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Territórios de afetos : o trabalho do ator na educação médica

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Faculdade de Educação

ADILSON DONISETI LEDUBINO

TERRITÓRIOS DE AFETOS

O TRABALHO DO ATOR NA EDUCAÇÃO MÉDICA

CAMPINAS 2019

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ADILSON DONISETI LEDUBINO

TERRITÓRIOS DE AFETOS

O Trabalho do Ator na Educação Médica

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Educação, na área de concentração de Educação.

Orientadora: MARCIA MARIA STRAZZACAPPA HERNANDEZ

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA POR ADILSON DONISETI LEDUBINO E ORIENTADA PELA PROFESSORA DR(A) MARCIA MARIA STRAZZACAPPA HERNANDEZ.

CAMPINAS 2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

TERRITÓRIOS DE AFETOS

O TRABALHO DO ATOR NA EDUCAÇÃO MÉDICA

Autor: Adilson Doniseti Ledubino

COMISSÃO JULGADORA:

Presidente: Marcia Maria Strazzacappa Hernandez Titular: Alessandra Ancona de Faria

Titular: Fernando Antonio Pinheiro Villar de Queiroz Titular: Marcelo Ramos Lazzaratto

Titular: Marco Antonio de Carvalho Filho Titular: Marcelo Schweller

A Ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a todos aqueles que acreditam na Educação dialógica e plena de sentido: Educadores que lutam por um mundo mais igualitário em favor dos oprimidos, entregando suas vidas por este propósito.

Aos estudantes de medicina dedicados a se tornarem médicos empáticos e humanistas, comprometidos com seus pacientes.

A todos que enfrentam enfermidades do corpo e da alma e, embora encarando desafios dolorosos, compartilham suas histórias de vida como oportunidade de construção de conhecimentos.

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AGRADECIMENTOS

A muita gente tenho tanto a agradecer. Declarar minha gratidão por ser quem sou e por fazerem parte daquilo que me constitui como sujeito, artista, ator, pesquisador, professor, aprendiz, filho, irmão, marido, pai e amigo.

À minha família: meu pai Antonio Ledubino, minha mãe Antonia Lúcia Klein e meus irmãos - Zinho, Enivaldo (in memoriam), Zezé e Márcia- por serem meu esteio e incentivo incondicional.

À minha orientadora, amiga e mestra Marcia Strazzacappa por todo aprendizado compartilhado durante tantos anos de parceria, por toda confiança em mim depositada, pelo incentivo e dedicação. Pela orientação atenta e generosa, pela capacidade de ensinar pelo exemplo afetuoso, ético e rigoroso na lida do ser artista docente pesquisador.

Ao professor e mestre Marco Antonio de Carvalho Filho (querido Brahma) por dividir comigo “sonhos de gente grande” dedicados à melhoria da vida de quem precisa. Por apostar no poder transformador do teatro e por abrir as portas da Educação Médica oferecendo apoio e disposição para enfrentar as lutas necessárias.

Aos professores e mestres Marcelo Schweller e Jamiro Vanderley pelo companheirismo, pela delicadeza e amor com que tratam alunos e pacientes, ensinando-nos por meio do exemplo de médicos, educadores e seres humanos dedicados que são.

Às amigas e parceiras de trabalho Letícia Frutuoso e Nádia Morali, por viverem ao meu lado um teatro que extrapola os palcos e busca se constituir como arte plena de sentido, capaz de divertir e provocar a construção de conhecimentos. Por ajudarem a me tornar uma pessoa melhor.

A todos os alunos e alunas da Faculdade de Medicina da Unicamp por compartilharem conosco suas angústias, seus medos, seus desejos e sua sede por conhecimento. Pelo brilho nos olhos e pela disponibilidade em se tornarem profissionais prontos a ajudarem a quem necessita.

Aos professores que se dispuseram a ler meu texto e a dar suas contribuições para a melhoria dele: Verônica Fabrini, Marco Antonio de Carvalho Filho, Marcelo Schweller, Marcelo Lazzaratto, Fernando Villar, Alessandra Ancona, Wellington Menegaz e Maria Adélia Souza.

Às Faculdades de Educação e de Ciências Médicas por acolherem e darem condições para o desenvolvimento dessa pesquisa.

À minha companheira Edlaine Bergamin e às minhas filhas Luíza, Helena e Beatriz por estarem ao meu lado e por dividirem comigo as alegrias e dores da vida, por acreditarem em mim e por compartilharem seus amores. Por suportarem minha ausência e minha presença, amorosamente.

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RESUMO

Esta pesquisa investiga as possíveis contribuições do Teatro na Educação Médica, sob o prisma específico do trabalho do ator. Constitui-se como estudo transdisciplinar em Teatro-Educação-Medicina, propondo metodologias ativas de ensino-aprendizagem para a formação da identidade médica, com vistas a desenvolver habilidades de comunicação e empatia. Apresenta-se por meio de uma escrita literário-visual-dramatúrgica que busca coadunar forma e conteúdo, reafirmando a potência do teatro em construir conhecimento sensível e significativo.

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SUMMARY

This research investigates the possible contributions of the Theater in Medical Education, under the specific prism of the work of the actor. It is a transdisciplinary study in Theater-Education-Medicine, proposing active teaching-learning methodologies for the formation of medical identity, with a view to developing communication skills and empathy. It is presented through a literary-visual-dramaturgical writing that seeks to coordinate form and content, reaffirming the theater's power to construct meaningful and meaningful knowledge.

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RÉSUMÉ

Cette recherche examine les contributions possibles du théâtre dans l'éducation médicale, sous le prisme spécifique du travail de l'acteur. Il s’agit d’une étude transdisciplinaire en théâtre-éducation-médecine proposant des méthodes d’enseignement et d’apprentissage actives pour la formation de l’identité médicale, dans le but de développer les compétences en communication et l’empathie. Il est présenté à travers une écriture littéraire-visuelle-dramaturgique qui cherche à coordonner la forme et le contenu, réaffirmant le pouvoir du théâtre de construire une connaissance sensitive et significative.

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ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1- A velha senhora- Renée Gumiel. ... 22

Figura 2- Caminhos para dentro de mim ... 36

Figura 3 - Epitáfio ... 56

Figura 4- Autorretrato de um artista (ator) quando coisa. ... 74

Figura 5- Ser E não ser ... 133

Figura 6- Empatheia ... 151

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Sumário

1. INTRODUÇÃO ... 12

2. FICHA TÉCNICA ... 16

3. PRIMEIROS PASSOS - MEMÓRIAS COLECIONADAS ... 18

4. VISITA À VELHA SENHORA ... 20

5. CARTOGRAFIAS DO CORPO- CAMINHOS PARA DENTRO DE MIM ... 34

6. A VIDA, O TEMPO E A MORTE ... 46

7. ESCULÁPIO E DIONISO: Encontro da Medicina com o Teatro ... 58

7.1. O PRIMEIRO ENSAIO ... 67

8. O TRABALHO DO ATOR NA EDUCAÇÃO MÉDICA ... 74

8.1. À BEIRA DO ABISMO- UMA CONSULTA SIMULADA... 78

8.2. CASOS, HISTÓRIAS E SABERES ... 108

9. ENTREATOS- NOVOS TERRITÓRIOS ... 122

10. INEXORÁVEL ... 133

10.1- LIÇÕES DE ABISMOS ... 162

11. TERRITÓRIOS DE AFETOS ... 175

12. A CENA COMO TERRITÓRIO DE SABERES ... 200

12.1. MEMÓRIAS DO FIM- UM MONÓLOGO ... 202

12.2. PONTO FINAL OU RETISCÊNCIAS... ... 207

13. PALAVRAS À GUISA DE EPÍLOGO – ÚLTIMA CARTA E RECOMEÇO. ... 214

14. BIBLIOGRAFIA ... 219

15. FILMOGRAFIA: ... 224

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1. INTRODUÇÃO

A minha escrita sempre esteve diante de dois caminhos divergentes que correspondem a dois tipos diferentes de conhecimento. Um caminho vai para o espaço mental da racionalidade sem corpo, onde se podem traçar linhas que convergem, projeções, formas abstratas, vetores de força. O outro caminho passa por um espaço repleto de objetos e tentativas de criar um equivalente verbal daquele espaço enchendo a página com palavras, envolvendo um esforço meticuloso e cuidadoso para adaptar o que está escrito para o que não está escrito, para a soma do que é dizível e não dizível. Estes são dois caminhos diferentes em relação à exatidão que nunca atingirá sua realização integral (CALVINO, 1996, p. 100 apud COESSENS, 2014, p.15).

