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A singular concepção da propriedade de bem imóvel no direito inglês

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A singular concepção da propriedade de

bem imóvel no direito inglês

Gastão Rúbio de Sá Weyne Doutor em Direito pela USP

Livre-Docente em Engenharia pela Escola Politécnica da USP Pós-Doutorado pelo “University College London”

Professor da PUC-SP e da Faculdade de Medicina do ABC e-mail: gweyne@uol.com.br

Resumo

O direito inglês é significativamente diferente do direito aplicado pelos romanistas, principalmente quando se considera a aversão dos ingleses pela codificação das leis. Na Inglaterra, além disso, ninguém pode afirmar que, efetivamente, possui uma propriedade de um bem imóvel, mas sim, considerando-se que as terras pertencem à Coroa, as pessoas têm interesses ou conjuntos de interesses sobre o bem imóvel. Por outro lado, a taxação progressiva e as políticas contra a acumulação do capital na Grã-Bretanha dificultam a aquisição de mais de um imóvel.

Palavras-chave: propriedade, bem imóvel, direito inglês, direito jurisprudencial, direito consuetudinário.

Abstract

There are expressive differences between English laws and continental rights, principally in respect to the aversion to codification of laws. In England, besides, nobody can say being landed owner, in reason of all lands belongs to British Crown and there are only estates on the lands. Besides, the progressive taxation, against capital accumulation, restrains the acquisition of more than one real property. .

Key-words: real property, real action, English right, common law, fee.

Introdução: A aversão do povo inglês às leis codificadas

Não se pode olvidar que a Inglaterra é o país da Europa em que as liberdades públicas foram mais cedo protegidas contra o despotismo dos soberanos. No entanto, segundo David (1997, p.76), não é ela o país da Declaração dos Direitos do Homem. Para ele,

a Inglaterra nunca conheceu tais Declarações. O inglês sente apenas ceticismo e até mesmo desconfiança por esses documentos. Seu espírito não aceita as declarações de princípios.

O povo inglês considera que as leis codificadas incomodam e se constituem em constante ameaça sobre o que deve ser feito, juntamente com as penas correspondentes para os que desobedecem às normas jurídicas. Por isso, resistem secularmente à existência de códigos. Com relação às leis maiores, conforme

David (1997, p. 75),

os ingleses consideram as Constituições escritas uma coisa ruim, na medida em que tendem a introduzir o rigor do direito numa matéria em que tudo deve ser resolvido por métodos flexíveis, na busca de uma harmonia. A vida política do povo britânico é governada por práticas, por “convenções”, em vez de sê-lo por regras: há o que se faz e o que não se faz, e admite-se que tanto uma coisa como outra podem mudar um dia em função de novas circunstâncias, num meio que não será mais o mesmo.

Observe-se que, tomando como base de comparação os sistemas romanistas, que primam pelo elevado número de leis para disciplinar o comportamento das pessoas da forma mais ampla possível, parece que não se pode deixar de dar razão aos ingleses com relação a algum incômodo que a normatividade das leis, quando

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codificadas, efetivamente trazem a todos, particularmente quando associadas às respectivas sanções.

Com relação aos advogados, embora se trate de uma afirmação jocosa e, portanto, feita em tom de ironia, é famosa e repetida na Inglaterra a afirmação de Shakespeare:

The first thing we do, let´s kill all the lawers” (em primeiro lugar temos que matar todos os advogados).

Isto mostra, ao contrário do que possa parecer, uma atitude carinhosa para com os “solicitors” e “barriters” ingleses e a aversão dos britânicos em serem “incomodados” pelas leis, principalmente se estas fossem codificadas, nelas constando sanções, o que até hoje não ocorre na Inglaterra.

Convém reiterar que o “solicitor”, que pode não ter curso universitário, é o profissional a quem as pessoas recorrem quando necessitam de assistência jurídica devido a uma disputa, ou por estar em complicações, ou na compra ou venda de imóveis, ou ainda, em questões de herança. Nos casos mais difíceis, o “solicitor” recorre a um “barrister” que, tornou-se membro de uma “Inn of Court”, uma entidade de advogados, e estudou direito para poder defender seus clientes perante um tribunal, o que é vedado aos “solicitors”.

