• Nenhum resultado encontrado

O trono e a tripeça: republicanismo, democracia e questão social em Alexandre Herculano

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O trono e a tripeça: republicanismo, democracia e questão social em Alexandre Herculano"

Copied!
15
0
0

Texto

(1)

REPRESENTAÇÕES

DA

REPÚBLICA

Coordenação

LUÍS MANUELA.V. BERNARDO

LEONOR SANTA BÁRBARA

(2)

O TRONO E A TRIPEÇA:

REPUBLICANISMO, DEMOCRACIA

E QUESTÃO SOCIAL EM ALEXANDRE HERCULANO'

Carlos Morujão'

O curto espaço de que dispomos não nos permitirá fazer inteira justiça ao

pensa-mento de Herculano: dar conta da sua complexidade, das suas aporias, da quase feroz

vontade de liberdade que anima a grande maioria das suas páginas, quase sempre

servidas por um estilo soberbo, por ventura um pouco datado em alguns momentos,

mas que, regra geral, o passar dos anos quase não fez envelhecer. A ironia, misturada

com benevolência, com que responde às cartas de Oliveira Martins, por exemplo,

sem que alguma vez a gravidade dos ternas em discussão seja por ela beliscada, nem

amesquinhada a personalidade do seu correspondente, de cujas ideias no fundo

des-confia, transforma uma simples missiva - mero escrito de ocasião - num monumento

literário capaz de durar para lá da circunstância que o motivou. É o traço distintivo

dos grandes clássicos, o permitir que os possamos ler sempre com prazer.

Herculano não era um homem de ideias gerais. Nada deplorava mais na

maio-ria dos políticos e dos escritores do seu tempo do que a ligeireza na abordagem dos

assuntos sérios, a falta de estudo disfarçada com os mais variados e quase sempre

lamentáveis truques de retórica. As suas opiniões sobre os jornais e os jornalistas

não perderam actualidade ë seriam hoje, talvez, mais actuais ainda do que no seu

tempo. Pequenos estudos, como, por exemplo, as suas «Breves reflexões sobre alguns

pontos de economia agrícola», de 18492, mostram a seriedade com que encarava os

'

Universidade Católica Portuguesa - Portugal

1. Este ensaio é parte integrante do projecto ((A recepção da Revolução Francesa pela Filosofia Alemã do final do século XVIII e início do século XIX» (PTDC ! FIL / 74365i2006), financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.

2. In Opúsculos, VII, Lisboa, Livraria Bertrand, s/d, pp.25e ss. [Com excepção do volume citado nas noras 3 e 4, todas as referências aos Opúsculos remetem para esta edição.]

(3)

668

CarlosAAord.&

problemas do país e surpreendem pela quantidade de informação que se preocupava em reunir antes de emitir uma opinião sobre uma questão grave. Numa altura em que a sociologia ou a economia política eram disci-plinas quase desconhecidas em Portuga 1, o caso de Herculano tem aspectos notáveis por tudo aquilo que o seu saber representa de excepcional. De nada disto, infelizmente, poderemos dar conta. Lamentamos, sobretudo, poder vir a fornecer, neste ensaio, um retrato demasiado crítico das suas ideias, mas o tema de que nos ocuparemos é aquele em que Herculano menos nos parece ter estado à altura do seu próprio pensamento. A nossa única desculpa é que o tema deste conjunto de estudos é a república e será a propósito das reflexões de Herculano sobre ela que iremos falar.

As ideias políticas de Herculano

Alexandre Herculano não possuía uma teoria política sistemática, nem alguma vez pretendeu elaborar uma. Não o podemos acusar daquilo que não quis nem sentiu necessidade de fazer. Tal nunca significou, porém, que os seus escritos políticos e a sua intervenção política e cívica fossem destituídos de princípios. Só que tais princípios nem sempre se hão-de pro-curar do lado da Ciência Política ou da Filosofia. Não obstante, Herculano teve ideias razoavelmente firmes sobre o edifício constitucional que queria para Portugal, sobre alguns problemas económicos e sociais com que se debatia a sociedade liberal portuguesa saída das reformas de Mouzinho da Silveira - a única revolução social autêntica que Portugal conheceu, como dirá a certa altura ; - e sobre o modo de os resolver.