Um dos desafios a que esta tese se propõe, aceitando-o como combustível para uma escrita criativa e, ao mesmo tempo, comprometida com a construção de conhecimentos por meio da Arte, é romper com os ditames acadêmicos, buscando ultrapassar o texto formalizado em moldes engessados. Para isso, adota uma escrita literário-visual-dramatúrgica no intuito de coadunar, artisticamente, forma e conteúdo. Há consciência de que não se está a fazer nada de muito inovador, nesse sentido. Não é o que se pretende, mas sim dar vasão a experiências vividas ao longo de oito anos trabalhando como ator paciente simulado na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, e compartilhar os conhecimentos que puderam emergir de tais experiências, no diálogo transdisciplinar entre o Teatro, a Educação e a Medicina. Assim, misturando ficção e realidade, lançando mão das experiências e dados colhidos ao longo da pesquisa em diálogo franco e direto com a teoria e com obras de arte, dramaturgias e literatura, busca-se afirmar e demonstrar a potência criadora/criativa que surge de tal contato e os impactos que podem gerar na educação médica, contribuindo para a ampliação de repertório tanto para atores quanto para médicos, além de proporcionar um aprendizado pleno de sentido, uma vez que passa pelo corpo do aluno, tocando-o, emocionando-o e desassossegando-o. Evidencia-se que o teatro tem muito a contribuir com a Educação Médica, e muito também a usufruir desse contato. Muitas formas de ver, de ler, de tocar, de experienciar foram propostas ao longo da pesquisa. Um incessante movimento de ir e vir, de contaminações, de afetos entre os saberes do Teatro e os da Medicina, das necessidades de uma e de outro. Notou-se que o humano é o elo que une, especialmente, estes dois campos do saber, e que pode potencializar a eficácia dos aprendizados e dos métodos ali nascidos. Ao corpo, portanto, volta-se especial atenção. Sobretudo ao corpo do

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ator, ou melhor, ao corpo em cena, em relação humana, aberto aos devires e ao outro. Opera a partir de conceitos chave como transdisciplinaridade, complexidade, ator, corporeidade/corpo em arte, presença, improvisação, simulação de consultas, relação médico-paciente, comunicação e empatia. Como categoria de análise e embasamento teórico, lança mão especialmente dos estudos teatrais (Stanislavski, Brecht, Boal, Grotowski, Barba, Lecoq, Dubatti e Decroux), de filósofos como Foucault, Morin, Derrida, Merleau-Ponty e Espinoza.

Propõe-se, então, contar uma história. Uma história que fala sobre o trabalho do ator na educação médica e de como as inúmeras possibilidades de diálogo entre os saberes em questão podem legar contribuições importantes para a formação de um médico mais humano e empático. A relação temporal da história aqui contada é construída de forma livre e poética sem, contudo, escamotear os dados de realidade da pesquisa1. Evidencia-se o TEATRO como elemento motriz na constituição desses Territórios de Afetos.

Assim como Antonio Araújo, acreditamos na pesquisa:

“...como um dispositivo de criação e o artista como um criador de dispositivos de pesquisa. Em nossa área, a produção de conhecimento não ocorre somente ao final, com a apresentação da obra, mas se dá diariamente, no cotidiano da sala de ensaio, em todas as etapas do trabalho. A improvisação como forma de habitar o lugar de incerteza da criação. E o saber aí produzido - ou melhor, experimentado- não pode ser avaliado apenas quantitativamente, mas sim por seu potencial crítico, pelas conexões suscitadas e, principalmente, pela transformação daqueles que participaram de sua elaboração.” (ARAÚJO, 2012, p.107).

A partir da narrativa e da análise das diversas fases que compõem o trabalho do ator na Educação-Médica, busca-se compartilhar uma metodologia ativa de ensino-aprendizagem aplicada, no caso específico, à formação médica, mas que pode ser replicada, como já temos feito, em outros cursos da área da saúde, bem como da Educação.

1 Nesse sentido, apresentam-se fatos observados e analisados ao longo do estudo, misturados a ficções

elaboradas para o enriquecimento da história aqui narrada. Os casos/pacientes simulados apresentados, por exemplo, não foram os primeiros a serem atuados pelos atores, mas se prestam mais adequadamente aos propósitos da pesquisa e aos exemplos aqui trazidos.

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Outrossim, pretendemos reafirmar e comprovar a potência da Arte, e do Teatro em especial, como campo do saber altamente eficaz na missão de produzir conhecimentos imprescindíveis à Humanidade.

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CENA I

ATOR/DIONÍSO/HOMEM- (Envergando um traje elisabetano sobre uma visível e surrada roupa preta de trabalho): Eu sou Dioniso! Sou o Deus do Teatro...Não! Eu sou o próprio teatro! Outrora, me expressei pelos lábios de Téspis, homem que foi, que fui, que ainda sou! Se sou o teatro, sou também o Homem e a Mulher! Meu corpo disponível está para qualquer criatura que tenha ganas de falar, (e minha mente) que tenha ganas de amar, (e todo o meu ser) que tenha ganas de viver! Sou/posso ser o Édipo! Sou/posso ser Tirésias! Sou/posso ser Jocasta! Sou/posso ser Ofélia! E Hamlet posso ser/sou! Ser ou não ser, eis a questão!

HOMEM DA PLATEIA- Mas dá para decidir de uma vez!? É tanta dúvida, pergunta e questão, que Deus o livre! Se o senhor não sabe quem é, precisa descobrir! Dá um jeito, Homem! Para decidir entre ser ou não ser, é preciso ação! Não adianta ficar com todo esse bla, bla com a ressaca. Deixe para trás as ruínas da Europa. Pode até descobrir que é possível ser E não ser. Então, vai! Vai de uma vez!

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2. FICHA TÉCNICA TE T

FI

CH

A

CN

IC

A

ORIGINAL (ELENCO) ADILSON LEDUBINO RENÉE GUMIEL ANITA CORTEZ MÁRCIA STRAZZACAPPA MARCO A. DE CARVALHO FIILHO MARCELO SCHWELLER LETÍCIA FRUTUOSO NÁDIA MORALI JAMIRO WANDERLEY DA SILVA

GENÉRICO (PERSONAGEM) AUGUSTO RENÉE GUMIEL ANGEL MARIA HERNÁNDEZ DR. LITHOCARPUS DR. MARCEL MANUELA ANA DR. MIRÓ

TERRITÓRIOS DE AFETOS

O TRABALHO DO ATOR NA EDUCAÇÃO MÉDICA

TEXTO- ADILSON LEDUBINO

DIREÇÃO/ORIENTAÇÃO: MÁRCIA STRAZZACAPPA

PROVOCAÇÃO: MARCO ANTONIO DE CARVALHO FILHO, MARCELO SCHWELLER E JAMIRO WANDERLEY.

PRINCÍPIO ATIVO: TEATRO-EDUCAÇÃO-MEDICINA

ATUA DIRETAMENTE NA SENSIBILIDADE, NA PROPRIOCEPÇÃO E NA FORMAÇÃO DA IDENTIDADE PROFISSIONAL MÉDICA.

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BULA

APRESENTAÇÕES

Solução ontológico-somática: “caixa” com uma dose semanal (dose mínima) ou diária (recomendável).

USO PRÁTICO-CORPORAL, ADULTO E PEDIÁTRICO COMPOSIÇÃO

Cada dose (4 horas) contém: propriocepção; autoconhecimento; expressão corporal,

expressão vocal; habilidades de comunicação;

improvisação; jogo; teatro; empatia; ética;

profissionalismo; simulação; reflexão crítica; identidade profissional; diversão; construção de conhecimentos; autoestima; amor. INFORMAÇÕES AO PACIENTE

§ Não seja paciente na acepção passiva da palavra. Busque atingir o estágio de Espect-ator, como

preconizado pelo

químico/teatrólogo Augusto Boal.

INDICAÇÃO

Indicado para melhoria da empatia e das habilidades de comunicação; para uma Educação dialógica sensível

e significativa; para o protagonismo do estudante

e para o desenvolvimento da identidade profissional. Indicado para discentes e docentes da área da Saúde,

das Artes Cênicas, da Educação e para interessados em metodologias ativas de ensino-aprendizagem, de um modo geral. CARACTERÍSTICAS Descrição: É uma proposta prática e dialógica que tem

como princípio ativo o TEATRO, compreendendo exercícios, jogos, improvisações, cenas e simulações realistas de consulta. Propriedades: É um potente estimulante da sensibilidade, da empatia e da análise crítico-criativa. É

bem absorvida por estudantes em geral, podendo haver resistência

em caso de intolerância a metodologias inovadoras e

ao contato humano.

ARMAZENAMENTO Não deve ser armazenado em qualquer estante empoeirada. Antes, deve circular o máximo possível por entre olhos e mentes dispostas ao diálogo e à construção colaborativa de conhecimentos, colocando-a em práticcolocando-a, sempre buscando aprofundá-la. INTERAÇÃO Toda interação é bem-vinda. Aquelas já ocorridas

(Teatro, Educação, Medicina, Fonoaudiologia, Farmácia), demonstram efeitos bastante positivos e desejáveis.

