• Nenhum resultado encontrado

Diversidade cultural, redução da pobreza e empoderamento feminino: desafios dos PTC em comunidades indígenas no Brasil e na América Latina

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Diversidade cultural, redução da pobreza e empoderamento feminino: desafios dos PTC em comunidades indígenas no Brasil e na América Latina"

Copied!
21
0
0

Texto

(1)

DIVERSIDADE CULTURAL, REDUÇÃO DA POBREZA E EMPODERAMENTO FEMININO: DESAFIOS DOS PTC EM COMUNIDADES INDÍGENAS NO BRASIL E

NA AMÉRICA LATINA Resumo

Os programas de transferências condicionadas (PTC) em comunidades indígenas apresentam uma complexidade particular, pois estão inseridos na interseção entre a luta contra a pobreza, a proteção dos povos tradicionais e a questão de gênero. O objetivo desde artigo é expor os desafios de desenhar e implementar políticas sociais com enfoque de gênero em comunidades indígenas. A metodologia está baseada em uma análise das avaliações dos PTC em comunidades indígenas no Brasil e na América Latina, com base em conceitos de empoderamento feminino e de bem-estar compatíveis com a teoria das capacitações de Amartya Sen. As dificuldades enfrentadas têm a ver com a dispersão e heterogeneidade da população alvo, e com a interseção dos direitos sociais das mulheres e dos povos indígenas. Esta interseção nem sempre é bem delimitada, varia entre um contexto e outro, e está em constante evolução. Dado que o assunto tem recebido pouca atenção no âmbito académico, este artigo contribui ao aprofundamento dessa discussão.

(2)

1. Introdução

A questão de gênero em populações tradicionais está na interseção dos direitos sociais das mulheres e dos povos indígenas. Nesse contexto, as mulheres enfrentam o desafio de preservar os valores tradicionais, afirmando sua tradição étnica, ao mesmo tempo em que experimentam desigualdades específicas do seu gênero (SAACHI; GRAMKOW, 2012). As políticas sociais de redução da pobreza que incluem o objetivo de empoderar as mulheres apresentam uma complexidade particular nestas comunidades, pois há ampla heterogeneidade na interação entre três fenômenos simultâneos e interconectados: a luta contra a pobreza, a proteção dos povos tradicionais e a questão de gênero.

O objetivo desde artigo é expor os desafios de desenhar e implementar políticas sociais com enfoque de gênero em comunidades indígenas. As dificuldades enfrentadas por estas políticas têm a ver, primeiramente, com as particularidades da população alvo em termos de dispersão e heterogeneidade. O censo IBGE de 2010 identificou aproximadamente 734 mil pessoas indígenas no Brasil, que representam 0,26% da população nacional (BRASIL, 2017).

Esta população é muito heterogênea e dispersa: se estima a existência de 305 etnias e 274 línguas presentes em todos os estados do país, com um alto nível de ruralidade (61%). Em termos territoriais, as terras indígenas no Brasil são aproximadamente 114 milhões de hectares, representando 13,3% do território nacional (BRASIL, 2017). Perante esse contexto, as políticas sociais devem ser flexíveis, para garantir a pertinência de seus objetivos em contextos culturais diversos, e devem estar sustentadas por uma alta capacidade institucional, capaz de atingir as zonas rurais mais afastadas.

Ao incluir o enfoque de gênero, as políticas sociais enfrentam as dificuldades inerentes ao processo de implementação, caracterizado pela interseção dos direitos sociais das mulheres e dos povos indígenas. Esta nem sempre é bem delimitada, varia entre um contexto e outro, e está em constante evolução. No Brasil, a discussão acadêmica sobre a questão de gênero no contexto das populações indígenas é bem recente. A primeira vez que se criou um espaço específico para a discussão do tema gênero em povos indígenas foi apenas em 2010, em dois eventos que reuniram especialistas na temática de gênero: a “27ª Reunião Brasileira de Antropologia – Brasil Plural: conhecimentos, saberes tradicionais e direito à

(3)

diversidade”, na Universidade Federal do Pará, em Belém; e o “Fazendo Gênero 9: Diásporas, Diversidades, Deslocamentos”, na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis (SAACHI; GRAMKOW, 2012).

Este artigo contribui ao aprofundamento dessa discussão, a partir da análise dos programas de transferências condicionadas (PTC) em comunidades indígenas. A principal fonte de informação são as avaliações dos PTC no Brasil (2016), e na Colômbia (2010). Dado que a questão de gênero não é muito aprofundada nos relatórios das avaliações, e que os PTC são um fenómeno internacional que permite uma relativa comparação entre países, a informação das avaliações foi complementada com outros estudos internacionais, com foco na América Latina.

Este artigo está organizado em quatro seções além da introdução e da discussão final. A seguinte seção apresenta a legislação nacional e internacional que protege os povos e comunidades tradicionais, e argumenta que o conceito de bem-estar contida nessa legislação é compatível com a abordagem das capacidades de Amartya Sen. A terceira seção contextualiza a questão de gênero e mostra como a política brasileira direcionada a povos e comunidades tradicionais incorpora essa questão. A quarta seção apresenta dificuldades gerais enfrentadas pelos PTC ao abranger comunidades indígenas. A seção seguinte analisa tensões associadas a questões de gênero no nível comunitário, familiar e individual na implementação dos PTC em populações indígenas.

2. A proteção dos direitos das populações tradicionais

A proclamação dos direitos das populações tradicionais tem como ponto de partida a Declaração dos Direitos Humanos de 1948 (Artigo 2), a qual estabelece que:

Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação.

Desde então, várias declarações e pactos internacionais têm ratificado a importância de proteger o direito à diversidade das minorias étnicas e têm

(4)

consolidado mecanismos para garantir os direitos dessas populações1. A declaração dos Direitos dos Povos Indígenas das Nações Unidas de 2007 menciona o direito destas populações de determinar e desenvolver suas próprias prioridades e estratégias para exercer o direito ao desenvolvimento (Artigo 23).