O jurista do continente europeu (romanista) vê no direito os princípios, ou o próprio conceito da ordem social. Procura defini-lo, melhorá-lo, sob o ângulo destes conceitos, estabelece o princípio das liberdades políticas, o dos direitos sociais, o da inviolabilidade da propriedade e dos contratos, e abandona aos práticos o cuidado de por a funcionar ou de deixar desprovidos de sanção -estes dispositivos. O jurista inglês, herdeiro dos práticos, desconfia daquilo que ele considera, muito naturalmente, como fórmulas ocas. Para ele, não vale a afirmação de um direito ou de um princípio se, na prática, não existe um meio de aplicá-lo. Parece que o juiz inglês se notabilizou pelo abrandamento interpretativo que empresta aos textos legais, preterindo a idéia ao formalismo, preferindo a noção superior e concreta, à regra positiva afastada do realismo da questão em pauta, adotando o princípio alicerçado no direito justo e ético. No direito inglês, admitido como legitimado pela sociedade e vinculado à moral e aos costumes, as leis não são codificadas e o sistema jurídico é aberto, inacabado, essencialmente jurisprudencial e de base consuetudinária. Além disso, muitas vezes, “os juízes fazem as leis”, ou seja, têm uma liberdade muito maior que os juízes romanistas no que se refere à decidibilidade dos conflitos.

Uma outra singularidade que se pode observar na

Grã-Bretanha é o estado de espírito dos juristas ingleses. É necessário notar, do ponto de vista psicológico, a persistência na Inglaterra de um estado de espírito prático, que dá uma importância muito particular ao processo. Toda a atenção dos juristas ingleses se voltou, durante séculos, conforme (DAVID, 1998, p.321-322), para o processo e só lentamente se encaminha para as regras do direito substantivo.

Para a aplicação eficaz do direito, o pensamento reinante na democracia socialista dos ingleses prioriza a conscientização da população no que considera certo ou errado, acreditando na liberdade, na privacidade e na igualdade individuais, combatendo a exploração do homem pelo outro. Os ingleses consideram, portanto, a liberdade e a igualdade como essenciais à felicidade humana, resistem às mudanças rápidas e defendem que a revolução, custosa e moralmente errada, não é necessária, preferindo concretizar as transformações sociais através das mudanças democráticas do poder político, através do voto, sem derramamento de sangue.

Singularidades e tendências do direito inglês

O sistema inglês de direito, baseado na jurisprudência e nos costumes, é mais jurisprudencial que consuetudinário, conforme (LLOYD, 1998, p.307) e desenvolveu-se como uma compacta tradição profissional dentro de fechadas escolas de direito, cujos membros eram os repositórios de toda a aprendizagem jurídica que a profissão podia reunir. Desde os tempos mais antigos, os chamados juízes régios eram considerados as verdadeiras fontes e os expositores dos princípios. Suas sentenças, devidamente arquivadas, na decisão de ações judiciais, desfrutavam de uma auréola peculiar de venerabilidade e de autoridade.

Observe-se que os costumes, para o direito inglês, devem expressar exatamente as idéias morais e as necessidades econômicas da sociedade, e nunca são verdadeiramente populares, mas guiados pelos conhecedores do direito. Por outro lado, a jurisprudência permite ao juiz apreciar o sentido dos textos das leis, podendo interpretar até diferentemente do sentido inicial. Assim, ao mudar o texto da lei, o juiz estará criando um novo direito.

A lei comum inglesa (“common law”), embora possa rejeitar o costume local em benefício de um costume geral, ainda reserva espaço para o primeiro tipo mencionado. No entanto, a prova consuetudinária de um costume local está sujeita a severas barreiras, a fim de que o costume seja considerado legalmente efetivo. Uma dessas barreiras é provar que o costume local existe

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“desde tempos imemoriais”, o que, para os ingleses, é interpretado como existente desde o ano de 1189, conforme (LLOYD, 1998, p.310). Além disso, para que um costume seja válido, um tribunal deve considerá-lo razoável, reduzindo-se ao mínimo a aplicação de costumes locais.

