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Desembargador no Rio Grande do Sul

DIREITO ALTERNATIVO TEORIA E PRÁTICA

5ª Edição

EDITORA LUMEN JÚRIS Rio de Janeiro

2004

Algumas Notas Preliminares

O presente trabalho está destinado, primariamente, a alcançar estudantes dos cursos de direito.

Vai, pois, a primeira nota:

A matéria aqui agitada visa fornecer alguns elementos para propiciar debate em nível da academia. Nesta ótica, não há pretensão (mesmo porque impossível) de estabelecer algo "definitivo" - tudo aqui é provisório!

O que se quer é provocar discussão sobre o que se logrou chamar de "DIREITO ALTERNATIVO".

Como tudo segue na direção do público estudantil, buscarei ser o mais didático que me for possível. A fala, até principalmente por (de) formação pessoal não será formal - a fuga do linguajar "empolado" é minha luta constante.

Assim, os "críticos" mais aguçados do que eventualmente tenho produzido queiram ter presente que tento ser mais claro do que o comum me acompanha.

Aliás, no que refere à didática é de lembrar que não tenho formação no magistério, Sempre recusei convites para lecionar (a não ser em alguns cursos de pós-graduação). Em verdade, não suporto (evidente que por deficiências pessoais) ser professor. A necessidade de explodir a vaidade pessoal não tem como local a cátedra (isso talvez seja desculpa para justificar a minha frágil formação teórica).

A realização seria poder, ao final de cada texto, gritar como o fez espetacularmente o grande Roberto Lyra Filho, no seu "Porque Estudar Direito Hoje?". (O Direito Achado na Rua, ed. Universidade de Brasília, 1987, p. 29):

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Amilton Bueno de Carvalho

"Desprezemos os compêndios de resumo flatulento e diarreia fedida, mas consultemos as fontes criativas que eles assimilam mal e expelem com mentalidade purgativa" (agora fujo dos "críticos" mais adocicados porque os palavrões não são meus, mas sim de precioso jurista, logo sou desculpado pelo destempero verbal).

Procurarei transformar este trabalho numa fala escrita, como se tudo não passasse de uma palestra informal, mesmo porque me sinto melhor na fala do que na escrita.

Segunda nota:

Com incrível frequência (basicamente em cursos e palestras), o público (seja de estudantes, seja de profissionais) tem apresentado dificuldade para compreender como se dá a aplicação prática dos pressupostos teóricos daquilo que se convencionou denominar "Direito Alternativo".

O questionamento é mais ou menos o seguinte: está razoável o que pretendem os "alternativos" - seus sonhos, sua luta - mas como se faz para atuar, dentro da linha "alternativa", perante o Judiciário? Quais são as possibilidades de "vitórias"?

A questão é séria porque vem à tona questão ética: como defender respostas "alternativas" (leia-se fora do usual predominante muitas vezes consagrado pela doutrina e jurisprudência), quando se advoga direito dos outros, ou seja, de clientes? A derrota no pleito judicial, porque se ambiciona além do que se tem tradicionalmente como "certo", se apresenta quase como inevitável...

Em relação ao Juiz que opta por trilhar caminhos diferentes, a situação, no plano pessoal, também não é cômoda (embora, é verdade, exija menos sofrimento: ele não tem "explicações" diretas a dar aos "clientes") porque sujeito ao crivo do órgão censor (Tribunal), muitas vezes agressivo, implacável, intolerante, gerando, em certos

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Direito Alternativo - Teoria e Prática

locais, velada (ou não) perseguição em momentos de promoção e remoção (a nossa história é recheada de exemplos onde a persegui ao se faz presente).

Todavia, este é um dos preços a se pagar por ser "diferente", por ousar criar (a criatividade encerra riscos; cômodo é seguir aquilo que os "donos" do saber determinam).

No que atine advogado, em um aspecto me parece menos sofrido. É que se devem postular soluções "alternativas" exatamente quando a resposta tradicional não satisfaz os anseios da parte. Ou seja, quando já se sabe que, pelo caminho "comum", a "derrota" é o previsível. Mas é da criatividade dos advogados, de sua luta constante, que, muitas vezes (apesar de derrotas iniciais), o direito se concretiza mais democraticamente.

Um exemplo pode ser esclarecedor. Todos sabemos que, não faz muito tempo, os concubinos não tinham direito algum: hipocritamente apenas a "família tradicional" era protegida pelo sistema.

Pois bem.

Em algum local, em algum momento histórico, alguém ousou postular em favor de concubino ao arrepio do que se tinha como "verdade". É possível que a inicial tenha sido indeferida por impossibilidade jurídica do pedido, com todos os risos e chacotas próprios daqueles que não logram perceber que "o novo sempre vem".

E o primeiro Juiz a deferir tal pedido? Pode-se imaginar a resposta dada pelo órgão censor...

Acontece que os pedidos vieram, as decisões começaram a surgir, tudo com tamanha intensidade, que o legislador (inclusive constitucional), se viu obrigado a trazer para o direito positivado a proteção àquelas que constituem "outras famílias" que não aquelas merecedoras do beneplácito da "Santa Madre Igreja".

Se possível fosse voltar ao passado e aqueles "rebeldes" não tivessem "ousado ousar", teríamos hoje o

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status constitucional atribuído aos companheiros? A resposta parece uma: tudo estaria como antes - a hipocrisia familiar tradicional permaneceria inalterada.

E nesta luta, em particular, não houve um vitorioso, mas sim, pelo empenho de muitos, pulverizando o novo, o direito foi vencedor, como patrimônio de todos é que se engrandeceu!

Todavia, daquela questão tão costumeiramente levantada (como se dá atuação prática?) emerge constatação não muito confortável.

É terrível a dificuldade em se trabalhar teoricamente. No momento da abstração tudo parece sem sentido. O operador jurídico necessita "ver" para compreender (a tônica é: por favor, deem-me um exemplo!). Daí a cópia (a repetição) ser presente (e com a massificação do computador chega-se ao limite "copiativo" insuportável: iniciais e sentenças de conteúdo desconexo, cansativo, acrítico, passam a ser algo” inevitável" no espaço forense). Pensar? Criar? Jamais, pois não somos treinados para tanto.

Roberto Gomes (Critica da Razão Tupiniquim, ed. Criar, 9-4. edição, p. 91), em sempre atual estudo, bem apanha a questão:

"Eis o convite que nos aterroriza e que nos põe nos limites de nossas certezas: pensar por conta própria. Contaram-me ou li (ou inventei) que segundo os chineses "pensar dói". Dói. É um risco a assumir. Exige colocar tudo em jogo. É conduzir-se aos limites a despeito da inconduzir-segurança. É neste momento que o chão nos falta - e preferimos a burra paz dos que não sabem. De fato, pensar dói. Mas é a única coisa que nos resta".

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Isso explica, talvez, a dificuldade que se tem para violar regras, ou seja, atuar contra a legalidade rasteira -aquela que é "visível", que "exemplifica", que está próxima, é "evidente" - quando ela, a legalidade, está em atrito com os princípios. É que estes têm um forte grau de abstração (exige pensar para descobrir seu conteúdo e para fazê-lo presente no mundo "visível"). Logo, geram insegurança, necessidade de pensar (e como dói) e criatividade, daí porque, por mais incrível que pareça, sacrificamos o princípio (que tudo informa) em benefício da norma (que deve concretas àquele) em nome do discurso hipócrita da segurança (que, levantado o véu, esconde o medo e a impossibilidade de enxergar um palmo diante do nariz).

É o que se dá mesmo quando o legislador deixa em aberto, possibilidades inúmeras. Aí, para deixar de "sofrer", fechamos o espaço da criação. Exemplo?

O art. 155, § 24, do Código Penal, privilegia o furto quando a coisa subtraída é de "pequeno valor". Parece que a legislação orienta no seguinte sentido: como não há valor fixo (mesmo porque impossível estabelecer o que é pequeno valor) a privilegiar, incumbe ao intérprete, ante a situação concreta, estabelecer quando se deve dar o benefício (qual o momento em que se vive? Quais são as partes em litígio? - para a casa bancária pouco valor tem um significado, para aposentado tem outro).

