• Nenhum resultado encontrado

Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, dois liberais críticos? : o momento decisivo de crise e fim da Escravidão e do Império no Brasil (1879-1889)

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, dois liberais críticos? : o momento decisivo de crise e fim da Escravidão e do Império no Brasil (1879-1889)"

Copied!
177
0
0

Texto

(1)

LUCAS BAPTISTA DE OLIVEIRA

JOAQUIM NABUCO E RUI BARBOSA, DOIS LIBERAIS CRÍTICOS?

O momento decisivo de crise e fim da Escravidão e do Império no Brasil

(1879-1889

)

CAMPINAS

(2)

JOAQUIM NABUCO E RUI BARBOSA, DOIS LIBERAIS CRÍTICOS?

O momento decisivo de crise e fim da Escravidão e do Império no Brasil (1879-1889)

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) como parte dos requisitos exigidos para obtenção do título de Doutor em Ciência Política.

Orientadora: Walquíria Gertrudes Domingues Leão Rego

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO LUCAS BAPTISTA DE OLIVEIRA E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. WALQUIRIA GERTRUDES DOMINGUES LEÃO REGO

CAMPINAS

(3)

Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Informaçõespara Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, two criticai liberais? Palavras-chave em inglês:

Liberalism Criticai Slavery Nation-state

Área de concentração: Ciência Política Titulação: Doutor em Ciência Política

Banca examinadora:

Walquíria Gertrudes Domingues Leão Rego [Orientador] Bernardo Ricupero

Sebastião Carlos Velasco e Cruz Andrei Koerner

Gabriela Nunes Ferreira Data de defesa: 22-03-2019

Programa de Pós-Graduação: Ciência Política Baptista, Lucas, 1985-

B229j Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, dois liberais críticos? : o momento decisivo de crise e fim da Escravidão e do Império no Brasil (1879-1889) /

Lucas Baptista de Oliveira. - Campinas, SP: [s.n.], 2019. Orientador: Walquíria Gertrudes Domingues Leão Rego.

Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1.Nabuco, Joaquim, 1849-1910. 2. Barbosa, Rui, 1849-1923. 3.

Liberalismo. 4. Crítica. 5. Escravidão. 6. EstadoNacional. 1. Rego, Walquíria Gertrudes DominguesLeão, 1946-. li. Universidade Estadual de Campinas.

(4)

A Comissão Julgadora dos trabalhos da Defesa de Tese de Doutorado, composto pelos professores doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 22/03/2019, considerou o candidato Lucas Baptista de Oliveira aprovado.

Profa. Dra. Walquíria Gertrudes Domingues Leão Rego

Prof. Dr. Andrei Koerner

Prof. Dr. Bernardo Ricupero

Profa. Dra. Gabriela Nunes Ferreira

Prof. Dr. Sebastião Carlos Velasco e Cruz

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

(5)
(6)

Agradeço também ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Unicamp, pelo acolhimento e suporte desta pesquisa. Vale dizer, o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Para todos e todas que, direta ou indiretamente estão presentes nas linhas deste trabalho. Em especial, à minha orientadora Walquíria Gertrudes Leão Rego, com quem trabalhei desde 2007. Certamente ela é a principal artífice dos possíveis méritos desta tese; do mesmo modo, em que os erros e incongruências do argumento são todos meus.

Agradeço imensamente às contribuições acadêmicas valiosas de André Kaysel, Andrei Koerner, Bernardo Ricupero, Gabriela Nunes Ferreira e Sebastião Velasco.

Por fim, agradeço pelo convívio afetivo e intelectual, sempre acolhedor e enriquecedor, de Alessandra Lopes, Álvaro Okura, Diego Stadoan, Mário Aquino Alves, Rubem Murilo Leão Rego, Renata Manzini e Wilson Vieira.

(7)

monotonia. Redobrei a atenção; fitei a vista; ia enfim ver o último – o

último!; mas então já a rapidez da marcha era tal que escapava toda a compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um século. Talvez por isso

entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo – menos o hipopótamo que ali me trouxera e, que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato [...]”.

Machado de Assis, Memórias

Póstumas de Brás Cubas.

“O gato, que nunca leu Kant, é talvez um animal metafísico”

Machado de Assis, Quincas

(8)

em Joaquim Nabuco e Rui Barbosa privilegiando analisar o momento decisivo de crise e fim da Escravidão e do Império no Brasil (1879-1889). No plano das semelhanças, se buscará demonstrar – ancorando-se na perspectiva da “forma ensaio” colocada por Gyorgy Luckács e Theodor Adorno - em que medida a crítica à escravidão se realiza plenamente na “forma” dos escritos, discursos e pareceres destes abolicionistas; revelando como eles, ao projetarem amplas “expectativas de futuro” sobre a abolição, tiveram consciência do que chamamos aqui de totalidade da Escravidão: entendendo-a como dado mais amplo do que a mera existência empírica de senhores e escravos. Nabuco e Rui, cada um a seu modo, perceberam que esta instituição estava presente em todos os retalhos ou fragmentos da nação em formação; porém, ao mesmo tempo, não se mostrava como causa original e/ou fator explicativo central da realidade; ou como consequência definitiva e/ou imutável da experiência histórico-social brasileira. Nas vozes destes liberais, a Escravidão ganha força de unidade crítica, pois é tomada enquanto dado da conjuntura através do qual a totalidade – leia-se a incompletude nacional - se faz resplandecer; abrindo ensejo para que a abolição fosse reivindicada como conjunto de reformas sociais e políticas que visava reconstruir o Brasil sob a égide da união das raças em liberdade. Nossa hipótese é que Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, ao operar este movimento, deslocam a crítica liberal predominantemente político-jurídico-institucional – característica da circulação desta doutrina por aqui – em direção à crítica político-social, tornando-se com isto portadores do que denominamos de liberalismo crítico.

Para captar os contrastes específicos, se lançará o olhar para o contexto de crise final do Império (1888-1889), quando Nabuco e Rui mobilizaram o liberalismo para produzir narrativas diversas sobre o então recente evento da abolição e, assim, lançar diferentes “projetos de futuro” para o Brasil. De um lado, o pernambucano manteve-se firme na defesa do princípio da monarquia constitucional, argumentando sobre a dupla importância da Coroa para a constituição do sentimento de patrie brasileiro: seja como poder moral independente e, por sua vez, indispensável no combate dos possíveis desvios separatistas e/ou oligárquicos que emergiriam com a federalização; mas também, pela função simbólica que o poder dinástico poderia exercer no âmbito da “psicologia das massas”. A suposta imagem “civilizada” e “acolhedora” da figura de Dom Pedro II, engrandecida e popularizada pelo ato

(9)

empenhasse em executar as reformas socais necessárias para emancipar o país da Escravidão, funcionando como agente principal de uma espécie de segunda abolição. Se assim fosse, a dinastia assumiria o papel de instituição cerimonial - tal como definiu Herbert Spencer (1820- 1903) -, servindo de referência para a transformação progressiva dos costumes pátrios em direção à formação de uma cultura cívica menos oligarquizada e mais sensível aos diferentes e desiguais interesses provinciais e/ou regionais existentes no vasto território imperial.