MODO DE USAR. Fazer uso pelo menos uma vez por semana. Durante o uso manter-se disponível, curioso e colaborativo. Deve ser administrado por equipe multiprofissional composta por Atores, Médicos e Educadores, inclinados e dispostos ao diálogo e à construção colaborativa de conhecimentos.

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3. PRIMEIROS PASSOS - MEMÓRIAS COLECIONADAS

Antes de pôr pé na estrada e dar início a uma jornada que ele sabia, seria longa e desafiadora, pegou uma velha mala que ficara esquecida por muito tempo sob a cama e tratou de colocar nela alguns itens essenciais para a sobrevivência: perguntas, uma máscara neutra, outra expressiva, memórias, anotações, correspondências, estudos, achados, dúvidas e afetos que lhe possibilitariam enfrentar tudo o que viria com resiliência, alegria, rigor e bom humor. Algumas trocas de roupas, muita vontade e coragem. O desejo de aprender e de confrontar suas próprias ideias com o que o saber humano já construído lhe oferecia para ler o mundo e nele estar eram tão grandes quanto a consciência de que aquilo a que se punha a buscar era algo complexo, relevante e com potencial de legar contribuição importante voltada a possibilidades de construção de metodologias ativas de ensino-aprendizagem por meio do teatro, sua área principal de atuação. Seu ofício, sua grande paixão.

Ajeitou com especial atenção, num canto da mala, dois maços volumosos de folhas amareladas que reunira ao longo da vida. Cada um desses maços, que ele separara e amarrara com barbante na noite anterior, era composto por anotações, dramaturgias e correspondências que trocara por longos anos com estudiosos com os quais dialogava com profundo interesse sobre as inúmeras categorias de pesquisa e diversos conceitos que lhe desassossegavam conforme ia tomando contato com as questões próprias de seu mister. Já não era capaz de distinguir as missivas autênticas daquelas que sua imaginação criara a fim de organizar seu pensamento e se apropriar de tais achados. O que importava era o diálogo e as hipóteses que essas cartas descerravam.

Quase não foi possível fechar o zíper da mala. Quase não fora possível fechar os olhos naquela noite. Colecionara suficientes desassossegos e questionamentos durante o período que antecedeu aquele dia. O dia em que daria início à caminhada que vinha planejando há muito tempo. Era hora de tentar encontrar respostas. Adormecera praticamente sem perceber e, ao acordar, sua impressão foi a de ter dormido por longas e intermináveis horas. Os luminosos números verdes do despertador, porém, lhe impunham a realidade de insignificantes três horas e treze minutos de sono.

Sentou-se na cama, esticou bem braços e pernas, olhou para um lado e outro e viu que lá fora um ar gelado lhe prometia companhia. Vestiu-se, calçou as botinas de solado

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grosso, foi até a cozinha onde preparou o chá quente de todo dia invernal e, enquanto o tomava, buscando aquecer o corpo, o coração e a alma, seu olhar fitava por entre uma pequena fresta da cortina a estrada de toda manhã. Porém, neste momento, era como se não fosse a mesma. Sabia ele que ao dar os primeiros passos nessa caminhada nunca mais voltaria. Como que para se decidir de vez, virou rápido o último gole. De olhos fechados, sentiu o calor descer pela garganta até aquecer seu estômago. Pousou a caneca sobre a mesa e olhou lá no fundo, procurando ver se o desenho deixado pelo chá lhe prediria algum alvissareiro futuro. Tentou mudar a caneca de posição, olhou mais de perto e começou a rir. Tolices! Tolices da mesma categoria daqueles que, diante de um perigo iminente, exclamam “meu deus!” sem nunca terem acreditado em um. Não fosse a fé cênica tão bem descrita pelo russo Stanislavski, seria ele um homem totalmente desprovido de fé. Encheu d’água a caneca apagando qualquer remota possibilidade de futuro ali desenhado e a depositou no fundo da pia, junto com sujos pratos e talheres da mal dormida noite anterior. Correu ao quarto, abaixou-se para apanhar a mala debaixo da cama, cobriu a cabeça com o chapéu panamá que ganhara do pai e, levantando-se, preparou-se para partir. De passagem pela cozinha, pegou uma maçã e saiu. Não fez questão de trancar as portas. Sabia que não voltaria a ser e estar ali. Subiu decidido a primeira ladeira do caminho. Se tivesse olhado para trás, teria visto sua antiga casa sumindo, cada vez mais longe, desvanecendo-se, embora a carregasse consigo, em seus guardados, em sua mala, em seu corpo memória. Seguiu direto, porém.

Olhar firme. Passo firme.

Decidido e disponível se mantinha. O homem caminhando estava.

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4. VISITA À VELHA SENHORA

Caminhou sem parar por longas horas. Quando a fome apertou, sem estancar o passo, comeu a maçã. Seguiu até não aguentar mais. Parou diante de uma casa. Era a última daquela descampada região. Como o sol já ia se escondendo, resolveu bater na porta a ver se por ali poderia pernoitar. Fora recebido por uma velha senhora, cujo caminhar arrastado e as batidas do porrete que lhe fazia às vezes de bengala denunciaram-na antes mesmo que a porta se abrisse, revelando um corpo todo curvado.

Encabulado, tirou o chapéu e perguntou: Seria possível passar algumas horas em sua casa, somente para descansar da viagem? (Ah, boa noite.). Prometo não a incomodar mais do que já faço batendo em sua porta a essa hora. Também posso pagar por esta estadia, desde que não me cobre muito caro porque...

Não concluiu a frase. Percebera pelo olhar da velha senhora que ela não estava compreendendo nada. Ele falara tão baixo que certamente a mulher não havia escutado palavra alguma. Encheu os pulmões e repetiu o pedido. Antes, porém, que ele chegasse à ideia central da solicitação, fora interrompido.

Por que é que está gritando? Sussurrou a velhinha, com seu carregado sotaque francês. Endireitando a coluna com dificuldade, alinhou os olhares, e disse com voz firme: Sou velha, não surda! Passe para dentro, mas deixe os sapatos na soleira, e coloque sua mala no canto da porta antes que o peso dela lhe deixe tão torto quanto eu. Aproveite o tempo da juventude para endireitar esta coluna. Ela lhe cobrará cada exagero que lhe impuser. Nossa coluna tem memória, rapaz.

O viajante tirou os sapatos e os depositou na soleira da porta. Enquanto ajeitava a mala no canto indicado e sobre ela o chapéu, a velha senhora cuidava de trancar bem a porta da casa, girando lenta e ruidosamente as três chaves tetras.

Quando tirou o casaco, deixou cair uma das cartas que guardara no bolso enquanto fazia a mala para a viagem. Foi abaixar-se para pegar, mas a velha senhora, surpreendentemente, executou um movimento tão célere, que ele se deteve, embasbacado. Olhou a senhora que já passara a ler as palavras:

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O que é o ator? De que forma emana de seu corpo toda a potencialidade expressiva, capaz de construir saberes que ultrapassam a lógica racional, cartesiana? Como é capaz de engendrar presença e capturar o olhar e a atenção do público como se possível fosse colocar o tempo (e o espaço?) em suspensão?

Ao terminar de ler aquelas perguntas, que ele anotara no canto da folha a fim de com elas se haver sempre que (re)lesse aquela carta, a velha senhora soltou um profundo suspiro, olhou-o ali, parado diante dela, dobrou novamente o papel seguindo rigorosamente as dobras que o tempo e a necessidade de espaço para armazenamento o levaram a fazer nele e, após desfazer uma pequena e nova orelha que se mostrava em um dos ângulos, esticou o braço direito, magro, ossudo, mas com tônus e suavidade justos, e lhe devolveu a carta.

Caminhou até uma poltrona tão velha quanto ela, virou-se com dificuldade, vencendo o peso dos anos que lhe curvavam as costas e sentou-se. Uma vez ali, em seu “trono”, no centro da sala em penumbra, a mulher velha pareceu adquirir uma dignidade que ultrapassava o mero respeito que normalmente emana dos muitos anos já vividos, expressos nos fios brancos do cabelo ou nas marcas que sulcam a pele do rosto como se fossem um mapa hidrográfico d’algum país abundante em águas caudalosas, como que a replicar o tempo implacável que corre veloz rumo ao mar do esquecimento. Aquela dignidade parecia emanar do simples fato de estar ela ali sentada, num esforço sutil e sereno para manter ereta a coluna apoiada no macio encosto da poltrona. Também da ligação genuína que parecia instaurar o fato de estar ele ali, diante dela sem dizer palavra, esperando o que, ele supunha, ela estava prestes a dizer.

Com o olhar, apontando com a bengala um sofá em frente ao seu, ela lhe indicou que se sentasse. Assim que o fez, ela indagou: então o meu hóspede é um ator?

Um ator em formação, diria ele. Buscando entender o que exatamente significa ser ator.

