam? Levy nos ajuda, dando-nos pistas caras para algum entendimento:

Aion, em vez de cronos, em outras palavras, um tempo do acontecimento, e não da efetivação. O acontecimento é justamente o que acaba de acontecer e o que ainda vai acontecer, mas nunca o que se passa. [...] Ao contrário, a efetivação, característica do tempo cronológico, é o presente que passa. Resumindo, para cronos, é apenas o presente que exist e no tempo; ao passo que, para Aion, são o passado e o futuro. Mas um futuro e um passado 'que dividem a cada instante o presente, que o subdividem ao infinito em passado e futuro, nos dois sentidos, ao mesmo tempo (LEVY, 2011, p.120)

Com essas composições que fazemos com Levy e Deleuze, seguimos, talvez um pouco mais próximos do que seria esse tempo, talvez, um pouco mais confusos. Certamente repletos de questões, repletos de possibilidades. E aí, trazemos já um outro intercessor, que vem nos provocar em uma canção.

Tô bem de baixo prá poder subir Tô bem de cima prá poder cair Tô dividindo prá poder sobrar Desperdiçando prá poder faltar Devagarinho prá poder caber Bem de leve prá não perdoar Tô estudando prá saber ignorar Eu tô aqui comendo para vomitar Eu tô te explicando Prá te confundir Eu tô te confundindo Prá te esclarecer Tô iluminado Prá poder cegar Tô ficando cego Prá poder guiar Suavemente prá poder rasgar Olho fechado prá te ver melhor Com alegria prá poder chorar Desesperado prá ter paciência Carinhoso prá poder ferir Lentamente prá não atrasar Atrás da vida prá poder morrer Eu tô me despedindo prá poder voltar8

Um pensar que se nomeia, se faz canção e segue sem nome; sem verso, sem ponto e se utiliza do ponto, sem vírgula e se utiliza da vírgula: quebrando,

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rompendo, rachando, louco, paradoxal. Quiçá, seja o pensamento do plano das forças, e a escrita um exercício de trazer para o campo das formas. E neste jogo, neste duo, nas duplificações que marcam posições diferentes emerge uma outra coisa qualquer. Um outro (indeterminado, cruzado, atravessado) tempo?

Nas vias deste escrever, que acompanham os rumos variados do pensar, neste pensar-transe, consegue-se não ordenar totalmente o pensamento, ou não se precisa disto, consegue-se, ainda, não mais ser um “Eu pensante”, perdem sentido os egos, caminha-se rumo ao Outro, o outramento faz parte deste processo de abertura, de alteridade. Para isso, desejamos não representar o que é pensado, mas acompanhar este pensamento, o entre deste pensamento, assumindo, contudo, o risco de cair em alguns momentos nessa escrita representativa, o que vale, porém, é este exercício de escrita, este labor da tentativa de um escrever que assuma outra lógica, uma escrita ética, uma escrita de si, uma abertura.

O homem é um modo de ser tal que nele se funda esta dimensão sempre aberta, jamais delimitada de uma vez por todas, mas indefinidamente percorrida, que vai, de uma parte dele mesmo que ele não reflete num cogito, ao ato do pensamento pelo qual a capta; e que, inversamente, vai desta pura captação ao atravancamento empírico, à ascensão desordenada dos conteúdos, ao desvio das experiências que escapam a si mesmas, a todo horizonte silencioso do que se dá na extensão movediça do não-pensamento. Porque é duplo empírico-transcendental, o homem é também o lugar do desconhecimento que expõe sempre seu pensamento a ser transbordado por seu ser próprio e que lhe permite, ao mesmo tempo, se interpelar a partir do que lhe escapa (DELEUZE, 2005, p. 445).

Esse exercício, numa dimensão sempre aberta, que comporta as linhas que compõem nossa subjetividade, equipara tempo e subjetividade, que faz um coextensivo e cocriador do outro, num processo infinitamente inacabado de coengendramento de um se fazendo o outro e vice-versa.

O tempo não cronológico, esse tempo originário do qual se está falando, nada mais é do que a dobra do fora. O tempo como sujeito...[...] viu-se que dobrar o fora, fazer a força se afetar é o movimento próprio da subjetivação. No entanto, essa dobra, segundo Deleuze, é mais o tempo em seu estado complicado do que uma dobra espacial” (LEVY, 2011, p. 120).