No moderno direito inglês, porém, o fato de o tribunal reter o poder de declarar que qualquer costume é inválido por não ser razoável mostra, com bastante clareza, não só o papel subordinado do costume, mas também que, seja qual for a teoria, nenhum costume pode ser considerado imperativo em si mesmo, se o tribunal não lhe tiver aposto a sua chancela judicial.

Observe-se que a lei inglesa não se aplica somente no Reino Unido da Grã-Bretanha (Inglaterra propriamente dita, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte), mas nos países da Comunidade (“Commonwealth”), como o Canadá, Austrália, Nova Zelândia e outros países menores. É a raiz do Direito dos Estados Unidos da América do Norte e, apesar das diferenças culturais, do Paquistão e da Índia.

Os cidadãos ingleses têm grande orgulho em só admitir, no seu território, a justiça da Coroa, cujo princípio é a própria base da ordem pública. Um dos axiomas da Constituição é que “o Rei não é responsável” ou que “o Rei não erra” (“the King can do no wrong”). Por isso, se os seus súditos têm razões para se queixar dele, por verem lesados os seus interesses, a solução é dirigirem-se aos tribunais. Os Ministros são responsáveis por todos os seus atos. Em razão disso, ninguém pode alegar uma prerrogativa real (“plead royal prerogative”), para se justificar de um delito, e o próprio princípio da irresponsabilidade real subentende que o Rei nada pode ordenar que seja irregular. Na Inglaterra, por conseguinte, um funcionário não pode, como pode noutros países, invocar em sua defesa a desculpa de, no fundo, não passar de um individuo que age por conta do Estado (NOBLET, 1963, p. 255-256).

A Constituição Inglesa também é de natureza incomum, não escrita, sendo composta pela Carta Magna, pelas regras do “common law” e pelos costumes e convenções constitucionais. A Constituição é tão flexível que pode ser totalmente modificada pelo Parlamento, embora isto seja, na prática, quase impossível de acontecer. Veja-se que, segundo os ingleses, uma constituição escrita tenderia a introduzir o rigor do direito numa matéria em que tudo poderia ser resolvido por métodos flexíveis, na busca de uma posição de equilíbrio. Admite-se, portanto, que as regras podem mudar em função de novas circunstâncias, num meio que não será mais o mesmo. A codificação da Constituição, assim, é

rejeitada, ocorrendo o mesmo no nível infraconstitucional, sendo comum falar-se da aversão dos britânicos em serem “incomodados” pelas leis, se estas fossem codificadas, nelas constando sanções.

Vale observar que o legislador inglês não tem a tradição do legislador do continente europeu e quase desconhece o modo de formulação das regras de direito que postulem um princípio geral. Além disso, é verdade que o jurista inglês continua a ter alguma dificuldade em se habituar à técnica das regras de direito estabelecidas pelo legislador. As leis inglesas se revestem de um caráter mais casuístico que as de outros países.

No direito inglês não se cogita de estabelecer diferenças entre o direito subjetivo e o direito objetivo. Observe-se que pode parecer que os direitos subjetivos representam o conjunto de poderes que os indivíduos têm em relação a outras pessoas (direitos pessoais) ou a coisas (direitos reais). Ora, neste caso, predominaria de forma absoluta o reino da vontade. Haverá casos, no entanto que, na ausência da vontade, poderá haver uma ordem legal para que se faça valer o que foi expresso pela vontade de uma ou mais partes. Desta forma, embora o direito objetivo (direito que se impõe, ligado às sanções) e o direito subjetivo sejam sistemas separados, são a face de uma mesma moeda e, na concepção dos ingleses, correspondem a um mesmo sistema de direitos.