No entanto, fechamos a possibilidade que nos é dada: a jurisprudência pacificou - pequeno valor é o limite do salário mínimo. Agora nos desobrigamos do terrível ato de pensar, de criar. Tudo fica "seguro", porém gerador de terríveis injustiças (mas quem se preocupa com a justiça? Isso é coisa para "filósofos" e não para juristas, ou seja, para aqueles que pensam).

Então, na busca desesperada de se demonstrar que é viável colocar "em prática" os pressupostos da alternatividade, procurarei (e até reservo um capítulo para

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Amilton Bueno de Carvalho

tanto), expor decisões penais que demonstram ser possível aterrissar a teoria.

Terceira nota:

Este trabalho (repito: destinado ao aprendizado universitário) representa uma espécie de síntese, revisão e complementação de textos meus anteriores. Não há, pois, "novidade nova" nele. Acrescento, aqui e acolá, conhecimento adquirido na caminhada; alguns conceitos são revistos e atualizados; a análise jurisprudencial passa por outro crivo, porquanto as situações concretas que Bestam os precedentes são alteradas com incrível dinamicidade, fazendo com que o arcabouço principiológico - teórico, por consequência, também mereça releitura - aqui a vinculação teoria-práxis se faz presente de forma espetacular. Por vezes, a discussão se repete (e reflete) o que já produzi. É que o arcabouço teórico, em seu ponto central, continua o mesmo na maioria das vezes. O enriquecimento que a atuação produz, no mais, serve para confirmar o que anteriormente já foi publicizado.

Além de tudo (e por tudo), é de ficar claro que somos movidos por pré-conceitos (leia-se conceitos anteriores) que servem de instrumental para o olhar presente. Até ousaria dizer que não existo: eu sou o meu passado - livros que li, família donde vim, escolas que frequentei, amigos que me marcam, sofrimentos e alegrias, fazem com que exploda neste momento o cidadão Amilton.

Se possível fosse retirar um destes elementos da minha história, evidente que eu não seria este Amilton e provavelmente não estaria produzindo este texto.

Assim, trabalhos meus anteriores queira eu ou não, estão aqui presentes - gritando, agitando, acalentando, causando tremor e, às vezes, até certa vaidade e algum constrangimento.

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Direito Alternativo - Teoria e Prática

Estou, portanto, a continuar caminho já trilhado mas sem direção definida, eis porque estou me repetindo também.

Quarta nota:

Faz alguns anos, o precioso amigo Frei Sérgio Görgen, autêntico intelectual orgânico vinculado ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, que, além de morar com os que lutam pela reforma agrária, produziu inúmeros livros sobre a batalha desenvolvida por rurícolas em busca da cidadania plena (entre eles Uma Foice Longe da Terra, ed. Vozes, 1991, e O Massacre da Fazenda Santa Elmira, ed. Vozes, 1989), bem como tem sido presença marcante nos movimentos por eles travados (sofreu inúmeras agressões físicas e ameaças, participou, inclusive, de várias greves de fome), convidou-me para conversar sobre o Judiciário, com acampados.

Celebrado o debate, Sérgio, frente a inúmeros seus companheiros sem terra, disse-me que eles queriam saber quem eu era, de onde eu vinha, qual, pois, a minha história. Queriam saber, enfim, se o meu passado me autorizava a falar aquilo que falei e se possibilitava terem confiança em mim.

Contei parte da minha história para eles (é bem verdade que há uma seleção de acontecimentos na autobiografia, sempre em favor daquilo que nos parece interessante e que possa nos engrandecer).

O episódio, em particular, marcou-me tanto que o reproduzo aqui, e, com frequência, vem à memória: afinal de contas qual a razão da curiosidade sobre minha vida pregressa (aliás, a polícia, ao findar os inquéritos "pregressa o elemento")? Não é comum este tipo de indagação nos locais onde profiro palestras - aqui, apenas querem saber da minha profissão ou de um asséptico currículo.

Fiquei a imaginar quantas e quantas vezes as pessoas do povo são iludidas pelo discurso fácil daqueles que não

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têm uma vinculação histórica de luta pela real democratização. Estavam eles legitimados a desconfiar de mim, tanto que, anos depois, num congresso estadual em que participei de debate para "sem terras", um deles simplesmente disse que eu "falara tudo o que falara, tão-só porque era aquilo que eles queriam ouvir".

No campo do direito, os ditos doutrinadores discorrem sobre os mais diversos temas sem se identificar historicamente. Parece que desceram do céu e de um local insípido, sem passado, sem compromissos, sem futuro, e ensinam a "verdade" sobre o tema.

A capa da neutralidade os alcança de tal forma que o saber transmitido é, pretensamente, desconectado do local originário (do sujeito historicamente localizado). Na reprodução do saber se diz "o ilustre doutrinados definiu tal questão de tal maneira", mas jamais se diz, que o doutrinador vinculado à direita, à maçonaria, ao golpe de 64, ou à esquerda, às comunidades de base, afirmou tal assertiva. O que interessa, enfim, é o nome do "profeta" e não seus compromissos (estes são extraídos, se possível, pela elaboração intelectual do discurso e pelas consequências que dele se extrai).

Pois bem.

Para mim é absolutamente indispensável apresentar-me. É questão de honestidade. É preciso que o leitor saiba quem eu sou, de onde venho, que compromissos tenho.

E saiba também que deste local de fala (desta história) é que olho o direito. Meu olhar não é neutro, é comprometido, não creio em teoria que veja o direito como "puro" mas sim em teoria "suja" do saber, aquela vinculada às nossas contradições sociais e que possa dar respostas democráticas às questões levantadas. Socorro-me, vez mais, de Roberto Gomes (p. 34): "Cabe a propósito alertar que no meio não está a virtude, corno muitos pensam. No meio está o medíocre".

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Sou Juiz de Direito (hoje Desembargador), mas não Juiz de direita - embora a experiência tenha demonstrado que um e outro se reduzam ao mesmo. Meu compromisso vital é com a democratização do espaço jurídico.

E sou Juiz por duas razões básicas: porque sinto nojo (asco, revolta) da injustiça e porque sinto prazer indescritível ao julgar. Eis, no plano do racional, o que fez de mim julgador (Vandré dizia "deixo claro que a firmeza do meu canto vem da certeza que tenho de que o poder que cresce sobre a pobreza e faz dos fracos riqueza foi que me fez cantador").

Por outro lado, não sou teórico mas sim filho da luta. Não tenho formação convencional alguma além de ter cursado urna Faculdade de Direito do interior do Rio Grande do Sul e algumas cadeiras do curso de mestrado da Universidade Internacional da Andaluzia, na Espanha. O que sei, e o que produzo no campo do direito, nada mais é do que fruto da experiência coletada no exercício da advocacia por dez anos e da magistratura por mais de quinze. Da busca de respostas às questões que me são colocadas a julgamento é que vem minha produção, acrescida do socorro inevitável ao trabalho de pensadores que tenho como críticos (mais amigos do que "gurus").

Poderia até de me qualificar como contador de histórias judiciais: as partes colocam a questão no debate forense, reflito sobre a questão e decido, a seguir procuro democratizar tanto o debate quanto o ato decisório. Eis o que faço.

Assim, sou marcado por meu local de fala (repito: sou Juiz de Direito). O meu olhar sobre o fenômeno jurídico sempre é dirigido à resposta decisória. Este olhar, por certo, limita (e muito) a contribuição prático-teórica, porquanto não globalizada o quanto necessário.

Todavia, é daqui que posso dar alguma contribuição para a democratização esquerdizante do saber jurídico.

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Amilton Bueno de Carvalho

Aliás, é de todo importante que aquilo que se passa pelas "cabeças" dos Juízes venha ao debate - desnecessário lembrar que este agente tem poder decisório, ao ponto de ser legitimado a mandar pessoa ao cárcere, invadir residências, por exemplo. Queiramos ou não o Juiz tem alguma importância, daí porque o seu dito (ou seu não dito) merecer discussão séria - parcela do poder do Estado está em suas mãos!