No Brasil, o artigo 231 da Constituição de 1988 reconhece aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, alémdedireitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, protege-las e fazer respeitar todos os seus bens. Para cumprir este mandato, existe desde 2006 a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, cujas atribuições incluem a formulação, coordenação e acompanhamento da implantaçãoda Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, criada em 2007 com o intuito de reconhecer e preservar outras formas de organização social2 (BRASIL, 2007).

A legislação nacional e internacional é consistente com a aproximação de Amartya Sen. Segundo Sen, o bem-estar deve ser medido em função das capacidades das pessoas de escolher o modo de vida que valorizam. As capacidades dependem dos recursos que os agentes têm para realizar seus projetos de vida, incluindo aspectos sociais, político-participativos, ambientais e econômicos (SEN, 2009).

Partindo disso, o papel da política pública é dar apoio institucional necessário para que a população possua a liberdade de escolher o modo de vida deseja levar, de acordo com suas preferências individuais e coletivas (SEN, 2009). Esta concepção de bem-estar é pertinente para analisar as políticas públicas voltadas à proteção dos direitos das populações tradicionais, pois admite a coexistência de diversas noções de bem-estar em uma mesma sociedade, situação que é altamente provável em um contexto de diversidade étnica e cultural.

1

Destacam-se os seguintes documentos: Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1996 (artigo 27); Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (artigo 13); Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais de 1989; Declaração sobre os direitos das pessoas pertencentes a minorias nacionais, étnicas, religiosas e linguísticas de 1992; Decênio Internacional das Populações Indígenas do Mundo 1994-2004; Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas das Nações Unidas de 2007.

2

A categoria de povos e comunidades tradicionais inclui as seguintes populações: indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais de matriz africana o de terreiro, os extrativistas, ribeirinhos, caboclos, pescadores artesanais, pomeranos, entre outros (BRASIL, 2007).

(5)

3. A questão de gênero e as populações tradicionais

Uma pergunta que fica em aberto é qual a relação entre o movimento para proteger as comunidades tradicionais e as lutas pelos direitos das mulheres. Quanto à questão de gênero, a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais apresenta dois elementos. Por um lado, menciona

O reconhecimento, a valorização e o respeito à diversidade socioambiental e cultural dos povos e comunidades tradicionais, levando-se em conta, dentre outros aspectos, os recortes etnia, raça, gênero, idade, religiosidade, ancestralidade, orientação sexual e atividades laborais, entre outros, bem como a relação desses em cada comunidade ou povo, de modo a não desrespeitar, subsumir ou negligenciar as diferenças dos mesmos grupos, comunidades ou povos ou, ainda, instaurar ou reforçar qualquer relação de desigualdade (BRASIL, 2007, Artigo 1)

Por outro lado, a política inclui o objetivo específico de “implementar e fortalecer programas e ações voltados às relações de gênero nos povos e comunidades tradicionais, assegurando a visão e a participação feminina nas ações governamentais, o que valoriza a importância histórica das mulheres e sua liderança ética e social” (BRASIL, 2007, Artigo 3).

Porém, a formulação da política sobre o assunto de gênero nas comunidades tradicionais é abstrata, pois não define mecanismos concretos de operacionalização. Também é ambígua, no sentido de promover o respeito à diversidade cultural ao mesmo tempo que se propõe fortalecer a participação política feminina, assumindo que este é um atributo desejável em todas as comunidades tradicionais. Além disso, a política faz breve referência à “importância histórica das mulheres e sua liderança ética e social”, sem desenvolver o assunto e não explicando em que consiste verdadeiramente tal importância histórica. Talvez a pergunta mais importante que emerge é como o Estado deve se aproximar das comunidades tradicionais, de modo a corresponder às demandas de direitos sociais de cultura e de gênero. A seguinte seção discute esta questão.

4. Os programas de transferências condicionadas em comunidades indígenas A proporção de povos indígenas pobres na América Latina é aproximadamente 80%. Além disso, não se observam evoluções significativas desde a década de 1990 até a atualidade. Hall e Patrinos (2006) mostraram que durante o

(6)

período 1994-2004, a pobreza dos povos indígenas não tinha diminuído na região, e que a brecha de bem-estar entre a população indígena e não-indígena tinha sido estável. Por exemplo, a mortalidade infantil, indicador que evidencia a vulnerabilidade em termos de segurança alimentar e saúde, em alguns países chega a ser 60% superior na população indígena, comparando com o resto da população (ROBLES, 2009; HALL; PATRINOS, 2006).

As pesquisas sobre o assunto coincidem em apontar que os baixos níveis de educação, assim como o precário acesso a serviços de saúde nas comunidades indígenas, são fatores que explicam os elevados níveis de pobreza e vulnerabilidade destas populações. Por isto, a política social na América Latina tem feito alguns esforços para proteger os direitos dos povos indígenas e reduzir as brechas entre a população indígena e não-indígena. Um claro exemplo é a inclusão de famílias indígenas como beneficiários de programas de transferências condicionadas. Esse modelo de intervenção social surgiu nos anos 1990, sendo implantado em diversos países. O México foi o primeiro país a adotar e implantar o modelo na América Latina e Caribe, com o Programa de Educación, Salud y Alimentación (Progresa), de 2000, que em 2002 passou a ser chamado Programa de Desarrollo Humano Oportunidades (Oportunidades).

Os desenhos dos PTC variam de um país para outro, mas, em termos gerais, estes programas se caracterizam por transferir uma quantidade de renda às famílias mais pobres sob a condição de que o dinheiro seja investido na alimentação, saúde e educação das crianças. Por isso, para receber a transferência, as famílias devem provar que as crianças frequentama escola e comparecem a determinados controles de saúde (BRASIL, 2016; ROBLES, 2009; HALL; PATRINOS, 2006; PATRINOS; SKOUFIA, 2007).