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Se for preciso o fora para nos colocar em contato com o pensamento, para nos lançar na violência de um pensamento sem Eu, então, esse fora nos direciona a um pensar a-subjetivo, talvez, por isso mesmo, atue na modulação da subjetividade, pois ao lhe cortar ao meio; tornando-a impessoal, cavando-lhe, ou ainda, em sua porosidade, mergulhando no acaso, no disforme.

Pensar não acontece a todo instante, mas é fruto de um acaso circunstancial. Pensar depende de um encontro, de uma violência, de forças desconhecidas que esvaziam nossas certezas. Nesse sentido, pensar é uma possibilidade, algo que pode ou não acontecer, dependendo da ocorrência e da força dos encontros (LEVY, 2011, p. 123).

Escrever pode ser, então, forçar o pensamento a pensar, num certo exerc ício de equilibrismo: escreve-se, como sugere Deleuze (2000), no limite do que não se sabe, nessa tênue linha, nesse entre. Forçando o pensamento a pensar mais. Se se escrevesse só o que se soubesse, partiríamos de uma racionalidade, e trata -se de uma outra coisa. Como acompanhar este pensar, esta escrita-rizoma, como dar-lhe voz?

Nosso intuito, no entanto, vale voltar a afirmar, é trazer “materialidade” para esses tempos muitos, com os quais dialogamos. Faremos isso, ao longo do trabalho, através das discussões trazidas em cada capítulo, nos quais afirmaremos temporalidades distintas. Faremos isso, também, através de uma escrita-outra que se insinua ao longo da dissertação sem sequer ser paginada, uma escrita-janela, uma escrita-transbordante, escrita-puída. Para isso, explicamos abaixo do que se trata.

De uma outra troca: o canto das sereias de Blanchot e como escrevinhar um tempo que se desfaz

Blanchot, em “O livro por vir” em um capítulo dedicado ao canto das sereias: em tudo não satisfatório, canhestro, claudicante, impalpável, no entanto: encantador. Algo como a natureza da narrativa, o ato narrativo, o ato de cantar: encantar e se desfazer.

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30 Não devemos esquecer que esse canto se destinava a navegadores, homens do risco e do movimento ousado, e era também ele uma navegação: era uma distância, e o que revelava era a possibilidade de percorrer essa distância, de fazer, do canto, o movimento em direção ao canto, e desse movimento, a expressão do maior desejo (BLANCHOT, 2005, p. 4).

Nesse movimento que se faz e já desfaz, desmancha, aparece e desaparece e encanta, segue-se narrando o mundo, seguimo-nos narrando nossas aventuras, desventuras, enfim, narrando-nos, inventando mundos e inventando tempos.

Há uma rachadura, uma fragmentação; nela, o trabalho se encaminha por outras vias, vias que aparecem como uma flor que brota no asfalto, configurando -se em uma outra linha neste percurso. As cartas, inseridas ao acaso, provocando brechas – janelas por onde se podem olhar outras paisagens.

A humanidade se narra, e através de suas narrativas se cria, se inventa, se produz e perpetua; logo se inscreve no tempo. A narrativa começa onde o romance não vai, mas para onde conduz, por suas recusas e sua rica negligência. A narrativa é, heróica e pretensiosa, o relato de um único episódio [...] (BLANCHOT, 2005, p. 7).

Sendo assim, um pouco de confusão ou mesmo bastante se faz necessário neste caminho repleto de percalços que é o ato de narrar. Percalços como o de Hércules e de Ulisses, mas também percalços tolos e menores, como o de um cachorro que precisa fazer xixi, mas não consegue, não pode fazer enquanto o dono não aparece; percalços menores que compõem cotidianos, que fiam nossa colcha de retalhos da vida.

[...] uma colcha de retalhos, feita de blocos de infância, de primaveras e outonos, de instantes que duram, de cantigas que nos rodam, fazem-nos girar, girar, até que giramos em torno de nós mesmos, flexionamo-nos [...] (FERNANDES, 2010, p. 109).

Fazem parte de nossas cartas, para uma costura outra: Zilá e Polímn ia/Jaia e Clio, que vão enviesando suas trocas como o canto das sereias de Blanchot. Cada uma com um tempo, em seu tempo, costurando um manto por vir, do patchwork que fazemos nesta pesquisa. Num diálogo incontínuo, louco, diferente.