Assim é que um Juiz de Direito, de esquerda, escreve este livro sobre Direito Alternativo, destinado a estudantes. Sonho que seja útil... 10

Capítulo II

Um Pouco da Parcial História

Há brilhante trabalho do magistrado catarinense Lédio Rosa de Andrade, "Introdução ao Direito Alternativo Brasileiro", que é indispensável a todos aqueles que pretendem compreender o fenômeno do Direito Alternativo. Não tenho dúvida em afirmar que é a obra mais completa até agora produzida sobre o tema.

Lédio discute tudo o que se produziu sobre Direito Alternativo no Brasil até o ano de 1996 (alcança inclusive referencial italiano do "Uso Alternativo do Direito" e da Magistratura Democrática espanhola). A leitura, no meu sentir, é obrigatória.

Ali há levantamento histórico do movimento. No entanto, a análise histórica que faço parte de outro referencial. Pretendo, aqui, mostrar como se deu a atuação dos Juízes Alternativos Gaúchos (momento especial do movimento do Direito Alternativo, pela importância que tiveram -e têm - na luta para a democratização do espaço jurídico). Acontece que a partir dos ataques sofridos por aqueles magistrados, bem como pela repercussão de seu labor, é que o movimento se estruturou nacionalmente. Daí porque penso que a "história" deles mereça algum destaque.

Em outro local (Direito Alternativo em Movimento, ed. Luam, 1997, p. 74) já referi que: "O movimento do Direito Alternativo teve, em seu alvorecer, estes Juízes como norte de atuação prática. O movimento alcança (ou foi alcançado) a práxis destes Juízes já em andamento. E, a partir da agressão que estes Juízes sofreram, em razão de sua atuação, por parte de setores da imprensa e de atores jurídicos contrários, é que o movimento do Direito

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Alternativo floresce. A história de um e a de outro são indissociáveis". Pois bem.

O número de Juízes no Rio Grande do Sul é pequeno (algo em torno de quinhentos). Em consequência, o número de "alternativos" também é reduzido - é de ficar claro que a identificação como "alternativos" não é precisa porque uns são mais comprometidos, outros são simpatizantes, ainda outros são aliados eventuais. Assim, a história individual dos integrantes (que vem a forjar a história do todo) assume real importância e não seria difícil, até, se fazer levantamento individualizado.

Por tal razão é que narro - no intuito de fornecer alguns dados que podem ser esclarecedores - como se deu a minha "revolução pessoal". É que desde o instante primeiro estive umbilicalmente vinculado ao movimento.

O leitor deverá desculpar eventual "bondade" que possa ter consigo mesmo - quando se fala de si próprio, muitas vezes somos vaidosos. Como todos os Juízes da época, vivia isolado. Havia uma máxima que imperava: "o Juiz é um homem só". A máxima era recebida como algo definitivo. De tanto repetir acreditávamos (acreditamos ainda?) que ela representava mesmo uma característica do exercício da função judicante: ser só (ou crer sê-lo) representava algo nobre. Em outro local denunciei qual o interesse que está por trás da máxima (Magistratura e Direito Alternativo, Ed. Luam, 4a ed. 1997, pp. 47-48):

"Mas sub-repticiamente isso quer dizer que o magistrado, ao ser só, deve ficar distanciado do povo, porque a massa popular é portadora de doença contagiosa, ou seja, próximo do povo o Juiz perceberá com clareza a angústia popular e ficará contaminado por ela. E perto do oprimido,

contagiado pelo seu sofrimento, evidente que tomará opção por ele. A solução encontrada é deixar o Juiz só, fora do mundo, distante dos conflitos sociais, para não se dar conta do que acontece na história. Um Juiz desse tipo será, evidentemente, um frio aplicador da lei. A quem ele servirá? Então o Juiz só é um homem inacessível, distante, frio ao ponto de o povo ter medo dele, o que é denunciado por Dallari, loc. cit., pp. 71-72.

O Juiz só é aquele do poeta Maiacowisky: 'O Equador estremece sob o som dos ferros. Sem pássaros, sem homens, o Peru está a zero. Somente, acocorados com rancor sob os livros. Ali jazem, deprimidos, os Juízes' ":

O labor era o tradicional: havia assumido em 1981 na Comarca de Panambi e, no ano seguinte, fora promovido para Guaporé. Era tempo de estabelecer uma espécie de personalidade judicante - que tipo de Juiz pretendia ser?

Começava surgir inquietação. Algumas vezes notava que a "legalidade" aplicada não atingia um ideal de justiça. A situação se repetia ao ponto de gerar conflito pessoal: afinal de contas ser Juiz é aplicar a lei pura e simplesmente?

A situação chegou ao limite máximo quando me vi frente a uma lide onde os valores "legalidade" e "justiça" eram agressivamente antagônicos.

Tudo ocorreu antes da Constituição de 1988 (estava em 1983). Em Guaporé, a municipalidade concedeu aumento salarial aos funcionários da ativa, em dois momentos, em percentual espetacularmente superiores aos concedidos aos aposentados.

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Os aposentados vieram a juízo buscando equiparação com os funcionários em atividade. E aposentados, na pequena Guaporé, não eram massa disforme, mas pessoas com "cara", que eu encontrava no dia-a-dia. Mais, inúmeros outros aposentados aguardavam a decisão judicial para ajuizar novas ações. Outros funcionários, embora adquirido o tempo necessário, não ousavam se aposentar com medo do futuro (e se a municipalidade continuar concedendo aumentos diferenciados como ficaria a vida deles?).

Acontece que a atuação do Município, no plano da legalidade, era exemplar: o sistema permitia a concessão de aumentos diferenciados. A resposta judicante só poderia ser uma de duas: ou ficaria com a legalidade destruindo a vida econômica dos aposentados ou superar-se-ia (leia-se: negar-superar-se-ia) a lei em favor dos "velhos". Aliás, é de registrar que a natureza da decisão judicial é sempre maniquéia: separa os "bons dos maus" - nela não há espaço para o diferente: "mocinhos" de um lado "bandidos" de outro!

Como então resolver a pendenga? O instrumental que o "homem só" recebera era um: obedecer à lei. Seguramente demorei mais de seis meses com o processo concluso para decidir (a decisão judicial muitas vezes impõe tempo de maturação, de preparação, de acomodação, daí porque a ânsia por "rapidez", imposta pelas partes, pode acarretar sentenças mal elaboradas, injustas - o debate sobre a "agilidade" processual deve ser temperado por outros valores, pois): consulta a bibliotecas, conversa com amigos, debate com psicanalista.

A decisão foi gestada em favor dos aposentados - um parto de seis meses!

No entanto, mais do que sentença foi momento de definição pessoal: "el ethos del juez debe estar orientado por la justicia a toda costa, aun la de la propia vida (G. Radbruch, E. Schmidt, H. Welzel, Derecho Injusto y Derecho

Direito Alternativo - Teoria e Prática

Nulo, Aguila, 1971, Madrid, p. 19). Mudei (claro que tudo não se deu bruscamente, mas num processo de esclarecimento, de acomodação, onde não há como isolar da forte atuação na política estudantil e em grupos de esquerda no fim dos anos sessenta e início dos setenta - presidência de Grêmio Estudantil, Diretório Central de Estudantes e militância na Ação Popular).

Houve recurso e a decisão foi a que esperava: o Tribunal deu provimento ao apelo, embora por maioria. O voto vencido incorporou integralmente a minha fundamentação. O voto vencedor repeliu, com a argumentação ainda hoje adotada: julgar contra a lei retira segurança do cidadão e gera ditadura do Judiciário. Mas dele emerge reconhecimento de que os aposentados tinham razão: veio o lamento de que os aposentados foram injustiçados!