Tradicionalmente, o interesse dos juristas do continente europeu, usualmente romanistas, volta-se para as regras substanciais do seu direito (“substantive law”). O processo não é tão importante para eles, assim como tudo o que diz respeito às provas ou à execução das decisões de justiça (“adjective law”). Com um caráter distinto, o direito inglês não é um direito de universidades nem um direito de princípios; é um direito de processualistas e de práticos. O grande jurista na Inglaterra é o juiz, saído das fileiras dos práticos, não é o professor da universidade. Somente uma minoria de juristas, outrora, estudou nas universidades, e nenhum dos grandes juízes do século XIX possuía título universitário. Os juristas, em sua maioria, eram formados unicamente pela prática, escutando as lições dos juízes e participando no trabalho dos advogados. Estudar e conhecer os princípios não teria sido para eles uma grande ajuda.

Considerando-se que a sociedade moderna exige mais flexibilidade do direito em razão da aceleração do progresso, criou-se, na Inglaterra, a técnica das distinções, através da qual o jurista inglês apercebe-se das possibilidades de aplicação de uma determinada lei e também dos limites de seu emprego. Pode constatar

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que não existem regras rigorosas para a interpretação da lei, devendo ser desenvolvida a sensibilidade para saber em que medida se pode recorrer, com alguma probabilidade de sucesso, a esta ou àquela regra jurídica.

Conforme (JÁUREGUI, 1990, p.11),

o juiz britânico é considerado como altamente prestigiado e, na realidade, é um grande fazedor de leis (“judge made law”), valendo-se das diferentes fontes do direito inglês. Os juízes são nomeados pela Coroa, a conselho do Primeiro Ministro e do Lorde Chanceler. É comum dizer-se que existem na Inglaterra “bons juízes”, dispostos a admitir facilmente novas distinções e a lançar as bases de novos desenvolvimentos; outros - a maioria - são mais reservados, dotados de um espírito mais conservador, e estes estão prontos para limitar as ousadias dos seus colegas mais progressistas.

Outra particularidade do direito inglês ocorre no instituto dos direitos adquiridos, que corresponde a uma força oposta à retroatividade da lei, que, na Inglaterra, não é considerada injusta, sempre admitida quando o interesse público estiver sofrendo algum prejuízo ou quando a lei for considerada um erro passível de ser repudiado. No parecer do juiz inglês Phillips Willes, citado por (ALLEN, 1990, p.674),

embora se considere a inoportunidade da legislação retroativa, esta não pode ser considerada necessariamente injusta. Haverá ocasiões e circunstâncias relacionadas com a segurança do Estado, ou inclusive, com a conduta individual dos súditos, quando a justa solução das leis antigas, criadas para situações ordinárias e exigências usuais da sociedade, não pode mais ser aplicada por falta de previsão da lei, e nas situações em que a aplicação do direito vigente em seu tempo, origine inconvenientes públicos e erros práticos.

Verifica-se nesta assertiva, inicialmente que, quando está em jogo a segurança do Estado, a retroatividade da lei aplica-se de forma cristalina. Por outro lado, nos casos que se referem à conduta dos cidadãos, se a lei antiga não previu a existência de algum fato jurídico atualmente presente ou se, no momento atual, a lei antiga acarreta “inconvenientes públicos e erros práticos”, o instituto a ser aplicado é o mesmo do caso anterior, ou seja, a retroatividade da lei. A retroatividade da lei no direito inglês, portanto, é a regra e não a exceção, embora sejam reconhecidos os inconvenientes que resultam deste procedimento.

Existem correntes de pesquisadores do direito,

conforme (WEYNE, 2005, p. 49), que

admitem que a “common law” na Inglaterra pode ter chegado ao fim do caminho, necessitando ser encarado sob novas dimensões. Admitem esses pensadores que o sistema será destruído, se não forem enfrentados, com êxito, os desafios sociais, políticos e econômicos do mundo contemporâneo. Observe-se que o “common law” é um sistema independente, pois é criado e cuidado pelos juízes, não devendo nada na sua origem ao Parlamento, pois é um direito consuetudinário.

O sistema jurídico inglês é resistente à mudança, encapsulado no processo forense, guardado zelosamente pelos professores e pelos profissionais da área. Segundo (SCARMAN, 1978, p. 41-88),

o sistema da “common law” tem muitos desafios a enfrentar, entre os quais, os seguintes: a) o desafio proveniente do exterior, principalmente o movimento internacional para assegurar os direitos humanos, e a criação da União Européia; b) o desafio social, como a vida da família e a previdência social; c) o desafio do meio ambiente; d) o desafio industrial, e e) o desafio regional.