Não será, também, pelas razões acabadas de expor que encontraremos numa obra particular de Herculano as suas ideias no âmbito do que, ainda assim, teremos de chamar teoria e filosofia políticas. Muitas vezes, não serão sequer os seus escritos estritamente políticos (ou os que abordam temas económicos e sociais) que nos informarão acerca das suas ideias sobre a matéria. Não é raro encontrarmos em textos sobre literatura, ou em meros textos de ocasião, como algum elogio fúnebre, reflexões de extremo interesse, tanto pelo que dizem abertamente, como pelo que

3. Alexandre Herculano, Opúsculos, V (edição crítica de Jorge Custódio e José Manuel Garcia), Lisboa, Editorial Presença, 1986, p. 117.

(4)

O trono e a tripeça republicanismo, democracia e questão social em Alexandre Herculano

669

m.

nos fazem apenas suspeitar4. Dar conta de tudo o que Herculano deixou

disperso sobre esta matéria implicaria, contudo, uma leitura integral dos

seus textos, que, evidentemente, não pudemos fazer e de que, mesmo

que a tivéssemos feito, aqui não poderíamos dar conta.

Para a questão que aqui nos ocupa, a relação entre monarquia,

demo-cracia e república no pensamento político de Alexandre Herculano, tem

alguma importância conhecermos os autores em que se apoiou a sua

refle-xão. Provavelmente, continuará a ser motivo de controvérsia o saber se as

fortes semelhanças entre o pensamento político de Kant e o de Herculano

se devem ou não ao conhecimento directo dos principais textos do filósofo

de Kõnigsberg em matéria de filosofia política, como, por exemplo, a

Doutrina do Direito de 1797. Não seria talvez muito difícil detectar

semelhan-ças entre a critica da democracia, feita por Kant, e a que fará Herculano

décadas mais tarde. Também não seria impossível defender-se que o que

Kant denomina de regime republicano corresponde, aproximadamente,

à. visão que tem Herculano da separação de poderes no regime liberal.

Porém, tudo isto poderá não passar de mera coincidência, uma vez que

as ideias de Kant não constituíam já novidade no tempo de Herculano, e

liberais moderados como Cenz du Rehberg já as tinham posto em

circu-lação na Alemanha e até mesmo em França. Por esta razão, tão ou mais

importante terá sido o conhecimento que teve Herculano de algumas

correntes do liberalismo francês, nomeadamente de autores que, como

Benjamin Constant, Royer-Collard ou mesmo De Bonald, procuravam,

após a restauração dos Bourbons em França, conciliar a monarquia

constitucional com a nova ordem social resultante do desaparecimento

do Ancien Régime. O caso de Guizot foi já suficientemente estudado, mas

importa não reduzira sua influência às suas concepções sobre a natureza

dos estudos históricos. Mesmo em matéria religiosa, a proximidade entre

o pensamento de Herculano e o destes autores é patente, embora a sua

posição tenha alguns aspectos originais, em resultado da sua reflexão

sobre as particularidades do caso português e da experiência directa do

que chamava, utilizando uma expressão já corrente no seu tempo, a

«ali-ança entre o trono e o altar». Há inclusivamente um tradicionalismo de

Herculano em matéria de religião, muito próximo do de De Bonald, por

4. Ver, por exemplo, o conjunto de artigos intitulados «Poesia: Imitação - Belo - Unidade«, de 1835, inicialmente publicados noRepositório Literáriae reunidos agora em Opdsculas, V, pp. 25-45.

(5)

67d

Carlos Moruião

exemplo, que podemos considerar motivado por um idêntico desejo de conservar determinados símbolos da vida colectiva, de origem religiosa, que fossem capazes de manter a coesão social e a moralidade pública. Mas Herculano não hesita em afirmar que a liberdade é a filha primogénita do evangelhos . E admite também, ao invés daqueles autores franceses, que a crítica da religião, no século XVIII, possa ter realizado um trabalho útil; e que, ao século do entendimento, deverá seguir-se o dos afectos. Além disso, para Herculano, a fé colectiva é o resultado das adesões individuais, e a adesão de carácter institucional, importante para os tradicionalistas , é para ele um elemento secundário.

Mas a leitura de alguns autores não explicará tudo. Mais importante do que aquilo que se lê (em primeira ou em segunda mão é o que se retém das leituras feitas. No caso particular de Herculano, há que ter ainda em conta, para lá das leituras, a sua observação da realidade portuguesa, o seu empenhamento nas lutas liberais, o seu conhecimento pessoal dos políticos e dos projectos em confronto, nesse vasto campo do liberalismo português - unido, em parte, pelas guerras civis - em que as tendências mais radicais e os defensores moderados do Antigo Regime puderam, pelo menos durante algum tempo, encontrar um modo de entendimento. Há, sobretudo, que ter em conta o profundo desejo de Herculano em conhe-cer a realidade do seu país, para nela poder intervir; e conhecê-la tanto do ponto de vista da história, como do ponto de vista do presente e das forças sociais que nele eram activas.