Para mim o acórdão é rico no plano teórico e as teses antagônicas são defendidas honestamente: tudo foi enfrentado e não se constituiu, como seguidamente acontece, em ato de mero exercício de poder. Assim é que reproduzo integralmente a decisão do colegiado que foi publicada na Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, nº 110, pp. 413-421:

"Apelação Cível nº 584028930 - 4ª Câmara Cível

Revisão de proventos da aposentadoria. Não ofende direito adquirido a lei que concede aos inativos aumento em proporção inferior ao dado aos funcionários em atividade. Não pode o Juiz negar aplicação à lei, sob o pretexto de ser esta injusta. Sendo o estatuto dos Funcionários Públicos lei ordinária, suas disposições podem ser modificadas ou revogadas pela lei do aumento de vencimentos, que é de igual hierarquia. Sentença reformada. Voto vencido.

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Dr. Juiz de Direito da Comarca de Guaporé, apresentaste - Município de Guaporé, apelante - Celina Beatriz Bernardi Pezzutti e outros, apelados.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos. Acordam, em 4a Câmara Cível do Tribunal de Justiça, em dar provimento à apelação, vencido o Relator, de conformidade e pelos fundamentos constantes das inclusas notas taquigráficas que integram o presente acórdão. Custas na forma da lei. Participou do julgamento, além dos signatários, o Exmo. Sr. Des. Edson Alves de Souza.

Porto Alegre, 28 de novembro de 1984.

Oscar Gomes Nunes, Presidente e relator para o acórdão - Oswaldo Proença, Relator vencido.

RELATÓRIO

Des. Oswaldo Proença - Na Comarca de Guaporé, em 6/6/81, Calina Beatriz Bernardi Pezzuti e outros, ingressaram em juízo com uma ação ordinária contra o Município de Guaporé.

Os autores, funcionários aposentados da Prefeitura de Guaporé, sentiram-se prejudicados por leis municipais, que teriam trazido prejuízos econômicos a eles, suplicantes. Alegam os demandantes que, consideradas as datas em que foram aposentados, teriam direito a receber determinadas quantias, em razão da aposentadoria, mas que, leis municipais editadas algum tempo antes da propositura da ação, teriam reduzido em muito os valores que recebem do município, na qualidade de servidores aposentados.

Segundo os autores, amparada em tais leis, a municipalidade estaria violando direito líquido

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deles, suplicantes, que, conforme legislação vigente à época de suas aposentadorias, deveriam receber, na condição de aposentados, quantias superiores às que lhes paga o Município de Guaporé.

Com a inicial, os demandantes juntaram um exemplar do estatuto do Funcionário Público Municipal de Guaporé, e cópias da legislação do referido município, que têm ligação com os fatos alegados por eles, autores.

Curioso é o que se passou com o mandado de citação, datado de 5/6/81, foi cumprido no dia 8 do mesmo mês, entretanto, o Sr. Escrivão só o juntou aos autos em data de 8/5/81, isto é, um mês antes. A contestação foi recebida em juízo em 6/8/81 e, já após a assinatura, o contestante, possivelmente, anotou que teria contestado no prazo do art. 188 do CPC.

Na contestação, o Município de Guaporé alegou que os suplicantes seriam carecedores da ação e sustentou ter agido, com relação aos autores, ao amparo da lei, finalizando por pedir que a ação fosse julgada improcedente.

Ao contestar, a demandada juntou documentos, tais como cópias de jurisprudência da legislação municipal e de comprovantes de pagamento feitos a servidores municipais. Falaram os suplicantes sobre a contestação ainda em agosto de 1981.

Foi ouvido o Dr. Promotor já em outubro daquele ano, entendendo este que seria de facultar-se às partes a produção de provas.

A partir de outubro de 1981, o feito não chegou a ter um andamento efetivo, sucedendo-se os despachos, mas, sem verdadeiro progresso no andamento do feito, que só voltou a ser ativado em

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fins do ano de 1983, quando o Dr. Promotor de Justiça, Dr. Cláudio Barros Silva, lançou um parecer de dezessete laudas, primorosamente elaborado e enriquecido com preciosas citações doutrinárias, concluindo por manifestar-se pela procedência da ação.

Finalmente, em janeiro de 1984, o MM. Juiz de Direito prolatou sentença julgando procedente a ação, condenando a demandada a pagar, inclusive, as prestações atrasadas, corrigidas monetariamente, juros de mora de 6% a.a., e honorários de advogado, que arbitrou em 10% sobre o valor da condenação.

Inconformado, o Município de Guaporé recorreu e pediu provimento do apelo, para ser julgada improcedente a ação. Em longas contrarrazões os autores e apelados pediram a confirmação da sentença. Sobre a apelação, manifestou-se o MP, em erudito parecer, também da lavra do ilustrado Promotor, Dr. Cláudio Barros Silva.

Finalmente, nesta instância, o Dr. Procurador de Justiça foi pelo improvimento da apelação, acolhendo os fundamentos da manifestação de seu colega de primeiro grau. É o relatório.

VOTO.

Des. Oswaldo Proença - Sr. Presidente. Confirmo integralmente a ilustrada sentença do Colega, adotando, como razão de decidir, os fundamentos da mesma, que constam de fls. 200 a 206, inclusive, e que considero como parte integrante do meu voto: 'Não vinga o entendimento do réu, de que os autores carecem de ação, pois que presentes o interesse de obterem o provimento ambicionado, a legitimação para agir e o pedido juridicamente possível.

Direito Alternativo - Teoria e Prática

A situação fática, na ótica de todos, assim está posta: os autores aposentaram-se junto ao réu quando estava em vigor o art. 125 do Estatuto dos Funcionários Públicos, que outorgava aos inativos a revisão de seus proventos na mesma época e proporção do aumento dos vencimentos dos funcionários em atividade de igual situação funcional e receberam os benefícios da Lei no 969/75, que lhes assegurou a revisão de proventos, com base no padrão e classe correspondente, no grau mais elevado, porque prestaram vinte e cinco anos de serviço exclusivamente ao município (fl. 18, art. 35)'.

Posteriormente, foram editadas as leis no 1.067/79, que reavaliou cargos e concedeu aumentos, mas, excluiu os inativos (art. 13); no 1.092/80, que concedeu abono de emergência aos funcionários em atividade de 36% e de 15% aos inativos (2 a e 3a); e no 1.098/80, que concedeu aumento de 80% aos funcionários do quadro único de cargos de provimento efetivo, de 60% aos integrantes de cargos em comissão, e de 40% aos aposentados, em todos incorporado o abono previsto na Lei no 1.092 (arts. 1º e 3º)).

'Então, os autores tiveram, a partir da vigência das Leis nos 1.092 e 1.098, seus proventos revistos em proporção menor do que os aumentos concedidos aos em atividade.'

A questão é uma: neste contexto, pode o réu conceder aos autores revisão de seus proventos em percentual inferior ao outorgado aos funcionários em atividade?'

'Tenho que não, pois: a) Os autores estão abrigados pelo direito adquirido previsto no § 3° do art. 153 da CF'.

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'Certo é, porque inclusive confessado pelo réu, que os requerentes aposentaram-se sob a égide do art. 125 da Lei nº 877/73, que lhes assegurava o direito de ter suas revisões em igualdade às que fossem concedidas aos ativos de igual situação funcional. Ora, tal situação jurídica incorporou ao patrimônio dos autores de tal modo que a lei posterior não possa alterá-la, pois esta 'destina-se a reger situações atuais e futuras, não podendo alcançar uma situação pretérita, disciplinada por lei revogada. Dispõe-se de modo retroativo, ofende o princípio constitucional inserto no § 32, do art. 153 da CF' (R.E. nº 85.022, de 24/5/77, do STF)".

'Aliás, o Tribunal de Justiça gaúcho já decidiu que: 'Constitui direito adquirido a determinada soma, aquela que foi fixada na ocasião da jubilação e em conformidade com a lei então vigorante' (RJTJRGS, 52/231)'.

'O inesquecível Pontes põe fim à discussão ao lecionar que: 'O texto constitucional não exige a equiparação; exige a revisão, para que haja aumento aos inativos e não seja ilusório. Mas a lei ordinária pode adotar a equiparação, e a revisão há de se, então, na base da igualação de vencimentos, dando ensejo a direitos adquiridos aos aposentados e aos que ainda se vão aposentar' (Comentários à Constituição de 1967, ed. 2a, tomo III, p. 520').