Com a suavidade que já se notara, lhe era peculiar, a velha senhora acendeu um cigarro, deu uma profunda tragada e, olhando para ele, mas sem lhe fitar, como se mirasse o mundo inteiro que havia em seu próprio interior, disse que um ator está sempre em formação, eternamente buscando o sentido fluido do que é ser ator. O seu tempo é o gerúndio.

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Figura 1- A velha senhora- Renée Gumiel.

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Há muitas respostas para essa pergunta. Dificilmente, porém, alguma poderá ser considerada “exata” ou completa. Um ator, pode-se dizer:

“(...) é aquele que, exposto diante do público, faz poesia de si mesmo; comunica com o corpo inteiro e revela a todos sua sensibilidade a serviço da personagem e da comunicação teatral. É aquele que age. Para tanto, deve estar preparado corporal, vocal, sensível e intelectualmente a fim de atingir seu objetivo que seria, para Constantin Stanislavski (1863-1938), “criar a vida interior de um espírito humano e dar-lhe expressão artística”. (1968, p. 43). (LEDUBINO, 2009, p. 3).

_A senhora também gosta de teatro?

A pergunta, deveras infantil, saltou quase sem querer, num impulso.

Ela sorriu exibindo sua arcada protuberante, estendeu a mão que segurava o cigarro e, equilibrando as cinzas, acendeu a luz atrás de si. A luminosidade âmbar desvelou um grande busto de Dioniso, ladeado por máscaras e inúmeras fotografias e quadros de uma atriz/bailarina em cenas diversas. Do lugar em que ele estava, pareceu-lhe haver uma simbiose entre o rosto já envelhecido à sua frente e o de uma das fotografias na parede. O mesmo sorriso vívido, a mesma presença em cena do que lhe lembrou Ofélia. Percebendo seu desconcerto, ela começou a recitar:

“Eu sou Ofélia. Aquela que o rio não conservou. A mulher na forca, a mulher com as veias cortadas. A mulher com excesso de dose sobre os lábios de neve, a mulher com a cabeça no fogão a gás. Ontem deixei de me matar. Estou só com os meus seios, minhas coxas, meu ventre. Rebento os instrumentos do meu cativeiro- a cadeira, a mesa, a cama. Destruo o campo de batalha que foi o meu lar. Escancaro as portas para que o vento possa entrar e o grito do mundo. Despedaço as janelas. Com as mãos sangrando rasgo as fotografias dos homens que amei e que se serviram de mim na cama, mesa, na cadeira, no chão. Toco fogo na minha prisão. Atiro minhas roupas no fogo. Exumo do meu peito o relógio que era o meu coração. Vou para a rua vestida em meu sangue.” (MÜLLER, Heiner, 1977, p. 27)

A força, intensidade e beleza das palavras de Müller na voz daquela velha senhora fizeram parecer, por alguns segundos, que a atenção dele fora totalmente apreendida por aquele conjunto de elementos (a voz, o corpo em ação, a expressividade, a justeza do tom, o quadro contrastante que formavam aquele corpo debilitado, mas ainda plenamente capaz de

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acender a chama que outrora ardera nos palcos e o texto pleno de potência e fúria) que capturavam seus sentidos, como se o mundo todo deixasse de importar. Alguns segundos de silêncio. Suspensão. Aplauso empolgado em reconhecimento à potência de sua performance. Ela dá mais uma tragada produzindo um brilho alaranjado na cinza do cigarro, coloca-o cuidadosamente em pé na borda do cinzeiro que, para espanto do jovem, era nada menos que um importante prêmio de melhor atriz com que fora laureada no passado. Observando a cinza que se mantinha em equilíbrio precário, ela então responde: Oui, J’aime le théâtre! Eu amo o teatro.

Poderia te dar inúmeras respostas à pergunta “o que é ser um ator?”. Poderia simplesmente replicar aqui os grandes autores, de Sófocles a Diderot, de Stanislavski a Brecht e Artaud, mas lhe digo que é fundamental, sobretudo, fazer das palavras desses grandes mestres, vivência plena de sentidos. Muitas vezes, o sentido da profissão encontra-se em lugares inesperados. O teatro é muito grande, é imenso e repleto de possibilidades de realização. Estar em um palco à italiana, convencional, é só uma delas. Mas o teatro, meu jovem...

(Pausa dramática.)

Com um sopro, fez cair a cinza do cigarro que se mantinha ainda em pé. _O teatro é efêmero. Tal qual a vida.

Nessa ocasião, ele teve de se esforçar para não deixar transparecer o quão piegas e senso comum considerara aquela frase de efeito. Mas, a julgar pelo que disse a velha senhora, ele não fora capaz de dissimular.

Eu sei que soa piegas e senso comum, mas, às vezes, mesmo o óbvio precisa ser relembrado.

Silêncio. Só esperava que aquele rubor na face fosse breve.

Por sorte ou acaso o relógio na parede avisou que eram oito da noite. A senhora se levantou, dizendo já serem horas. Ele não compreendera do que se tratava, mas como ainda se recuperava do constrangimento anterior, apenas observou-a percorrer lentamente o corredor que ligava a sala em que estavam à cozinha. Notou que apanhara algo na cristaleira com entalhes rococó e, embora de costas, percebeu que ela colocara algo na boca. Encheu

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um copo d’água e bebeu. Repetiu a mesma ação umas treze vezes. Quando ela se virou para lhe oferecer o que beber ele pôde confirmar sua impressão inicial. Aceitando o copo d’água que a senhora lhe entregava com o braço esticado, ele percorreu o corredor em que estavam cuidadosamente emolduradas, fotografias de grandes nomes do teatro, algumas com dedicatórias. Ajudou a anfitriã a guardar no alto da cristaleira a caixa organizadora de remédios. Só agora, sob uma luz descente pudera notar a artrite que deformava a mão da mulher, as varizes que ameaçavam interromper o fluxo sanguíneo e o leve tremor na mão direita.

Não tinha como adivinhar com certeza há quantos anos ela estaria a viver, mas não eram poucos. Enquanto ela percorria novamente o corredor a fim de retomar acento e descansar, ele a observou mais uma vez e não via nada além de uma velhinha frágil, debilitada e hospitaleira.

Quando, porém, ela se colocou outra vez ao lado do busto de Dioníso, foi como se um campo de força lhe restituísse a vitalidade e, surpreendentemente, após uma evocação (Evoé Baco!), ela dançou. Seus olhos, como se fossem dois faróis, guiavam o olhar da assistência para suas mãos que bailavam no ar e, a despeito da artrite, lhe hipnotizavam. Com um gesto forte, ergueu os braços acima da cabeça. O ângulo de incidência da luz, fez parecer que eram os próprios braços do deus do teatro que se moviam, arrastando consigo o ar à sua volta. Ao concluir descida lenta, juntou uma sobre a outra, as duas mãos no peito e disse: “agora o mundo olha para mim e eu olho para o mundo”. (GUMIEL, Renée no documentário “A vida na pele”, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IHzAoTmHYyI último acesso em 23/09/2019).

Estranhamente a atenção daquele espectador privilegiado se manteve no busto que pareceu, ele próprio, falar. Mais uma demonstração da potência expressiva de um corpo em cena.

Constatava-se, inclusive, aquilo que a atriz dissera antes, uma vez que não se tratava ali de um espetáculo em um palco italiano. Não havia sequer um cenário. Havia, porém, interação entre dois corpos: um que, por meio da dança, comunicava expressivamente e outro que expectava, numa relação convivial e poética, instaurando uma zona de

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experiência e subjetivação (DUBATTI,2016, p. 161) plenamente capaz de gerar sentidos e afetos.

Continuando a performance, a ancestral atriz sustentou seus braços esticados para o céu com tamanha tensão que o tremor ganhou seu corpo todo e replicou o som estridente, amplificado de tal forma, que lembrava até os trágicos da Grécia antiga, cuja voz, por de trás das máscaras de madeira, ecoava por toda a arena.

_”Vocês, artistas que fazem teatro/ Em grandes casas, sob sóis artificiais/ Diante da multidão calada, procurem de vez em quando/ O teatro que é encenado na rua./ Cotidiano, vário e anônimo, mas tão vívido, terreno, nutrido da convivência/ Dos homens, o teatro que se passa na rua.” (BRECHT, 2000, p.235)

Os grandes olhos de Dioniso pareciam fitar-lhe diretamente e a bengala da grande atriz, em riste, apontada na sua direção como se tirso2 fosse, a lhe oferecer um importante conselho.

