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Publicidade: o fazer-valer

Maria da Conceição Golobovante1

RESUMO

Em busca de uma epistemologia da comunicação publicitária, e em especial da sua ocorrência no espaço urbano, este artigo ques-tiona a visão da publicidade como uma atividade comercial per

se, ao problematizar sua construção como discurso valorizante

de bens e serviços, ou seja, a validade desta prática está con-dicionada à sua capacidade de produzir linguagem e, portanto, cultura.

Palavras-chave: Publicidade; marketing; mídia; cidade.

ABSTRACT

This article is looking for an advertising’s epistemology, espe-cially on the outdoor ads presents in the urban space, challen-ging right the idea of advertising as only a commercial activity. Its valorizing speech connected to the goods and services ratifyes its real value as a cultural production.

Keywords: Advertising; marketing; media; city.

1 Publicitária, professo-ra do curso de Publici-dade e Propaganda e doutora em Comuni-cação e Semiótica pela PUC-SP.

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A

racionalidade mercadológica percebe a publicidade como um negócio que visa a objetivos comerciais. Sua constituição como linguagem e, portanto, como cul-tura seria apenas o reflexo da iniciativa econômica. Ques-tionar essa visão e reivindicar a inversão desse paradigma, ou seja, assumir que é a dimensão cultural da publicidade o que lhe confere a valorização econômica implica pensar historicamente que a troca privada de bens nunca é somente comercial, mas também um ritual fundante da cultura.

A invenção da moeda, para retirar a economia de um estágio primitivo no qual imperavam as trocas diretas, ou escambo, não bastou, por si só, para estabelecer o acordo entre os negociantes quanto ao preço entre a oferta e a pro-cura. Fez-se necessário acrescentar um discurso

valoriza-dor (Lagneau 1981: 7) sobre os bens, que despertasse nos

parceiros o desejo de intercambiá-los. Essa troca simbólica precede a transação comercial efetiva, conferindo-lhe um sentido.

As modalidades do fazer-valer multiplicam-se, pois cada cultura inventa e pratica seus próprios ritos de troca. A pu-blicidade coloca-se, numa perspectiva antropológica, como uma forma particular de fazer-valer aplicada especifica-mente aos intercâmbios mercantis, pois a troca comercial implica, por parte de quem oferece, uma estratégia valori-zante do bem aos olhos de quem o compra.

Da perspectiva da teoria econômica, Vargas (2001: 52) pontua que, dos três setores básicos da economia, esta teo-ria sempre percebeu o setor terciário (comércio e serviços, ao qual pertencem o marketing e a comunicação) como o menos nobre em relação ao primário (agricultura e pecuá-ria) e ao secundário (no qual o produto que vem da terra é transformado – a indústria). A velocidade das transfor-mações históricas cria um descompasso entre os paradig-mas da análise da teoria econômica e o contexto atual da

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produção do setor. É inegável que o desenvolvimento do capitalismo financeiro, a revolução da informática, a inter-nacionalização da economia e o surgimento das atividades de entretenimento e do turismo como primeira indústria mundial reforçaram o caráter produtivo das atividades ditas terciárias como criadoras de riqueza.

Dentre as atividades terciárias, o marketing desponta como a força motriz dessa evolução. Até o início dos anos 1950, o marketing – até então conhecido simplesmente como “vendas” – estava em sua fase embrionária porque muitas empresas das economias mais desenvolvidas do Oeste Europeu e dos Estados Unidos, ao colher os efeitos benéficos da produção de massa possibilitada pela Revo-lução Industrial, permaneciam orientadas para a produção, uma vez que praticamente tudo o que se fabricava era ven-dido. Os primeiros abalos se fizeram sentir após a Primeira Guerra Mundial, quando surgiu a preocupação com o escoa-mento dos excedentes de produção. Uma empresa orien-tada para as vendas sabia da resistência dos consumidores quanto à compra de bens e serviços que não julgassem es-senciais. Para subsidiar o trabalho dos vendedores, as em-presas começaram a anunciar seus produtos, na expectativa de que os consumidores abrissem suas portas para receber os vendedores, principalmente os de venda domiciliar. Na-quele momento, divulgar e vender eram sinônimos, pois o processo de criar, produzir e veicular revestimentos simbó-licos para as intenções mercadológicas das forças produti-vas capitalistas davam seus primeiros passos por meio das ações retóricas dos homens de vendas.

A intensificação daquelas relações fez o conceito de “vendas” evoluir para uma área do conhecimento das ciên-cias da administração, o marketing, usualmente conceitua-do como a “planificação e a execução de um conjunto de atividades comerciais que têm como objetivo final a troca

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de produtos, ou serviços, entre produtores e consumidores”2

(Gracioso 1986: 15). Nesse contexto, inverte-se o papel da publicidade, que de protagonista passa a ser apenas uma dessas “atividades comerciais”, e põe em conexão, ou em sintonia, as forças produtivas e os consumidores, por meio de uma estratégia de comunicação em larga escala. O mar-keting surge à frente da cena. Ao relacioná-lo com as re-flexões sobre publicidade e cultura, é viável pensá-lo hoje como o cérebro do sistema produtivo de bens e serviços de consumo de massa. Cabe à publicidade ser sua expressão, ou seja, ser os sentidos da racionalidade mercadológica. Para além da corporeidade do próprio bem, cria-se outra, simbólica e imaginária para ele.

Note que esse cérebro deixou de ter como objeto principal apenas o mundo do produto ou do mercado. O mercado não é mais o fim, mas a arena em que os “mar-queteiros” travam uma batalha de outra ordem, a batalha da percepção. O desenvolvimento tecnológico que apro-ximou as características técnicas dos objetos acabou por equipará-los também na mente do consumidor. A paridade técnica deslocou a diferenciação do plano material/real para o simbólico/perceptivo. É a era do “posicionamento”, para usar um termo em voga na área. Procura-se ocupar um lugar preciso na mente do consumidor-espectador para que, sempre que surgir a necessidade X, ele a associe à imagem do objeto Y, e essa imagem seja forte o suficien-te para fazê-lo agir e consumir. Persuficien-tencendo o marketing, portanto, ao mundo da percepção, e menos ao do produto, é o aparato cognitivo humano que tem precedência sobre o mercado.

Cygler3 (2003) defende que a avalanche de marcas não é

o único motivo pelo qual somos compelidos a consumir mar-cas, ou seja, percepções – e não produtos. Outro problema é a absoluta falta de tempo do indivíduo contemporâneo. “A

2 Segundo o conceito

clássico da American Marketing Association (AMA): “Marketing is

the process of planning and executing the con-ception, pricing, pro-motion, and distribu-tion of ideas, goods, and services to create exchanges that satisfy individual and orga-nizational objectives”.

Para saber mais infor-mações, acessar o

si-te:

<http://www.mar-ketingpower.com /live>. Acesso em: 12/2/2004.

3 Jimmy Cygler é

pro-fessor do MBA da ES-PM-SP e presidente da Resolve! Global Mar-keting. Em seu artigo na revista Exame, “O mundo é Matrix?”, o autor analisa o atual momento das estraté-gias de marketing. Dis-ponível em: http://bus- ca.abril.com.br/exa-me/result.jhtml?si=exa me&qu=matrix. Acesso em: 8/8/04.

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vida moderna ampliou brutalmente nossas incumbências. Um estudo recente afirma que 100 anos de vida útil não são suficientes para assimilar o conhecimento gerado na face da Terra num único dia”4. A decisão de compra há muito

deixou de ser uma decisão racional e individual. É claro que o produto deve funcionar, ser de boa qualidade, ser durável, ter garantias, assistência técnica etc., mas quem tem tempo para tanta racionalidade? Considerando a influên cia da mí-dia na vida cotimí-diana, o autor calcula que

uma criança chega hoje à 1a série com suas sinapses moldadas por 6.000 horas de massacre televisivo, uma realidade que faz com que a cena em que Neo, personagem central de Matrix, aparece plugado diretamente no cérebro transforme-se numa metáfora menor, quase inocente5.

Esse bombardeio midiático moldará a forma como a criança enxerga o mundo, e a publicidade, com suas táticas de sedução e por seu enfoque, ou seja, por ter objetivos bem definidos, cria percepções que pouco têm a ver com o pro-duto em si. “O que é realmente muito complicado de avaliar é o que a mídia não comunica”, afirma Cygler (2003). Ao forjar imagens mentais capazes de simular “realidades”, a publicidade, norteada pelos estudos de marketing, suscita o questionamento do autor: “existe, de fato, a tal da realidade, ou tudo é Matrix? Muito cuidado ao responder. Se sua op-ção for pela segunda hipótese, você poderá ser desplugado sumariamente deste mundo”6.

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Publicidade e cultura: desvios e aproximações

Ao realizar uma operação simultaneamente estética e mercadológica, a publicidade extrapola em sua finalidade o

4 Idem, ibidem. 5 Idem, ibidem. 6 Idem, ibidem.

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âmbito estrito do mercado, para orientar, antecipar ou pro-duzir valores e modelos de comportamento, configurando-se numa instituição social.

Veículo de informação coletiva, a publicidade, assim como a família, a escola e os mass media, revela-se um agente de transmissão e de reforço de modelos culturais, para além de sua atividade comercial primeira. Ela influen-cia o indivíduo-consumidor a ter certa imagem dele mesmo; a ter certo modelo de conduta, que ela estimula a modificar ou a reforçar, conforme as mudanças do ambiente e as in-tencionalidades em questão (Cathelat 2001: 278).

Ao destacar o fenômeno da ampla estetização do coti-diano que ocorreu no mundo ocidental, a partir da segunda metade do século XX, a comunicação publicitária produz-se mediante a elaboração de narrativas que afetam os modos de apreensão do mundo, como orientadores – não normativos, mas sugestivos – das condutas. A eficácia dessa comunica-ção não ocorre com base no argumento convincente, mas numa retórica que, postulando realidades, opera de modo performativo. A operação publicitária realiza-se estetica-mente: dirige-se à recepção sensorial e relaciona-se, simul-taneamente, com a experiência do belo (Alves 1998: 10).

A retórica publicitária distancia-se da referencialidade ao produto, tornando-se cada vez mais sugestiva, icônica e até metalingüística, quanto mais se intensificam dois fatores: a multiplicação da oferta de produtos e marcas, equivalentes em tecnologia, e o desenvolvimento dos modos de produ-ção midiáticos, principalmente no que tange às tecnologias de impressão e processamento de imagens fotográficas e audiovisuais.

O sucesso mercadológico da publicidade reside em sua eficácia ao convocar um universo determinado de signos que, metaforicamente ligados à mercadoria anunciada, in-sira a mercadoria-signo em um universo de práticas e

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valo-res pertinentes a determinado grupo de receptovalo-res, supos-tos consumidores potenciais (Alves 1998: 1). A eficácia da peça publicitária será avaliada pela correspondência entre o desejo provocado e o consumo efetivo. A publicidade, ao exponenciar o traço “comunicador” dos bens, ao fornecer os dispositivos simbólicos de individuação desses objetos, contribui para a ritualização do consumo. Sabe-se que, por meio de rituais, os grupos selecionam e fixam – graças a acordos coletivos – os significados que regulam a sua vida (García Canclini 1997: 58).

Apesar de poder expressar-se em códigos, o ritual é mais eficaz quando surge aliado a bens materiais. Sob essa perspectiva, os bens são complementos ou acessórios dos rituais: o consumo é um processo ritualístico cuja função primeira consiste em dar sentido ao fluxo intenso dos acon-tecimentos e das informações cotidianas (Jhally 1995: 21). A mediação publicitária implica o conhecimento profun-do profun-do consumiprofun-dor. Por não ser possível calcular o efeito in-dependente da publicidade no processo de consumo é que Schudson (1984: 13) afirma que a “publicidade é bem menos poderosa do que clamam os publicitários e seus críticos”7.

Note-se que esse poder de produzir e disseminar padrões simbólicos e de comportamento não é específico da publici-dade, mas do conjunto de estratégias de comunicação midiá-ticas engendradas pela lógica do capital. Contudo, a publi-cidade ambiciona a totalidade da cultura quando engendra “modelos de desejo” cuja produção (sistemática) viabiliza-se no processo pelo qual “o gosto atribuível a um universo de receptores (o público-alvo) é transferido à mercadoria, como sua propriedade intrínseca” (Alves 1998: 10).

Isso não significa afirmar que a publicidade seja a cultura, porque a cultura é anterior ao mercado. Os bens podem ter funções econômicas e publicitárias, mas eles têm também outras dimensões, nem sempre funcionais, nem sempre

es-7 Do original em inglês: “advertising is much

less powerful than ad-vertisers and critics of advertising claim”.

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truturais ou fisiológicas a uma estrutura social. Os bens não são apenas produtos de uma sociedade de consumo, porque eles a precedem. Os bens estão para o homem como todas as outras dimensões da vida, já que não é senão “totalmen-te” (como propõe Mauss8) que a cultura se expressa.

Quanto à homogeneidade do sistema publicitário e sua redundância discursiva, a relação entre a publicidade e a opinião pública movimenta-se em outra direção. As pesqui-sas de mercado ditas “qualitativas” são mecanismos extre-mamente sofisticados de mapeamento e aferição das ten-dências desse “corpo social”. O que se vê como tendência desse conhecimento é um direcionamento, uma especifica-ção da forma argumentativa das campanhas, que restringe o espaço e a utilização das estratégias retóricas. Reduz-se o foco da comunicação a um elemento estético único que será amplificado pela repetição, pelo volume de inserções da campanha, ou seja, conquista-se a adesão do auditório pela via quantitativa (seja numérica, seja pela diversidade das mídias utilizadas).

Nesse sentido, a opinião pública é hoje a fonte e o alvo do sistema publicitário. Cabe a ele o processamento e a transformação dos desejos e tendências, ainda não elabora-dos elabora-dos públicos, em conteúelabora-dos estéticos capazes de espe-lhar e, ao mesmo tempo, moldar esses desejos. O hábito de “escutar” essa alteridade chamada auditório e o esforço em atender às solicitações desejantes dos sujeitos, ainda que esse esforço se restrinja aos bens consumíveis, geram uma cumplicidade que fortalece a relação entre a publicidade e a opinião pública.

O público-alvo circunscreve as possibilidades de um modelo de comportamento que se atualiza no domínio da recepção, e como a recepção da publicidade ocorre com uma larga margem de independência do consumo efetivo dos produtos que ela anuncia, seu papel de difusora de

mo-8 Em seu Ensaio sobre

o dom, Marcel Mauss

(1950: 275) estuda os fatos sociais totais ao forjar a equação con-creto = completo. Os fatos sociais são, ao mesmo tempo, religio-sos, econômicos, esté-ticos e morfológicos, quando são levados em consideração os sentimentos que desen-volvem os homens em grupo: “[...] podemos perceber o essencial, o movimento do todo, o aspecto vivaz, o ins-tante fugidio quando a sociedade e os ho-mens tomam consciên-cia sentimental deles mesmos e de sua situa-ção somente na relasitua-ção com o outro”.

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delos interpretativos do mundo torna-se ainda mais relevan-te (Alves 1998: 2).

A precedência do cultural confirma-se quando as ima-gens publicitárias globalmente difundidas geram um con-sumo mais imaginário que material. No Brasil, o discurso dominante não esconde que o usufruto de qualquer bem de mercado no país é privilégio de uma elite econômica. Para a maioria, que não tem acesso aos bens e serviços anunciados pela publicidade, esta se mostra uma entidade autocentrada e misteriosa, que não se refere a outra coisa senão a si mesma. Uma espécie de publicidade intransiti-va, pois “no Brasil há apenas um produto cujo consumo seja provavelmente mais generalizado do que em qualquer outra parte do mundo: a própria publicidade” (Ascher 1999: 11)9.

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A homogeneidade de um sistema de comunicação

Se é preciso ressaltar a ambigüidade do fenômeno pu-blicitário, objetivos comerciais e efeitos culturais, deve-se também insistir em sua unidade. A publicidade não é uma coleção aleatória de anúncios: para além da heterogenei-dade dos produtos, dos públicos, dos argumentos, existe a homogeneidade de um sistema de comunicação de massa (Cathelat 2001: 273).

A publicidade é uma técnica que expressa códigos in-ternacionais de elaboração simbólica. Os veículos de co-municação são meios tecnológicos de uma cultura, assim como os meios de transporte, os instrumentos de produção, os circuitos de distribuição, as formas de habitação e urba-nismo. A sociedade, graças às mídias, torna-se uma caixa de ressonância, em que os ecos amplificam ao infinito a

9 Nelson Ascher, em

ma-téria intitulada “O para-doxo da propaganda intransitiva”, pu blicada na Folha de S.Paulo, ca-derno Mais!, em 17/11/ 1996.

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mensagem e as reações que suscita. Essa redundância não implica a sinonímia das mensagens, mas a sua coerência (Cathelat 2001: 94-95).