Já Rui Barbosa, migrou de vez para o lado republicano depois de o congresso liberal rejeitar, em maio de 1889, a proposta da federação em prol de medidas descentralizadoras graduais. Republicanismo esse que, ao buscar menos inspiração em Comte ou Spencer, mobilizava o ideal estadunidense de solidariedade humana para reivindicar a atuação do Estado na eliminação progressiva dos efeitos das instituições servis entre nós; visando, assim, a construção de uma atmosfera social mais propícia ao pleno desenvolvimento das liberdades e capacidades individuais. Para tanto, era necessário mudar radicalmente a organização político-jurídica-institucional do Estado imperial – a começar pela revogação da Constituição de 1824: de modo que a República deveria prever a preservação da unidade nacional através de uma magistratura federal forte e independente; e, ao mesmo tempo, reestabelecer a representação dos diversos interesses locais e regionais do país, alargando-a com a criação de entes federativos autônomos. Isto desde que a União fosse sensível à desigualdade e diversidade na organização desses interesses, estando legitimada a atuar para corrigi-los. E, para lançar tais expectativas, Rui interpreta o evento da abolição como ato revolucionário: uma ação gloriosa perpetrada pela ainda tímida opinião pública, pelo baixo oficialato das forças armadas e pela rebeldia dos próprios escravos; e na qual nem o poder dinástico, nem os partidos oficiais haviam realmente contribuído com a causa. Por isso, apostava no Exército como reservatório moral das esperanças liberais: tomando esta instituição enquanto força política e simbólica que personificava as tradições nacionais na paz e na guerra; e que, portanto, poderia servir como referência para construção do “sentimento de patrie” mais democrático entre nós. Neste movimento, o projeto republicano assume duplo sentido: implica no óbvio rompimento com a monarquia e, por sua vez, com o poder dinástico; mas também, prevê a manutenção da unidade territorial e política forjada pelo Império, buscando

(10)
(11)

liberalism in Joaquim Nabuco and Rui Barbosa privileging to analyze the decisive moment of crisis and end of Slavery and Empire in Brazil (1879-1889). On the plane of similarities, an attempt will be made to show that the critique of slavery is fully realized in the "form" of the writings, discourses and opinions of these abolitionists, and anchored in the perspective of the "essay form" posed by Gyorgy Luckács and Theodor Adorno; revealing how they, in projecting broad "expectations of the future" on abolition, were aware of what we call here the totality of Slavery: understanding it as a datum broader than the mere empirical existence of masters and slaves. Nabuco and Rui, each in his own way, realized that this institution was present in all the fragments or fragments of the nation in formation; but at the same time it did not show itself as the original cause and / or central explanatory factor of reality; or as a definitive and / or immutable consequence of the Brazilian historical-social experience. In the voices of these liberals, Slavery gains strength of critical unity, since it is taken as an empirical data of the conjuncture through which the totality - read the national incompleteness - is made to shine; opening the way for abolition to be claimed as a set of social and political reforms aimed at rebuilding Brazil under the aegis of the union of free races. Our hypothesis is that Joaquim Nabuco and Rui Barbosa, in operating this movement, displaced the liberal critique predominantly political-juridical-institutional - characteristic of the circulation of this doctrine here - towards the political-social critique, becoming thereby bearers of what we call it critical liberalism.

To capture the specific contrasts, one will look at the final crisis context of the Empire (1888-1889), when Nabuco and Rui mobilized liberalism to produce diverse narratives about the then recent event of abolition and, thus, to launch different "projects of the future "for Brazil. On the one hand, the Pernambuco remained firm in defending the principle of constitutional monarchy, arguing on the double importance of the Crown to the constitution of the feeling of Brazilian patrie: either as independent moral power and, in turn, indispensable in the fight against possible separatist and / or oligarchic deviations that would emerge with federalization; but also by the symbolic function that dynastic power could exert in the sphere of "mass psychology." The supposed "civilized" and "welcoming" image of Dom Pedro II, magnified and popularized by the act of Princess Isabel for the freedom of slaves, could open

(12)

Slavery, functioning as the main agent of a kind of second abolition. If this were the case, the dynasty would assume the role of ceremonial institution - as Herbert Spencer (1820-1903) defined it -, serving as a reference for the progressive transformation of patriotic customs towards the formation of a civic culture less oligarchic and more sensitive to the different and uneven provincial and / or regional interests in the vast imperial territory.

Rui Barbosa, on the other hand, migrated to the republican side once the liberal congress rejected in May 1889 the federation's proposal for gradual decentralization measures. Republicanism, which, when seeking less inspiration in Comte or Spencer, mobilized the American ideal of human solidarity to claim the state's action in the progressive elimination of the effects of the servile institutions among us; aiming at the construction of a social atmosphere more conducive to the full development of individual freedoms and capacities. For that, it was necessary to radically change the political-juridical-institutional organization of the imperial state - beginning with the repeal of the Constitution of 1824: so that the Republic should foresee the preservation of national unity through a strong and independent federal judiciary; and, at the same time, reestablish the representation of the various local and regional interests of the country, extending it with the creation of autonomous federative entities. This since the Union was sensitive to the inequality and diversity in the organization of these interests, being entitled to act to correct them. And in order to launch such expectations, Rui interprets the event of abolition as a revolutionary act: a glorious action perpetrated by the still timid public opinion, by the low military officers and by the rebelliousness of the slaves themselves; and in which neither the dynastic power nor the official parties had actually contributed to the cause. For this reason, he bet on the Army as a moral reservoir of the liberal hopes: taking this institution as a political and symbolic force that personified national traditions in peace and war; and which could therefore serve as a reference for the construction of the most democratic "patrie sentiment" among us. In this movement, the republican project assumes a double meaning: it implies an obvious break with the monarchy and, in turn, with the dynastic power; but also foresees the maintenance of the territorial and political unity forged by the Empire, trying to avoid that the unequal provincial interests were conformed in weak republics, atrophied or artificially developed.

(13)

INTRODUÇÃO ... 19

PARTE I – ABORDAGEM E CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA ... 23

CAPÍTULO I – Por que liberalismo crítico? ...25

1.1 – A fantasia do favor e a Escravidão como totalidade ...25

1.2 - Consolidando o Estado Imperial (1837-1850): as Terras e a Escravidão ...35

1.3 - A cultura “bacharelesca”: o “liberalismo de Estado” ...47

CAPÍTULO II – O momento decisivo de crise e fim da Escravidão e do Império (1879-1889) ... 54

2.1 – O início crise escravista e do Império (1868-1871) ...56

2.2 - Nabuco e Rui no momento decisivo da crise (1879-1889) ...72

PARTE II – DEMONSTRAÇÃO ... ...100

CAPÍTULO III – A esperança abolicionista de Nabuco ...102

3.1 – Os vários Nabucos ... ...102

3.2 – O Abolicionismo como “forma” ...119

3.3 – O projeto da federação monárquica: a Coroa como instituição cerimonial ...143

(14)

4.3 – A abolição e o futuro: a esperança republicana de Rui ...161 Considerações

Finais ...165 BIBLIOGRAFIA ...166

(15)

Obras de Joaquim Nabuco:

E. – A Escravidão (1870)

PAN – A polêmica Alencar-Nabuco (1875)

A – O Abolicionismo (1883)

CAR – Campanhas abolicionistas do Recife (1884-1885)

DP – Discursos Parlamentares (1881-1887) D - Diários (1873-1888)

MF – Minha Formação (1900) Obras de Rui Barbosa:

OCRBa – 1865-1872

OCRBb – 1870-1875

OCRBc – Pareceres Educacionais (1883)

OCRBc – Parecer emancipacionista (1884)

OCRBd – O ano abolicionista (1885)

OCRBe – 1886-1888

(16)

APRESENTAÇÃO

O trabalho que o leitor tem em mãos é resultado de uma trajetória aberta em 2010, quando ingressei no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do IFCH/Unicamp. Em junho de 2013, defendi a dissertação Linguagens do Abolicionismo no Brasil: a nação no

ideário político de Joaquim Nabuco, sob a orientação da Profa. Dra. Walquíria Leão Rego; e cujo argumento se centrou em demonstrar a particularidade do pernambucano em compreender a Escravidão como obstáculo central à formação do Brasil como comunidade política e moral assentada sobre o princípio da igualdade social. Sobretudo, porque dificultava o surgimento de setores empregadores dinâmicos e mais bem distribuídos pelo território nacional, atrofiando a demanda por salários e, por sua vez, privando grande parte da população – em geral, pessoas livres e pobres do interior - do direito a condições dignas de trabalho. Logo, para Nabuco, cabia ao Estado, entre outras coisas, estimular a reforma agrária, buscando facilitar o acesso a terra à população sem recursos e sem emprego; bem como, aos imigrantes europeus que estavam chegando por aqui. O Estado também deveria, segundo ele, garantir a instrução pública: oferecendo educação técnica e cívica aos cidadãos, formando-os para o trabalho e para a vida - acrescentando-se de um auxílio social e financeiro especial para que os ex-escravos se inserissem dignamente no mundo da cidadania.

Ao longo desta pesquisa, o principal objetivo foi entender o impacto que a experiência

abolicionista (1868-1888) exerceu as ideias de Joaquim Nabuco, fazendo com o liberalismo –

formatado na atmosfera anglófila e conservadora do establishment imperial – fosse mobilizado para enfrentar a questão social da Escravidão. Visando, assim, conscientizar a Lavoura sobre os deveres morais da propriedade, na tarefa de esclarecê-los acerca dos impasses que esta classe representava a efetivação de alguns princípios universais da doutrina liberal entre nós: como a autonomia pessoal, a liberdade individual, o empreendedorismo, a meritocracia e a prosperidade. Por isso, como reivindicava Nabuco, a abolição deveria ir além da liberdade formal dos escravos, prevendo a execução de um amplo projeto de reformas sociais e políticas que, para ser concretizado, dependeria do compromisso moral e suprapartidário de toda nação em emancipar a si mesma da Escravidão. Só assim, no futuro, os próprios trabalhadores poderiam tomar as decisões sobre seus destinos e sobre os destinos do país.

(17)

Mas saltava aos olhos também a diversidade de discursos “modernizantes” ou “progressistas” que começaram a pipocar neste contexto e que tomam forma com a circulação das teorias em voga na Europa entre os debatedores locais – teorias como o positivismo, o

evolucionismo, a criminologia e o racialismo. Não por acaso, a sétima edição do Dicionário Moraes, de 1877, acusou alteração no verbete progresso, que outrora significava tão somente prosperidade econômica, ampliando o sentido do termo: pensado agora como desenvolvimento de um país, de uma região, da civilização e/ou da humanidade. Na verdade,

o amplo e difuso significado da palavra ganha sentido à luz da crise e fim do Império (1868-1889), quando a hegemonia política e cultural bacharelesca foi estremecida pela entrada de outros atores em cena. Os setores oriundos da Escola militar e das escolas profissionalizantes, como a Politécnica, passaram a disputar com os bacharéis em Direito - ou “casacas” - as novas aspirações e posturas de progresso, lançando mão de estratégias políticas variadas para

modernizar o país. No bojo deste processo, formaram-se cinco principais grupos político-

ideológicos: a) os liberais republicanos “evolucionistas”; b) os federalistas positivistas gaúchos; c) os federalistas positivistas paulistas; c) os positivistas abolicionistas e d) os novos

liberais, no qual estavam Joaquim Nabuco e Rui Barbosa1.

Contudo, como alerta Ângela Alonso, todo este movimento de ideias se apresenta mais como processo de disputa política entre os diferentes grupos; e não na edificação de novos sistemas filosóficos, interessados em interpretar a realidade da época; ignorando, na maioria das vezes, alguns problemas cruciais da sociedade brasileira, sobretudo a Escravidão – salvo honrosas exceções, como Joaquim Nabuco. Sendo assim, pensamos que incorporar o liberalismo em Rui ao objeto desta análise, contrastando-o com as ideias de Nabuco, poderia ser um modo de captar e melhor qualificar a circulação deste “bando de ideias novas”, tal qual anunciou Sílvio Romero (1851-1914); além de contribuir para o maior esclarecimento do ideário político destes liberais. Afinal, qual novo liberalismo é este? Projeta-se como novo em relação a quê? Há diferenças entre os novos liberais? Lembrando que, tanto Nabuco, quanto Rui: 1) possuíam certa autonomia em relação aos partidos existentes e à sociedade escravista da época; 2) e, ao mesmo tempo – e esse é o aspecto essencial - ganharam liberdade e participação na soberania suprapartidária que, para eles, a luta pelo fim da escravidão

1 ALONSO, Ângela. Ideias em movimento: a geração de 1870 e a crise do Brasil-Império. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2002, pp. 122-125; 179-188.

(18)

implicava. Ambos tiveram consciência de que não era mais possível ir contra a torrente abolicionista dos anos 1880; esforçando-se em descrever o relâmpago social em curso na tentativa de amplia-lo e dirigi-lo.

O argumento central consiste em mostrar em que medida o liberalismo abolicionista, para ampliar as expectativas sobre a abolição, precisou descobrir, na própria noção de

progresso, a estrutura temporal correspondente ao modo de ser nacional: uma nacionalidade

inevitavelmente marcada pela violência da Escravidão, mas que poderia e deveria passar por mudanças civilizatórias2. Por isso mesmo, as ideias de Nabuco e Rui não deixam de

apontar - e ainda interpelar – o nosso futuro, sendo representantes da parte positiva do

liberalismo indeciso, diagnosticado por Florestan Fernandes, que caracteriza a formação e

desagregação da sociedade senhorial e escravocrata no Brasil3. O ponto alto desse liberalismo aparece justamente na polarização utópica presente nos discursos e escritos destes abolicionistas, na tentativa de tolerar o fato de sermos um dos últimos países escravistas do planeta (presente); e, por sua vez, buscando lançar estratégias de progresso que visassem não só a liberdade dos escravos, mas a emancipação de toda nação (futuro). Deste modo, estes liberais, ao se engajarem na luta pela abolição, acabam por exercer uma função crítica em relação ao liberalismo professado no Brasil até então, colocando desafios que ainda ecoam no debate contemporâneo sobre o desenvolvimento da democracia no país e no mundo. Seja no âmbito das liberdades individuais, ao destacarem os obstáculos legados pela experiência escravista à efetivação de alguns direitos civis fundamentais - como a liberdade religiosa e a liberdade de pensamento. Quanto no plano social, exigindo que o Estado eliminasse os efeitos da instituição servil através da reforma agrária, como também garantindo o direito à educação e ao trabalho digno para todas e todos os cidadãos: independente de sexo, religião, cor e/ou

raça.

2 KOSELLECK, Reinhart. Segundo Capítulo. In: Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo

burguês; tradução original do alemão de Luciana Villas Boa Castelo Branco. Rio de Janeiro: EDUERJ:

Contraponto, 1999, p. 97-102.

3 FERNANDES, Florestan. Implicações socioeconômicas da Independência. In: A Revolução Burguesa no

(19)

Feitas estas considerações, impõe-se esclarecer como Joaquim Nabuco e Rui Barbosa mobilizaram o liberalismo disponível para enfrentar o que – inspirados em Gyorgy Luckács e Theodor Adorno - chamamos de totalidade da Escravidão; alargando, assim, as expectativas

de futuro sobre a abolição: tomada como conjunto de reformas sociais e políticas necessárias

para refundação nacional sobre a união das raças em liberdade. Nossa hipótese é que, os discursos e escritos destes abolicionistas se mostram como a forma mais bem acabada da

crítica liberal da Escravidão entre nós. Renovando a circulação nacional desta doutrina a partir

da assimilação do repertório político e moral do movimento abolicionista internacional; como também, das ideias dos liberais fabianistas ingleses, que tinham uma visão menos negativa do Estado e mais sensível à questão social - sendo, por isto, portadores do que Harold Laski chamou de humanitarismo óbvio 4. Contudo, Nabuco e Rui tomaram caminhos distintos depois do treze de maio, produzindo narrativas diversas sobre o então recente evento da abolição para lançarem diferentes “projetos de futuro” ou “estratégias de progresso” ao Brasil. Enquanto o primeiro se manteve firme na defesa do princípio monárquico-constitucional, o segundo migrou de vez para o lado republicano. Vejamos, portanto, como se pretende, ao privilegiar a análise do momento decisivo de crise e fim da Escravidão e do Império no Brasil (1879-1889), desenvolver a hipótese em tela, buscando captar os nexos comuns e contrastes específicos do ideário político destes liberais.