Observe-se que o Estado contemporâneo apresenta-se como um desafio para o “common law”. A industrialização crescente, a institucionalização do capitalismo e o crescimento vertiginoso do Estado, são fatores indicativos de que o direito inglês poderá enfrentar problemas de caráter administrativo, basicamente, em duas frentes distintas. A primeira delas é a defesa do indivíduo perante o Estado e a segunda é o crescimento do socialismo inglês, com a nova noção de “welfare state”, desenvolvida pelo Partido Trabalhista, no início do século. O “walfare state”, ou estado do bem-estar social, requer contínuo aperfeiçoamento e tem como objetivo que ninguém fique abaixo de um padrão decente de vida, e que todos possam receber certas proteções contra acidentes e a má sorte como, por exemplo, seguro-desemprego e assistência médica.

Por outro lado, a atividade parlamentar de reformulação da organização judiciária, é outro desafio para o direito inglês, considerando-se a importância do caráter funcional do Estado, baseado na atividade precípua de aplicar o Direito.

Observa (SÈROUSSI, 2001, p. 14) que

o direito continental não está tão longe assim da “common law”. A rivalidade histórica das duas famílias jurídicas dá aqui e ali lugar, segundo ele, a aproximações ou a espaços de complementaridade (extensão de

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conceitos, harmonização dos textos de leis, comparação de soluções jurisprudenciais e de processos, trocas de juristas, etc). Continua, afirmando que “falta saber se as forças convergentes dos dois sistemas de direito triunfarão sobre as desconfianças, provenientes da ignorância mútua. O direito europeu é, na matéria, um excelente laboratório de observação e de mestiçagem.

A propriedade no direito inglês

Uma retrospectiva histórica mostra que a propriedade constitui-se numa das primeiras noções jurídicas que efetivamente se consolidou desde os tempos em que as normas religiosas confundiam-se com as regras de direito. Desta forma, conforme (WEYNE, 2005, p 71),

primitivamente, a idéia dominical de propriedade, principalmente de bens imóveis, estava associada, de um lado, ao poder econômico e, de outro, a uma concepção religiosa, mística, vinculada a sentimentos individualistas que moldaram a consciência jurídica dos povos ocidentais.

A propriedade, para os ingleses, tem profundas raízes históricas sendo significativamente vinculada às idéias do feudalismo. Na Idade Média, o direito comum inglês (“common law”) considerava o direito de propriedade como sacrossanto, sendo admitido tão inviolável como o direito à liberdade pessoal. Na atualidade, tal não mais acontece e há, entre outros exemplos, leis que permitem às autoridades públicas desapropriarem bens imóveis, indicando este fato que o direito inglês já não salvaguarda de forma absoluta o direito de propriedade. Outro procedimento atualmente usado pelo governo inglês para limitar o direito de propriedade, visando fins sociais, é a aplicação de taxação progressiva. Para a compra de um único imóvel residencial, conforme (PRITCHARD, 2003, p 188-189), aplica-se uma taxa relativamente baixa e taxas significativamente mais altas para a compra de outros imóveis, o que, em geral, inviabiliza novas aquisições. Isto indica que a propriedade para os ingleses, além das particularidades que serão abordadas neste trabalho, destina-se a fins sociais.

Observe-se que o direito das coisas, para os ingleses, parte do pressuposto de que a propriedade garantida por uma ação real (“real action”) não existe em relação aos imóveis. Este pressuposto é muito natural aos ingleses e aos homens da Idade Média. Excetuado, possivelmente o Rei, ninguém seria capaz de concentrar

em suas mãos a totalidade dos atributos de uma propriedade, que também correspondia, naquela época, à soberania, ou seja, ao domínio pleno. Conseqüentemente, esse princípio, por tradição, não é, no direito inglês como o é no direito continental (direito romanista), a admissão de que a propriedade plena e completa é um direito absoluto, ou seja, ilimitado. Uma abordagem histórica sobre as leis na Inglaterra, foi publicada em 1765, (BLACKSTONE, 1979).