No caso brasileiro, o PTC é o Programa Bolsa Família (PBF), criado em 20 de outubro de 2003, por meio da Medida Provisória No. 132, posteriormente convertida na Lei no 10.386/2004, ficando sua gestãoa cargo da Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (SENARC), do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), atualmente nomeado Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário. Para receber o benefício, as famílias devem manter seus filhos de 6 a 17 anos matriculados na escola e, com relação à saúde, as gestantes devem fazer exame pré-natal e acompanhamento nutricional e desaúde da mãe e da criança, além de

(7)

manteras vacinas das crianças em dia segundo o calendário mínimo de vacinas recomendado pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2016).

Dados do MDS indicam que, em 2014, o PBF apresentava mais de 100 mil lares indígenas beneficiários nas cinco regiões do país. Estimando uma média de quatro pessoas por família, aproximadamente 45% das famílias indígenas brasileiras fazem parte do programa. O Cadastro Único de Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) é o instrumento por meio do qual as famílias têm acesso tanto ao PBF quanto a outros programas do governo federal. No caso de famílias indígenas, a Certidãodo Registro Administrativo de Nascimento do Indígena (RANI) normativamente é aceito como documento válido para o cadastramento no PBF (BRASIL, 2016). No Brasil o programa ainda não adaptou seu desenho às especificidades do contexto dos povos indígenas,diferente de outros países da região, como Panamá, Colômbia e México (BRASIL, 2016).

4.1. Alguns desafios de implementar os PTC em comunidades indígenas

A importância de identificar os desafios de implementação dos PTC em comunidades indígenas está no fato de as características da população alvo fazem com que os programas enfrentem desafios transversais que devem ser levados em consideração. Um exemplo claro é a localização destas comunidades, geralmente em áreas rurais afastadas, com grandes barreiras e custos de acesso. Estes desafios não necessariamente têm a ver com a questão de gênero, mas fazem parte do contexto que encerra as tensões de gênero que serão abordadas na seguinte seção.

Apresentamos os resultados do exercício por eixos temáticos dos programas: agentes responsáveis da implementação, processo de inscrição dos beneficiários, as condicionalidades, as transferências, e os resultados.

4.1.1 Agentes responsáveis

Embora os governos do Brasil e da Colômbia estejam cientes de que a infraestrutura institucional precisa ser adaptada às particularidades da população alvo, no contexto dos PTC, há ainda imprecisões na hora de definir os atores institucionais do programa.

(8)

Na Colômbia, o processo de consulta do PFACI com as autoridades indígenas foi incompleto. Ao interagir estritamente com os governos indígenas formais, a implementação do programa deixou de lado figuras importantes, como líderes de medicina tradicional e líderes espirituais. Isto fez com que o programa falhasse em incluir a medicina tradicional das comunidades nas suas operações. No caso brasileiro, há uma falta de clareza na definição dos papéis institucionais e de articulação entre as partes. Alguns agentes importantes foram excluídos: FUNAI, Conselho de Saúde Indígena e profissionais de saúde.A falta de clareza na definição de responsabilidades levou a uma confusão quanto ao papel dos estabelecimentos lotéricos e comerciantes. A avaliação do documento descreve:

[...] há nisso um forte indício de conluio entre comerciantes e especialmente os estabelecimentos lotéricos. No caso desses últimos, verificou-se que alguns funcionários aproveitam-se das dificuldades de entendimento e de manuseio dos indígenas do sistema de cartão magnético, para dar-lhes somente parte do valor do benefício, ou mesmo dizer-lhes que não há nada para receber, aparentemente apropriando-se desse recurso não repassado aos indígenas. O círculo vicioso de crédito/endividamento que caracteriza o sistema de patronagem foi encontrado em seis, dos sete estudos de caso, interceptando os recursos transferidos pelo PBF (BRASIL, 2016, p. 103).

4.1.2 Inscrição no programa

Quanto à documentação requerida para inscrição do beneficiário,ambos os programas enfrentam dificuldades. Em termos gerais, há falhas na comunicação e na divulgação de informação sobre os programas e suas formas de cadastro, o que desencadeia em outras barreiras, ao invés de facilitar o acesso. Na Colômbia, há evidencias de que os beneficiários nas áreas rurais devem incorrer em altos custos para requerer documentos para se inscrever no PFACI. No Brasil, as populações beneficiárias têm pouco conhecimento sobre o CadÚnico3 e não estão cientes de que o cadastro pode disponibilizar acesso a outros benefícios. O RANI não foi aceito em alguns casos como um documento válido para acessar o CadÚnico. Além disso,

3

No Brasil, o Cadastro Único (CadÚnico) foi desenvolvido para incluir mais de 60 variáveis com informações relativas a demografia, educação, condições de moradia, condições de trabalho, gastos do domicílio, identificação sociocultural e/ou étnica, entre outras. Este cadastro permite a procura ativa e constante por pessoas em condições de vulnerabilidade e privação de direitos. Seu potencial para comunidades étnicas é reconhecido: “o esforço de aperfeiçoamento das rotinas operacionais de coleta e validação dos dados, de capacitação e manutenção das equipes municipais encarregadas do Cadastro Único tem permitido a dificuldade de localização de públicos mais distantes territorialmente (como os quilombolas, indígenas ou ribeirinhos) (BRASIL, 2016).

(9)

há inconsistências na informação declarada pela família e aquela registrada pelo sistema, o que leva a resultados distorcidos.