Sem nenhum motivo aparente, a emoção tomou conta de seu ser e ele não pôde conter as lágrimas. Em sua sabedoria, a velha senhora sustentou por alguns minutos aquela atmosfera que havia instaurado e, em silêncio, retomou acento. Com olhar acolhedor, ofereceu-lhe a mão, que ele prontamente aceitou. Ela, então, disse com voz suave e decidida ao mesmo tempo: “... a emoção, para o ator não deve ser algo abstrato e psicológico, ao contrário, algo concreto e muscular, em constante movimento, fluidez e dinâmica interna.” (FERRACINI, 2003, p.37). Como bem disse o mestre retratado no terceiro quadro naquele corredor (ela se referia a Antonin Artaud), o ator é um atleta afetivo. É preciso cultivar seu corpo em vida e para isso nada melhor do que viver o mundo em toda a sua plenitude. Sair

2 Um tirso (Thyrsos em grego; Trhyrsus em latim) era um bastão envolvido em hera e ramos de videira e

encimado por uma pinha. Segundo as Mitologias grega e romana era usado por Dionísio (Baco para os romanos) e por suas seguidoras, as ménades (ou bacantes) que o empregavam como uma espécie de arma.

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por aí para ver o mundo e ver gente, a vida e a arte. Sem jamais se esquecer de que “a Arte não é a imitação da vida, mas a vida é a imitação de um princípio transcendente com o qual a Arte nos volta a pôr em comunicação.” (ARTAUD apud DERRIDA, 2014, P.342). A cena, o teatro e, portanto, o ator tem um papel fundamental frente ao mundo. “A cena deve nos levar a outro lugar, deve pôr em perigo a realidade circundante, impugnar seu papel de única expondo outros reais, provocando a mudança de visão. Uma técnica poética deve ser um lugar de unidade e multiplicação, e também um plano territorial a ser rasgado para dar passagem àquilo que esconde. Esse plano territorial e seu rasgo ocorrem no ator. Portanto, a primeira coisa a fazer é restabelecer o ator como centro da revelação, como principal agente da mudança. Para tanto, os atores devem aprofundar nosso olhar crítico sobre o mundo”. (AUDVERT, Pompeyo apud DUBATTI, p. 174, 2016).

Uma lágrima desceu por toda a extensão de seu rosto e foi aterrissar direto em seu peito. Mais uma vez tentou dissimular o que sentia, escondendo com a mão a umidade que o pranto deixara em sua camisa. Nesse gesto, pôde sentir o batimento forte de seu coração. Seria possível que ela também ouvisse aquele compasso, aparentemente tão sonoro? O ator deveria ser um atleta do coração. Certo, Artaud. Mas era sua cabeça que girava em frenesi com tudo que vira e ouvira da velha senhora. Estaria ela, provavelmente, respondendo àquela primeira questão anotada à mão num canto da carta: o que é um ator?

Já visivelmente cansada, a velha senhora se levantou e, antes de se retirar para dormir, pegou papel e lápis e escreveu em francês um bilhete que colocou encaixado na moldura de seu autorretrato, fixado na parede lateral à porta de entrada. A pintura com sorriso zombeteiro, parecia adivinhar que o hóspede não poderia compreender além de um “bonjour” em francês. Foi até sua biblioteca, retirou de dentro de um dos muitos livros uma carta, mais amarelada do que as que ele guardava na mala e colocou na mesinha ao lado da poltrona, dizendo: Isso é para você.

Como quem acabara de revisitar desassossegos que outrora lhe impulsionaram a vida e a arte, escreveu no alto da página “Para um jovem ator”. Talvez possa lançar alguma luz sobre suas inquietações, outrossim completar aquilo tudo que lhe comuniquei com minha dança-teatro, por meio de minha ação neste singelo espaço cênico. Mas não leia agora. Continue a levantar as questões e a buscar respostas você mesmo. A História e as experiências dos mais velhos como eu podem ensinar bastante. É importante ouvi-las, mas é imprescindível

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que tais conhecimentos se atualizem e ganhem sentido passando pelo seu próprio corpo. O fazer e o pensar arte necessitam andar juntos sempre. O movimento entre olhar o mundo e, conscientemente, deixar-se ver por ele precisa ser uma constante na vida de qualquer ator. O seu ofício consiste em dar a ver, não somente a si mesmo, mas às infindáveis personas que lhe constituem, personagens e heterônimos que habitam as muitas camadas de si mesmo. Fazer ver que, ao se optar por um caminho, não se ignora a existência de outros. Assim se criam perceptos e afectos.

Acompanhando com dificuldade o raciocínio expresso pelas palavras da anfitriã, o jovem aprendiz apenas observou com que profundidade ela lhe oferecia uma possível resposta. Seu silêncio durou tempo suficiente para a velha percorrer um segundo corredor que levava aos seus aposentos. Ao perceber que ela se retirava, disse somente o quanto aquelas palavras lhe tocavam por se apresentarem como desafiadoras ao seu pensamento e aprendizado em relação ao ofício do ator e à arte do teatro, sobretudo por conferirem ainda mais força à representação com que ela o presenteara havia poucos minutos. Observou também o quão filosófico lhe parecia aquele pensamento.

O Teatro, a Filosofia e a Ciência são igualmente formas de criação. “...enquanto a ciência cria funções e a arte cria sensações- perceptos e afectos-, a filosofia cria conceitos, novos conceitos. (MACHADO in DELEUZE, 2010, p. 8). O diálogo entre esses três domínios é sempre desejável.

Então, pensou ele, “Se “o teatro teatra”, um ator que se auto observa e produz pensamento sobre a riqueza e a vastidão daquilo que produz como acontecimento torna-se necessariamente um ator-filósofo. Filosofia da práxis que alimenta a práxis, que é indissociável dela no pensar e no fazer”. (DUBATTI, p.180, 2016). Aquele pensamento provocativo o animou por lhe parecer justo, digno e promissor. Precisava anotá-lo para, posteriormente, desenvolvê-lo melhor.

_Se precisar de alguma coisa, peça a Angel, que deve chegar dentro de quinze minutos. Agora, vou para a cama, onde eu já deveria estar há três quartos de hora. Soltou uma longa e estrepitosa risada. Se Angel, souber que fiquei acordada até esta hora, zangará comigo, como se eu fosse uma criancinha. Gargalhadas. Olhou para o relógio que marcava 22 horas e quinze minutos. Olha a hora! Se ela soubesse que eu dancei e representei, então!

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_Muito obrigado pela hospedagem e pela conversa e pelos ensinamentos. Foi uma noite inesquecível, senhora...

A porta do quarto se fechou. Da sala, em companhia do Dioniso na parede, conseguia ouvir ainda a risada. Gargalhada misturada a uma tosse pesada, preocupante.

Durante quinze minutos ficou em silêncio, olhando ora para o deus do teatro, ora para a carta “para um jovem ator” que a senhora deixara para ele sobre a mesinha, ora para a sua mala com o chapéu, presente de seu pai. Seu silêncio era reflexivo. A sonora tosse que vinha do quarto, aflitiva. Era de se estranhar que em nenhuma daquelas fotos houvesse uma indicação que fosse do nome daquela atriz. Fora capaz de identificar a maioria dos homens e mulheres de teatro retratados em inúmeros quadros a decorar aquela casa, mas não conseguia lembrar-se de alguma vez ter visto ou lido sobre aquela senhora que, inegavelmente, fazia parte da história do teatro e se mostrava uma grande atriz-bailarina.

Por alguns instantes ele se perdeu em seus pensamentos sobre aquilo que a velha senhora havia dito: “Muitas vezes, o sentido da profissão encontra-se em lugares inesperados. O teatro é muito grande, é imenso e repleto de possibilidades de realização. Estar em um palco à italiana, convencional, é só uma delas”. Ele já pensara de fato em algumas dessas possibilidades como o teatro de rua, o teatro na escola, em comunidades e até em empresas, mas ficara imaginando onde mais se poderia achar o sentido da profissão do ator, em que outras searas poderia o teatro encontrar realização?

Ficou ali, sentado na poltrona da velha senhora, incógnito na penumbra da sala, absorto em seus pensamentos. E tamanha era sua concentração neles que sequer ouvira o barulho das três trancas tetras, tampouco notou a porta se abrir.

Enquanto trancava a porta, Angel viu o bilhete, como era hábito acontecer nas noites em que voltava mais tarde da faculdade. Apanhou-o e leu “Aujourd'hui, J'ai reçu chez-nous un jeune acteur. Nous avons eu une agréable conversation sur le théâtre et sur la vie. Il dormirai ici ce soir pour se reposer du voyage. Peut-être il est sur mon fauteuil en ce moment.