No contexto português do seu tempo, a oposição entre monarquia e república chegou a parecer, a Herculano, uma coisa secundária. Esta sua atitude teve reflexos importantes em autores das gerações seguintes, incluindo, já em pleno século XX, no contexto da1.kRepública, a atitude de António Sérgio a . Pensamos que Herculano nunca pôde, ou nunca quis, analisar esta questão em toda a sua amplitude. A sua preocupação

s.António José Saraiva, Herculano e o Liberalismo em Portugal, Lisboa, Livraria Bertrand, 1977, p, 74. 6. Alexandre Herculano, Opúsculos, 111, Lisboa, Livraria Bertrand, sld, p. 62.

7.idem, lbidem.

8 Cf. , nomeadamente, a carta de Sérgio a Raul Proença de i de Outubro de 1913, in Antónió Sérgio, Correspondência para Raul Proença (org. e introd. de José Carlos Conzales), Lisboa, Edições Dom Quixote/Biblioteca Nacional, 1987, pp. 84-90, p. 85. Sobre Herculano, diz ainda Sérgio a Raul Proença numa outra carta: «o escritor português moderno que, com Quental, eu mais venero» (Op. cit., p. 9a).

(6)

O trono e a tripeça republkanisma, democracia e questão sucia[ em Alexandre Herculano

671

fundamental, como diz a Oliveira Martins numa carta de ro de Dezembro de 187o, é a do aperfeiçoamento do sistema constitucional, de modo a evi-tar o perigo da centralização política e administrativa; contra tal perigo, a república não lhe aparece como a solução, tendo sido talvez, na Idade Moderna, pelo menos se se olhar para a experiência francesa, uma das suas causas.

Provavelmente, faltavam a Herculano os instrumentos de natureza conceptual que lhe permitissem analisar a oposição entre monarquia e república em toda a sua amplitude. É que, do ponto de vista simbólico, a opção por uma ou outra forma de regime não é indiferente. A monarquia - esta é a nossa tese, mas não, como é óbvio, a de Herculano - significa sempre, da parte da sociedade que a institui como forma de soberania, uma recusa em reconhecer-se a si mesma como origem de toda a legitimidade política. Utilizando o vocabulário da filosofia moral de Kant -embora num contexto que não é o do seu-uso em Kant e que não podemos garantir que Kant autorizasse -, diríamos quq, com o regime monárquico, estamos perante uma forma de heteronomia. Mas, dizendo isto, não só não dissemos tudo, como nem sequer tocámos no essencial.

A nossa posição sobre este assunto, $ partir da qual analisaremos aquilo que sobre ele nos diz Herculano, poderá ser talvez mais facilmente compreendida recorrendo a uma célebre tese de Freud: pensamos na tese do assassinato do pai, tal como é apresentada, em igiz, na obra Totem e Tabu. Independentemente do crédito que queiramos ou não atribuir a este mito freudiano, e para lá das intenções explícitas do próprio Freud, encontramos abordado em tal mito um dos enigmas da política, que podemos formular do seguinte modo: por que razão não terão os irmãos, após o assassinato do pai, estabelecido uma sociedade de iguais? Por que razão terão sentido a necessidade de restabelecer, de uma certa forma, a autoridade do pai morto, por meio do totem do clã? Que dificuldade os terá impedido de obedecer apenas a si mesmos, ou seja, à ordem moral e política por eles instituída, obrigando-os a encontrar um substituto para a autoridade paterna? Se Freud tem razão (e nós pensamos que tem, em grande parte, razão), estas questões são correlativas de uma outra, que corresponde a uma experiência que qualquer um poderá, se a tal se

9. Cf. Cartas, Tomo 1, Lisboa, Livraria BertrandlRio de janeiro, Livraria Francisco Alves, sld, p. no.

(7)

672

Carlos Morulão

dispuser, fazer em si mesmo, a saber: por que motivo cada membro da espécie homo sapiens terá de instituir dentro de si uma instância represen-tativa da autoridade parental - a que Freud chamava o super-ego - para poder, ao mesmo tempo, viver sem o pai e viver com os outros como se um mesmo pai os vigiasse a todos?