'Interpretar-se diferente seria fraudar o direito dos autores que aposentaram com a garantia da equiparação prevista na lei da época, se contrária fosse, possivelmente permaneceriam em atividade, para que seus proventos tivessem majoração em índice superior'.

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'Assim, os proventos da inatividade devem regular-se pela lei vigente ao tempo da aposentação (Súmula no 359 do STF), na espécie o art. 125 do Estatuto do Funcionário Público Municipal de Guaporé, ensejador da equiparação dos proventos dos inativos aos vencimentos dos ativos de igual situação funcional'.

'b) - As Leis municipais nos 1.092 e 1.098/80 ofendem ao § 1º do art. 102 da CF'.

'Com a vênia de entendimentos contrários entre eles, Pontes, citado anteriormente, penso que o § 1º do art. 102 da Lei Maior criou a figura da equiparação, embora implicitamente'.

'A tônica da regra em pauta é a alteração do poder aquisitivo da moeda. Sem ela, sequer necessária se fazia a previsão legal. Ora, se a inflação é a mesma para os aposentados e para os em atividade, logo, os aumentos deverão ser iguais'. 'Em abono a tal exegese, vejam-se as lições de Hely Lopes Meirelles, Dir. Adm. Bras. ed. 79, p. 422, e de O. A. Bandeira de Meio, Princípios Gerais de Direito Administrativo, ed. 74, II, p. 447'.

'c) - As Leis municipais nos 1.092 e 1.098 são injustas'.

A vigorar leis deste tipo chegará o momento em que o aposentado estará recebendo proventos que não lhe permite sobreviver. O funcionário entrega à coletividade toda uma existência. Mantém um padrão de vida de acordo com seus vencimentos e aposenta-se com a mesma renda. Então, editam-se leis dando-lhe revisões inferiores aos da ativa (que já não acompanham o processo inflacionário). Nas revisões subsequentes, adotam-

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Amilton Buem) de Carvalho

se os mesmos critérios. Qual o destino do aposentado?' 'E não se argumenta que as necessidades do aposentado são menores, porque é na velhice que ele necessita de melhor apoio financeiro, pois é aí que surgem as doenças e a dificuldade maior em adaptar-se a situações novas e mais sofridas'.

'Nada, absolutamente nada, justifica tal discriminação ao aposentado. Então, não há dúvida: as Leis nos 1.092 e 1.098 são injustas (aliás, a ré reconhece isso na contestação, fls. 39 e 42)'.

'Razões várias de cunho psicológico levam o legislador (e, por extensão, a sociedade, porque ele representa a mentalidade e a vontade médias) a editar leis discriminando os aposentados (= velhos): a uma, porque há uma rejeição à velhice, que representa o fim, a morte, a destruição, tanto que se busca evitá-la através de plásticas ou de fantásticas drogas rejuvenescedoras; a duas, fruto de nossa sociedade capitalista, onde só pode consumir quem produz (o aposentado não produz, logo seu rendimento deve ser o mínimo), este raciocínio é o mesmo que discrimina o pobre, o desempregado e a mulher; a três, também emergente da sociedade doente em que vivemos, de que o velho não consome jeans, não vai a discotecas, não tem vaidade, não adquire carro do último tipo, então, para que lhe conceder bons proventos, se não há retorno do dinheiro ao patrão (isto é, circulação da moeda como querem os economistas)?; a quatro, porque não suportamos a possibilidade de ter uma velhice digna, com justos proventos (o inconsciente é este: como suportar uma boa aposentadoria depois de tudo que fiz ou

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Direito Alternativo - Teoria e Prática

do nada que dei?), então, prepara-se para si próprio uma aposentadoria sofrida e angustiante'.

'No entanto, o velho é uma preciosidade a ser preservada carinhosa e financeiramente. Nele estão acumuladas décadas de experiência, pois, 'na velhice darão ainda frutos, serão cheios de seiva e de verdor, para anunciar que o senhor é reto. Ele é minha rocha, e Nele não há injustiça' (Salmo 92, V. 14 e 15)'.

'Mas, se o legislador assim rejeita o aposentado, deve o Judiciário aplicar tal lei injusta e doente? O Judiciário deve legitimar o injusto?'

A discussão sobre o dever de aplicação ou não, pelo Juiz da lei injusta é antiga e, por certo, longe está de chegar ao fim'. 'Figuras brilhantes entendem que ao julgador é vedado deixar de aplicar a lei quando lhe parecer eivada de injustiças (o Juiz não pode substituir ao legislador). Assim entendem Mário Guimarães, O Juiz e a Função Jurisdicional, ed. 1a, p. 330, nº 196; Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, ed. 9a, p. 79, no 82; Limongi França, Enc. Saraiva do Direito, 48/455; Benjamin N. Cardozo, A Natureza do Processo e a Evolução do Direito, p. 223)'. 'No entanto, filio-me à corrente que entende que a lei injusta não deve ser aplicada. O Juiz não é um computador. Deve sentir a lei em todos os seus ângulos e, não encontrando motivo algum para que ela exista e vendo nela a injustiça cristalina, deve negá-la. Isso porque sequer deve ser considerado lei o que não for justo, mas sim, corrupção dela, como ensina Agostinho, citado por Thomaz de Aquino, "Na Suma Teológica', in Textos Clássicos de Filosofia do Direito, ed. 81, p. 21. É de

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se fazer justiça, apesar da lei (José Maria Rosa Tescheiner, Uniformização e Criação Judicial do Direito, Revista da AJURIS, 21/70)'.

'Estou, pois, com os chamados por Carlos Maximiliano, ob. cit. p. 81, da Corrente Revolucionária: 'O juiz não é um executor cego, e sim, um artista da aplicação do Direito', chegando quase a Kantarowicz, de que deve prevalecer o direito justo na falta da previsão legal ou contra a própria lei, aqui em casos últimos, em situações especialíssimas'. Assim, é de se estar com o magistrado gaúcho Sérgio Gischkow Pereira que, em dois momentos, faz coro com Luiz Fernando Coelho (Interpretação Jurídica e Aplicação do Direito, Revista da AJURIS, 27/186, e Relevância do Pensamento Teórico e Filosófico no Direito): 'Um exemplo do tradicional problema? Aí vai: A velha questão de como deve o magistrado conduzir-se em face da lei 'injusta' nos parece inteiramente superada, e pasma que autores eminentes ainda tenham dúvidas teoréticas sobre a sua solução; a nós se configura evidente que deve prevalecer a justiça, o que possibilita ao magistrado corrigir a lei ou declará-la inaplicável'.

'Essa correção, todavia, não implica prolação de uma sentença contra legem, pois, se a norma jurídica é portadora da valoração independente, importa descobri-la no contexto dos demais valores sociais, isto é, conduzir a norma de direito ao seu lugar no quadro geral das valorações; o que ã hermenêutica tradicional considera, portanto, uma decisão contra legem nada mais é do que a exclusão a que o Juiz procede das valorações

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estranhas que a norma possa constituir, porque contrárias aos princípios gerais do direito'.

'A lição de Couture é definitiva: 'Teu dever é lutar pelo direito Mas, no dia em que encontrares o direito em conflito com a justiça'.

'Aliás, o 'Alçada gaúcho' já decidiu contra legem, entendendo que 'a aplicação da lei não se pode divorciar da realidade social e deve obedecer sempre ao princípio da equidade' (Julgados do TARGS, 45/149)'.

Então, como não bastassem as razões já vistas sob as letras a e b retro, ainda aqui não há como aplicar-se os artigos das Leis nos 1.092 e 1.098/80, que concederam revisões aos aposentados em menor proporção do que aos ativos, porquanto injustos'.

A ação tem, pois, o destino da procedência nos seguintes termos: deve a municipalidade corrigir o proventos dos autores nos mesmos percentuais concedidos aos funcionários em atividade de igual situação funcional, quando da aplicação das Leis nos 1.092/80 e 1.098/80, as únicas que lhes deram percentuais inferiores'. Confirmo integralmente, negando provimento ao apelo do Município de Guaporé'. Des. Oscar Gomes Mines - No Município de Guaporé, pelas Leis nos 1.092 e 1.098, houve reclassificação dos funcionários municipais e também a fixação de novos vencimentos.