INTRODUÇÃO

Ao lançar esta hipótese, partimos da premissa de que a crítica liberal-abolicionista em Joaquim Nabuco e em Rui Barbosa escapa – ou não se encaixa plenamente – às categorias explicativas duais já consagradas na história do pensamento político brasileiro, quais sejam:

4 A expressão “humanitarismo óbvio” foi utilizada por Harold Laski para distinguir o novo liberalismo que surge no bojo da expansão capitalista inglesa do século XIX - liberalismo esse que vai tomando certa consciência das contradições do próprio sistema que ele mesmo legitimava. Num momento em que se via o crescer do socialismo, os negócios pareciam rebelar contra as doutrinas liberais em voga, na medida em que o resultado prático do capitalismo – a despeito de ter possibilitado melhores condições de liberdade que o Antigo Regime – acabou por produzir o trabalho infantil, a insalubridade e a miséria do povo. Desse modo, estes novos liberais – como T.H.Green, Hobhouse e, antes de todos esyes, o próprio Stuart Mill – exigiam um intervencionismo estatal em nome de condições mais humanitárias de cidadania, colocando-se contra o domínio total do Estado pela burguesia. Ver: LASKI, Harold. Historia del liberalismo europeo. Del fondo de cultura econômica: México, 1936, p.165-168.

(20)

1) liberais doutrinários x autoritários instrumentais (Wanderley Guilherme dos Santos); 2) ideologia de Estado x ideologia de mercado (Bolívar Lamounier); 3) americanistas x iberistas (Luiz Werneck Vianna); mais recentemente, 4) idealistas constitucionais x idealistas orgânicos (Gildo Marçal Brandão, inspirado em Oliveira Vianna) e 5) liberalismo democrático x retórica oligárquica (Christian Lynch). Deste modo, a proposta é indicar as

semelhanças e diferenças entre estes liberais, demonstrando como mobilizaram a noção de

progresso no momento decisivo de crise e fim da escravidão e do Império no Brasil

(1879-1889). Para levar a cabo esta tarefa, buscamos inspiração na abordagem dos conceitos de Reinhart Koselleck, principalmente no contraste que atribui às categorias espaço de

experiência/horizonte de expectativas, com o objetivo de captar de que modo a ideia de progresso é articulada pelo liberalismo abolicionista em Nabuco e Rui. Tendo em vista que,

na teoria da modernidade de Koselleck, o progresso se apresenta como primeiro conceito genuinamente histórico: apreendendo, em um conceito único, a assimetria temporal entre a

experiência histórica e o horizonte de expectativas. Se, à luz da experiência histórica, tal

assimetria foi muita vezes restrita à marcha inexorável do progresso material, sob ritmos nacionais diversos; no plano das ideias, este "progresso" não foi mais que uma tentativa para compreender a modernidade como um novo tempo, exigindo constantemente novas expectativas

quanto ao futuro5

.

Desta feita, a tentativa é destacar: 1) a intensidade que a experiência social abolicionista exerce ao liberalismo em Nabuco e Rui; 2) os diferentes projetos de futuro ou

estratégias de progresso que eles lançaram durante a crise final do Estado Imperial (1888-

1889). Lembrando, como propõe Gabriel Motzkin, que os momentos decisivos podem ou não caracterizar a história, mas eles certamente caracterizam nosso senso de experiência, especialmente quando ele é mediado pela retrospecção. Isto significa que, Nabuco e Rui não apenas criticaram a Escravidão, mas sustentaram que ela não tinha mais tempo; exigindo seu fim imediato, bem como a aceleração de reformas que eliminassem seus efeitos6. Sendo

5 KOSELLECK, Reinhart. Espaço de experiência e horizonte de expectativas. In: Futuro Passado (tradução do

original alemão Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira: revisão da tradução César Benjamin). Rio de

Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, pp.319-320.

6MOTZKIN, Gabriel. A intuição de Koselleck acerca do tempo na história. In: História dos Conceitos: debates e

(21)

assim, ambos – cada um a seu modo - pensaram e agiram em prol de reformas sociais e políticas: deslocando a crítica liberal preponderantemente jurídico- político-institucional em direção a critica político-social; e tornando-se, com isto, portadores do que chamamos de liberalismo crítico. Com esta abordagem, portanto, pretende-se evitar compará-los a partir de suas idiossincrasias pessoais e/ou origens de classe, como fazem Luiz Vianna Filho (1949) e Levi Carneiro (1985). E, sobretudo, tal qual argumenta Christian Lynch (2008), de entendê-los como representantes de dois caminhos que deveriam ser paralelos, mas que, naquele momento, na tortuosa estrada da modernização brasileira, eram perpendiculares: Nabuco na defesa da monarquia em prol das reformas

sociais, de um lado; e Rui, recém-convertido à República, lutando pela reforma política, de

outro7. Como se verá, nosso argumento é diverso.

No plano dos nexos comuns, se buscará demonstrar – ancorando-se na perspectiva da “forma ensaio” colocada por Gyorgy Luckács e Theodor Adorno - em que medida a crítica à escravidão se realiza plenamente na “forma” dos escritos, discursos e pareceres destes abolicionistas; revelando como eles, ao projetarem amplas “expectativas de futuro” sobre a abolição, tiveram consciência do que chamamos aqui de totalidade da Escravidão: entendendo-a como dado mais amplo do que a mera existência empírica de senhores e escravos. Nabuco e Rui, cada um a seu modo, perceberam que esta instituição estava presente em todos os retalhos ou fragmentos da nação em formação; porém, ao mesmo tempo, não se mostrava como causa original e/ou fator explicativo central da realidade; ou como consequência definitiva e/ou imutável da experiência histórico-social brasileira. Nas vozes destes liberais, a Escravidão ganha força de unidade crítica, pois é tomada enquanto dado da conjuntura através do qual a totalidade – leia-se a incompletude nacional - se faz resplandecer; abrindo ensejo para que a abolição fosse reivindicada como conjunto de reformas sociais e políticas que visava reconstruir o Brasil sob a égide da união das raças em liberdade.

7 LYNCH, Christian. A primeira encruzilhada da democracia brasileira: os casos de Rui Barbosa e

(22)

Para captar os contrastes específicos, se lançará o olhar para o contexto de crise final do Império (1888-1889), quando Nabuco e Rui mobilizaram o liberalismo para produzir narrativas diversas sobre o então recente evento da abolição e, assim, lançar diferentes “projetos de futuro” para o Brasil. De um lado, o pernambucano manteve-se firme na defesa do princípio da monarquia constitucional, argumentando sobre a dupla importância da Coroa para a constituição do sentimento de patrie brasileiro: seja como poder moral independente e, por sua vez, indispensável ao combate dos possíveis desvios separatistas e/ou oligárquicos que emergiriam com a federalização; mas também, pela função simbólica que o poder dinástico poderia exercer no âmbito da “psicologia das massas”. A suposta imagem “civilizada” representada pela figura de Dom Pedro II, somado ao ato da princesa Isabel pela liberdade dos escravos, poderia abrir margem para que a Coroa revitalizasse e/ou regenerasse os elementos nacionais da própria tradição imperial: como o território, a língua, a geografia, a história e os costumes. Tudo isso desde que o Estado se empenhasse em executar as reformas socais necessárias para emancipar o país da Escravidão, funcionando como agente principal de uma espécie de segunda abolição. Se assim fosse, a dinastia assumiria o papel de instituição cerimonial - tal como definiu Herbert Spencer (1820-1903) -, servindo de referência para a transformação progressiva dos costumes pátrios em direção à formação de uma cultura cívica menos oligarquizada e mais sensível aos diferentes e desiguais interesses provinciais e/ou regionais existentes no vasto território imperial.