Eis a razão pela qual a decisão pela monarquia ou pela república não é indiferente. Certamente que, tanto na monarquia como na república, uma autoridade que não emana a cada momento da vontade colectiva exerce a soberania. (Um pouco como o nosso super-ego contém elementos que remontam a experiências infantis, constitutivas do que Freud chamava o ideal do eu.) A «soberania da nação», esse ideal fundador da democra-cia moderna (ideal anti-rousseauista, pois Rousseau afirmava que urna nação deixava de ser livre a partir do momento em que o povo delegasse o exercício da soberania nos seus representantes), expresso com clareza pelos revolucionários franceses de 1789, sempre foi, na realidade, contra o que Rousseau defendera, a «soberania dos representantes da nação»'. Mas só a república permite plenamente reconhecer que as formas de que se reveste a autoridade soberana relevam ainda de uma experiência e de uma decisão da colectividade. Elas podem, por isso,

ser

permanentemente revogadas, quer dizer, reinstituídas de acordo com um projecto de vida em comum que tem origem na própria colectividade e na sua vontade.

Pelo menos por isto, mesmo que seja indiferente saber se o soberano se senta num trono ou numa tripeça, como Herculano diz a Oliveira Martins", desde que as leis se afiram

pelos

princípios do bom e do justo, o modo como ele se senta - ou seja, a legitimação simbólica da sua auto-ridade - não é completamente indiferente. Herculano não foi, contudo, completamente insensível aos aspectos simbólicos de que se reveste tra-dicionalmente a instituição monárquica, nem, sobretudo, ao significado das tentativas de restabelecimento desse simbolismo, que, nas condições portuguesas da época, só poderia ser o da monarquia absoluta. É assim que, numa sessão parlamentar de 1841, a propósito do restabelecimento do Colégio dos Nobres por extinção da recém-criada Escola Politécnica e da reforma da lei dos Forais, que fora promulgada a 13 de Agosto de 1832,

io. Sobre este assunto, cf. Bernard Bourgeois, «La nation: révolution et raison», in I:Idéahsme Allemand, Paris, Vrin, zoou, pp. 193-203. Veja-se, igualmente, de Rousseau, LeContrai Social , Livro 111, cap. 1, in (EuvresCompletes (Bibliothèque de Ia Pléiade), vol. III, p. 395.

(8)

r

O trono e a tripeça. reput icanisrno. democracia e quesito soual em Alexandre Herculano

673

pronuncia as seguintes palavras, onde a extrema mordacidade não nos deve esconder a lucidez do juízo político:

«Na mesma câmara onde apareceu o engraçadíssimo projecto dos forais em que se dizia que a extinção deles era um roubo, devia ser apresentado outro em que se dissesse que a extinção do Colégio dos Nobres era um sacrilégio. Com o restabelecimento das ordenanças, o ciclo dos poemas herói-cómicos dos donatários da Coroa ficava completo: berço de púrpura e ouro para a infância; bailes, esgrima e equitação para a juventude; bastão de alcaide ou capitão-mor para a idade grave, eis uma vida de invejar e, ao mesmo tempo, de honra e glória para a pátria.s u

Indivíduo e sociedade

Herculano, não obstante o texto que acabámos de ler, foi um crítico das tendências igualitaristas que julgava ver triunfar por toda a parte no seu tempo. A sua crítica do igualitarismo democrático, ou socialista, tem alguns aspectos em comum com o que, sobre este mesmo assunto, escre-veu Tocqueville na sua famosa obra Dela Démocratie en

Amérique,

que

não

sabemos se alguma vez terá chegado a ler73. Joaquim Barradas de Carvalho considerava Tocquevile, a par de Montesquieu e Augustin Thierry, como uma das principais fontes do liberalismo de Herculano. Nos textos de Herculano que conhecemos, nunca encontrámos qualquer referência a Tocqueville, embora a carta a Oliveira Martins, de to de Dezembro de 187o, já citada, pareça fazer eco a algumas ideias do autor francês. Em todo o caso, Herculano não poderá ser considerado um mero seguidor das ideias de Tocqueville. Há uma diferença fundamental entre os dois, que geralmente não mencionam aqueles comentadores de Herculano que parecem inclinados a admitir a sua leitura de Tocqueville: é que Tocqueville julgava ter-se realizado na América jeffersoniana aquilo que acreditava ser (para o bem e para o mal) o futuro das nações europeias. Já Herculano considerava as ideias de igualdade - mais próprias de uma

12.Opúsculos, V7, p. xro. Esta passagem é comentada por António José Saraiva, op. cit., p. 156. [Em todas as citações que fazemos de Herculano procedemos a uma actualização da ortografia.] 13.Joaquim Barradas de Carvalho, inAs Ideias Políticas eSociaisdeAlexundreHerculano, Lisboa, Ed. do Autor, 1949, p• U9.

(9)

Carlos Morujão

sociedade, como a americana, que se formara desde a raiz num espírito calvinista - incompatíveis com a tradição moral e espiritual da Europa, como uma importação que não poderia dar bom resultado em sociedades, como diz, meio romanas e meio germânicas'4. E recusando a democracia igualitária, Herculano recusa também a república, que, aliás, na refe-rida carta a Oliveira Martins, dela não separa. Além disso, o cepticismo de Herculano face à liberdade política no sentido propriamente moderno da expressão tem raízes diferentes das que tinha no pensador francês. Escreve, numa passagem muito citada de uma carta a Oliveira Martins, de Fevereiro de 1877, poucos meses antes de morrer:

«O socialista vê no indivíduo a coisa da sociedade; o liberal vê na sociedade a coisa do indivíduo. Fim para o socialista, ela não é para o liberal senão um meio,

criação do indivíduo que a precedeu, que lhe estampou o seu selo, porque, faça elaoque fizer, nunca poderá manifestar a sua existência e a sua acção senão por actos individuais, unidos ou separados. O colectivo nessas manifestações não passa de uma concepção subjectiva: não existe rio mundo real.»^5

Embora a correspondência com Oliveira Martins remeta para um contexto político e cultural bem determinado, o da recepção das ideias socialistas em Portugal na segunda metade do século XIX e da discussão do seu significado, a posição de Herculano tem implicações mais vastas. O que ele distingue claramente, mesmo fazendo-o numa linguagem que não é já a nossa, é entre uma concepção da sociedade que vê como resultado de actos individuais e uma concepção do indivíduo que vê como resultado da sociedade, ou mesmo, no limite, como por ela produzido de acordo com um programa. Uma vez situado nesta alternativa, e tendo optado pelo primeiro termo dela (ou seja, colocando-se do lado daqueles a quem chamava os «liberdadeiros»), Herculano nunca chegou a enfren-tar com coerência a tese da soberania popular. Em nossa opinião, são os próprios termos em que Herculano formulou a referida alternativa que o impediram de resolver satisfatoriamente o problema. As palavras com que no célebre panfleto político contra o setembrismo (intituladoA Voz do

14. JoaquimVeríssimo Senão, Herculano et; Consciência do Liberalismo Português, Lisboa, Livraria

Bertrand, 1977, pp,195-196. Cf.Herculano,Cartas, ed. cit.,p.216.

is.InCartas, ed.cit.,p.241.0 textodestacartapodeigualmente ser lido ir; Joel Serrão (org.),

(10)

O trono ea tripeça republicanismo, democracia e questão social em Alexandre Herculano

675

Profeta) descreve a maioria à qual se querem conceder direitos de partici-pação na vida pública - ignorante, inconstante, caprichosa, facilmente manipulável por demagogos que um dia aplaude para no dia seguinte vilipendiar - podem ser correctas em alguns contextos históricos, e

eram-'. -no em boa medida no Portugal absolutista que Herculano conheceu na

sua juventude. Anos mais tarde, apreciando o significado da revolução de 1848 em França e do seu desfecho, a subida ao poder de Luís Napoleão, exprimir-se-á em termos muito semelhantes àqueles com que caracteri-zou a usurpação miguelista. Só que seria até demasiado fácil retorquir a Herculano que a questão não é tal como ele a coloca: a questão que importa é a de saber se qualquer indivíduo pode descobrir-se livre e responsável, sujeito de direitos e de deveres, iguala todos os outros em tudo aquilo que não sejam as diferenças com que cada um naturalmente nasce, senão no regime que garante a participação de todos em tudoia . Ou seja, no tipo de regime que garante que ninguém é excluído dos actos em que se institui a ordem na qual todos viverão em conjunto, mesmo que a ordem que venha a emergir não seja aquela que agrada necessariamente a todos.

Assim, embora negasse o direito divino dos reis, Herculano sempre se recusou a aliar-se ao Setembrismo em matéria de soberania popular: como se sabe, a Constituição de1822 -que recusou jurar, após o triunfo da Revolução de Setembro, sendo este um dos motivos da sua.demissão do cargo de2.pbibliotecário da Biblioteca Pública do Porto -, limitava dras-ticamente os poderes de intervenção do Rei, que a Carta Constitucional garantia, e instituía uma democracia de tipo censitário. A posição de compromisso de Herculano é a do Cartismo e toda a sua argumentação a favor do espírito da Carta, pela qual participou na Guerra Civil como soldado no exército de D. Pedro 1V, revela a influência das leituras de Benjamin Constant e de Royer-Collard: tal é sobretudo verdadeiro na sua tese da necessidade de uma soberania do direito ou da razão, ao lado da soberania do povo, e que apenas considerava possível de se realizar pela intervenção do poder moderador do Rei e pela limitação dos poderes da representação nacional :7. É mais fácil perceber a sua posição face ao

i6. Cf. Claude Lefort, «Réversibilité: liberté politique et liberté de 1'individu», in Essais surfe Palitique, Paris, Ed. du Seuil (col. Essais), zoo', pp. 215-236, p. M.

17. António José Saraiva, op. cit., pp. 'a2 e ss. Note-se, contudo, que Herculano nunca apoiou publicamente a restauração da Carta Constitucional, em 1842, durante a ditadura de Costa Cabral, nem alguma vez manifestou pública adesão ao cabralismo, renunciando, inclusive,

(11)

676

Carlos Morujio

Setembrismo, a sua recusa em jurar a Constituição de1822, a sua

reac-ção ao governo de Passos Manuel, ou a natureza das ideias sobre política ou religião expressas, em 1837, em AVoz do

Profeta,

do que a sua posição perante a questão da república. Provavelmente, e uma vez mais pela influência das ideias de Benjamin Constant, Herculano pensaria que a liberdade política necessária é apenas aquela que garante a independência individual, e que o valor da liberdade consiste no facto de nos conceder tempo livre para o exercício dos interesses privados. Seja como for, esta é uma matéria sobre a qual Herculano nunca se pronunciou de forma totalmente satisfatória' $ .

Razão e direito: Herculano entre o liberalismo e a democracia

A personificação da razão, aquilo que permite conciliá-la com o estado de facto, é, para Herculano, o senso-comum. A soberania do direito é a soberania da razão pública s . Neste ponto, Herculano afasta-se dos ide-ólogos franceses já mencionados. Guizot, por exemplo, afirmava que a soberania do direito era personificada pela realeza. A soberania do direito, em Herculano, serve para justificar o governo representativo, assente num parlamento com poderes limitados, eleito numa base censitária. Em todo o caso, monarquia e governo representativo não se contrapõem, e Herculano nunca deixou de afirmar a sua preferência pela monarquia constitucional, como, por exemplo, em 1850, em carta dirigida ao redactor do jornal A Nação2O . Fora já a monarquia constitucional, mas de acordo com o modelo da Carta Constitucional de 182.6, que Herculano defendera nos primeiros anos da sua actividade como político e homem de letras. Recusará sempre a monarquia de direito divino, ou seja, o tipo de legiti-mação da soberania que caracterizava as sociedades de antigo regime. O direito divino da soberania régia não tem, para ele, mais valor do que o

aos cargos públicos que nessa altura lhe foram oferecidos. (Diga-se, em todo o caso, que também nunca se solidarizou com os protestos contra o cabralismo, que marcaram a década de40do século XIX.)

l8. Harry Betnstein, Alexandre Herculano (1810-1877), Pertugal's Prime Historiou ou! Historical Novelist, Paris, Fundação Calouste GulbenkiantCentro Cultural Português, 1983, p. 32.

1g.António José saraiva, op, cit.,p. 106.

ao. Alexandre Herculano, «Considerações Pacificas., Opúsculos, III, p. 52.Nesta carta aparece a expressão „nós os monarquistas».

(12)

r

O trono ea tripeça. republicanismo, democracia e questão social em Alexandre Herculano

677

direito divino da soberania popular (que igualmente recusa), como afirma ainda na carta a Oliveira Martins de1ode Dezembro 187on . Recusará sem-pre, também, a ideia de uma responsabilidade parlamentar dos governos eleitos pelos parlamentos, preferindo um «executivo forte», mas onde o Rei pudesse intervir nomeando ou destituindo os ministros".

Defensor do liberalismo, mas não da democracia, chega a identificar democracia e república, numa carta a Oliveira Martins, considerando--as duas atitudes tendentes a apoucar o indivíduo e a engrandecer a sociedade2 s . O que Herculano critica na democracia - e que se encontra na base da sua oposição à Revolução de Setembro de 1836 e às movimen-tações sociais que, em Lisboa e no Porto, a acompanharam - é a destru-ição da liberdade, pela possibilidade que oferece de intervenção política aos sectores sociais a que depreciativamente chama «a plebe». É claro que, de um ponto de vista estritamente lógico, toda a argumentação de Herculano parece viciada por um irremediável non sequitur: não só não é evidente que a intervenção política do que chamava a plebe seja contrá-ria 4 liberdade, como se podecontrá-ria até argumentar que só o alargamento dessa intervenção a todos os estratos sociais garante a existência de uma liberdade efectiva. Só que argumentar desta forma contra Herculano seria esquecer toda a experiência política do próprio Herculano que suporta esta argumentação contra a democracia, a sua convicção de que o despotismo pode ser sustentado, senão mesmo activamente apoiado, por uma maioria inculta e fanatizada, como o demonstrou o breve reinado de D. Miguel. A obra de António Serpa Pimentel, Herculano e o seu

Tempo,

que não é isenta de alguma parcialidade, refere com acerto esta situação24. Neste quadro, não nos deve causar espanto que Herculano possa agora argumentar que o miguelismo foi a aliança entre o despotismo e a democracia. Criticar Herculano por opiniões como esta seria também não compreender que o seu desprezo pela democracia, tanto mi mais ainda do que numa análise da realidade política do seu tempo, entroncava numa visão da própria

zi.Cartas, ed. cit., p. 213. Esta carta é citada e comentada in Joaquim Barradas de Carvalho, As Ideias Políticas e Sociais deAlexandre Herculano, ed. cit., p. 34.

zz. Harry Bernstein, op.cit., p. 54.

23. Idem, ibidem, p. 3S.

24. António de Serpa Pimentel, Herculanoe o seuTempo. Estudo Crítico, Lisboa, Imprensa Nacional, 1881, pp, iGg e ss.

(13)

678

CarlosMorujào

história portuguesa desde o final do século XV, que via como a marcha inexorável da tendência para a igualização e o nivelamento, sob a batuta do despotismo monárquico, à qual só seria possível resistir pelo reforço das instituições locais e dos municípios, e não pela intervenção directa nos assuntos governativos por meio do sufrágio universal.

Assim, quando, em 1851, Herculano afirma que em Portugal a liber-dade é que é antiga e o despotismo recente'5, está obviamente a referir-se à tradição municipalista da Idade Média, a um Portugal que não vivia, como diz, aterrorizado pela Inquisição, ajoelhado à porta dos palácios dos reis, cuja liberdade - ou seja, autonomia relativamente ao poder central - não fora ainda usurpada pelo absolutismo. Encontramos aqui um pen-samento liberal que tem algumas semelhanças com o conservadorismo de Edmund Burke, na obra intitulada Reflexões sobre a Revolução em França, que não sabemos se Herculano terá chegado a conhecer. Mas tem também algumas evidentes originalidades relativamente a Burke, pois as posições doutrinárias de Herculano, em quase todos os assuntos, partem da sua análise do caso português. As liberdades de que fala Herculano só adqui-rem substância efectiva no interior de instituições que foram sujeitas à prova da história, tal como defendia o pensador inglês, e a monarquia é, sem dúvida, uma dessas instituições; mas não a monarquia tal como a conheceram os séculos imediatamente anteriores ao XIX. Essa é um pro-duto moderno, que foi definitivamente afastado pela revolução liberal". O texto em que expressa estas opiniões (um longo artigo publicado no jornal O País, em resposta a vários artigos do jornal A Nação) tem dois aspectos muito curiosos. O primeiro, não inteiramente original, uma vez que subjaz a toda a visão que Herculano tem da história portuguesa, desde as Cartas sobre a História de Portugal, pelo menos, consiste no facto de Herculano apresentar como decadência todo o período que medeia entre o que chama as duas usurpações: a que aconteceu com a usurpação da liberdade pelo absolutismo monárquico no tempo de D. Manuel 1 e a usurpação mais recente do trono de D. Pedro por D. Miguel. O segundo, bastante mais interessante, é o facto de, tanto quanto sabemos pela pri-meira e única vez, Herculano escrever democracia onde habitualmente escrevia liberdade (identificando, por conseguinte, as duas) e fazendo da

25.Alexandre Herculano, Opúsculos, VII, p.122, G. Harry Bemstein, op. dt., p. 65,

(14)

r

O trono e a tripeça republicanismo. democracia e quest5o social em Alexandre Herculano

679

monarquia constitucional a aliada da democracia. Teria havido, portanto, uma democracia em Portugal até finais do século XV. Importa, por isso, ver como Herculano a concebia. O Portugal anterior àquela primeira funesta usurpação, idêntico àquele que Herculano espera ver renascer uma vez recuperada a liberdade, é caracterizado da seguinte forma:

,(...)grande, não pelas virtudes das classes privilegiadas, mas sim peias dos vilãos, pelas de nossos avós; grande pela aliança estreita entre a monarquia e a democracia, contra as oligarquias que nascem da indestrutível desigual-dade humana e que, segundo os tempos, se chamam patriciado, fidalguia, agiotagem, e cuja manifestação suprema se exprime constantemente por duas palavras únicas: "violência" e "rapina".»

A democracia de que Herculano fala neste artigo não é tanto a dos parlamentos, como sobretudo, como ele próprio afirma, a dos forais, ou seja, a das garantias da liberdade municipal, de que a monarquia dos três primeiros séculos da História de Portugal era eventualmente a aliada con-tra o poder da aristocracia. Esta democracia, como dirá Herculano, não era um regime político, mas sim um grupo social% composto por todos os que pertenciam a um nível social inferior ao das classes privilegiadas, às quais poderiam eventualmente ascender. Os cavaleiros vilãos, os bestei-ros é a peonagem armada possuíam a força para repelir os privilegiados e exigir o desagravo das ofensas.

Se há em Herculano, segundo cremos, uma preferência pela monar-quia, é porque esta lhe aparecia como aliada natural dos concelhos e dos municípios contra um poder centralizador que julga mais próximo do ideário republicano. A França de Luís Napoleão parecer-lhe-á confirmar a sua tese. Muito significativa desta sua posição é a polémica que tra-vará, na década de cinquenta do século XIX, na época da Regeneração, com Lopes de Mendonça, sobre a importância ou não de desenvolver a rede rodoviária e o caminho-de-ferro. Independentemente da pertinên-cia de alguns argumentos de carácter económico, que não vêm ao 'caso, o que afasta Herculano dos homens da Regeneração e do seu programa de desenvolvimento é o facto de ver na expansão das vias de comunica-ção um reforço do poder central, que, assim, chegaria mais depressa aos

(15)

680

Carlos Morujao

municípios e mataria neles os restos da liberdade. Os termos desta polé-mica são muito interessantes e ainda hoje não terão perdido toda a sua actualidade 2e . Consideramos, por isso, pertinente terminar, com uma referência a eles, este nosso ensaio. Por um lado, o «socialista» Lopes de Mendonça - na acepção que esta designação poderia ter em Portugal, no contexto da época - defende que a centralização, de que as vias de comu-nicação são um instrumento necessário, favorece as movimentações das massas e a sua acção legal junto do poder central; por outro, o liberal Herculano acusando o socialista de identificar a sua democracia com a centralização absolutista e de confundir o melhoramento social e moral dos povos com o simples melhoramento da sua condição física.

Referências

Documentos relacionados

O planejamento fatorial foi aplicado satisfatoriamente para a otimização dos parâmetros da técnica de voltametria linear de redisso- lução anódica no desenvolvimento

Equipamentos de emergência imediatamente acessíveis, com instruções de utilização. Assegurar-se que os lava- olhos e os chuveiros de segurança estejam próximos ao local de

Tal será possível através do fornecimento de evidências de que a relação entre educação inclusiva e inclusão social é pertinente para a qualidade dos recursos de

No caso de falta de limpeza e higiene podem formar-se bactérias, algas e fungos na água... Em todo o caso, recomendamos que os seguintes intervalos de limpeza sejam respeitados. •

Outros fatores que contribuíram para o avanço tecnológico das máquinas elétricas foram: o desenvolvimento de materiais, como os ímãs de ferrita e os de

17 CORTE IDH. Caso Castañeda Gutman vs.. restrição ao lançamento de uma candidatura a cargo político pode demandar o enfrentamento de temas de ordem histórica, social e política

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

O emprego de um estimador robusto em variável que apresente valores discrepantes produz resultados adequados à avaliação e medição da variabilidade espacial de atributos de uma