A contrário do que vinha ocorrendo anteriormente, nessa lei de aumento do funcionalismo público municipal, não houve igualdade de tratamento entre os funcionários em atividade e os inativos. Aos inativos, a lei deu um

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Amilton Bueno de Carvalho

tratamento diverso, conferindo um aumento menor, na base de 80% para os em atividade e cerca de 40% para os inativos.

Os autores invocam a proteção da Lei municipal nº 877 - Estatuto dos Funcionários Públicos do Município - art. 125, que assegura aos inativos, quando do aumento de vencimentos, tratamento igual aos dos funcionários em atividade.

A CE no art. 98, parágrafo único veda vinculação ou equiparação de qualquer natureza para efeito de remuneração do pessoal do serviço público. Tenho por tranquilo que essa vedação não constitui obstáculo algum para a administração conferir tratamento paritário a ativos e inativos quando revisa vencimentos. O que a Constituição veda é disposição geral e permanente, que vincule o Poder Executivo, quando concede aumento a funcionários em atividade, a dar igual aumento aos funcionários que se encontram na inatividade. Em razão disso, aliás, o STF declarou a inconstitucionalidade de disposição inserida em constituições estaduais, assegurando aos inativos vencimentos iguais aos ativos quando da revisão da remuneração do pessoal do serviço público.

No caso, o direito resultaria do Estatuto do Funcionalismo Público Municipal, que no art. 125 atribui ao inativo vencimento igual ao que for concedido ao ativo de igual situação funcional. Mas o Estatuto é uma lei ordinária de hierarquia igual à das Leis nos 1.092 e 1.093, que concederam, respectivamente, abono de emergência e aumento de vencimentos aos funcionários públicos municipais, ativos e inativos, do Município de Guaporé. Então, essa lei nova, que não deu aos inativos um tratamento igual ao dispensado aos funcio-

Direito Alternativo - Teoria e Prática

nários em atividade, podia, evidentemente, assim dispor. Mas não há direito do inativo a ter aumento igual ao do ativo. A Constituição obriga tão-somente a revisão dos proventos da inatividade quando houver alteração ou revisão dos vencimentos dos funcionários em atividade; mas não estabelece que essa revisão se há de fazer no mesmo percentual. Ao contrário, veda qualquer equiparação. Então, a lei em que os autores se fundam, quanto a esse aspecto, que assegurava a igualdade, sendo lei de igual hierarquia da que fixou os vencimentos é de se considerar revogada, o que não obsta que em outro aumento, atendidas as forças do erário municipal, o Município de Guaporé conceda a todos os seus funcionários, ativos e inativos, aumento no mesmo percentual, ponha todos em igualdade de condições, respeitada a proibição do art. 102, § 3o.

A douta sentença recorrida - aliás, uma sentença muito trabalhada - não ignorou esses princípios, que estou agora relembrando; ao contrário até. O magistrado situou-se em outro plano, partindo do entendimento de que lei injusta não deve ser aplicada.

Se tivéssemos a graça de sermos perfeitos, se o Juiz fosse infalível, esta seria a melhor solução. Mas o Juiz é um homem falível como os outros e que está condicionado a um ordenamento jurídico. A injustiça da lei o magistrado, quando possível, contorna através da interpretação, interpretação que, muitas vezes, é participação na renovação do direito, que é progresso jurídico na adaptação da lei caduca a uma nova realidade social.

Todos os filósofos do Direito, e entre eles lembro Jean Cruet, ressaltam que o primeiro dever

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do Juiz é o respeito às normas do Direito consagrado. Não respeito ao sentido literal das normas do Direito positivo, dos Códigos, mas o respeito ao espírito, à razão da lei, numa interpretação que atende à realização dos fins sociais, a que a norma legal se dirige.

Agora, julgar contra o Direito escrito, com confessada afronta à lei parece-me que, ainda quando assim se proceda para evitar ou corrigir uma injustiça, implica comprometer todo o ordenamento jurídico e retirar toda a segurança do cidadão, porque no dia em que o Juiz puder ignorar a lei, para decidir sob inspiração puramente subjetiva, o arbítrio sufocará a Justiça. E a pior das ditaduras se estaria instaurando, a ditadura do Judiciário, que lida com o patrimônio, com a liberdade, com a honra e com a vida dos cidadãos.

Por isso, lamento discordar do eminente Relatar, lamentando também que o poder Executivo de Guaporé, certamente por motivos ponderáveis, não tenha dado aos inativos um tratamento mais justo, meu o voto é no sentido de dar provimento ao recurso, para julgar improcedente a ação. Des. Edson Alves de Souza - Sr. Presidente. Estou totalmente de acordo com as razões expostas por V. Exa., as quais, aliás, considero muito bem inspiradas e que não merecem nenhum acréscimo. Apenas me permito lembrar que a faculdade que tem o Juiz de buscar justiça, de buscar os fins sociais da lei, refere-se, segundo me parece, àqueles casos em que duas ou mais interpretações sejam igualmente razoáveis ou possíveis. Em tais circunstâncias, deve o Juiz procurar a que seja mais justa, a que melhor

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consulta os fins sociais da lei. Agora, no caso concreto, no caso 'sub judice' trata-se simplesmente de decidir de acordo com a lei ou contra a lei. Contra a lei decidiu o eminente magistrado e a favor da lei foi o voto lúcido de V. Exa., ao qual adiro.

Des. Osvaldo Proença. - Sr. Presidente. V. Exa. falou em necessidade de o Juiz decidir considerando sempre a lei, sob pena de, no decidir, se haver em total desajuste, em descordo, ou contra a lei, erigir-se até uma ditadura do Judiciário, que seria por demais perniciosa. Não contrario essa orientação de V. Exa. Mas, no caso dos autos, endosso a atitude do eminente Colega de primeiro grau, porque disse, no dia em que assumi o cargo deste Tribunal, que interessa ao julgador fazer justiça no caso concreto; é seu primeiro dever, sua primeira obrigação e seu primeiro compromisso. É o que entendo que o Colega de 1.a. Instância fez.

Mas, independente de considerações, de reparos que eu pudesse fazer, há outro aspecto doutrinário, que consta na sentença. Outro aspecto, que V. Exa. mencionou no seu ilustre, claro e douto voto, como de hábito, é que essa necessidade de interpretar a lei da maneira mais justa pode ser feita com base na própria lei. E acredito que possa ser feito na espécie de forma que se leia o § 1o do art. 102 da CP; de maneira que ele se inspire no restante das disposições constitucionais, inclusive as que falam na igualdade perante a lei.

Diz o § 1o-: 'Os proventos da inatividade serão revistos sempre que, por motivo de alteração do poder aquisitivo da moeda, se modificarem os

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Amilton Bueno de Carvalho

vencimentos dos funcionários em atividade'. Pondero o seguinte: se o aumento para os em atividade for de 100% e o reajuste para os inativos for de 10%, a injustiça será manifesta e iníqua a lei que estabelecer tal 'revisão' de proventos.

De forma que considero válida a minha posição e apenas me permito, em face de esses aspectos doutrinários que foram discutidos, dizer as razões do meu convencimento, pelas quais mantenho o meu voto, que é no sentido de confirmar a lúcida e ilustrada sentença do Dr. Amilton Bueno de Carvalho, mesmo que sua decisão não seja confirmada. É o meu voto, em aditamento".

Em 1984 fui promovido para Santa Maria. Cidade Universitária e ágil culturalmente. Ali duas pessoas foram importantes na consolidação da minha "personalidade" profissional. No plano filosófico, André Baggio (filósofo e teólogo) teve considerável influência - sua agudizada crítica da realidade ampliou meu horizonte de visão: a parceria foi forte tanto que produzimos texto juntos: "Jusnaturalismo de Caminhada: Uma visão ético-utópica da lei", publicado no meu Magistratura e Direito Alternativo. No plano da técnica do direito, o Juiz (hoje aposentado) e professor Pedrinho Bortuluzzi foi esteio superados de inúmeras dúvidas. Com ele aprendi que a técnica pode fornecer elementos destruidores de injustiças, com a menor agressão possível à sensibilidade positivista.