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J'ai oublie de lui demander son nom. Offre-lui quelque chose a manger et assure toi qu'il est confortable. Bisous et bonne nuit, ma chérie.3

Pensando se tratar de mais uma maluquice de sua tia avó, Angel apenas sorriu de volta para o retrato eternamente feliz. Ao se virar para finalmente se livrar do peso da mochila e do seu inseparável “Sobotta”4, Angel levou um tremendo susto ao perceber o vulto de um homem com os braços elevados acima da cabeça, como quem posa para uma foto. O grito agudo da moça, desconcertou o rapaz que, encabulado, interrompeu a tentativa de reprodução da cena que tanto o emocionara. Levantou-se rápido da poltrona, pedindo calma. As mãos agora protegendo o rosto, antes que a moça lhe golpeasse com aquele livro aberto na página 85 bem no meio do seu músculo epicrânio/músculo occipitofrontal/ventre frontal. No susto, talvez por coincidência, a jovem pegara o livro aberto no ponto que estava estudando. Por um segundo lhe parecera até interessante comparar as expressões de susto do rapaz com o que o “Sobotta” apresentava nesta página5. Garantida a segurança, ele deu dois passos à frente. O suficiente para a luz da luminária ao lado do retrato da dona da casa vencer a sombra e revelar o rosto do desconhecido hóspede.

_É, me desculpe. _Me desculpe.

Os dois falaram ao mesmo tempo. Silêncio constrangido. Ela deposita o célebre e pesado atlas de anatomia humana novamente na mochila que coloca no chão ao lado da mala do estranho. Só agora ela percebera.

_É...

_Não me diga seu nome. Deixe-me adivinhar. Você é... Angel! Tentou ele para quebrar o gelo.

_Que impressionante!

3 Tradução para aqueles que, como nosso ator, não dominam o francês: Eu recebi um jovem ator hoje em casa.

Tivemos uma conversa agradável sobre o teatro e sobre a vida. Ele vai dormir aqui esta noite para descansar de sua jornada. Talvez ele esteja sentado no meu sofá agora. Eu esqueci de perguntar o nome dele. Ofereça-lhe algo e certifique-se de que ele está confortável. Beijos e boa noite, minha querida.

4 Atlas de Anatomia Humana escrito por Robert Heinrich Johannes Sobotta, anatomista alemão. Trata-se de uma

importante referência nas escolas de medicina.

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A jovem ruiva Angel parecia afeita a ironias.

_Desculpe-me pelo grito e por não ter poderes adivinhatórios como os seus. O bilhete só falava de um jovem ator que provavelmente estaria sentado na poltrona. E olha que esta poltrona é o xodó dela. Enfim, eu achei que fosse mais uma de suas viagens. Mas ela não diz aqui qual o seu nome. Ela esqueceu de perguntar...

_O que?

_O seu nome, ela esqueceu de perguntar.

_Ah, sim. Meu nome é Augusto. Mas ela é mesmo atriz, não é?

_Claro que sim. Ou você imagina que ela coleciona quadros desse povo todo de teatro por quê?

_Não, é que você disse que achou que o bilhete fosse só mais uma viagem então eu pensei que ela pudesse ser...

_Louca?

_Não, eu não quis dizer isso. _Mas ela é!

_Sério?!

_Claro que não. _Ufa.

_Quer dizer, somente o normal para uma atriz. Esse povo de teatro é tudo meio doido, não é mesmo?

_Bem, às vezes eu acho que eu sou até certinho demais para um ator. Ela é sua avó?

_Tia-Avó. Eu moro aqui com ela porque é mais perto da faculdade... e também para cuidar dela. Claro que ela jamais admitiria que precisa de cuidados. Então, para todos os efeitos, é ela quem cuida de mim.

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_Espero que ela tenha se lembrado de tomar os remédios.

_Tomou. Eu mesmo a vi tomar um comprimido atrás do outro. Coloquei-os em cima daquela cristaleira.

_Que bom. Pelo menos disso ela não se esqueceu. O cloridrato de memantina deve estar fazendo efeito.

_Desculpe-me pelo susto, está bem? _Tudo bem. Você precisa de alguma coisa?

_Eu me ajeito aqui no sofá. Pode ir dormir tranquila.

_Dormir? Até parece! Ainda preciso estudar umas cem páginas para a prova de anatomia de amanhã.

_Uma estudante de medicina, sobrinha-neta de uma atriz bailarina. Interessante. Você sempre quis ser médica?

_Desde sempre, eu acho. Sempre sonhei em poder ajudar as pessoas, em salvar vidas. Se eu sobreviver ao ciclo básico, talvez eu consiga...

Tosse, tosse, tosse. Ela repassa o protocolo mentalmente. Tosse. Produtiva? Tosse, tosse, tosse. Cor do catarro? Tosse, tosse, tosse, tosse. Falta de ar? Soaria estranho Angel estar tão familiarizada com a DPOC num estágio tão inicial do curso de medicina, não fosse uma curiosidade quase mórbida despertada após a morte de sua jovem mãe em função de um DPOC Gold 4. Tosse, tosse, tosse e mais tosse vindo do quarto de sua tia-avó. Talvez fosse melhor deixar as suposições de lado e ir vê-la. Uma inalação com Berotec e Atroven poderia ser benéfica. Era o que ouvia seu colega residente da pneumo dizer em casos como este. Sua tia-avó protestava, pois que tudo estava bem. Decúbito elevado. Isso já era exagero, resmungava a velha senhora. Talvez fosse necessário mesmo levá-la ao Hospital Escola. Certamente, tendo o parentesco que tinha, não esperaria um minuto na fila e de quebra seria atendida pelo chefe do ambulatório de pneumologia. De maneira nenhuma haveria necessidade de ir ao hospital. Tratava-se somente de uma friagenzinha que apanhara ao abrir a porta para o jovem viajante. A senhora era irredutível. Só aceitaria ir a hospital, ver o médico que fosse, em caso de necessidade real. Aquilo não passava de uma tossezinha de nada,

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incapaz de a derrubar ou de lhe fazer pedir arrego. E Angel que não começasse com seus infindáveis sermões sobre o tabagismo. Era óbvio que, em seu caso particularíssimo, o cigarro não lhe fazia mal algum, visto que ela consumia tão somente cigarros parisienses e não essas porcarias comercializadas no Brèsil. Além do mais ela mantinha corpo e mente em movimento. Isso devia fazer alguma diferença, não? Silêncio. A tosse aparentemente cessara.

_Finalmente ela dormiu. Boa noite, Augusto. Você pode dormir também e eu estudar.

_Se precisar de alguma coisa, pode me chamar. Eu não vou sair desse sofá. A última sílaba prolongou-se num bocejo incontido.

_Boa noite Angel. E obrigado. Boa noite Baco.

Poxa, esquecera-se totalmente de perguntar o nome da velha senhora que tão generosamente o hospedara. Que descuido. Quase imperdoável. Mas, assim que acordasse pela manhã bem cedo, esta seria a primeira pergunta a fazer, antes mesmo de dar bom dia. E depois, seguir viagem.

Apesar do cansaço, demorou um tempo nada desprezível para adormecer. Ficou pensando ainda sobre tudo o que vivera naquelas poucas horas na casa de uma velha atriz, senhora bailarina, que recebera um total desconhecido. Se ele escrevesse uma história assim, uma peça ou um conto que fosse, certamente seria taxada inverossímil. Mas como a vida tem amplidão muito maior que a melhor das literaturas, ele aceitaria tais circunstâncias dadas sem auto recriminações.

Enquanto Angel, no quarto ao lado, se havia com músculos, vasos e nervos de cabeça e pescoço, no sofá da sala da velha senhora, Augusto, o jovem aspirante a ator dormia velado pelos olhos do deus do teatro e da alegria fixado na parede. Seu corpo dormia, mas seu cérebro parecia decidido a continuar pensando, refletindo e problematizando acerca do corpo, especialmente do corpo e suas potencialidades expressivas.

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5. CARTOGRAFIAS DO CORPO- CAMINHOS PARA DENTRO DE MIM

Nem bem o sol se levanta no alvorecer, ecoam sonoras batidas à porta daquele casebre solitário no meio da campina. Respiração ofegante. Mãos fechadas e trêmulas. Pés ansiosos por adentrar aquele ambiente nebuloso e intrigante. As sombras se movem na parede já gasta que agora é levemente banhada pela luz alaranjada do amanhecer em curso. Como ninguém viesse abrir, uma espiada pelo vidro sujo da janela trancada por dentro. Um espremer de olhos esforçados na vã tentativa de enxergar. Um respirar profundo em busca de coragem e o empurrar da porta, cujo fragoroso ranger das dobradiças revela que naquele lugar o tempo se demorara. O primeiro passo adentro faz gemer o assoalho de madeira gasto. Antes de cruzar a linha da porta, olho uma vez mais a amplidão daquele espaço gigantesco, aparentemente familiar, mas externo. Se chegara até ali, era imperioso seguir e ver o que pudesse existir por dentro daquele recinto que me atraíra. Neste instante, cruzara-me o pensamento a certeza de que nunca mais seria o mesmo. O que não seria, necessariamente, um problema.

Universo em suspensão.

Ouço o bater de asas de moscas que, a quilômetros dali, sobrevoam a carniça de um bicho. O olho parado do animal ainda mira, mas nada vê, embora o mundo todo estivesse refletido nele. Em milésimos de segundos revejo as pegadas empoeiradas que deixei no caminho até aqui e chego outra vez. Ainda não me decidi pelo segundo passo que me colocaria de vez naquele interior. Sinto, de repente, uma batida do meu coração.

