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X-burger em outdoor: uma questão de fronteiras

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Academic year: 2021

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Revista Brasileira de Tradutores

Nº. 17, Ano 2008

Olivia Niemeyer Santos

Universidade Estadual de Campinas

olivia2@uol.com.br

FRONTEIRAS

RESUMO

Quando utilizamos um termo importando-o de outra língua pisa-mos em um terreno incerto. Por um lado, a quantidade de emprés-timos, decalques e traduções que utilizamos (no comércio, na in-formática, nos esportes, etc.) demonstra a necessidade e a utilidade da criação de novos termos e a atitude despreocupada com que nos apropriamos da língua estrangeira; por outro lado, há um cer-to mal-estar nesse uso freqüente, como se estivéssemos cometendo algum deslize ou alguma contravenção. Habitamos a língua por-tuguesa, ela é nosso território, território conquistado e que precisa ser defendido. