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À BEIRA DO ABISMO UMA CONSULTA SIMULADA

8. O TRABALHO DO ATOR NA EDUCAÇÃO MÉDICA

8.1. À BEIRA DO ABISMO UMA CONSULTA SIMULADA

Ao contrário do que acontecera ao jovem estudante de teatro Kóstia Nazvanov13, Augusto não se atrasara para sua primeira “prova”. Chegara com antecedência suficiente para se dirigir ao minúsculo camarim, sem que os estudantes o vissem. Considerava importante evitar o menor contato com eles antes do encontro que teriam em breve. Vestiu o figurino e

ficou ali, repassando mentalmente os detalhes do caso. Recordava-se da ansiedade de Kóstia antes de subir ao palco para representar o mouro Otelo em sua primeira prova diante do diretor. Augusto esperava ser mais feliz que ele, indo além de breves momentos de inspirada atuação. Desejava ser capaz de expressar a vida de um espírito humano chamado Cláudio, que talvez não estivesse à altura de Otelo, nem proferisse com tanta dramaticidade a famosa fala shakespeariana “Sangue, Iago, sangue!”, mas que, em breve, estaria diante de seu flagelo conhecido como câncer.

Os professores Lithocarpus e Marcel reuniram o grupo de dez alunos em torno da mesa oval da sala contígua ao consultório simulado para explicar como se daria a atividade. Enfatizaram, com especial atenção, o fato de não se tratar de uma avaliação. Que os alunos poderiam se sentir muito à vontade e que aquele ambiente deveria ser de total confiança. Percebendo os olhares inseguros e quase assustados dos alunos, o professor fez uma piada com o intuito de quebrar o gelo.

DR. LITHOCARPUS: Relaxa, pessoal. Se alguém passar mal ou rebaixar, eu e o Marcel fazemos os primeiros socorros. Eu garanto um leito para vocês lá no hospital.

DR. MARCEL: Pessoal, a gente quer que seja uma experiência prazerosa também. Que vocês possam aprender na prática. Dois de vocês vão atender, um de cada vez, ao nosso paciente simulado, que é um ator, ali naquele consultório. A ideia não é avaliar vocês! A ideia é construirmos um ambiente no qual a gente possa aprender juntos. Queremos oferecer a vocês “a oportunidade de resolver problemas e tomar decisões em um ambiente controlado, seguro, e mesmo assim semelhante ao original”. (SCHWELLER, 2014, p.36).

DR. LITHOCARPUS: E então, quem serão os corajosos ou corajosas a inaugurarem nossa atividade de simulação de consultas? Fiquem tranquilos que o ator é bom. Ah, e a consulta é de vocês. Não tem aquele momento de pedir licença para o paciente e ir confirmar com o professor se fizeram tudo certo. Hoje é com vocês, certo, juventude?

Entre risos e silêncio, um aluno e uma aluna aceitaram o convite para atuarem na consulta simulada. Foram conduzidos a um outro espaço para ouvirem instruções detalhadas. Um deles atenderia primeiro enquanto o outro aguardaria a sua vez, sem poder acompanhar a primeira consulta, obviamente.

DR. MARCEL: Bom, vocês são clínicos da Unidade Básica de Saúde e vão atender um retorno de um paciente que veio saber o resultado do exame que fez a pedido da Dra. Fernanda, que entrou de férias e vocês estão cobrindo. Lá no consultório, vocês poderão ler o prontuário do paciente e verificar o resultado do exame. Então, vejam que não há nenhum desafio diagnóstico...

SILVANO: E o que é que ele tem?

DR. MARCEL: Vocês poderão verificar no prontuário. MARIZA: E qual o nome do paciente?

DR. MARCEL: É o senhor Cláudio. Qual dos dois vai primeiro? SILVANO: Eu posso ir, se você não se importar. (Para a amiga). MARIZA: Por mim tudo bem. Eu vou depois. Boa sorte.

DR. MARCEL: Então, Mariza, você aguarda naquele banco e o Silvano atende primeiro. Vamos lá.

Marcel encaminha o aluno pelo corredor em direção ao consultório.

DR. MARCEL: Pode entrar aqui no consultório, dar uma olhada no prontuário e, quando você estiver satisfeito, é só chamar o paciente que vai estar esperando sentadinho aqui na cadeira do corredor. Boa consulta.

Enquanto isso, o professor Lithocarpus orientava o grupo que assistiria as consultas para manter silêncio e muita concentração.

Com o aluno médico dentro do consultório, o Dr. Marcel avisou Augusto que, já pronto e preparado, aguardava no camarim. Postou-se sentado na cadeira de espera, de onde viu Marcel entrar na sala para se juntar à plateia que assistiria à transmissão ao vivo da consulta que se iniciaria muito em breve, segundo a prontidão do aluno médico.

Além de todo o subtexto que Augusto trabalhara quando do ensaio com Marcel, desta feita ele se concentrava também em todas as orientações dos professores. Uma certa ansiedade podia ser sentida no ambiente. Uma pessoa à procura de um funcionário da faculdade servira como primeira oportunidade de ativar a personagem.

Augusto/CLÁUDIO: Ixi, não sei, não senhora. Eu tô esperando o médico chamar pra consulta.

Com estranhamento, sem entender direito e expressão de desconfiada, a mulher agradeceu e foi procurar a pessoa em outro setor.

Alguns minutos se passaram. A única ação era a de esperar. Ou seja, a olhos nus parecia tudo parado, mas internamente um turbilhão de ações se dava. Augusto lembrara-se de uma passagem que o marcara em seu tempo de estudante de graduação de artes cênicas, no mesmo livro que relera por ocasião desse novo trabalho. Em “A preparação do ator”, o mestre russo diz por meio de um de seus alter egos, o diretor Tortsov: “...a imobilidade de uma pessoa sentada em cena não implica em passividade. Pode-se estar sentado sem fazer movimento algum e, ao mesmo tempo, em plena atividade. E isto não é tudo. Muitas vezes a imobilidade física é resultado direto da intensidade interior, e são essas atividades intimas que têm muito mais importância, artisticamente. A essência da arte não está em suas formas exteriores, mas no seu conteúdo espiritual.” (...) “Em cena é preciso agir, quer exterior quer interiormente.” (STANISLAVISKI, 1968, p.67) Augusto pudera ouvir um riso coletivo, logo abafado. Provavelmente devia-se à oportunidade de ver o colega naquela situação. Estaria ele em apuros ou, seduzido pela atração da câmera, tentava algum gracejo para chamar a atenção ao mesmo tempo que disfarçar o nervosismo? Para Augusto, o melhor a fazer era se concentrar nas circunstâncias que antecediam o momento inicial da cena e se disponibilizar para o encontro.

Com o abrir da porta do consultório, soava o terceiro sinal e abriam-se as cortinas para o início da cena14.

MÉDICO: Senhor Cláudio, pode entrar, por favor. (Aguarda o paciente chegar ao consultório, o que é feito com dificuldade e lentidão dada a fraqueza generalizada. Aqui, antes mesmo de qualquer fala, o ator já expressa muito da condição do paciente. Se o médico não se limitar a chamar o próximo “cliente”, sem se levantar da cadeira, indo, ao contrário, ao seu

14 Optou-se por fazer a transcrição fiel da consulta simulada realizada, preservando características regionais da

fala e mesmo erros de português, tanto do paciente simulado quanto do médico, por se acreditar na importância da reprodução de tais aspectos no tocante à comunicação efetivamente estabelecida entre os atuantes.

encontro, poderá colher dados importantes por meio da observação.) Boa tarde, tudo bem com o senhor? Meu nome é Silvano15, médico aqui da unidade. Pode se assentar. A doutora que estava te atendendo está de férias, agora eu vou consultá-lo...

CLÁUDIO: É, falaram pra mim que a doutora Fernanda não tava e que era pra passar com o senhor mesmo.

MÉDICO: O senhor acompanhava fazia tempo com ela? CLÁUDIO: Não. Eu passei uma vez só com ela, na verdade.

MÉDICO: Ah, ok. Eu estava dando uma olhada, uma lida aqui na sua pasta e está falando que o motivo de você ter passado com ela é porque você está com dificuldade de engolir, é isso mesmo?

Augusto pensou que aquilo não era exatamente uma pergunta aberta, mas como o aluno o havia recebido de forma simpática e acolhedora decidiu dar-lhe mais que uma resposta seca, monossilábica.

CLÁUDIO: É, eu não estava conseguindo comer. Já faz uns cinco, seis meses mais ou menos. Mas começou primeiro...(engole saliva com dificuldade e expressão de dor.) começou com comida mesmo, sabe? Arroz, feijão, carne...essas coisas.

MÉDICO: Parecia que entalava?

CLÁUDIO: É. Eu achei que era dor de garganta e que ia passar, mas só foi piorando. Não passou. (Em milésimos de segundos, visualizou os dias sofridos da piora do seu quadro) Agora, eu não estou conseguindo nem tomar água. Se eu vou tomar água, suco, qualquer coisa, eu tenho de tomar de pouquinho e devagar, porque senão eu afogo.

MÉDICO: Entendi. E você acha que nesses cinco meses está só piorando...

CLÁUDIO: Ah, só piorou. Porque ainda no começo eu comia um pouco. Ia devagar e tal. Depois a Ana começou a fazer uma sopa mais rala assim, batida no liquidificador que eu conseguia engolir. Mas agora eu não estou conseguindo comer nada.

MÉDICO: Entendi. Ana é... ?

CLÁUDIO: É minha mulher.

MÉDICO: Entendi. E antes de aparecer essa dificuldade para engolir você estava bem? Como é que o senhor estava?

CLÁUDIO: Normal.

MÉDICO: Você estava trabalhando? CLÁUDIO: Ô.

MÉDICO: O que é que você faz?

CLÁUDIO: (Esse aluno parece realmente interessado na história do paciente.) Eu sou marceneiro. Faço mesa assim, cadeira, armário, o que tiver pra fazer de madeira nós faz. Mas eu tô parado faz um mês já.

MÉDICO: É? Por causa de que que você parou? CLÁUDIO: Porque eu tô com muita fraqueza. MÉDICO: É no corpo todo? Como que é? CLÁUDIO: Ah, é pra tudo.

MÉDICO: Entendi. Aí você não está conseguindo comer, nem trabalhar direito. Emagreceu nesse período?

CLÁUDIO: Ah, eu emagreci uns cinco quilos desde que começou.

MÉDICO: E aqui na sua pasta está anotado que você fuma. Você ainda está fumando?

CLÁUDIO: (Vamos ver que rumo ele vai dar para essa conversa. Se começar a ameaçar o paciente ou jogar com a culpa, terá dificuldades mais para frente. Será que ele conseguirá evitar essa “armadilha”?) Eu fumo.

MÉDICO: Faz quanto tempo que você fuma?

CLÁUDIO: Ixi, eu fumo faz tempo. Eu fumo desde molecão. Desde que eu tinha quinze, dezesseis anos.

MÉDICO: Quinze, dezesseis? E você fuma o quê? Cigarro comum mesmo ou cigarro de palha?

CLÁUDIO: Cigarro normal.

MÉDICO: E quantos cigarros por dia?

CLÁUDIO: Eu fumo um maço, mais ou menos... MÉDICO: Desde aquela época?

CLÁUDIO: É.

MÉDICO: Desde criança, né? E bebida, o senhor consome? CLÁUDIO: Então, eu parei de beber.

MÉDICO: E o que o senhor bebia antes?

CLÁUDIO: Eu tomava cerveja, pinga de vez em quando eu tomava... Mas faz dois anos já que eu parei.

MÉDICO: Tá ok. Aí...eu estou pedindo para o senhor repetir mais pra conferir, ver se os dados que a Doutora Fernanda anotou aqui na ficha do senhor estão certinhos... Faz quanto tempo da última consulta que o senhor passou com ela?

CLÁUDIO: (Parece que era somente interesse por informações mesmo. Já migrou para o assunto seguinte.) Olha, eu vim aqui faz três semanas. Eu nem não queria vim, viu? Porque, eu vou falar pro senhor... (Vejamos a expressão que ele faz.) Eu não gosto de médico não.

MÉDICO: É? Por que o senhor não gosta?

CLÁUDIO: Ah, a gente fica procurando, ainda acha, né? Eu não gosto de médico não, mas aí a Ana e os meninos ficaram em cima pra eu vim, pra eu vim...

MÉDICO: Eles estão preocupados?

CLÁUDIO: Ah, eles ficam, né...porque...eu não vinha, não...eu só vim porque faz um mês que eu estou parado porque eu não tô aguentando trabalhar.

CLÁUDIO: Eu tenho uma marcenaria que é minha, mesmo, que é lá no quintal de casa...mas eu só estou fazendo serviço pequeno porque o rapaz que ajuda eu lá, o Carlão, vai tocando as coisas pequenas. O serviço grande mesmo é eu que tenho que fazer. E o último que a gente entregou vai pra um mês e meio, já. E o dinheiro tá acabando, né...

MÉDICO: Em casa só o senhor que trabalha? CLÁUDIO: É eu que trabalho, que pago tudo... MÉDICO: E quantas pessoas dependem de você? CLÁUDIO: É eu, a Ana, lá em casa, o Rafa e o Rodrigo. MÉDICO: São os filhos?

CLÁUDIO: São meus dois filhos. MÉDICO: E qual a idade deles?

CLÁUDIO: O Rafa tem 21 e o Rodrigo vai fazer dezesseis. MÉDICO: E eles ainda não trabalham?