Decido.

Ao mesmo tempo, parece-me, o ponteiro do velho relógio parado na parede reinicia o seu tiquetaquear, como a marcar o início de novo ciclo. Mais um passo e a porta se fecha atrás de mim, desta vez sem barulho algum. As paredes de dentro não parecem menos gastas que as de fora, mas trazem outros sinais. Os de que ali, naquele interior muitos mundos possíveis poderiam coabitar. Corro os olhos pelos cômodos vazios à procura de algo que me ligue ao que busco sem saber o nome. Arrisco alguns passos cautelosos e chego a um quarto, também vazio. Apenas algumas marcas no chão como a indicar que ali houvera movimento. Danças, lutas, ritos talvez. Mas nada de concreto além de marcas que se davam a ler assim.

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Ou seriam meus sentidos que viam o que de fato não se dera? Um cheiro doce e forte de café passado na hora me atrai à cozinha. Quase acelero meus passos, mas, não querendo arriscar, estanco sob o batente e, de olhos fechados para melhor sentir, puxo fundo aquele aroma que se esvai tão de repente quanto surgira. Confiro abrindo somente um dos olhos e, de fato, na cozinha resta somente uma estrutura que um dia pode ter sido um fogão de lenha. Nada mais. Do coador, do bule, nem sinal.

Continuo a procurar pela casa e pouco ou quase nada encontro que me alente, que ao menos me dê uma ideia do que viera ali buscar. Ouço um som insistente de tosse, mas nada vejo ou encontro. Um raio do sol produz uma linha reta, um feixe que passa por minúsculo buraco na telha brasilit e lança luz em outra sala. Dali, sem explicação nem mais, exala outro odor que me desperta a memória da infância. De onde afinal viria tão sonora tosse? Aquele cheiro inconfundível de dama da noite em pleno dia talvez não fosse mal agouro como acreditavam os antigos.

Encontrei. Fora imensa minha perplexidade ao ver, naquela pequena sala, deposto sobre uma mesa improvisada (dois cavaletes sob uma tábua larga) um corpo. E ao redor dele sete cadeiras de madeira escura e um estofado gasto, que um dia fora de um vermelho vivo, hoje não mais. Não havia roupa ou tecido sequer que lhe cobrisse as vergonhas. (Um pouco antiquado este pensamento, eu sei. Mas foi o que na hora me veio à mente). Ao invés disso, o rosto é que era coberto, encontrando-se oculta a identidade daquele corpo. Certamente não seriam suas as tosses infindáveis. Não percebi, nem saberia dizer quando foi que me sentei em uma das aleatórias cadeiras que o rodeavam, nem quanto tempo fiquei ali parado a observar a cor, o aspecto, a imaginar a temperatura gélida e a rigidez mortuária daquele corpo. Também não notei quando foi que esta borboleta branca pousara em meu ombro esquerdo. Só me dei conta quando ela voou dele e ficou borboleteando em volta da luz, seguida por meus olhos incertos. Já não sei dizer se a acompanhava, se olhava para o corpo sobre a mesa ou se para dentro de mim mesmo. Quando a alva borboleta pousou sobre o que imagino devesse ser o nariz do corpo, novamente o odor da dama da noite rescendeu e foi como se ultrapasse as frágeis paredes e percorresse toda a amplidão como a espalhar que ali havia algo que merecia ser visto, sobre o que muito se poderia refletir e experimentar.

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Figura 2- Caminhos para dentro de mim

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Permaneci atônito, me mantive estático. Só me permiti mover quando o já conhecido ranger das dobradiças me chamou atenção para outra pessoa que entrava. Com movimentos belos e harmoniosos ela se aproximou e, assim como eu, sentou-se na cadeira do lado oposto ao que eu estava. Outras pessoas parecem ter sido atraídas para aquele lugar, seja pelos odores exalados, seja pelo fato aparentemente inusitado de um casebre restar abandonado em meio àquela amplidão ou ainda pela misteriosa tosse cujo ruído parecia querer despertar o mundo todo. Alguns com movimentos igualmente belos e harmoniosos, outros desengonçados, mas com não menos curiosidade no olhar. Todos estavam ali por algum motivo, a buscar algo a que ainda não sabiam dar nome. Teriam eles passado pelo mesmo animal morto, cujo olho parado refletia o mundo todo sem nada mais ver? Uns fizeram o mesmo percurso que eu cruzando a mesma porta, outros entraram pela janela ou por uma fresta no telhado que só agora eu notara. Um último membro desta insólita reunião foi se achegando lentamente pela porta dos fundos e atraiu os olhares de todos que, se antes estavam fixos sobre aquele corpo sem rosto, agora se esforçavam, cada um mais que o outro, para não deixar transparecer a surpresa, estranhamento mesmo, quase asco, ao ver que o ser que entrara sobre uma cadeira de rodas motorizada e se colocara no único espaço vazio ali deixado, como que de propósito, era incapaz de mover um músculo sequer abaixo do pescoço. Seria ele um rosto sem corpo? Estas palavras não me saíram da boca, mas tampouco do pensamento.

Silêncio.

Ninguém ousava quebrar o vazio sonoro que se instaurara. Todos sustentavam a inércia que se impunha diante oito pessoas desconhecidas ao redor de um corpo morto e sem rosto. Um respirar mais forte parecia já ser capaz de perturbar aquele estado delicado em que nada precisa ser dito para que haja comunicação, genuína interação. O silêncio só foi rompido após a borboleta bater suas asas e percorrer milimetricamente todo o contorno, como a delimitar a geografia daquele corpo e novamente pousar sobre o tecido sobre o rosto sobre a mesa. Um dos presentes, sentado à minha direita, não contendo mais a ansiedade, irrompeu:

_Mas o que é isso?

_Um corpo, disse o seguinte, ao que o primeiro retrucou: sim, um corpo, mas... _O que exatamente é um corpo? Me adiantei.

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_Ora, é nosso instrumento de expressão, nosso veículo que nos leva de um lugar a outro, arriscou um e fora fuzilado pelo mais amplo movimento ocular de que era capaz o ser na cadeira de rodas.

Visivelmente, aquela ideia do que seria o corpo não lhe soava nada bem. Outros, cautelosos, se demoraram mais na busca à resposta para aquela pergunta. Olhavam para o corpo morto sobre a mesa, para si mesmos e para os demais ali presentes, percebendo que não poderia haver uma resposta única.

Uma voz tentou pôr em palavras o que os olhares pareciam perceber enquanto constatavam as dissimilitudes evidenciadas em cada um:

_Eu penso que “...não existe somente um corpo, mas vários, subentendidos nas experiências e nas técnicas corporais particulares. O corpo tem uma forma, um sexo, uma massa ou um peso. Ele tem uma memória - como registro de uma história passada- e, ao mesmo tempo, ele é uma projeção para o futuro, com sua bagagem genética, seus desejos, sonhos, projetos”. (STRAZZACAPPA, 2012, p.31)

Quais teriam sido os desejos, sonhos e projetos daquele que agora, se encontrava finado sobre uma mesa? Teria ele conseguido realizá-los? Que experiências e técnicas corporais trouxera em sua bagagem até aquele último porto? Tomara ele consciência da sua forma de estar no mundo ou para ele o corpo não passara de um veículo para levar a cabeça de um lugar para outro? E agora, qual sentido haveria em ter ou não um corpo? O que seria um corpo morto? Foram algumas questões que se misturaram na minha cabeça após a fala anterior. Enquanto ainda me havia com elas, o sujeito da cadeira de rodas já começara a discorrer com muita firmeza sobre o quê, para ele, seria o corpo.

_ ...é este conjunto de tecidos, órgãos e sistemas biológicos programados para engendrar um funcionamento minuciosamente integrado, com relações e ligações capazes de permitir experimentar sensações de frio ou calor, de medo ou ímpeto diante das coisas maravilhosas da vida. Da vida que é. Da vida que foi. Da vida que seria. Da droga da vida sem devir que nunca mais será. Eu ainda posso sentir meu braço direito golpeando o ar com força e fúria, ainda que vocês o vejam quedado, paralisado como um apêndice inútil desse corpo morto em vida. Eu o posso sentir vibrando no ar...

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Eram seus olhos que vibravam como se mimassem o movimento que o braço deveria fazer. As pessoas em volta mantinham presa a respiração para não interromper o que sabiam ter de ouvir com atenção.