Possivelmente, este "naco" da minha história tenha se repetido em outros locais e em outros momentos com parceiros alternativos. A angústia antecedente e a opção consequente deve ter alcançado outros colegas. Mas a atuação se dava isolada - um tanto "perdidos" cami- 30

Direito Alternativo - Teoria e Prática

nhávamos em nosso círculo de atuação até que o inevitável aconteceu: encontramos-nos!

A Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, com avanços e recuos, tem sido historicamente muito atuante. Ainda nos oitenta, realizava muitos encontros, entre Juízes, tanto em nível estadual, quanto regional. No entanto, a tônica era a seguinte: tudo se resumia em debates técnicos (no sentido mais "rasteiro") e em lutas mais corporativistas (há um dito que parece ser verdadeiro: os Juízes se unem quando discutem interesses pessoais).

Outrossim, com alguma frequência eram realizadas Assembleias Gerais - também no sentido técnico ou corporativista. Esses encontros permitiam, com efeito paralelo, ou até "perverso", que os Juízes se conhecessem melhor. Isso serviu, no plano pessoal, para descobrir que outros colegas partilhavam da mesma angústia. Mas continuávamos "sós" (é de relembrar que vivíamos, ainda, em tempos não-democráticos), apesar de alguma troca de experiência.

Havia medo (não sei se real ou imaginário), tanto que não tinha coragem de publicizar que era socialista (veja-se que apenas neste livro é que narro minha participação na Ação Popular - qual a razão de não ter noticiado antes? Sinceramente não sei ainda hoje. Tanto que agora, no momento que escrevo este texto, suspendi a escrita e fui pensar calmamente se devia ou não dizer que fui - e sou, embora em outro nível - militante de esquerda).

Mas um fato foi importante para assumir nova postura, representando a ruptura com o "medo": numa assembleia geral, o então Juiz de primeiro grau (hoje Desembargador aposentado), Sérgio Gischkow Pereira, uma espécie de "guru" no momento da nossa "infância" como Juízes (como Sérgio é brilhante!), em meio a discussão, declarou que era socialista: foi assustador e provocou alivio: era possível ser Juiz e de esquerda!

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Começou-se a pensar - e aqui a participação do então Juiz, hoje também Desembargador aposentado, Márcio Puggina, foi definitiva - na hipótese da criação de grupo de estudos no qual participariam Juízes "inquietos", nesta altura, embora em número muito reduzido, já ligados por profundos laços afetivos.

Veio o momento pré-constituinte. A Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul realizou assembleias gerais, destinadas à coleta de sugestões à nova Constituição, que representariam o pensamento dos Juízes Gaúchos, a serem debatidas em Congresso Nacional da Associação Brasileira de Magistrados, que se realizaria no Recife e se constituiria naquilo que os Juízes defenderiam frente ao Poder Constituinte.

Em tais debates estes Juízes, ainda sem maior organicidade, lograram propor reformas tidas como avançadas, tais como reforma agrária e urbana, limitação dos ganhos tanto na esfera pública como na iniciativa privada: típicas opções então denominadas de socialistas. Na atuação prática, o grau de radicalização, de conscientização e de organicidade aumentava.

No Recife ocorreu forte vinculação com Magistrados Trabalhistas (que por sua origem eram ideologicamente mais comprometidos), também do Rio Grande do Sul, que tinham idênticas preocupações com a real função (diria: com outro modelo) da magistratura.

A base material estava consolidada. Agora o caminho era organizar-se e estabelecer bases teóricas que permitissem um atuar comprometido com a possibilidade democratizante.

Criou-se, então, um grupo de estudos, com eleição de uma espécie de coordenador. Ficou resolvido que uma vez por mês haveria encontro para debate de tema ou texto previamente definido.

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Por receio (real ou imaginário, sem se ter claramente qual razão - talvez de fantasiosa (ou não) perseguição funcional) as reuniões eram celebradas quase que às escondidas (invariavelmente na sede campestre da Ajuris).

Os participantes eram escolhidos com alguma severidade, sempre mediante proposta de um e com votação. Duas condições, no entanto, eram exigidas: ser socialista e ter desempenho profissional (no plano da ética e da produção) satisfatório, tanto que houve recusa de colegas que manifestaram interesse em participar do grupo.

Por outro lado, embora no começo ocorresse participação de Pretores (na época julgadores não-vitalícios), com o passar do tempo (e pela radicalização na atividade política de classe) deixaram de participar, tudo em nome de sua própria proteção - eram menos imunes a sofrer eventual perseguição exatamente porque sem a tríplice garantia que alcança a magistratura.

Um dos encontros, porém, foi marcante. Como regra, algum pensador de "fora" era convidado para agitar o debate. Resolveu-se, então, algo mais ousado: trazer a Porto Alegre o pensador Roberto Aguiar, na época professor na Universidade Federal do Pará. Roberto veio e ficou conosco por três dias, realizando uma espécie de curso intensivo. A presença de Roberto, com indicação de bibliografia e transmissão de agudizada visão crítica, foi inestimável. Poder-se-ia dividir a vida do Grupo em dois momentos: antes e depois de Roberto. Todos somos gratos e afetivamente ligados a ele até hoje.

A consolidação do grupo carregou inúmeros efeitos:

(a) - a atividade judicante restou mais ousada e muito mais criativa, tudo porque o instrumental teórico ficou mais rico; (b) - os integrantes começaram a produzir textos, ditos de vanguarda, publicados na Revista da Ajuris;

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Amilton Bueno de Carvalho

(c) - aqueles que eram professores alteravam signifi-cativamente o conteúdo de suas aulas;

(d) - alcançamos espaço na Escola Superior da Magistratura e alguns desenvolveram a capacidade de palestrante, recebendo convites com incrível frequência para transmitir suas experiências nas universidades;

(e) - a atuação politizada fez com que tivéssemos participação decisiva em todas as greves da magistratura do Rio Grande do Sul.

A forma da comunicação se consolidou através da constante troca de correspondência, com a distribuição de textos que se entendesse interessantes e de sentenças que fossem de "vanguarda".

No decorrer da história, agora já identificados na comunidade jurídica do Rio Grande do Sul (era impossível viver "às escondidas" mesmo porque o destino do labor era, ao fim e ao cabo, a publicização dos atos decisórios), houve sério preconceito, com alguns ataques, em relação aos agora já conhecidos como "Juízes Orgânicos" (em razão de texto que produzi: "Jurista Orgânico: uma contribuição", também publicado no meu "Magistratura e Direito Alternativo").

Não tardou e a notícia da existência dos "orgânicos" alcançou o resto do país. Pelas mãos dos estudantes, iniciaram convites para palestras em Universidades de outros Estados e nos Encontros Nacionais de Estudantes de Direito. A ligação com intelectuais - no começo interessados em "pensar" o fenômeno que se dava no sul do país, pois era (e é), no mínimo, estranho a existência de Juízes socialistas que atuavam organizadamente - frutificou com troca de experiências. Um momento neste contexto foi, também, marcante. A Universidade de São Paulo, através da cadeira de

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Direito Alternativo - Teoria e Prática

Sociologia do Direito, com apoio da Fundação Friedrich Naumann, no ano de 1990, realizou ciclo de palestras sobre o Poder Judiciário numa sociedade em transformação. Um dos temas foi "O Modelo Liberal de Justiça numa Sociedade em Transformação". O coordenador do ciclo, professor José Eduardo Faria, pretendendo mostrar a visão de um Juiz de última instância e a de um Juiz de primeira, convidou para o debate o Ministro do Supremo Tribunal Federal, José Carlos Moreira Alves e eu. Debatedor foi o Juiz gaúcho, também orgânico, Eugênio Fachini Neto. Tudo ocorreu em 07 de junho de 1990.