CLÁUDIO: (Será que houve um tom de “julgamento” nessa pergunta? Augusto não teve certeza.). Não. Eles estudam, né.

MÉDICO: Ah, eles estão estudando...

CLÁUDIO: O Rafa já tá na faculdade, eu que pago tudo, né...

MÉDICO: E lá no seu negócio, o senhor é autônomo, não tem carteira, nem nada? CLÁUDIO: Não. Ih, eu nunca trabalhei com carteira assinada.

MÉDICO: Nunca trabalhou com carteira assinada. Então, assim, mês que vai bem é bom, mas mês que... por exemplo, esse último mês aí que...

CLÁUDIO: É, ou trabalha ou...

MÉDICO: Foi difícil, né? E sua esposa não trabalha?

CLÁUDIO: Ela cuidou dos meninos a vida inteira e cuida da casa, né. (Augusto considerava importante deixar isso claro.) Já dá bastante trabalho, né?

MÉDICO: Hum-hum.

CLÁUDIO: Outro dia mesmo, eu fui consertar a porta do armário lá da cozinha pra Ana...no que eu subi na escada eu já tive que descer porque senão eu ia cair.

MÉDICO: De fraqueza? Porque ia desmaiar, foi isso?

CLÁUDIO: É. De fraqueza. Não aguento. Então foi que eu falei: a coisa tá feia mesmo pro meu lado. Tem que procurar saber o que que é, né? Aí eu vim aqui faz três semanas...expliquei tudo direitinho pra Dra. Fernanda (engole a saliva com dificuldade e dor) Olha, até pra engolir guspe dói... Aí ela falou pra mim: bom, seu Cláudio, a gente vai pedir uns exames para o senhor, pra ver o que que é. Aí, eu ainda pensei, né: bom, vai pedir esse ixame agora, daqui uns quatro, cinco mês faz, né? Porque essas coisas demora. Mas aí na outra semana já ligaram lá em casa falando que era pra fazer o ixame em tal lugar, assim, assim... Eu fui, já fiz o exame tudo, né. Exame ruim rapaz!

MÉDICO: Incomoda, né?

CLÁUDIO: Pelo amor de Deus! Nunca mais! O rapaz que fez o exame lá, o médico, um rapaz novinho também. Ele quase que não conseguiu fazer o exame. Ele apanhou pra fazer, viu.

MÉDICO: É? Ele explicou o que é que estava difícil no exame?

CLÁUDIO: Primeiro que ele falou que ia dar um remédio pra dormir, e eu não dormi.

MÉDICO: Não dormiu?

CLÁUDIO: Eu fiquei meio bobão assim, mas eu percebi tudo. Saiu sangue pra caramba. Aí ele teimou, teimou e conseguiu fazer. Mas deu upa pra ele.

MÉDICO: Um pouquinho de sangue é normal, mas...infelizmente...não fui eu que fiz o exame, eu não sei dizer direito como foi, mas poderia ter dado um pouco mais de anestesia, né? (Augusto pensou que não lhe parecia bom expressar assim um julgamento em relação a um colega de profissão, por mais que o médico pudesse estar certo no que dizia. Por outro lado, ao menos não se percebia o típico corporativismo médico.) Mas, o mais importante é que conseguiu fazer o exame, né?

CLÁUDIO: É, fez...

MÉDICO: E, assim, o pessoal de casa que o senhor falou que está preocupado, eles chegaram a falar alguma coisa que poderia ser ou só falaram para você ir ver o que que é? (Augusto percebeu certa ansiedade por parte do aluno, ao mesmo tempo que certa esperança de que alguém pudesse ter adiantado a difícil notícia. Por outro lado, tal pergunta relaciona- se a um hábito já conhecido em nosso tempo: o de buscar informações por conta própria, valendo-se, por exemplo, do que os alunos de medicina e médicos chamam jocosamente de “Doctor Google”. Há uma relação contraditória por parte dos médicos quanto a isso. Se, por um lado, se sentem confrontados com o fato dos pacientes já não serem mais tão desinformados e, não raro, questioná-los quanto ao diagnóstico e ao plano terapêutico, por outro, sentem-se aliviados quando o paciente já faz ideia do seu quadro.)

CLÁUDIO: Não, eles tavam preocupado, né...tavam preocupado e mandaram eu ir atrás, mas eu não gosto de ir em médico. Então, aí eu falei...eu não sou de ficar parado, eu não tô guentando trabaiar, não deve ser qualquer coisinha não.

MÉDICO: Entendi.

CLÁUDIO: Aí eu vim ver o que que é.