4.1.3 Condicionalidades dos Programas

Em ambos os países, há evidências de barreiras ao acesso a serviços de saúde, o que resulta em dificuldades dos beneficiários em satisfazer esta condicionalidade. Alguns exemplos: altos custos de transporte (em alguns casos, os beneficiários viajam por vários dias e ainda têm de custear alimentação e estadia), infraestrutura precária e serviços, falta de treinamento dos funcionários para atender a comunidades indígenas, alta rotatividade do corpo clínico. Em termos de adequação cultural, ambos os programas enfrentam problemas parecidos. No Brasil, nenhuma autoridade indígena foi consultada. Na Colômbia, a inclusão do processo de consulta às autoridades indígenasnãogarantiu a incorporação dos tratamentos tradicionaisindígenas, nem a possibilidade das autoridades indígenas supervisionarem o cumprimento desta condicionalidade. Alguns exemplos de falhas de adequação cultural no PFACI: (i) medidas de referência de indicadores de saúde e desenvolvimento infantil não foram adaptadas às características antropométricasde populações indígenas; (ii) inexistência de guias alimentares apropriados à produção e dietas locais.

No que se refere à educação, os problemas de acesso são os mesmos descritos nos serviços de saúde. As barreiras incluem: (i) infraestrutura precária das escolas; (ii) quantidade insuficiente de escolas oferecendo educação adequada aos padrões culturais locais (professores, currículos, educação bilíngue); (iii) sistema de registro e acompanhamento de frequência ineficientes; (iv) má qualidade da merenda escolar.

Em algumas comunidades indígenas, o processo educativo inclui o envolvimento de crianças em atividades produtivas como uma forma de imersão cultural. Porém, através de umas mensagens nos cartões de verificação, o PFACI recomenda que os pais evitem otrabalho infantil, gerando desconforto nos beneficiários, que veem o trabalho como parte da formação cultural dos filhos (COLOMBIA, 2010).

(10)

No Brasil, também há evidencias de que as comunidades indígenas entendem a educação formal como complemento e não como substituto aos seus sistemas tradicionais. Uma citação referente à comunidade Canela diz:

A escola serve para aprender a se relacionar com os não-indígenas (i.e., aprender o sistema de contagem deles, a escrever no papel e em português, a ler documentos...) [...] a escola é algo tido como bom, mas não como indispensável ao bem viver. Onde se “aprende” os ofícios e os conhecimentos relevantes é nos rituais, que formam caçadores, xamãs, corredores de tora etc. - enfim, aquilo que os Canela vêm como realmente necessário à sua existência. A escola é uma instituição alienígena, de funcionamento duvidoso, cujo conhecimento serve prioritariamente para se operar no contexto inter-étnico (BRASIL, 2016, p. 124).

As questões de adequação cultural no PFACI e PBF convidam a repensar a abordagem de desigualdade de renda e educacional implícita nos desenhos dos PTC. A formulação desse tipo de programa tem como motivação reduzir as brechas entre a população indígena e não-indígena em termos de renda, educação e saúde, mas astensões entre estilos de vida das comunidades indígenas e as condicionalidades dos programas sugerem que essa crença pode não ser a mais apropriada.

4.1.4 Transferências

Beneficiários em ambos países costumam ignorar o motivo de não terem recebido uma transferência ou terem recebido menos do que o valor esperado, devido a falhas nos sistemas de informação, falta de conhecimento do programa e dos direitos do beneficiário, e em alguns casos, no Brasil, devido ao sistema de patronagem.

4.1.5 Resultados

Apesar dos problemas operacionais dos programas, alguns resultados positivos são reconhecidos. Ambos os programas são percebidos pelos beneficiários como meios de enfrentar os problemas de segurança alimentar, sem interferir nos sistemas tradicionais de produção. Além disso, as comunidades nos dois países percebem que o programa tem como objetivo melhorara saúde e educação das crianças. No Brasil, porém, o sistema de patronagem levou à uma baixa visibilidade do programa, já que os beneficiários acreditam que o subsídio vem dos patrões, e não do governo. Na Colômbia, o programa atingiu altos níveis de satisfação (94%),

(11)

mesmo com 30% das pessoas apresentando problemas em receber as transferências. A avaliação também destaca uma melhoria nos censos das comunidades devido ao PFACI, uma vez que as famílias apresentam maior interesse em reportar recém-nascidos para a inclusão no programa. Contudo, censos enfrentam dificuldades em termos de qualidade e comparabilidade.

Como foi mostrado nas avaliações do PFACI e PBF, a única certeza que os formuladores de política têm ao lidar com comunidades indígenas é aexistência de heterogeneidade de contextos culturais, geográficos, institucionais e históricos. É um resultado esperado de políticas que objetivam o respeito aos direitos das comunidades étnicas de “exercer controle sobre suas próprias instituições, estilos de vida e desenvolvimento e de manter e desenvolver suas identidades, línguas e religiões, dentro do contexto dos Estados em que vivem” (Convenção ILO No. 169 a respeito das Populações Indígenas e Tribais).

Esta realidade impõe desafios operacionais, devido à alta demanda de adaptabilidade do desenho dos programas e das operações no contexto local, e ao mesmo tempo, a necessidade de uma operação de larga escala capaz de ser replicada mesmo nas áreas rurais mais remotas. Como argumenta Mello et al. (2014, p. 210):

Uma das maiores dificuldades é encontrar o equilíbrio entre ações com escala adequada e a customização de soluções para comunidades específicas que experiência situações muito particulares, em alguns casos. A construção de uma política estruturada de atendimento aos diferentes povos e comunidades tradicionais passa, necessariamente, pela discussão de modelos capazes de dar conta da transversalidade dos temas ligados a esses públicos, das demandas comuns de ampliação da qualidade de vida e da diversidade social, cultural e étnica que caracteriza os diferentes públicos específicos sem abrir mão de ações com escala suficiente para provocar uma melhoria generalizada das condições de vida dessas comunidades.

5. Resultados das transferências condicionadas no bem-estar das mulheres indígenas

Além das dificuldades operacionais mencionadas na seção anterior, nas avaliações dos programas é possível identificar tensões associadas à questão de gênero. Nos seguintes parágrafos discutiremos estas tensões, organizadas em três eixos: nível comunitário, nível familiar e nível individual. Contudo, é importante reconhecer que não existe uma delimitação estrita nestes eixos, pois questões relevantes na esfera individual vão afetar necessariamente os entornos da família e

(12)

da comunidade, assim como questões de caráter comunitário e familiar vão afetar também a experiência individual das mulheres. Porém, a classificação foi feita para facilitar a leitura do texto.