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Entram elas, essas cartas feitas pelas personagens que criamos, ao longo do trabalho: como uma brecha, uma rachadura, uma chamada para um tempo outro. São feitas em blogs, através de trocas na rede9 entre amigas: Carla Jaia, como Polímnia; Maria Carolina, como Clio e Paula Smith, como Zilá. Cartas que falam de vidas. As cartas: veludos puídos. Puídos como a vida, que se esvai. Algo de impermanente, algo que desvia e desaparece, algo que já foi e ainda virá.

Ocorre que Proust, por uma confusão fascinante, extrai das singularidades do tempo próprio da narrativa, singularidades que penetrem sua vida, recursos que lhe permitem também salvar o tempo real. Há, em sua obra, uma intricação, talvez enganosa, mas maravilhosa, de todas as formas de tempo. Nunca sabemos, e muito rapidamente ele mesmo já não é capaz de saber, a qual tempo pertence o acontecimento que evoca, se aquilo acontece somente no tempo da narrativa ou se acontece para que chegue o momento da narrativa, a partir do qual o que aconteceu se torna realidade e verdade. Da mesma forma, falando do tempo e vivendo aquilo de que fala, e só podendo falar através daquele outro tempo que nele é fala, Proust mistura, numa mescla ora intencional, ora onírica, todas as possibilidades, todas as contradições, todas as maneiras pelas quais o tempo se torna tempo (BLANCHOT, 2005, p. 15).

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Polímnia, disponível no blog: http://www.bailedemascaras.blog.br/; Clio, disponível no blog:

http://verticalidadesviscerais.blogspot.com.br/; http://entre-flores.blogspot.com.br/; Zilá, no blog: http://hojeotempo.blogspot.com.br/

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CAPÍTULO II

UM TEMPO, UM COM(TEMPO)RÂNEO, UMA CIDADE

Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos (DELEUZE, 2008, p. 218).

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CAPÍTULO II

UM TEMPO, UM CON(TEMPO)RÂNEO, UMA CIDADE, ALGUMAS VIDAS

Das conversas em meio à cidade: fragmentos

Longe da perspectiva do pesquisador que faz perguntas certeiras atrás de resposta pré-formadas, nos rastros das perguntas já embrenhadas em suas respostas, nos pusemos a conversar com pessoas, munidas de uma curiosidade-inquietação: como nos movemos em meio às temporalidades forjadas na cidade? Cidade de Vitória, onde propomos essa pesquisa. Mas, como curiosidade-inquietação não é roteiro, nos pusemos a travar diálogos, muitos feitos e desfeitos, oito deles registrados e transcritos, que nos levaram a outras perguntas.

Perguntas-denúncias de uma lógica homogeneizadora do tempo no contemporâneo, contudo, nossos habitantes citadinos insistem em apontar fissuras. Das estátuas aos tempos inúteis, esses habitantes nos convocam a uma escuta outra do tempo, que nesse capítulo saltitarão como fragmentos.

Vozes que podem que podem disparar questionamentos, dúvidas, vírgulas, interstícios, mais uma vez: sístoles, diástoles... Vozes dos entrevistados, voz da pesquisadora, voz da orientadora, voz da ficção, vozes que se cruzam e tornam-se já uma outra coisa distinta do momento em que foram proferidas – vozes misturadas, como numa colcha de retalhos, retalhos que mostram partes de uma cidade, de um tempo e desses corpos que falam de cois as distintas, mas que em sua diferença e estranheza, se roçam. Como se sente a cidade? Como é vivido o tempo na cidade? Como pode vir a ser vivido? Como podemos incrustar, no meio deste movimento acelerado, vírgulas, reticências, pontos, pausas? Perguntas que servem de diretrizes, mas que não se tornam muralhas a impedir a variação de cada pensar e com o que ele se conecta.

Para isso foi necessário exercitar uma outra escuta do tempo, e forçar um outro modo de escrita. “Escrever nada tem a ver com significar, mas com

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34 agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir” (DELEUZE, 2009, p. 12).