Já Rui Barbosa, migrou de vez para o lado republicano depois de o congresso liberal rejeitar, em maio de 1889, a proposta da federação em prol de medidas descentralizadoras graduais. Republicanismo esse que, ao buscar menos inspiração em Comte ou Spencer, mobilizava o ideal estadunidense de solidariedade humana para reivindicar a atuação do Estado na eliminação progressiva dos efeitos das instituições servis entre nós; visando, assim, a construção de uma atmosfera social mais propícia ao pleno desenvolvimento das liberdades e capacidades individuais. Para tanto, era necessário mudar radicalmente a organização político-jurídica-institucional do Estado imperial – a começar pela revogação da Constituição de 1824: de modo que a República deveria prever a preservação da unidade nacional através de uma magistratura federal forte e independente; e, ao mesmo tempo, reestabelecer a representação dos diversos interesses locais e regionais do país, alargando-a com a criação de entes federativos autônomos. Isto desde que a União fosse sensível à desigualdade e

(23)

diversidade na organização desses interesses, estando legitimada a atuar para corrigi-los. E, para lançar tais expectativas, Rui interpreta o evento da abolição como ato revolucionário: uma ação gloriosa perpetrada pela ainda tímida opinião pública, pelo baixo oficialato das forças armadas e pela rebeldia dos próprios escravos; e na qual nem o poder dinástico, nem os partidos oficiais haviam realmente contribuído com a causa. Por isso, apostava no Exército como reservatório moral das esperanças liberais: tomando esta instituição enquanto força política e simbólica que personificava as tradições nacionais na paz e na guerra; e que, portanto, poderia servir como referência para construção de um “sentimento de patrie” mais democrático entre nós.

Para traçar o percurso argumentativo acima anunciado, o trabalho está dividido em duas partes. A Parte I – Abordagem e contextualização do problema contextualizar o liberalismo em Joaquim Nabuco e em Rui Barbosa ao momento decisivo de crise e fim da Escravidão e do Império no Brasil (1879-1889); a Parte II – Demonstração cujo objetivo é demonstrar de que modo o liberalismo abolicionista em Nabuco e em Rui foi mobilizado para enfrentar a totalidade da Escravidão; como também, indicar as diferentes expectativas de futuro destes liberais depois da abolição.

PARTE I – ABORDAGEM E CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA

A Parte I visa qualificar e contextualizar o que estamos chamando de liberalismo

crítico, no sentido de tomar Joaquim Nabuco e Rui Barbosa como portadores da “consciência

mais avançada possível” dos impactos da Escravidão entre nós. Desta feita, o Capítulo I – Por

que liberalismo crítico? busca esclarecer a abordagem em tela, partindo da perspectiva

crítica de Roberto Schwarz (1981) para lançar luz à relação entre a consolidação do Estado Imperial (1837-1850) e a estabilização semântica do conceito de liberal/liberalismo no Brasil.

Capítulo II - O momento decisivo de crise e fim da Escravidão e do Império (1879-1889)

objetiva indicar de que modo a crítica à escravidão se realiza plenamente na “forma” dos escritos, discursos e pareceres abolicionistas de Nabuco e de Rui, contextualizando o

liberalismo disponível mobilizado à época para enfrentar a totalidade da Escravidão. Neste

sentido, nosso argumento é o de que o liberalismo abolicionista amplia e inova argumentos da “tradição nacional”, cumprindo uma função crítica em relação ao liberalismo professado

(24)

no país até então. Fundamentalmente, o liberalismo abolicionista desloca a crítica liberal predominantemente político-jurídico-institucional em direção a uma crítica político-social, deixando-se diversamente influenciar pelas ideias dos “fabianistas” – em voga na Inglaterra de Gladstone – e pela experiência histórica de emancipação de outros países com passado escravista, em especial os abolicionistas estadunidenses, ingleses e franceses, para atacar a

(25)

CAPÍTULO I – Por que liberalismo crítico?

O primeiro capítulo tem o objetivo de situar o liberalismo em Joaquim Nabuco e em Rui Barbosa, estabelecendo a relação entre a história nacional do liberalismo e a experiência de “Statebuilding” em curso no país desde 1822; no sentido de considerar quais e como diferentes tradições políticas, culturais e ideológicas impuseram sua marca no processo histórico de formação e consolidação do Império (1822-1850). Processo esse, no qual se forja uma espécie de “liberalismo de Estado” que caracteriza o contexto político-linguístico do Segundo Reinado (1840-1889). Para tanto, dividimos o argumento em três partes. A seção (1.1) A fantasia do favor e a Escravidão como “totalidade” objetiva recuperar a perspectiva crítica de Roberto Schwarz (1981) para lançar luz ao mecanismo social do favor, destacando seus efeitos à circulação das ideias liberais no

Brasil, como também explicar de que modo articulamos a noção de totalidade para analisar o liberalismo abolicionista em Nabuco e Rui. Na seção (1.2) Consolidando o Estado Imperial (1837-1850): as Terras e a Escravidão busca-se indicar que, ao longo do

processo de consolidação do Estado Imperial (1837-1850) – cimentado sobre as formas institucionais modernas da justiça, da burocracia e o Parlamento –, é possível notar a formatação de uma cultura jurídico-política mais “nacionalizada” ou homogênea, representada pelos poucos e privilegiados possuidores de “saber especializado”: em larga medida, egressos das duas Faculdades de Direito da época. Foi nesse contexto que se promulgou a lei que abolia o abastecimento internacional de africanos, que reorganizou a produção escravista interna, bem como a Lei de Terras, que tentava “formalizar” a propriedade territorial nos termos da “propriedade burguesa moderna”. Na última seção,

(1.3) O debate bacharelesco e o

“liberalismo de Estado”,: apontamos de que modo essa cultura jurídico-política possibilitou a estabilidade semântica do termo liberal/liberalismo no Império, modelando o contexto político-linguístico que marca a disputa parlamentar do Segundo Reinado (1840-1889).

1.1 – A fantasia do favor e a Escravidão como totalidade

A) A circulação dos liberalismos e a fantasia do favor

A análise literária de Roberto Schwarz (1981) dá ensejo à compreensão singular da história nacional do liberalismo – liberalismo este em larga medida importado do outro lado do Atlântico –, incorporando o dilema moral do “senhor de escravos” como ponto de partida – e de chegada – desta circulação destas ideias. Contudo, vale dizer, enquanto a burguesia europeia nasce

(26)

revolucionando o modo de produção feudal, reivindicando o princípio da “autonomia da pessoa” contra os privilégios do Antigo Regime, no Brasil, se a mera presença da escravidão excluía quaisquer possibilidades de “autonomia pessoal”, a História torna-se ainda mais complexa porque os “escravistas” formaram – ao menos até quando este modo de produção veio a ser menos rentável que o trabalho assalariado – a classe essencialmente capitalista. A vinculação dependente desta classe ao mercado internacional, para onde a economia era voltada, impunha aos “proprietários e traficantes de pessoas” a aplicação prática de alguns princípios do raciocínio econômico-burguês.

Nesta conversão, a “racionalidade econômica do senhor”, coberta pela aparência do ideário liberal, assentava-se de fato sobre uma economia pré-moderna, possibilitando o florescimento do capitalismo comercial em forma de “preço” e “lucro”, mas dispensando a eficiência moderna do “trabalho assalariado”, que pressupõe a exploração máxima do operário num espaço mínimo de tempo. O avesso disso, era necessário espichar esse tempo para encher e disciplinar o dia do escravo. Logo, a especificidade da economia imperial reside nesta articulação original entre produção mercantil e trabalho servil. Ainda que a Escravidão tenha existido em outros momentos da História universal, no Brasil foi reinventada para estimular a transição do país rumo ao capitalismo moderno.8 Afinal, o tráfico negreiro abrira um setor do comércio altamente rentável e que foi fundamental à acumulação de capitais no mundo colonial.9 Vale lembrar que Portugal foi o único país europeu que empreendeu operações diretas e oficiais de caça de africanos, fazendo da África central a reserva de escravos indispensável ao desenvolvimento do Império na América. Para manter o lucrativo comércio, a escravidão mercantil foi estruturada sobre a complementaridade sul-atlântica, engendrando relações de subordinação e troca desiguais entre colônias lusitanas – o que fez de Angola a fornecedora principal de escravaria para assegurar a prosperidade da colônia- Brasil.10 Assim, com a emancipação nacional, reforçou-se a “propriedade subjetiva” do lucro,

8 CARDOSO DE MELLO, J. M. “As raízes do capitalismo retardatário”. In: Capitalismo tardio. São Paulo: Brasiliense, 1990, pp. 40-41.

9 NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial 1777-1808. São Paulo: Ed. Hucitec, 1983, pp.105-106.

10 ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 330-331.

(27)

escorando e potencializando a produção econômica na mesma base latifundiária e escravista que caracterizara a colônia.

A continuidade da Escravidão, substituindo a “autonomia” pelo trabalho compulsório que o monopólio da terra – representado pelo grande latifundiário – impunha ao escravo, estendeu os tentáculos da dominação sobre os “homens livres e pobres”, que têm a figura do “agregado” como sua caricatura mais expressiva11

. Naquele contexto, pode-se notar a divisão dos agregados – nem escravos, nem proletários, nem proprietários – de um lado, e da classe

possuidora de agregados, do outro, sendo a ideologia do favor o nexo fundamental que

articula esses estratos, configurando a dinâmica da sociedade escravista brasileira. Essa ideologia toma forma tanto na relação imediata de dependência material do agregado – livre e pobre – perante o “grande”, quanto entre os setores da elite imperial, que em geral compunham o quadro das profissões “liberais”, como a medicina, o jornalismo e, em especial, a advocacia. Acima de todas estas, porém, estava a “profissão” da política. Em Schwarz:

E assim como o profissional dependia do favor para o exercício de sua profissão, o pequeno proprietário depende dele para a segurança de sua propriedade, e o funcionário para o seu posto. O favor é nossa mediação quase universal – e sendo mais simpático do que o nexo escravista, a outra relação que a colônia legara, é compreensível que os escritores tenham baseado nele sua interpretação do Brasil, involuntariamente disfarçando a violência, que sempre reinou na esfera da produção. (SCHWARZ, 1981:16).

No plano das ideias, até pipocavam argumentos que a burguesia europeia tinha elaborado contra o arbítrio e a Escravidão, porém, como os próprios debatedores eram geralmente sustentados pelo favor do latifúndio, os antagonismos podiam conviver com facilidade. Sendo assim, o “proprietário de escravos” tornava-se um “capitalista” mais consequente que nossos maiores defensores de Adam Smith. Enfim, de que valiam as grandes abstrações liberais, tão usadas nos debates parlamentares, quando convertidas para o Brasil? Se na Europa a ideologia burguesa “descrevia falsamente a existência”, visando esconder a exploração do “trabalhador livre” pelo capitalista, a circulação nacional dessas ideias não cumpriu sequer este papel “reificador” da realidade.12

Ora, se por si só o escravismo desmente

11 FRANCO, Maria Sylvia. “A Dominação Pessoal”. In: Homens livres na ordem escravocrata. 4. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1997, pp. 68-95.

12 Para entender este raciocínio, é preciso ter em vista a complexa dialética luckacsiana entre o real e a

(28)

o liberalismo, nossa falsidade ideológica se manifesta num “sentido diverso, por assim dizer, original”. Sob a atmosfera do favor, o liberalismo, ao ser mobilizado para engrandecer a autoestima do próprio debatedor e seu benfeitor, acaba por legitimar a violência e o arbítrio da escravidão por meio de alguma “racionalização” possível – ou não. Logo, captar o sentido deste mecanismo ideológico exige entender o viés específico do favor e seus efeitos, fazendo com que o liberalismo gravitasse em torno de uma lei externa, que não lhe era própria.

Nossos debatedores, ao espelharem-se nas glórias da civilização europeia, muitas vezes copiavam o liberalismo para afirmar – ao menos ilusoriamente – o prestígio e o privilégio de serem “homens civilizados” num país de escravos. Neste contexto, portanto, as ideias tomam a ordem do ornamento, do adorno, em detrimento da intenção cognitiva e de sistema. Seu movimento “deriva sossegadamente do óbvio, do sabido de todos – da ‘inevitável superioridade’ da Europa – e liga-se ao momento expressivo, de autoestima e fantasia que existe no favor”.13 Então, o problema não era a cópia em si, mas como e por quem as ideias podiam ser copiadas, lembrando que no Império apenas uma classe copiava – classe essa essencialmente bacharelesca, formada nos bancos das duas Faculdades de Direito. Não por acaso, a “imitação” passou a ter conotação pejorativa justamente no final do século XIX – confundindo-se com o momento decisivo de crise e fim da Escravidão e do Império –, quando outros grupos sociais também estavam “aptos” a imitar ou criticar imitações.14

A presença de novas instituições de ensino nos anos 1870, principalmente a Escola militar e a

gerais, a singularidade de HCC consiste no paradoxo perpetrado por Luckács – sobretudo em relação ao padrão “Escola de Frankfurt” de marxismo – em ser, ao mesmo tempo, politicamente engajado e filosoficamente muito mais marcado pela dialética hegelianista-especulativa. É neste sentido que toda sua produção teórica pode ser considerada como fundadora de uma leitura do marxismo bastante afastada dos parâmetros positivistas que inspiraram o chamado marxismo soviético, incluindo elementos importantes para atingir a “consciência do real”, como a noção de “reificação” e do “fetiche” e a noção de “totalidade”. Desse modo, Luckács foi pensador fundante do marxismo ocidental, tal como o conhece hoje. De modo sofisticado, ele mostra que “a própria ciência história burguesa, visa, é verdade, estudos concretos; mas acusa, ao mesmo tempo, o materialismo

histórico de violar a unicidade concreta dos acontecimentos históricos. Seu erro está em pretender encontrar

esse concreto no indivíduo histórico empírico (trata-se de um homem de classe ou de um povo) e na

consciência dada empiricamente (quer dizer, dada pela psicologia individual ou psicologia das massas). Porém,

quando ela crê ter encontrado o que é de mais concreto, está o mais longe possível desse concreto, qual seja: a

sociedade como totalidade concreta, abarcando a compreensão da organização da produção num nível

determinado do desenvolvimento social e da divisão em classes que ela opera na sociedade” (COUTINHO, 1996:18-19. Ver mais em: “Luckács, a ontologia e a política”. In: ANTUNES, R. REGO, W. (Orgs). Luckács: um galileu no século XX. São Paulo: Jinkings Editora, 1996; LUCKÁCS, 1960 Apud CARDOSO, 1977: 31). 13

14

COUTINHO, 1996, p. 18.

SCHWARZ, Roberto. “Nacional por subtração”. In: Que horas são? Ensaios. São Paulo: Companhia das

(29)

Politécnica, quebrou um pouco a hegemonia dos magistrados, ampliando a classe que

copiava.