_ Depois do acidente que me aprisionou neste corpo paralisado foi que se evidenciou para mim a importância de um insignificante dedo mindinho do pé esquerdo. Já pararam para pensar em como seria alterado o equilíbrio caso o tivessem ferido ou amputado? Imaginem-se agora em meu lugar, tendo sido alijado do corpo inteiro. Não passo de uma cabeça sem corpo. Uma cabeça que arrasta de um lado para o outro um corpo inútil. E isso somente por poder contar com a tecnologia dessa cadeira que faz o que essa inutilidade não é mais capaz de fazer, recebendo e obedecendo os comandos que os impulsos elétricos das sinapses cerebrais enviam. É como se a mensagem fosse extraviada logo de saída e ao pensar em mexer uma perna, girasse a roda. É isso. Minha perna agora é circular, radiada e anda aos giros por aí. Não se espantem se começar a vazar algum fluído da cadeira. Minha bexiga também não é mais a mesma.

Silêncio constrangedor. Olhares. Silêncio...

Silêncio, somente rompido pela estrepitosa gargalhada do próprio autor da “piada” que a todos pareceu inoportuna. Ele era o único com direito ao riso naquela ocasião. Não sabendo o que dizer, uma moça longilínea começou a se mover pelo espaço de tal forma expressiva que chamou a atenção de todos. Rodeou a mesa, passou por entre os acentos tocando os ocupantes ora com suave carícia, ora com vigoroso despertar. Subiu na cadeira e acabou mesmo por dançar sobre a mesa, ocupando os espaços vazios que o corpo imprimia, como que delimitando uma geografia dos gestos. Dançou e dançou e dançou. Num dado momento caminhava em quatro apoios, tocando somente com as pontas dos dedos a superfície, como se chão de vidro fosse, pele frágil sujeita ao esfacelamento diante de descuidados. Estendia a mão como se quisesse alcançar respostas e traçava uma linha diagonal aguda entre pé direito e mão esquerda. Levantando-se, agitava os braços ao alto, como quem busca desesperadamente emergir de um mar que lhe sufoca, lutando para escapar de abraços de afogado, mas terminava por repousar seu corpo sobre o outro com

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suaves movimentos de peixes apaixonados, de amor mortos e silenciosos em zonas abissais. Desceu da mesa, se colocou novamente sentada em seu lugar e disse:

_Corpo para mim também é isso.

O único que se manteve no mesmo estado de inanição fora o parceiro inadvertido daquela dança. Os demais enxugavam o rosto que as lágrimas molharam ou as deixava escorrer pela incapacidade de as deter. Como era possível que a dança, o movimento, a ação de um corpo no espaço causassem comoção, despertassem emoções e nos fizessem ouvir a música dos gestos?

Todos permaneceram em total silêncio durante a performance da moça longilínea, mas ainda assim, era perfeitamente audível a música que emanava de seu corpo agindo no espaço. O movimento gerava som, que gerava cor, que despertava memórias e emoções. Corpo, certamente, também era aquilo.

Que memórias estariam escondidas naqueles movimentos ou, por outro lado, que memórias eles quereriam desvelar? O que acabáramos de ver era uma bela exposição do que poderia ser o corpo e de suas potencialidades, sustentada sem o uso da palavra, mas da arte. Aquela moça nos colocara diante de questões desafiadoras. Ela era, sem dúvida, uma artista e como tal era capaz de falar e provocar fricções nos adeptos de modos mais cartesianos de ver as coisas e de construir conhecimentos. Como poderia ser possível que do corpo, surgissem conhecimentos também valiosos para a humanidade? E de que maneira poder-se-ia enriquecer, fomentar ou simplesmente possibilitar a efetivação de um processo de ensino-aprendizagem daquela matéria tão potente?

A moça retomara então a palavra:

_ Não quero me demorar em palavras porque elas são incapazes, muitas vezes, de dizer com precisão e justeza tudo aquilo que passa pelo meu corpo quando danço. A arte se explica por si mesma. Meu corpo fala.

_ Balela! Interrompeu um dos participantes, ajeitando os óculos malparados sobre o nariz adunco. Essa história de que o corpo fala é uma imprecisão acadêmica, uma incapacidade de teorizar sobre uma prática bela, mas muitas vezes vazia de sentido. Como é que se vão reproduzir determinadas experiências se o que o seu corpo diz é ouvido, visto ou

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lido de maneira particularizada? O corpo fala!? Diga-me então o que é que o meu corpo está dizendo agora?! E se colocou em pé diante da “plateia” estarrecida com o arroubo de braveza injustificada. Em silêncio, postou-se: ombros caídos para a frente, braços curtos com mãos na cintura, pés imitando os ponteiros do relógio quando marcam dez para as duas, testa franzida e olhar superior de uma cabeça sobre a cervical encurtada. O que este corpo dizia todos preferiram calar, exceto a moça que dançou uns passos céleres na direção do homem e enquanto bailava, disse:

_Tenho consciência de que aquilo que meu corpo diz quando danço só se atualizará no seu olhar, a partir de suas próprias experiências. Portanto, minha é a função de dizer/dançar. A leitura e fruição ficam por sua conta. Está garantida, com isso, a sua liberdade e a minha.

_Liberdade! Bradou o senhor de óculos, ainda mais irritado. Vocês sempre se escondem atrás da ideia vazia da liberdade como uma categoria subjetiva que não diz nada. Não há rigor nem disciplina em suas pesquisas. O corpo não é um objeto científico para vocês! _É um objeto científico e artístico! O fato de pesquisar o corpo e, a partir dele produzir conhecimentos, não lhe diminuí o valor, nem autoriza ao senhor dizer que não há rigor ou disciplina nesse campo de estudo. “...si, sous l’emprise des disciplines, l’individu n’existe pas en soi mais comme assujettissement, l’expression de sa liberté consiste à se produire lui-même6 .» (HUESCA, 2005, p. 41 apud FORTIN, 2008, p. 118). Queira ou não queira o senhor, o corpo fala!

_ Diga isso a este que jaz sobre a mesa ou àquele sobre a cadeira de rodas, ambos com os corpos emudecidos e p...

Interrompeu o que ia lhe escapar da boca por ele mesmo perceber que não seria digno e muito menos respeitoso. Todos olharam para o que ainda poderia responder a esta ofensa interdita imaginando o que se passaria, mas o homenzinho tinha o rosto parado, de olhos fechados, os lábios se movendo lenta e ritmadamente em pequenas bufadas sonolentas, que logo também se interromperam. Por sorte, dele principalmente, adormeceu ainda no

6 Tradução nossa “...se, sob a influência das disciplinas, o indivíduo não existe em si mesmo, mas como sujeito assujeitado, a expressão de sua liberdade consiste em produzir-se a si mesmo”.

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meio da discussão e não pudera ouvir o despautério que lhe seria proferido. Tudo era silêncio e suspensão. Com receio de que fosse o caso de termos agora dois cadáveres na sala, uma das moças se aproximou e tocou no braço apêndice inútil a fim de despertá-lo, se possível. Não era. Não que estivesse morto, ao menos não do pescoço para cima. Quase gritou de pavor, mas se apercebeu a tempo da gafe. Com o fino dedo indicador tocou duas vezes o nariz do senhor que, com os olhos, deu um pulo da cadeira.

_ O que foi, o que foi? Perdi alguma coisa importante?

_ Nada que lhe fizesse grande diferença. Disse a moça, com o indicador ainda esticado, agora balançando negativa e delicadamente.

_ Somente lembrava, a este senhor, do grande mestre Kazuo Ohno que, já na fase terminal da doença que lhe pôs fim à vida e, como você, sobre uma cadeira de rodas, disse: enquanto puder mexer o dedinho mindinho que seja, continuarei a dançar. E assim o fez.

_ Mas responderam-se as questões? O que é um corpo? A que ele serve? Como comunica e é capaz de construir conhecimento?

Não haviam, verdadeiramente, sido respondidas. De fato, nem poderiam ser. Cada um continuaria a procurar e a encontrar a seu modo repostas que lhe serviriam mais ou menos. Tinham olhado para os outros, para si e para o morto. Tínhamos mesmo? Falou-se, debateu-se, experimentou-se e cada um parecia ter chegado a um lugar muito particular. Não demonstravam desejo ou intenção de sair daquele local. Todos pareciam querer ficar um pouco mais. Foi quando um dos congressistas resolveu investigar mais de perto aquele corpo que motivara tantas discussões. Tocou no joelho esquerdo do morto e se colocou em contato com a pele gelada. Ver aquilo me arrepiou. Não entendi o motivo. Até então eu me restringira a olhar e a imaginar aquela temperatura e a relembrar, por analogia, da sensação incômoda que experimentei quando toquei a mão de meu irmão morto há anos. O tempo passou, mas as perguntas e o modo diferente de me perceber como sujeito que tal fato me suscitou, não. A proximidade e a profunda ligação que tínhamos gerou em mim um sentimento estranho. O corpo de meu irmão estava ali, dentro de um caixão, mas ele não.

Outras mãos tocaram o cadáver sobre a mesa e novamente senti arrepios. O que seria a presença? Pensei. Seria verdade que meu irmão e aquele ser deitado ali no meio

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