Por outro lado, dado que os documentos das avaliações não aprofundam muito na questão de gênero, e que algumas das tensões não têm a ver necessariamente com o fato das mulheres pertencerem a comunidades tradicionais, foram revisadas referências internacionais que analisam a questão de gênero no contexto dos PTC.

5.1. Nível comunitário

Em alguns povos indígenas colombianos (especialmente os Pasto, Inga e Camëntsa), há evidência de efeitos positivos do programa sobre o empoderamento feminino no nível comunitário, especialmente em termos de capacidade organizacional e associativa entre as mulheres e participação em discussões públicas, não só da comunidade, mas também das municipalidades (por exemplo, em conselhos municipais). Isto tem acontecido como resultado das atividades promovidas pelo programa, as quais têm contribuído para a que as beneficiárias sejam mais visíveis na comunidade (BID, 2012; COLOMBIA, 2010).

Em particular, o relatório colombiano destaca o papel de coordenação desenvolvido pelas madres consejeras, que assumem funções de liderança, ganham capacidade de interlocução na comunidade e com outras instituições associadas ao programa, como as escolas e os postos de saúde. Estas mulheres não são remuneradas pelo trabalho, mas são reconhecidas socialmente por essa função, emergindo como novas “figuras públicas” com alto potencial de contribuir ao bem-estar da comunidade. Em consequência, é notável a crescente participação de mulheres nos governos comunitários. Um exemplo é a nomeação da primeira mulher inga como governadora da comunidade Santiago. Segundo os avaliadores, isto mostra que a liderança feminina no programa tem o potencial de transcender o contexto dos subsídios e impactar a tomada de decisões políticas dos povos (BID, 2012; COLOMBIA, 2010).

Contudo, estas transformações têm gerado tensão no interior das comunidades. Por exemplo, autoridades indígenas em uma comunidade Wayúu argumentam que as funções de liderança são competência dos homens e manifestam preocupação pela emergência de novas figuras de autoridade femininas,

(13)

que pode significar uma ruptura nos padrões culturais que definem os papeis de gênero na comunidade (COLOMBIA, 2010).

A avaliação colombiana também identificou algumas tensões entre o programa e a cultura das comunidades. Por exemplo, nas comunidades Wayúu há muita resistência cultural com relação às condicionalidades de saúde e educação. Por um lado, os beneficiários consideram que o exame de Papanicolau, exigido às mulheres beneficiarias titulares, não é adequado à concepção wayúu de corpo feminino (COLOMBIA, 2010).

Por outro lado, considera-se que a condicionalidade de frequência escolar atrapalha a tradição de ou encierro, segundo a qual as mulheres adolescentes devem permanecer em um quarto fechado durante a primeira menstruação. A duração do encierro depende da comunidade, sendo um mês o período mais curto e um ano o mais longo. Entrevistados apontam a necessidade de adaptar o desenho do programa, reconhecendo que o faz parte do processo educacional das mulheres, por ser este um rito de iniciação religiosa e social:

Uma menina que não faz o encierro é uma mulher que não aprende a pensar como mulher, fica sempre pensando como uma criança [...] supondo que a menina teve três meses de encierro, durante os quais recebeu uma grande quantidade de conhecimento da sua avó, sua tia, ou outra mulher mais velha [...] esse tempo não pode ser visto como ausência de conhecimento ou de educação, porque ela continua aprendendo [...] se a menina não faz a por ir na escola, vai perder muitos conhecimentos que vão ser úteis para o resto da vida dela. Neste caso, sugerimos que sejam as mães, avós ou tias as que certifiquem o encierro da menina (COLOMBIA, 2010, p. 63, tradução livre).

5.2. Nível familiar

Nos dois países, a titularidade do cartão no nome das mulheres é percebida positivamente pelas comunidades e pelos avaliadores, pois elas têm sido responsáveis por destinar o recurso a fins mais adequados ao bem-estar da família, em especial das crianças. Todavia, a nível familiar, é difícil julgar se os efeitos dos programas têm sido positivos ou negativos, pois não há evidência de que elas tenham ganhado maior poder de decisão no uso dos recursos da família, além das responsabilidades atreladas às transferências do programa. Na Colômbia, algumas

(14)

beneficiárias entrevistadas mencionaram que os maridos têm deixado de assumir alguns gastos do lar que anteriormente pagavam, como resultado do PFACI. No Brasil, na terra indígena de Porquinhos, várias mulheres se queixaram de que seus maridos não estão seguindo tudo que elas definem sobre o subsídio (principalmente, devido ao consumo de álcool). As duas avaliações apontam que o tema de gênero merece um aprofundamento que vá para além do uso das transferências e recomendam realizar estudos etnográficos para determinar se o programa tem uma influência positiva para as mulheres nos processos de tomada de decisão no interior das famílias (COLOMBIA, 2010; BRASIL, 2016).

Na Colômbia, o PFACI tem afetado a rotina cotidiana das mulheres, impondo-lhes compromissos de ir à assembléias, fazer verificações e participar de reuniões com outras beneficiárias. Estas mudanças trazem alguns efeitos positivos, como melhor habilidade de comunicação das mulheres e maior proximidade das comunidades com as instituições de educação e saúde, mas, em alguns casos, geram conflitos com os maridos. Por exemplo, no início da implementação do programa, houve disputas familiares associadas ao fato das mulheres serem as receptoras das transferências. Porém, estes problemas foram resolvidos facilmente, em muitos casos com a mediação das autoridades indígenas. Também há evidencia de eventos de violência intrafamiliar ocasionados pela ausência das mulheres do lar para cumprir com os compromissos do PFACI, ou por não ter pedido autorização aos maridos para tomar decisões associadas à saúde sexual e reprodutiva, como é o uso de anticoncepcional. Essa situação é mais frequente nas comunidades patriarcais (por exemplo, Pasto e Pijao), onde a figura masculina é mais dominante que a feminina (COLOMBIA, 2010; BID, 2012).