O debate foi precioso por dois aspectos: primeiro, porque veio à tona, com clareza impensável, como o fenômeno jurídico era visto por um Juiz, digamos "tradicional", e por outro, também digamos "não-convencional", e, segundo, porque, pela mão de José Eduardo Faria, o pensamento e atuação dos "orgânicos" recebia o aval da inte-lectualidade do direito, na medida em que era confrontado, no espaço acadêmico, com o referencial que domina o pensamento jurídico nacional.

As intervenções e os debates foram gravados e datilografados para a produção de um livro. Todavia, fui informado que o livro não foi publicado por falta de verba. Lamento porque se perdeu a oportunidade de democratizar e marcar aquele momento histórico (ao menos, ainda tenho os originais que recebi para correção).

Nesta época, na Escola Superior da Magistratura, então dirigida pelo progressista Eládio Lecey, criou-se, pela primeira vez a cadeira de "Direito Alternativo" que lecionei durante alguns anos (note-se que até então não havia movimento do Direito Alternativo e os Juízes eram conhecidos como "orgânicos").

Não quero deixar passar um episódio que ocorreu quando do encontro com Roberto Aguiar, porquanto bem expressa o descompasso entre o saber que é transmitido

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na universidade e aquele que ambiciona compromisso com a democracia. Entre os participantes, um se fazia presente pela primeira vez. Era Eugênio Fachini Neto, talvez o mais brilhante de todos os "orgânicos", sempre o primeiro classificado em concursos: lacaniamente autêntico "Eu-Gênio", Após os debates, onde o "novo" era apresentado por Roberto, Fachini se definiu: "sempre me esforcei para conhecer o Direito; pensei que sabia; agora percebo que aprendi tudo errado; começo de novo!" E começou mesmo: do melhor de todos na ótica tradicional do direito veio a ser o melhor de todos numa visão democratizaste. Hoje dispensado pelo Tribunal de Justiça, Fachini faz doutorado em Florença.

Em 1990 o grupo restou consolidado enquanto prática judicante, labor teórico e atividade político-institucional. Envolvia algo em torno de dez por cento da magistratura gaúcha e outros dez por cento de simpatizantes, o que deu forte respaldo na disputa pelo poder na Associação dos Juízes, em suas eleições, embora não se pensasse em ter candidato próprio - jamais (talvez um erro histórico) ambicionamos chegar ao poder!

Num outro texto, destinado à apresentação no Workshop "O Papel do Direito no Processo de Pós-Transição Democrática", no mês de julho de 1993, no Instituto Internacional de Sociologia Jurídica, em Onati, País Basco, Espanha, intitulado "Atuação dos Juízes Alternativos Gaúchos no Processo de Pós-Transição Democrática (ou Uma Práxis em Busca de uma Teoria)", que terminou publicado no livro "Derecho y Transición Democrata"; Ed. Onãti Proccedings, Espanha, 1995, e no "Portavoz", nº 40, ILSA, Colômbia, e que no Brasil se encontra no meu referido livro "Direito Alternativo em Movimento", procurei demonstrar como se deu a atuação dos "orgânicos" enquanto prática judicante.

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Ali pincei três momentos da atuação:

a) na infância, antes da formação do grupo, o labor não diferenciava muito daquele do ator tradicional: positivismo legalista subsunçor bitolador. A diferença era que havia uma espécie de "angústia" com o resultado dos atos sentenciais quando agrediam o valor Justiça, perpetuando a dominação imposta à maioria. Éramos movidos por sentimento desagradável e, em alguns casos, de raiva pela impotência, tudo de origem psicológica ou religiosa.

b) na adolescência, já ao adquirir algum saber crítico, a atuação restou belicosa. Explodiu sentimento de revolta ao constatar que havia instrumento crítico-teórico possibilitador de outros tipos de respostas decisórias e que tal nos fora sonegado desde sempre. Neste momento, o mundo (ou seja, as partes litigantes) fora dividido maniqueistamente entre "bons" e "maus", "pobres e ricos", "opressor e oprimido", "nós e eles", o que terminou por agudizar a nossa prepotência e intolerância com o "outro" (talvez aí a raiz do preconceito que parte da classe tinha em relação a nós). A regra era, pois, decidir em favor dos "pobres" tão-só pelo fator pobreza; ao que parece, tudo se resumia a uma questão de imposto de renda (quem é mais abonado): locações decide-se em favor do locatário, cobrança bancária contra os bancos, ações contra o Estado tinham sempre procedência, litígios entre casais a mulher deveria vencer. Éramos (perdoem-me os queridos colegas) uma espécie de "Chapolin Colorado Jurídico" - sempre dispostos, quixotescamente a "salvar os oprimidos". Éramos, pois,

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adolescentes em permanente e irracional conflito com o pai-Estado, pai-Lei, pai-Tribunal!

c) No momento atual (cheguei a pensar que estamos na "maturidade", mas é ousadia - aliás, sequer sei se ambicionamos ficar maduros), quer me parecer que estamos mais próximos do atuar verdadeiramente democrático. O tempo do dogma "forte-fraco" foi ultrapassado. Se a legalidade rasteira não mais entrave ao decidir "justo", o limite alcança os princípios gerais do direito do mundo dito civilizado (inclusive direitos humanos). O limite da atuação, numa ponta, é o fato concreto posto a julgamento e, n'outra, os princípios gerais. A análise é tópica, na visão do alemão Theodor Viehweg ("Tópica e Jurisprudência", ed. Min. da Justiça, 1979): "A questão de saber o que aqui e agora, em cada caso é justo" (tudo bem lembrado pelo precioso parceiro Luiz Edson Fachin em antigo texto publicado na Revista de Processo, n2 35, abril de 1984, pp. 279 a 283). Estamos, garantisticamente, vinculados à radicalização democrática (o que entendo por democracia no direito está no meu "Papel dos Juízes na Democracia", Direito Alternativo em Movimento, pp. 128/130). E os princípios, por conquista civilizatória, estão para além da própria Constituição (são limites para esta); são o norte para criação das normas e para a interpretação jurídica (ouso remeter o leitor para o texto referido - "A atuação dos Juízes Alternativos..." - onde com mais vagar discuto o tema). E hoje onde estamos? Alguns poucos lograram aposentar-se. Outros tantos chegamos ao Tribunal de Justiça neste ano (1998 - julho) ante à extinção do Tribunal de

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Direito Alternativo - Teoria e Prática

Alçada. Alguns, principalmente os, por último, chegados, ainda estão em primeiro grau.

O labor, em segundo grau, é outro. O local da fala alterado; por vezes a decisão é definitiva; o atuar se dá em colegiado; o grau de importância é diferenciado porque são revistas decisões singulares e o precedente tem forte impacto na comunidade jurídica. É algo novo. Se lograrmos até certo ponto desmistificar a atuação dos Juízes e contribuir para o alargamento democrático do foco do direito, o desafio, agora, é outro: como atuar, com base na utópica vida em abundância para todos, dentro do Tribunal contra quem lutamos (até agressivamente) por inúmeras vezes? Qual é o nosso limite? Quais nossas possibilidades? Como relacionar-se com a primeira instância, ante o poder de revisar? Ainda somos úteis e em que medida? Mas uma coisa é certa: aqui continuamos e não perdemos a capacidade de indignação!

Como tudo está se dando por agora? Os acórdãos que vêm em outro capítulo estão a tudo demonstrar...

E o grupo? Perdeu, com o tempo, a organicidade. Ficou, porém, a possibilidade forjadora de novas experiências judicantes que é democratizada, via aulas, cursos, conferências, textos e livros. A ligação com os que recém chegam à magistratura começa se restabelecer. Para além do isolamento nos limites da classe, a relação com operadores do direito (e fora dele) se dá de forma mais abundante (e, por certo, mais criativa), porquanto a militância tem ocorrido de dentro para fora do espaço judiciário - sempre na direção da sociedade civil organizada.

Resta, então, estabelecer como se deu a ligação dos Juízes então "orgânicos", posteriormente conhecidos como "alternativos", com o movimento do Direito Alternativo. Ou, em outras palavras, até por ser o mais correto: como nasce o movimento do Direito Alternativo no Brasil - a história de um e de outro são indissociáveis, repito.

Referências

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