Em Aracaju fiz um trabalho com as fateiras, mulheres que trabalham com fatos de boi, vísceras de bois, elas trabalham especificamente com isso. Então eu usei isso, porque a gente começou a perceber que esse trabalho estava em vias de se extinguir, porque as empresas que são credenciadas pelo estado para fornecer carne, não estavam mais entregando os fatos com a mesma qualidade, elas, ninguém quer mais trabalhar com fato, que é uma coisa que, hoje em dia já se criou uma sensibilidade que você tem nojo daquele tipo de mercadoria. A gente pegou o trabalho da fateira como uma trabalho de artesão mesmo, porque à medida que ela vai limpando uma língua de boi, vai tirando as camadas, ela vai tecendo narrativas sobre a vida, fazendo aconselhamentos com as pessoas, então, a gente está tendo ali na feira uma outra temporalidade, sabe? Tipo, as pessoas passavam lá mesmo sem comprar nada e ficavam meia hora, 40 minutos conversando com dona Meire e Duquinha. Aí a gente começou pegar essas coisas, como a narrativa engendra uma outra temporalidade, talvez um tempo mais lento, enfim.10 Um trabalho que se extingue, um narrar à vida em meio aos fortes cheiros e burburinhos de uma feira, um jeito outro de versar o trabalho e fatiá-lo em meio aos outros. Vísceras e vozes... vozes e vísceras que confundem -se, condensam-se... é o cheiro da víscera que, muitas vezes, embarga o tom da voz, é a textura da língua do boi, que, em alguns momentos, faz calar a língua humana. Composições e experimentações inventadas em meio à visceralidades, na cidade. Vozes entoadas que disparam uma vontade de conhecer Dona Meire e Duquinha, suas mãos e oralidades loquazes, vontade de conhecer seus interlocutores, não nomeados.

Quiçá, deixar o corpo misturar-se às sonoridades fatiadas pela língua. É, em meio essa vontade encarnada, que se encontra um morador de Aracaju, recém-chegado a Vitória. Nesse fragmento, indícios de uma temporalidade outra, sentidas pelo transeunte da feira.

Um outro habitante e um outro cenário se delineia:

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Em referência à pesquisa de Santos, J. J. G.; LOPES, K. J. M.; PROTÁZIO, M. M. Modos de dizer e a vida se fazendo numa feira livre em Aracaju. In: VIII Semana de Ciências Sociais, 2010, São Cristovão, SE. Anais da VIII Semana de Ciências Sociais, 2010.

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Esses dias estava falando com um amigo meu, íamos marcar uma reunião em Vitória e eu pedi que fizesse depois das 16h, pra evitar tráfego e calor. O tempo na cidade eu acho que ele está muito tumultuado e muito cansativo, porque as pessoas estão vivendo dentro de um horário chamado comercial e onde tudo funciona dentro do mesmo tempo. Então é um tempo concorrido, um tempo de filas, onde você está concorrendo com muita gente um pouco de espaço mesmo. Todo mundo tem hora para cumprir.

Todo mundo tem hora para cumprir, lema? Tempo concorrido, tempo comprimido? Como se forja uma relação tempo-cidade? Como se traceja temporalidades, composições de cidades? De que modo vivemos essa relaçã o com o tempo corrido, que, por vezes, apaga os vestígios de outras composições, em um processo de homogeneização acelerado?

A cidade vai ficando mais homogênea, esses marcos vão criando uma tipologia de cidade, né? E aí o que a gente vê é isso, a gente vê um tempo que é feito pra não sentir, um tempo cronos tão forte, tão intenso nas suas marcações e nos seus alarmes, parece que toda hora a gente tem vários alarmes que a gente tem que desligar. Porque tipo assim, é a hora de buscar o menino na escola, é a hora de ir pra aula, é a hora do almoço é a hora de fazer o exercício, é a hora... tipo, cadê a hora de viver alguma coisa de verdade, sabe? Cadê o tempo inútil? Cadê a inutilidade do tempo, a inutilidade sensível onde a gente pode viver uma cidade de outra forma? Onde a gente pode se relacionar com o outro de outra forma? Onde a gente pode se relacionar com a cidade de outra forma? Um tempo para não sentir, sobre demarcações de alarmes, cortes, fatias de tempo-uso, de tempo-útil. E um tempo outro? Convoca-nos a pensar em saltitantes perguntas esse habitante citadino.

Tempo, tempo, tempo, tempo11

O que se convenciona chamar de tempo parece não dar conta das mais incessantes demandas, por vezes, tornando-se fugaz e escorregadio. Só damos a ver, o que ressoa nas bocas com a seguinte frase, em coro: “Não

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36 tenho tempo”. Que tempo é este que não se tem, e que é tão afirmado em sua negatividade? Que tempo substanciado é este? Um tempo morto? Um tempo já perdido, antes mesmo de se perder? Vivemos, como prisioneiros do presente, ansiosos pelo futuro? Como, esse tempo do qual falamos, parece sempre estar tão distante de nós? Como se vive um tempo que nos é inerente, se insistimos em apartá-lo, colocando-o como se fosse transcendente às nossas vidas, como se precisasse ser alcançado, num esforço tremendo, por cada um de nós?