Ressalte-se que, no direito romanista, o direito real (direito das coisas) é a relação jurídica que investe a pessoa (física ou jurídica) da posse, uso ou gozo de uma coisa corpórea ou incorpórea, que é a sua propriedade. Ainda no direito romanista, uma ação real é a ação sobre um direito real, ou seja, é uma ação protetora da propriedade em sua plenitude. No direito inglês, a “real action” refere-se somente a interesses sobre bens imóveis, não sobre a propriedade desses bens.

Para (DAVID, 1997, p. 98),

nunca se terá na Inglaterra a propriedade de uma terra. Ter-se-á, simplesmente, sobre uma terra, um certo interesse, ou um certo conjunto de interesses.

Esse interesse, ou esse grupo de interesses, foi denominado “estate”, um termo oriundo do regime feudal, quando os ingleses passaram a admitir que toda a terra, direta ou indiretamente, é proveniente do Rei. Observe-se que a idéia de interesse jurídico representada pelo “estate” impede que se possa admitir qualquer confusão entre o direito de propriedade e a finalidade da propriedade, ou seja, o direito e a finalidade da propriedade são a mesma coisa e são simplesmente “interesses”. O direito inglês, além disso, ignora a distinção entre direitos pessoais e direitos reais, pois ambos referem-se a interesses. Arrendatário e locatário, por exemplo, têm um “estate”, um interesse no bem arrendado ou alugado, não sendo necessário e nem útil definir a sua natureza jurídica. Considerando-se a noção de “estate” como uma substituição da noção de propriedade, nada parecerá mais natural na Inglaterra do que os desmembramentos da propriedade, que não serão vistos com o desfavor como ocorre no direito continental, cabendo ao direito criar obstáculos a certos abusos e, respeitadas essas reservas, qualquer combinação é válida e pode ser feita em matéria de “estates” na Inglaterra.

No feudalismo inglês, quando uma pessoa morria sem deixar testamento e sem ter sucessores legais, seus bens móveis passavam à Coroa, enquanto os bens imóveis passavam ao suserano. Atualmente, todos os bens, independente de sua natureza, passam à Coroa,

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nessas circunstâncias. A lei do direito de propriedade de 1922 completou as leis inglesas anteriores, abolindo as relações residuais do feudalismo. Como os serviços feudais vinculados às relações de propriedade desapareceram há muito tempo, o possuidor de um feudo simples é hoje, na prática, embora não haja uma teoria específica, o proprietário da terra.

A lei do direito de propriedade estabeleceu que as únicas formas de relação de propriedade legal da terra são os feudos simples absolutos com posse (domínio pleno) e o arrendamento real (JAMES, 1996, p. 351-407).

O conceito de um “fee” é básico para o entendimento do que seja uma propriedade real (“real property”). A palavra “fee” é derivada do Latim, feodum, que significa um feudo ou um estado feudal. Como usado na lei inglesa, o “fee” é um eterno interesse na propriedade. Isto, no entanto, parece enigmático, considerando-se que ninguém vive para sempre. A teoria do interesse eterno somente pode ser entendida, segundo (KEMPIN JR, 1990, p. 129), se forem consideradas as suas conseqüências.

Quem tem um “fee” pode vender sua terra e o comprador pode retê-la até a morte do vendedor. Neste caso, o comprador pode doar a terra a seus herdeiros ou dividindo a gleba em tantas vezes quantos forem os seus sucessivos herdeiros.

Segundo o mesmo autor (Kempin Jr.),

a idéia de absoluta e eterna propriedade da terra, não existe na Inglaterra, a menos que o sistema legal inglês venha a atingir a maturidade.