MÉDICO: E quando a doutora Fernanda pediu os exames, ela explicou alguma coisa que poderia ser...? (Augusto percebia a intenção, e até mesmo o desejo por parte do aluno de que a médica anterior tivesse adiantado a informação principal: a suspeita de câncer.)

CLÁUDIO: Não falou. Eu ainda perguntei pra ela o que que ela achava que era. Ela falou: ó, seu Cláudio, vamos esperar os exames pra ver o que que é.

MÉDICO: Ela não falou, assim, nem o que pode ser, nem o que não pode ser? (Mais uma tentativa na esperança de que não lhe fosse imputada a responsabilidade de transmitir essa notícia. Mas não havia por onde escapar. Este era um dos desafios do caso.)

MÉDICO: Tá ok. É que assim, seu Cláudio, eu estava dando uma olhadinha aqui nos seus exames...

CLÁUDIO: Já deu pra ver o que que é?

MÉDICO: Já deu pra ver sim, tá. Eu só peço, assim, que o senhor deixe eu explicar um pouquinho com calma, aí depois o senhor pode falar todas as suas dúvidas que a gente vai conversando e vai tirando todas, ponto a ponto, pode ser?

CLÁUDIO: Ô.

(Augusto pensou que se fosse ele ouvindo essa “introdução”, composta por diminutivo e deixando claro o alerta de que muitas dúvidas surgiriam, certamente ficaria desconfiado de que boa coisa não viria pela frente. Mas será que Cláudio perceberia da mesma forma? Ou preferiria aguardar para ver se o “golpe” de fato se confirmaria?)

MÉDICO: Assim, você fez um exame que chama endoscopia digestiva alta. Esse exame pega uma câmera que vai da sua boca até lá no estômago, né?

CLÁUDIO: É, o médico falou que tinha uma câmera na ponta...eu até achei gozado...

MÉDICO: Ela pediu esse exame porque você estava com dificuldade de engolir. CLÁUDIO: É.

MÉDICO: E ela achou que essa dificuldade de engolir poderia ser alguma coisa que está obstruindo a passagem do alimento. Que da boca o alimento vai pro estomago através do esôfago. O esôfago é um tubinho que a comida desce. E quando a gente tem dificuldade pra engolir pode ter alguma coisa nesse esôfago que está impedindo a comida de descer normalmente. Por isso que é difícil dela descer. Ela pediu esse exame pra ver com a câmera, porque não dá pra ver dentro da boca, o que está acontecendo. E esse exame também, se tiver alguma área que não está cem por cento normal, ele escolhe uma amostra dessa lesão, dessa área que não está normal, e olha no microscópio pra ver exatamente o que que é.

(Os professores Lithocarpus e Marcel já haviam comentado sobre este subterfúgio muitas vezes utilizados por médicos quando não se sentem confortáveis tendo de explorar terrenos mais subjetivos. Ao vivenciar as dificuldades de se falar sobre emoções, é muito

comum buscar abrigo em terrenos que lhes são mais conhecidos e confortáveis, como falar de aspectos técnicos, abordar a fisiopatologia e mostrar conhecimento.)

CLÁUDIO: Que é o pedaço... que o rapaz falou que ia tirar um pedaço e mandar lá não sei aonde...é isso?

MÉDICO: É isso. CLÁUDIO: Tá.

MÉDICO: O rapaz que fez o exame falou alguma coisa também, do que era ou do que não era?

CLÁUDIO: Ah, ele explicou pra mim que ia colocar aquele caninho lá e que tinha uma câmera.

MÉDICO: Mas ele não explicou assim o que ele viu...?

(Mais uma vez o aluno parecia nutrir a esperança de que alguém pudesse ter revelado o diagnóstico, livrando-o ou pelo menos aliviando o pesado fardo que ele sentia ter de carregar sozinho.)

CLÁUDIO: Ele falou que ia pegar um pedaço e ia mandar pro laboratório lá... MÉDICO: Tá ok, então assim, seu Cláudio, o resultado da biopsia já saiu. Então eu vou falar tudo para o senhor e é importante o senhor prestar atenção, falar, a gente tirar todas as dúvidas, e que a Fernanda foi quem pediu e tudo mais, mas a partir desse momento eu que vou ser o seu médico, entendeu? Eu que vou começar a te acompanhar.

(Augusto achou importante essa postura do aluno de deixar claro que estava efetivamente assumindo o caso.)

CLÁUDIO: Entendi.

MÉDICO: Eu estou te vendo hoje e até a Fernanda voltar a gente vai se ver aí algumas vezes, então eu que vou te acompanhar agora. E assim, olhando aqui na sua

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