Visto e sentido como algo – o tempo coisificado, substancializado – a ser capturado/que nos captura. Nas duas modulações, lidamos como se o tempo fosse exterior a nós, um ser em si que só nos aprisiona. Talvez, até, como se fosse alguma divindade, maldição ou coisa parecida. Ora, tentando capturá -lo, já demonstramos nossa sensação de distanciamento, ora, capturados por ele, como se fôssemos tragados. Marca-se um entendimento: precisamos tê-lo, ou detê-lo. E não: já o temos, compomos em meio a ele. Não se trata de um eu e de um outro, ou de um fora e um dentro, trata-se de subjetividade-dobra:

A subjetividade pode ser pensada então como sendo formada por dobras. Mas as dobras são a própria rede, ou melhor, nós somos a própria rede, assim como o sistema econômico, político, educacional etc. também são. As dobras são formas que se produzem e conferem um sentido específico para o que chamamos desejo, trabalho, arte, religião, ciência etc. As dobras não são nem interiores e nem exteriores e sim formações provisórias de um entre que mistura finitos materiais de expressão em ilimitadas combinações (MACHADO, 1999, p. 25).

Se, constituídos nas dobras do fora, (em meio às quais nossa subjetividade se faz nessas diferentes curvaturas, rugosas ou lisas), nessa relação incessante com o fora, o que está compondo o próprio fora, senão o tempo? Mas de que fora é este que estamos falando? A um primeiro e apressado olhar, a palavra poderia apontar para a dedução quase óbvia e dualista: fora, seria o que não está dentro, o que não compõe. Mas, se tentarmos acompanhar Deleuze (2005) em suas aventuras conceituais, veremos que fora ganha outros e inesperados sentidos. Já não se trata de uma palavra que traz como significado principal a ideia de não pertencimento, a mudança de sentido se

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37 dá de forma sublime, trazendo à palavra contornos flexíveis; de fato, contornos.

Fora ganha a conotação de fronteira, mistura de forças, campo de forças.

O lado de fora não é um limite fixo, mas uma matéria móvel, animada de movimentos peristálticos, de pregas e de dobras que constituem um lado de dentro: nada além do lado de fora, mas exatamente o lado de dentro do lado de fora (DELEUZE, 2005, p.104).

E é nessa relação com esse fora, nessas dobraduras, que ele constitui dentros, nessas dobras do fora que se fazem as subjetividades. Podemos, então, pensar com tudo isso mais um elemento, ou destacá-lo? Estariam inscritos neste fora os jogos de força das mais variadas temporalidades?

Retomando as questões de captura do tempo, quando achamos que o tempo nos captura, existe nesse entendimento uma confusão. Num primeiro olhar, percebemos que mais uma vez colocamos o tempo como algo, e algo separado de nós, algo que não constitui nossa subjetividade, como se o fora fosse fora de nós. E a confusão continua, por tomarmos o tempo-coisificado, (ser em si), como capturador de nossa subjetividade; ao invés, de localizarmos as capturas como práticas em meio a qual nos constituímos como sujeitos, práticas que marcam modos de existir.

Logo, em uma lógica confusa em que vivemos na nossa relação com o tempo, poderíamos dizer que este tempo traduz um modo de vida. Sendo assim, existiria, tão somente, um tempo – este (?), e ele seria uma conjugação de repetições lineares com início, meio e fim – necessariamente ordenados – e ainda, tão espremidas, que já não cabem? Um tempo escravizado, a serviço de uma produtividade capitalista? Um montante de instantes seguidos um do outro que passam, invariavelmente, correndo, qual o coelho de Alice?12 E se o tempo traduz um modo de vida, que modo de vida é esse que estamos afirmando em nosso cotidiano?