O termo “feudo simples” sobrevive desde a época medieval. A palavra feudo significa posse hereditária, isto é, que, ao falecer o possuidor da terra sem deixar testamento, essa posse passa a seus herdeiros. Desta forma, a posse vitalícia não era o mesmo que um feudo. Usava-se a palavra “simples” para distinguir entre a posse feudal simples e a posse feudal restrita, pela qual a propriedade total não passava aos herdeiros em geral, senão a uma parte deles que apareceria no instrumento pelo qual se criava essa restrição. Como já foi indicado, o titular moderno de um feudo simples, para todos os fins e efeitos, é proprietário da sua terra.

Por outro lado, a propriedade é um conceito que pode ser admitido como relativo ou absoluto. O proprietário tem maiores direitos sobre sua propriedade que qualquer outra pessoa, porém estes direitos sempre estão submetidos a certas restrições impostas pelo direito geral do lugar e momento onde se aplique. Anteriormente,

os direitos do proprietário eram quase absolutos e, segundo o dito popular, “a casa do inglês era seu castelo” e o morador podia fazer com ele o que quisesse.

Na criação de arrendamentos reais, a outra forma de relação de propriedade legal da terra na Inglaterra (além do feudo simples), para que esse arrendamento tenha um caráter de posse legal (“legal estate”) o direito deve ser criado através de escritura pública (contrato firmado) ou ter efeito na posse. Todos os tipos de arrendamentos informais, incluindo os aluguéis, produzem somente direitos eqüitativos entre o arrendador (“landlord”) e o arrendatário (“tenant”).

Analisando as peculiaridades do direito inglês no tocante ao conceito de propriedade, (DAVID, 1997, p. 95) observou que

o termo “property” não pode ser traduzido por propriedade em direito continental (fundamentado no Direito Romano). Fica uma pergunta que deve ser respondida, relativa à palavra usada pelos ingleses para exprimir a idéia de propriedade. O jurista continental ficará surpreso ao deparar, sobre esse ponto, no direito inglês, com uma resposta de que não existe tal palavra. Observe-se que a palavra “ownership” corresponde, na língua inglesa corrente, à nossa palavra propriedade, mas não é utilizada em matéria de “real property”. Uma pessoa pode muito bem ser proprietária de mercadoria, mas nunca é, em sentido estrito, proprietária de uma terra ou de uma casa, de acordo com o direito inglês. Essa observação é curiosa, especialmente num país que não é marxista, e o único país no qual a língua tem um verdadeiro verbo (“to own”) para exprimir a idéia de ser proprietário.

Considerações finais

O direito inglês é um direito essencialmente jurisprudencial e de base consuetudinário. No entanto, o uso da “common law” fez enfraquecer o direito consuetudinário da Inglaterra, existente nos costumes locais. Considere-se, além disso, que os princípios contidos na lei somente são plenamente reconhecidos pelos juristas ingleses e verdadeiramente integrados no sistema da “common law” quando são aplicados, reformulados e desenvolvidos pelas decisões da jurisprudência.

Os ingleses, perante as regras jurídicas dos países continentais, podem ficar naturalmente perturbados, pois estas a eles parecem, muitas vezes, ser princípios gerais, exprimindo aspirações morais ou estabelecendo um

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programa político, mais do que regras de direito. Este fato resulta, em parte, da própria natureza dos ingleses, habituados com formulações concisas e decisões em curto prazo, ao contrário dos povos latinos, familiarizados com a prolixidade e com a demora.

Na Inglaterra, ninguém pode afirmar que, efetivamente, possui uma propriedade, mas sim, considerando-se que as terras pertencem à Coroa, as pessoas têm interesses ou conjuntos de interesses sobre o bem imóvel. Em outras palavras, uma pessoa pode muito bem ser proprietária de mercadoria, mas nunca é, em sentido estrito, proprietária de uma terra ou de uma casa, de acordo com o direito inglês. Essa observação é curiosa, especialmente num país que não é marxista e o único país no qual a língua tem um verdadeiro verbo (“to own”) para exprimir a idéia de ser proprietário. A propriedade, portanto, é limitada e visa a fins sociais, é fruto do trabalho e não da acumulação do capital, levando-se em conta que a aquisição de mais de um imóvel é dificultada pela taxação progressiva.

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Recebido em 13 de novembro de 2006 e aprovado em 10 de maio de 2007.

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