Como se verá no Capítulo II, a chegada do “bando de novas ideias” europeias em 1870 – como o positivismo, o evolucionismo e a criminologia – guarda sólida relação com o acesso de novos grupos sociais à vida político-intelectual, marcando presença no debate da época ao exigir posturas e concepções mais ajustadas às aspirações de progresso para o país. Em especial, a apropriação das ideias em voga lá fora se traduz numa absorção diversa – e, por vezes, distorcida – do critério biológico de “raça”, que, uma vez expresso pela cor da pele, poderia servir – e serviu – para medir o grau de civilização de determinado indivíduo ou sociedade; ou ainda, num plano mais específico, para mensurar a civilidade pelo nível de

branqueamento da população que constituía as diversas regiões do Império. Na arena política,

este movimento se articula em cinco principais grupos: a) os liberais republicanos “spencerianos”; b) os federalistas positivistas científicos gaúchos; c) os federalistas positivistas científicos paulistas; c) os positivistas abolicionistas, sobretudo no nordeste; e d) os novos liberais, no qual estavam Nabuco e Rui.15 Logo, cumpre-se saber: quem eram esses novos liberais? Projetavam-se como novos em relação a quê? Para tanto, é preciso retomar o processo de “Statebuilding” brasileiro, no qual a hegemonia do setor jurídico-burocrático – resguardando a exclusividade da cópia – foi responsável pela estruturação política e cultural do Estado imperial; no sentido de iluminar a particularidade do liberalismo em Joaquim Nabuco e Rui Barbosa – formatado no interior deste establishment imperial - em ter enfrentado a totalidade da Escravidão.

A Escravidão como totalidade

A busca pela totalidade nas ideias de Joaquim Nabuco não é exclusividade nossa. Sob a atmosfera intelectual da USP dos anos 1960, Paula Beiguelman e Fernando Henrique Cardoso lançaram interpretações diversas sobre o ideário político do pernambucano. Naquele momento, se destacavam as pesquisas de Florestan Fernandes sobre os efeitos da escravidão no Brasil – temática que o sociólogo havia incorporado a partir da experiência acadêmica que

15 ALONSO, Ângela. Ideias em movimento: a geração de 1870 e a crise do Brasil-Império. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2002, pp. 122-125;179-188.

(30)

tivera com Roger Bastide. A propósito, foi a convite de seu antigo mestre que Florestan se tornou coordenador de pesquisa encomendada pela UNESCO nos anos 1960. A linha investigativa, proposta pela referida instituição, partia da premissa de que as relações raciais por aqui poderiam servir como exemplo de convivência harmoniosa para o resto do mundo. Contudo, os resultados constataram justamente o contrário, desmantelando o suposto “mito da democracia racial” brasileira. Foi desenvolvendo esta argumentação que Florestan conquistou a cátedra de Sociologia da USP, com o trabalho sobre A integração do negro na sociedade de

classes (1964). A tese refutava por completo a possibilidade de se pensar o Brasil como

“democracia racial”, revelando os impedimentos da “integração absoluta do negro brasileiro em toda vida nacional política, social, religiosa, econômica, operária, militar, diplomática, etc.” (FERNANDES, 1965:21). Neste empreendimento intelectual, Florestan Fernandes rompe com a visão “culturalista” da escravidão consagrada por Gilberto Freyre nos anos 1930, abrindo ensejo para o nascimento de outras análises sobre o ideário político de Joaquim Nabuco – bem diferentes da visão que o próprio Freyre tinha de seu conterrâneo16.

Paula Beiguelman – inspirada pelas ideias de Karl Manheimm, especialmente em

Ideologia e Utopia (1929) – detecta que os argumentos do conservantismo (leia-se, o “status quo” escravista) não partiam de uma concepção da sociedade como totalidade política, ao

passo que Nabuco, ao tomar a Escravidão como fator explicativo central da sociedade, reivindicava a abolição como transformação total do status quo.17 Já Fernando Henrique Cardoso eleva o pernambucano ao patamar de abolicionista autêntico, sugerindo – mas não desenvolvendo completamente – que as ideias do abolicionista possam ser tomadas como “forma” possível de “consciência totalizante” da sociedade da época. Nabuco operaria, portanto, tanto um movimento da realidade quanto um movimento da razão, conseguindo reter as contradições do real em termos dos fatores histórico-sociais efetivos de sua produção, sem deixar de lado as contradições da razão, sendo capaz de desvendar as relações essenciais

16 O debate sobre os interpretes de Joaquim Nabuco será mais bem desenvolvido no capítulo III, quando se retomará a visão marxista sobre as ideias do pernambucano, buscando contrastá-la com o Nabuco de Gilberto Freyre.

17

BEIGUELMAN, Paula. “Teoria e ação no pensamento abolicionista”. In: Formação política do Brasil (vol.1).

São Paulo: Livraria Pioneira, 1967, pp. 145-163; BEIGUELMAN, Paula. Joaquim Nabuco. São Paulo: Ática, 1982.

(31)

que aparecem de imediato, como afirmava Karl Marx, mistificadas.18 Em outras palavras, o tom desmistificador das ideias abolicionistas consiste no reconhecimento da existência de duas “escravidões”. Fernando Henrique Cardoso, ao partir da premissa luckacsiana sobre a impossibilidade de se captar a “consciência do real” apenas reproduzindo as relações histórico-econômico-sociais concretas do “mundo empírico”, entende que a “totalidade concreta” do processo de abolição no Brasil só se torna atingível no processo dialético de “desmistificação” das “contradições da razão”. Nesse sentido, o liberalismo abolicionista

desmistifica a realidade brasileira escravista da época, principalmente porque Nabuco

identifica a relação dialética entre essas duas escravidões19.

Nabuco desvela o conteúdo real da sociedade escravista nacional, fundada no domínio do homem pelo homem e na espoliação de um grupo específico de homens (a minoria aristocrática) sobre toda a sociedade, por meio de africanos escravizados. Ao mesmo tempo, desvenda que o sentido dessa estrutura social, marcada pela espoliação e pela violência, foi necessariamente racionalizado pelo pressuposto da supremacia de homens e mulheres

brancas sobre homens e mulheres negras, ou seja, a “racionalização” de um verdadeiro

“apartheid” étnico-social. É aí que surge a “performance” do abolicionista autêntico, uma vez que o liberalismo em Nabuco é “traduzido” como uma forma possível de consciência

totalizante do processo da abolição no Brasil. De algum modo, o objetivo deste trabalho é

levar a cabo – ainda que sob outra perspectiva – a proposta ensejada por FHC, incluindo Rui Barbosa na análise, ou melhor, afirmando a igual autenticidade de suas ideias abolicionistas. Ao trazer o baiano para a conversa, previne-se, principalmente, o equívoco de “mistificar” o próprio Nabuco: tomando o pernambucano como “inventor da nação” brasileira20

.

18 CARDOSO, Fernando Henrique. “A desintegração da ordem escravocrata”. In: Capitalismo e Escravidão no

Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata no Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977,

pp. 220-221. 19

Inspirado na obra História e Consciência de Classe, a tentativa de Fernando Henrique Cardoso é de captar o sentido heurístico do processo da abolição no Brasil, assinalando a autenticidade das ideias de Joaquim Nabuco em determinar a totalidade da escravidão, pensada não como simples reprodução das relações empíricas, mas como uma síntese de várias determinações ou como a unidade do diverso (CARDOSO, 1977:26-31. Ver mais em: CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977).

20 CARDOSO, Fernando Henrique. “Joaquim Nabuco”. In: Pensadores que inventaram o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, pp. 17-64.