5.3. Nível individual

Antes de analisar o efeito do programa sobre o bem-estar individual das mulheres indígenas, devemos levar em consideração contribuições das teorias feministas com relação à importância da questão de gênero no desenho das políticas sociais. Alguns estudos (MARIANO e CARLOTO, 2009; KLEIN, 2005; MACHADO, 1999) advertem que a fixação de papéis de gênero contribui para o reforço da subordinação feminina. Por este motivo, os programas de combate à pobreza que responsabilizam as mulheres da gerência do recurso para beneficiar a

(15)

família correm riscos de cristalizar os papéis sociais de gênero. Estes que mantêm as mulheres responsáveis por tarefas relacionadas ao cuidado familiar e à maternidade.

De acordo com estas análises, é desejável que as mulheres sejam as titulares do benefício para melhor efetividade e eficiência do programa. Isto porque as mulheres, na sua grande maioria, realmente utilizam o benefício para melhoria das condições de vida da família, em particular das crianças (o uso das transferências se concentra nos quesitos de alimentação, vestuário, material escolar, etc.). Porém, assumir que a titularidade das mulheres necessariamente se traduz em empoderamento feminino é questionável, pois “os discursos sobre feminilidade e maternidade apropriados pelo PBF com o intuito de potencializar o desempenho de suas ações no combate à pobreza reforçam o lugar social tradicionalmente destinado às mulheres: a casa, a família, o cuidado, o privado, a reprodução” (MARIANO e CARLOTO, 2009, p. 907).

Pesquisas sobre os PTC no México e Equador têm identificado que as mulheres beneficiárias percebem que as condicionalidades dos programas são difíceis de cumprir e até chegam a atrapalhar em suas outras responsabilidades. Tanto nesses países quanto no Brasil, as mulheres têm apontado que a maior dificuldade advinda da titularidade se refere à necessidade de deslocamentos para receber o benefício. Dado que geralmente as comunidades indígenas estão localizadas em áreas rurais dispersas, com frequência os deslocamentos são longos, demorando horas ou dias, com custos de transporte, hospedagem e alimentação assumidos pelo beneficiário, além das condições de transporte (e das estradas) a que têm que se submeter durante o percurso. Em ocasiões, as beneficiárias devem levar as crianças nas viagens e perder dias de trabalho. Na terra indígena brasileira de Parabure, foi mencionado que a maior dificuldade para receber a transferência do PBF é o deslocamento que as mulheres devem percorrer à sede do município durante os últimos meses de gravidez ou no período em que estão amamentando (MOLYNEUX, 2008; BRASIL, 2016).

No México, Gil-García (2015) apresenta uma análise do efeito do programa Prospera na vida das mulheres indígenas, chamando atenção sobre o fato que Prospera, ao ter o intuito de resignificar relações de poder de etnia e gênero, pode estar deixando de lado a questão da autonomia destes povos, implementando com uma dinâmica de coerção mais do que de consenso. Um exemplo claro é a

(16)

condicionalidade de que as mulheres recebam anticoncepcional, sem conferir se elas de fato têm vontade, o que pode acabar sendo uma agressão e um desrespeito à autonomia delas (GIL-GARCIA, 2015).

Em resumo, a informação apresentada acima expõe a complexidade de analisar a questão de gênero nas populações tradicionais. Complexidade que tem a ver, por um lado, com a grande heterogeneidade de culturas e contextos de cada comunidade, e por outro, com o diálogo (ou desencontro) entre a luta pelos direitos das populações tradicionais, que defende a diversidade cultural, e os movimentos de reivindicação das mulheres na sociedade, que procuram a igualdade entre homens e mulheres. Não seria apropriado concluir neste artigo que os PTC estão acertando ou errando nesta questão, pois, tal como é sugerido nas avaliações dos programas no Brasil e na Colômbia, este é um assunto que merece maior aprofundamento.

6. Discussão final

A questão de gênero no contexto das populações tradicionais merece maior aprofundamento, como apontaram as avaliações (BRASIL, 2016; COLOMBIA, 2012). Este artigo revisita algumas tensões que surgem na implementação dos PTC nessas comunidades, interpretando os contextos locais como espaços de interação entre três movimentos políticos e sociais paralelos e interconectados: (i) a luta contra a pobreza, que procura garantir os direitos sociais e econômicos da população vulnerável; (ii) a proteção dos povos e comunidades tradicionais, zelando pela autonomia e a diversidade cultural destas comunidades;e (iii) a questão de gênero, focada no empoderamento feminino. É justamente na interseção desses três fenômenos, assim como nos desafios associados a cada um deles, que as indígenas experimentam ao ser mulher.

No espaço de interação entre a luta contra a pobreza e a proteção das populações tradicionais, vemos que os PTC ainda têm bastante para avançar em termos de desenho e implantação. Em síntese, os desafios enfrentados pelos PTC refletem o desencontro entre a formulação dos direitos dessas comunidades e os mecanismos de política que tentam garanti-los. A legislação nacional e internacional, que protege o direito à diversidade e à autodeterminação dos povos tradicionais, abre a porta à coexistência de múltiplas noções de desenvolvimento. Todavia, a experiência dos PTC nessas comunidades pode impor uma visão de desenvolvimento incompatível com a diversidade cultural.