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CARROL, L. Alice no país das maravilhas, disponível em

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38 O tempo, entendido com um único sentido: uma política do “já dado”, com uma regra, uma normatização, pode ser facilmente chamado de cronológico; mas acreditamos não se tratar disso, de fato. Não se trata de reafirmar o embate entre Aion e Cronos; o que nos faz voltar os olhos é já uma outra coisa: a superaceleração em que vivemos no cotidiano, e que tem contribuído para uma sensação/percepção distorcida da temporalidade - sentimos um único tempo e é ele que marca nossas vidas neste ritmo exaustivo. Com isso, percebemos que esta superaceleração dos corpos, da vida, tem constituído uma determinada subjetividade contemporânea. Sendo assim, tempo e subjetividade se coengendram, esculpindo-se um ao outro.

Delineia-se o tempo, nos atuais dias, como comprimido, esvaziado, destituído do indivíduo, apartado; cria-se, com esta lógica de viver, uma distorção da infinitude das temporalidades. E, por que não dizer, da potência da vida? Entendemos e afirmamos nessa pesquisa que não existe um tempo único, com um único sentido. Existem temporalidades diversas, rizomáticas, como fluxos, com diferentes velocidades e lentidões (MACHADO, 1999).

[...] é urgente que fiquemos alertas paras as repercussões políticas de tal tratamento do espaço-tempo, pois elas são 'aterradoras'. O campo da liberdade se contrai com a velocidade. E a liberdade precisa de um campo. Quando não houver mais campo, nossas vidas serão como um terminal, 'máquinas' com portas que abrem e fecham. Um labirinto para animais de laboratório (VIRILIO, 1982, p. 53).

E, demarcamos no contemporâneo um determinado regime de temporalidade, como aponta Virílio (1982), uma instauração de uma cronopolítica. Contudo, esse regime, não é O tempo, mas UM tempo. Falaremos em diversos momentos do tempo em que vivemos, do contemporâneo; nesse sentido, estamos falando de um dado regime de temporalidade, estamos

Das conversas em meio à cidade: fragmentos – outros

Eu, pessoalmente, não sinto o tempo como uma questão fora, tipo eu estou submetido a esse tempo louco da cidade, não isso. Mas eu acho que existe uma necessidade, que muitas vezes a gente esquece, que é de

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negociar com o que está sendo produzido. Que é aquela coisa que a gente esquece um pouco, de se colocar na relação e negociar essa relação. Eu tenho que negociar a minha posição que eu coloco na cidade. Acho que o tempo, a gente tem que fazer isso de vez em quando, e a gente não está muito disposto. A gente pensa que quer dinheiro e pra isso vai trabalhar como um louco, mas será que essa é a relação que eu quero criar? A gente fica a mercê desse tempo da cidade não pelo fato dele ser um tempo que nos subjuga, como um tirano, e agente se tornar escravizado por esse tempo, mas pelo fato da gente sair da possibilidade de negociação na relação com ele, na cidade. Uma negociação, proposição desse habitante citadino. Uma desconfiança em relação a esse tempo exteriorizado, a esse tempo tornado tirânico. Que relação é essa que eu quero criar? Pergunta-se, perguntamo-nos. Em um movimento caleidoscópico, um outro recoloca as formas, e ao mesmo tempo, perde-se:

O que eu acho interessante, também, é que a gente tem um tempo nosso, eu acho que nesta questão do tempo interno dá pra você sentir isso quando você tem que fazer uma tarefa e às vezes você tem mais dificuldade, menos dificuldade de fazer em certo tempo. Eu sinto que a dificuldade do tempo pessoal e do tempo externo fica nisso, aparece nesse ponto, tipo eu preciso fazer determinadas coisas, mas naquele dia eu não consigo fazer essas coisas porque eu não estou dando conta e isso acontece, tem dia que seu corpo não dá conta e aí você tem que criar suas estratégias para poder dar conta dessas coisas. No dia a dia, eu consigo ter um controle bom do tempo, mas a longo prazo eu me perco, não consigo programar nada para daqui a três meses. Esse a longo prazo, pra mim é muito difícil visualizar esse negócio. Sei lá do que vai ser daqui a 3 meses, não sei nem o que vai ser hoje. Você ainda se comprometer com um negócio daqui a 3 meses, pra mim é um troço muito complicado. Interioridades e exterioridades colocadas em correlação em um aspecto de um subjetivismo aterrador: não dar conta de uma tarefa em determinado tempo estabelecido a priori, em que não se consegue cumprir. Emaranhado de relações coisificadas, pré-programadas, que escapam das mãos. Falas que ecoam: não se dar conta de fazer, de se programar, que se chocam com a afirmação: esquece-se de negociar, apaga-se essa dimensão da criação. No

Referências

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