(32)

Sendo assim, a proposta de retomar a noção de totalidade para pensar a Escravidão guarda relação com a ideia universalista de nação ensejada por Gyorgy Luckács, no sentido de não tomar o diagnóstico de Nabuco e de Rui sobre os efeitos da Escravidão entre nós como sentença final ou como uma totalidade completa. Pelo contrário, se a crítica abolicionista toma a forma de um juízo, o que decide seu valor não é a sentença, mas o processo mesmo de julgar.21 No momento decisivo da crise escravista, esses abolicionistas viram e reviram a Escravidão; questionando-a e apalpando-a, provando-a e submetendo-a à reflexão e atacando- a de diversos lados; reunindo no olhar de seu espírito aquilo que viam, pondo em palavras o que o objeto permitia vislumbrar sob as condições geradas pelo ato de escrever. Nesse sentido, a Escravidão não é a causa única e definitiva de todos os problemas da nação ou o fator explicativo central da realidade da época. O movimento é inverso: o liberalismo abolicionista – ao tomar a Escravidão como unidade crítica – vai operar sob a lógica dos fragmentos, “uma vez que a própria realidade é fragmentada; ele encontra sua unidade ao buscá-la através destas fraturas, e não em aplainar a realidade

fraturada”.22 Em Adorno,

O ensaio deve permitir que a totalidade se resplandeça em um traço parcial, escolhido ou encontrado, sem que a presença dessa totalidade tenha de ser afirmada. [...] Sua totalidade, a unidade de uma forma construída a partir de si mesma, é a

totalidade do que não é total, uma totalidade, que também como forma, não afirma

a tese entre identidade e coisa, que rejeita como conteúdo. (ADORNO, 2003:35-36) [grifos nossos]

Sendo o todo ou a totalidade revelada na medida em que a Escravidão se realiza na particularidade dos fragmentos, nossa intenção é mostrar como e quais fragmentos – ao serem

unidos criticamente – expressam a totalidade incompleta ou uma nação ainda em formação,

cujo futuro deveria ser construído sobre os princípios “civilizatórios” do capitalismo moderno e democrático. Cumpre lembrar que Nabuco e Rui reivindicavam o papel do Estado de assegurar a eficácia de alguns princípios emancipatórios fundamentais do Liberalismo, como a autonomia da pessoa, a liberdade individual, a meritocracia, a liberdade de consciência e o trabalho livre, o que seria viabilizado através de medidas que alterassem o meio social da

21 LUCKÁCS, Gyorgy. Sobre la esencia y forma del ensaio. In: El alma y las formas. Valencia: Publicacions de la Universidad de Valencia, 2013, p.38-39.

(33)

Escravidão, visando a efetivar o direito universal à instrução pública e à saúde pública – por

meio da execução de políticas de higienização sanitária das cidades – e, sobretudo, visando à ampliação dos direitos de cidadania a todas as raças, permitindo que o gozo dos direitos civis não dependesse da crença, da cor ou da condição étnico-biológica de determinado indivíduo ou grupo social específico. Acima de tudo, este projeto devia atuar na construção de um futuro mais democrático, no qual as diversas classes da sociedade brasileira pudessem se organizar e reivindicar a parte que lhes era de direito na representação

nacional. Neste sentido, esses liberais se aproximam das ideias de John Stuart Mill,

quando ressalta a importância de se analisar a história particular das nações, bem como os diferentes “estágios de civilização” em que elas se encontram para avaliar a aptidão de certo

povo para preencher ou não as condições do governo representativo. Para Mill,

A significação do governo representativo consiste em que o povo inteiro, ou certa porção muito numerosa dele, exerce, por meio de deputados periodicamente eleitos por ele, o poder controlador extremo, quem em qualquer constituição tem de residir em alguma parte. O povo tem de possuir este poder extremo em toda sua

inteireza. Tem de ser senhor, sempre que assim lhe aprouver, de todas as ações do governo. (MILL, 1983:60) [grifos nossos].

Se para estes abolicionistas a Escravidão fazia o Brasil ocupar a escala moral mais baixa no conjunto das nações do planeta, pior era o legado desta instituição à nossa

representação nacional, formando uma classe – a dos escravistas – que enviesava toda a

atmosfera política e ideológica do Império. Desse modo, Nabuco e Rui entenderam – e este é o aspecto principal – que o meio social escravista obliterava a formação de uma verdadeira “civilização” nacional, principalmente porque criara a fantasia de que o senhor era

moralmente superior ao escravo. Logo, como afirmava Nabuco: “a educação e o exemplo que

recebemos de nossos antepassados, assim como o hábito que temos de mandar sobre a Escravidão, nos tornaram difícil à direção de trabalhadores livres e no gozo dos mesmos direitos que nós” (DP, 1949:21). Pior, essa instituição nos afeiçoou à contemplação da

injustiça humana, inclinando-nos a atenuar o sofrimento social, explicando-o e classificando-

(34)

circunstâncias e lugares.23 Por isso, questionava Rui, onde estaria a aptidão moral superior da

raça escravizadora? Certamente, esta raça deve crer que os nossos escravos são tão felizes

quanto foram os cativos na Jamaica (OCRBb, 1949:186). Como veremos, é neste sentido que a Escravidão assume a totalidade do que não é total no pensamento desses liberais que, ao projetarem o futuro na abolição, não tomam o lugar de origem – isto é, a ex-colônia portuguesa agroexportadora e escravista– como um selo definitivo de inferioridade. No avesso disto, Nabuco e Rui tiveram consciência que a experiência abolicionista nacional colocava dilemas étnicos, raciais e sociais à universalidade de alguns princípios do liberalismo, podendo revelar verdades sobre a própria condição capitalista dos países centrais. Ambos, cada um a seu modo, enfrentaram este dilema. O primeiro escreveu um

ensaio sobre a Escravidão; enquanto o último elaborou pareceres sobre as reformas educacionais e a emancipação civil dos escravos.

Para levar a cabo argumento acima anunciado, a próxima seção parte da articulação entre a perspectiva crítica de Roberto Schwarz com a história dos conceitos de Koselleck - em especial, no contraste entre espaço de experiência/horizonte de expectativas ensejado pela noção moderna de progresso -, na tentativa de indicar de que modo o favor torna-se o nexo possível entre o processo político de consolidação do Estado Imperial e a estabilização semântica do conceito de liberal/liberalismo no Brasil, forjando, assim, o contexto político-linguístico do Segundo Reinado (1840-1889). Período esse que se confunde com a promulgação da Lei que abolia o abastecimento internacional de africanos e a Lei de Terras, abrindo ensejo para “progressos setoriais” no país, principalmente nas regiões ligadas ao setor cafeeiro, então em expansão. Com isto, se buscará identificar como e quais tradições políticas configuram essa estabilização, conectando-a ao processo de consolidação do Estado Imperial e do modo de produção escravista interno. Enfim, queremos mostrar como este processo de estatalidade implicou na circulação e formatação de um tipo de liberalismo anglófilo e conservador por aqui.

23 ASSIS, Machado. “O menino é pai do homem”. In: Memorias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2011, p. 39.

Referências

Documentos relacionados

(grifos nossos). b) Em observância ao princípio da impessoalidade, a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, vez que é

Taking into account the theoretical framework we have presented as relevant for understanding the organization, expression and social impact of these civic movements, grounded on

Realizar a manipulação, o armazenamento e o processamento dessa massa enorme de dados utilizando os bancos de dados relacionais se mostrou ineficiente, pois o

Pretendo, a partir de agora, me focar detalhadamente nas Investigações Filosóficas e realizar uma leitura pormenorizada das §§65-88, com o fim de apresentar e

29 Table 3 – Ability of the Berg Balance Scale (BBS), Balance Evaluation Systems Test (BESTest), Mini-BESTest and Brief-BESTest 586. to identify fall

13 Assim, a primeira fase no momento da dispensa de um MSRM é a validação da receita, por isso, independentemente do modo de disponibilização da prescrição, a receita

After this matching phase, the displacements field between the two contours is simulated using the dynamic equilibrium equation that bal- ances the internal

Pinturas, depilatórios, unguentos mamilares, colorantes para o cabelo e até pomadas à base de vidro em pó (que, aparentemente, permitiam simular a virgindade) (Braunstein, 1990),