(17)

Lembremos que a legislação nacional e internacional que protege grupos étnicos enfatiza a importância da pluralidade e da autodeterminação, de forma consistente com a abordagem das capacidades, desenvolvida por Amartya Sen (2009). Sen argumentou que ao focar na redução de desigualdades desconsideram-se a heterogeneidade e a diversidade das pessoas, e dedesconsideram-senvolveu uma teoria baseada no conceito de liberdade, definida em um sentido amplo. De um lado, ressalta a importância de expandir as liberdades humanas através de oportunidades ou de liberdades reais, chamadas funcionamentos. Estes são os “seres” e os “fazeres” que as pessoas valorizam – por exemplo, estar nutrido, andar de bicicleta, ser educado, estar saudável. Em segundo lugar, Sen define liberdade como empoderamento e agência, que ele chama de liberdades de processo. Liberdades de processo são liberdades das pessoas realizarem iniciativas que elas valorizam – isso requer sua agência. Liberdades de processo são importantes porque elas reforçam a habilidade das pessoas de ajudar a si mesmas, questão central para o processo de desenvolvimento (SEN, 2009).

Entretanto, as avaliações dos PTC em comunidades indígenas apontam que a implementação destes programas diverge da aproximação das políticas sociais como instrumentos para a expansão das liberdades. Seguindo uma abordagem de “redução de desigualdades”, os PTC analisados aparentam impor condições sem verificar efetivamente sua relevância em cada contexto. De acordo com Robles (2009) este é um sinal de que os programas que assistem comunidades indígenas devem se desviar de uma abordagem de desigualdade e assumir uma abordagem que leve em conta as particularidades culturais. Isso significa que combater as diferenças de renda, saúde e educação entre a população indígena e não indígena pode não ser a estratégia mais apropriada, porque o pluralismo cultural por si levará naturalmente a diferenças entre as comunidades. Então, os PTC, ao listar capacidades importantes, sem conferir sua relevância no contexto particular das comunidades beneficiárias, confrontam o pluralismo que Sen valoriza e defende (KLEIN, 2015).

De fato, as avaliações revisadas apontam alguns objetivos que devem ser reconsiderados, como nível de renda e anos de estudo, especialmente em áreas rurais. Quanto à renda, Patrinos e Skoufias (2007) frisam que economias tradicionais não são baseadas em maximização de renda. Quanto à educação, Klein (2015) argumenta que as transferências condicionadas na Austrália usam a teoria de Sen

(18)

para justificar a necessidade de criar um senso de responsabilidade individual e estabelecer capacidades básicas nas comunidades. A análise de Klein (2015) aponta que é importante repensar o papel da educação na elaboração dos PTC, dando atenção à adequação cultural deste componente, e tomando cuidado para não restringir a noção de capacidade de Sen a capital humano. Segundo Klein (2015, p. 4, tradução livre): “capacidades não podem se restringir ao que é necessário para fomentar o crescimento econômico”.

Como foi mostrado ao longo deste artigo, também há outros aspectos sociais delicados que necessitam de mais discussões éticas e negociações com as comunidades. Alguns deles são: trabalho infantil, exames médicos inapropriados para algumas comunidades (exame de Papanicolau) e a abordagem do empoderamento feminino. Discussões explícitas com as comunidades durante a elaboração do programa podem reduzir tensões e melhorar a adequação cultural dos programas. Como argumenta Robles (2009, p.48), “é necessário superar uma visão reducionista da questão étnica associada unicamente à carência de variáveis materiais”. Em outras palavras, para garantir os direitos destes povos, é preciso consolidar o poder de decisão sobre seu próprio desenvolvimento, e a política social pode ser um mecanismo para alcançar isso.

Isto não quer dizer que os programas sejam totalmente inadequados, nem que seja impossível desenhar uma intervenção adequada perante a uma população alvo tão heterogênea. Alguns problemas sociais não dependem da cultura, como a insegurança alimentar e nutricional, ou a mortalidade infantil. Usando os termos de Sen, é provável que diferentes comunidades desejem apresentar os mesmos funcionamentos básicos, ou liberdades reais, como estar nutrido e ter filhos saudáveis. Porém, um dos pontos mais sensíveis dos PTC em comunidades tradicionais são as liberdades de processo, as quais são violadas ao definir objetivos e impor condicionalidades sem consultar as comunidades.

No que diz respeito ao assunto de gênero, requer-se maior atenção na hora de implementar políticas sociais em populações tradicionais. Isto porque os papéis de gênero fazem parte das dimensões que divergem entre uma comunidade e outra, sendo necessário refletir sobre a pertinência do componente de empoderamento feminino dos PTC em cada contexto particular. Por outro lado, há críticas feministas a respeito deste componente, que se propõe a empoderar as mulheres ao mesmo tempo que impõe condicionalidades que reforçam papeis de gênero.

(19)

Nos grupos étnicos há relação ambivalente entre “tradição” e “modernidade” ao se discutir gênero. Os direitos das mulheres não podem se desligar dos direitos de autodeterminação de seus povos. Nesse contexto, as políticas sociais podem estabelecer uma posição contraditória a algumas culturas, uma vez que a presença da mulher no mundo político pode ser diferente da que tinha no âmbito da comunidade. Além disso, em políticas com um componente de empoderamento feminino, a tensão é maior, pois “as indígenas têm a difícil tarefa de conciliar a luta contra a discriminação e racismo que elas e seus pares experimentam e a oposição de seus pares em função das atitudes ‘tradicionais’ que podem entrar em choque com seus anseios enquanto mulheres” (SAACHI; GRAMKOW, 2012, p.20).

REFERÊNCIAS

BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO–BID. Adaptación de programas de transferencias condicionadas a poblaciones indígenas. El caso de Familias en Acción en Colombia. Nota técnica # 495, 2012. Disponível em: http://services.iadb.org/wmsfiles/products/Publications/37803492.pdf. Acesso em: 10 abr. 2017.

BRASIL. Ministério de Desenvolvimento Social e Agrário. Estudos Etnográficos sobre o Programa Bolsa Família entre Povos Indígenas. Projeto de avaliação em conjunto com UNESCO. Brasília DF, 2016. Disponível em: http://aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/simulacao/sum_executivo/pdf/relatorio_153.pd f. Acesso em: 10 nov. 2016.