Parte do poder da mensagem publicitária advém do fator redundância, ou seja, por mais que os conteúdos de todos os anúncios do mundo sejam diferentes, a mensagem de fundo é única: consiste em glorificar os prazeres e as vantagens da liberdade de escolha, defendendo as virtudes da vida priva-da e priva-da ambição material (Schudson 1984: 19). Ela idealiza o consumidor e o consumo. A essa redundância junta-se a pressão publicitária global e seu impacto repetitivo. A sim-plicidade dessa mensagem, sua ubiqüidade e sua repetição acabam por marcar profundamente os receptores em sua mediação cotidiana com a publicidade.

Assim, a publicidade assume a sua dimensão imaginária, para além das dimensões funcional e simbólica. Emprestan-do ao produto uma dimensão especular, pela qual o sujeito vê sua própria imagem, o produto incorpora as motivações mais profundas e irracionais de evasão, de metamorfose, de idealização e de alheamento de si. À sofisticação das recen-tes estratégias de marketing que visam mapear a “percep-ção” dos sujeitos, a publicidade a replica ao produzir uma linguagem espetacular, quebrando seus códigos habituais da demonstração técnica, para fazer o objeto transmutar-se numa parte do sonho do consumidor (Cathelat 2001: 39).

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A publicidade transforma o urbano em espetáculo

As cidades são, neste contexto, o palco privilegiado das mensagens publicitárias, que, inseridas no meio urbano, modificam a paisagem e fazem o passante reagir a elas de formas (in)diferentes. Um olhar diurno capta uma imagem

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diferente daquela de um olhar noturno. A luz e o néon têm a capacidade de transformar a paisagem, e neles podem fundir-se cores e texturas. A cidade contemporânea é um suporte de signos apreendidos instantaneamente, em que o seqüencial cede lugar ao simultâneo, em que forma e função chegam a ser unidades. “Como nos vídeos, a cidade se fez de imagens saqueadas de todas as partes, em qualquer ordem.” Para ser um bom leitor da vida urbana, “há que se dobrar ao ritmo e gozar as visões efêmeras” (García Canclini 1997: 133).

A mídia oferece estruturas para o dia, pontos de referên-cia, pontos de parada, pontos para olhar de relance e para a contemplação, pontos de engajamento e oportunidades de desengajamento. “A mídia é do cotidiano e, ao mesmo tem-po, uma alternativa a ele” (Silverstone 2002: 24-25).

Se as novas tecnologias aplicadas ao processo de pro-dução em escala igualaram os produtos entre si, e provo-caram a distância entre o objeto produzido e o produtor, as instituições capitalistas deslocaram esse diferencial para o momento do consumo, ritualizando-o. Portanto, quando os objetos chegam ao ponto-de-venda, eles são individualiza-dos, ganham singularidade e até uma certa aura em função da espetacularização.

Trata-se de um modo particular de reprodução da diver-sidade. As marcas utilizam cada vez mais a publicidade e a comunicação visual como distintivos simbólicos. Nessa dinâmica, o espaço urbano deixa de ser apenas o lugar da

produção da mensagem para se constituir no lugar da sua veiculação. E é necessário examinar a cidade como uma

soma de imagens, apenas parte delas publicitárias, mas so-bretudo como o lugar da relação entre os sujeitos e essas imagens, pois Debord (1997: 14) já atentava que o “espetá-culo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”. Ou, como afirma Ar-gan (1998: 232):

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é evidente que, se nove décimos da nossa existência acontecem na cidade, a cidade é a fonte de nove décimos das imagens sedimentadas nos diferentes níveis de nossa memória. Essas imagens podem ser visuais ou auditivas e, como todas as imagens, podem ser mnemônicas e perceptivas. Há muito a cidade deixou de ser um lugar de abrigo, proteção e refúgio, para se transformar num aparato de comunicação, no sentido das relações e fluxos. A percepção visual da cidade tem sido uma caótica e profusa organização dos sinais públicos e privados; das dua-lidades, dos confrontos e das diferenças físicas e visuais en-tre os diversos elementos que compõem a paisagem urbana (equipamentos e mobiliários, tais como bancas, cabines, postes, lixeiras etc.); da ausência de planos e projetos inte-grados e sistêmicos; da legislação genérica e permissiva e da incapacidade do poder público de gerir e de, conforme o caso, viabilizar ações corretivas (Minami 2001)10.

Se cada produção organiza o espaço segundo uma mo-dalidade própria, a produção imagética voltada para o con-sumo – publicitária – vai sugerir uma modalidade própria de arranjo demográfico, profissional, social e econômico. A lógica dessa produção, devido à concorrência, jamais será igualitária e pacífica. Mesmo que os atores do processo se associem, sempre haverá conflitos, inclusive pelo uso do espaço, exceto se a associação, além de econômica, for também técnico-jurídica.