BRASIL. Fundação Nacional do Índio – FUNAI. Índios no Brasil, sem data. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao?limitstart=0#. Acesso em: 22 abr. 2017.

BRASIL. Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Presidência

da República, Brasília, DF, 2007. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm. Acesso em: 22 abr. 2017.

COMISSÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA AMERICA LATINA E O CARIBE – CEPAL. Regional Conference on Social Development in Latin America and the

Caribbean, 2015. Disponível em:

http://www.redproteccionsocial.org/sites/default/files/s1500895_en.pdf. Acesso em: 10 nov. 2016.

COLOMBIA. Departamento Nacional de Planeación. Evaluación de Operaciones Familias en Acción Población Indígena. Bogotá, D.C., 2010.

(20)

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Disponível na Biblioteca Virtual de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo: www.direitoshumanos.usp.br.

DUFLO, Esther. Women Empowerment and Economic Development. Journal of Economic Literature 2012, 50(4), 1051–1079.

GIL-GARCIA, Óscar. Gender Equality, Community Divisions and Autonomy: The Prospera Conditional Cash Transfer Program in Chiapas, Mexico. Current

Sociology, Rio de Janeiro , 25 jul. 2015. Disponível em:

http://scholarship.depauw.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1000&context=socanth_fa cpubs>. Acesso em: 12 jan. 2017.

HALL, G.; H.A.; PATRINOS, E. Indigenous Peoples, Poverty and Human Development in Latin America. Palgrave Macmillan, Londres, 2006.

KLEIN, Carin. A produção da maternidade no Programa Bolsa-Escola. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 31-52, jan./abr. 2005.

KLEIN, Elise. A critical review of the capability approach in Australian Indigenous policy. Centre for Aboriginal Economic Policy Research – CAEPR, Canberra, 2015. Working Paper No.102, 2015.

MACHADO, Leda Maria Vieira. A incorporação de gênero nas políticas públicas: perspectivas e desafios. São Paulo: Annablume, 1999.

MARIANO, S.A.; CARLOTO, C. M. Gênero e Combate à Pobreza: Programa Bolsa Família. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 17, n. 3, p. 901-908, set./dec. 2009.

MELLO, Janine et al. O Plano Brasil Sem Miséria e o Atendimento de Comunidades Quilombolas. Em Cadernos de Estudos - Desenvolvimento Social em Debate. Quilombos do Brasil: Segurança Alimentar e Nutricional em Territórios

Titulados, No. 20, 2014. Disponível em:

http://www.social.mg.gov.br/images/documentos/capacita_suas/Material_consulta/C aderno%20de%20Estudo.pdf. Acesso nov. 10, 2016.

MOLYNEUX, Maxine. Conditional Cash Transfers: A 'Pathway to Women's Empowerment'?' Pathways to Women's Empowerment, Institute of Development

Studies, Sussex, Reino Unido, 2008. Disponível em:

http://www.pathwaysofempowerment.org/archive_resources/conditional-cash-transfers-a-pathway-to-women-s-empowerment-pathways-working-paper-5. Acesso em: 18 abr. 2017.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais.

Ginebra, 27 Jun 1989. Disponível em:

http://www.fundaj.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=959:conve ncao-169-da-oit&catid=65&Itemid=571. Acesso maio 10, 2017.

(21)

PATRINOS, H.A.; SKOUFIA, E. Economic Opportunities for Indigenous Peoples in Latin America. Banco Mundial, Washington D.C, 2007. Disponível em:

http://siteresources.worldbank.org/INTLAC/Resources/Synthesis_ConferenceEditiion _FINAL.pdf. Acesso em: 10 nov. 2016.

RIBEIRO, Djamila. As diversas ondas do feminismo acadêmico. Escritório Feminista, 2014. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/escritorio-feminista/feminismo-academico-9622.html>. Acesso em: 22 maio. 2017.

ROBLES, Claudia. Pueblos indígenas y programas de transferencias con corresponsabilidad. Avances y desafíos desde un enfoque étnico. CEPAL, Santiago de Chile, 2009. Serie Políticas Sociales No 156.

SAACHI, A., GRAMKOW, M. (orgs). Gênero e Povos Indígenas. Museu do Índio – FUNAI - Deutsche Gesellschaftfür Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH,

Brasília/Rio de Janeiro, 2012. Disponível em:

<http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/pdf/genero_povos_indigenas .pdf>. Acesso em: 18 abr. 2017.

Referências

Documentos relacionados

Por esse motivo, realizamos outra série de regressões análogas às anteriores, porém controlando adicionalmente pela renda domiciliar per capita (tabelas A1 e A2 do

c) Reembolso de remoções inter-hospitalares em que a em que a em que a em que a opção pela remoção seja do beneficiário (sem opção pela remoção seja do

Desde o início da previdência no Brasil, ou seja, do final do século XIX, com esboços de seguros, até a Constituição de 1934 e o então já sistema tripartite, os vários

Homes e Sustein (2005) alertam que a manutenção do oferecimento de direitos fundamentais pelo Estado é contingente à alocação do problema da escassez de

Os dados de incidência foram obtidos do RCPB de Fortaleza a partir do sistema basepopWeb (INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER, 2010), sendo coletados: o número de casos novos

A atuação do Inspetor junto às escolas se faz no sentido de acompanhamento e avaliação das ações desenvolvidas pelos gestores. Dentre as atribuições do Inspetor está a

Para a presente pesquisa, utilizou-se a perspectiva de empoderamento feminino no contexto organizacional proposta por Melo (2012). Segundo a autora, esse processo acontece,

Os objetivos gerais deste programa são: articular iniciativas governamentais e não governamentais voltadas para a atenção/assistência aos pacientes com dor e