No conflito pelo uso e controle do espaço, torna-se essen-cial o domínio das técnicas, pois o que há em determinado lugar é a operação simultânea de várias técnicas, como, por exemplo, as agrícolas, industriais, de transporte, comércio ou marketing, que são manejadas por grupos sociais porta-dores de heranças socioculturais diversas e ocorrem em um território também diverso.

10 MINAMI, Issao.

“Pai-sagem urbana de São Paulo: publicidade ex-terna e poluição visual”, jun. 2001. Disponível no site Vitruvius: http:// www.arquitextos.com. br/arquitextos/arq000/ esp074.asp. Acesso em: 15/10/2001.

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A publicidade é uma técnica, geralmente subordinada ao marketing, que participa do movimento do capital global, responsável pela legitimação das organizações que o pro-duzem, notadamente as corporações multinacionais. Essas empresas apresentam-se também como instituições, uma vez que impõem regras internas de funcionamento, inter-vêm na criação de normas sociais de fora de sua amplitude e tornam-se concorrentes das instituições da sociedade ci-vil, e até mesmo do Estado.

Cabe, portanto, examinar a publicidade como uma ex-periência no cotidiano espacial da cidade, como o locus da atuação de quem produz e veicula uma técnica específica, chamada mídia exterior, que não pode ser desvinculada de uma tríplice relação que lhe é intrínseca, ou seja, espaço urbano, infra-estrutura de transporte e de comunicações (Deák 1991: 114). Antes de ser uma representação do ima-ginário coletivo citadino, os suportes publicitários urbanos refletem a formação e a relação daqueles mecanismos e das categorias correspondentes a eles: localização, deslocamen-to e informação.

A tridimensionalidade retórica e estética dos conteúdos publicitários explora os recursos técnicos oferecidos pelos suportes e veículos nos quais eles serão alocados. Os con-teúdos direcionados à dita mídia exterior serão marcada-mente sucintos, justamarcada-mente pela limitação da “atenção” que o suporte da mídia exterior é capaz de gerar. Seu impacto é inversamente proporcional à manutenção da atenção do sujeito em fluxo por conta das contingências de recepção.

A paisagem publicitária urbana – e a de São Paulo em particular – não é produto de elaborações ou tramas ma-quiavélicas de capitalistas insensíveis que visam apenas ao lucro e à exploração do consumidor. Tipos de capitalismo e de capitalistas e estratégias de investimento são fatores li-gados à formação e à transformação das redes urbanas e dos

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espaços econômicos da cidade. Por trás delas – pelo menos nas economias de tipo liberal –, encontram-se os agentes reais, elites mais ou menos enraizadas, detentoras do ca-pital, do conhecimento ou capazes de inovações técnicas. É na estrutura social das cidades, mais que na soma das suas funções, que se deveria procurar a base da organização territorial, por meio da observação histórica, desde a acu-mulação de renda ligada à posse da terra até à constituição dos territórios de sistemas simbólicos, como a publicidade urbana.

Os processos que a produzem geram um espaço contro-verso de interesses dos anunciantes, das agências, das exi-bidoras, dos fornecedores, enfim, dos implicados no pro-cesso de produção. Uma rede infinita de conflitos convive diariamente com a pressão pela sobrevivência, dada a im-previsibilidade dos fatores que norteiam a atividade. É bom lembrar que o lançamento de uma campanha publicitária é sempre uma incógnita, sujeita a sucessos e fracassos. Ao mesmo tempo, é preciso pensar que o consumidor não é mais um mero número estatístico de uma massa inqualifi-cável e amorfa, mas um sujeito com capacidade crítica para dar outros significados aos estímulos midiáticos, com base em seu uso e em sua experiência cotidiana.

Um olhar crítico às imagens publicitárias das ruas im-plica historicizá-las como um apêndice imagético do modo de produção capitalista e perceber o mercado como uma construção social que imprime um valor cultural a um pro-duto ou serviço. E as condicionantes para perceber que a publicidade não é somente uma atividade comercial, mas também um discurso ideológico, pressupõem pensar no consumidor/espectador como um sujeito ativo e crítico, no publicitário como um ator social e na mensagem comercial como um produto cultural.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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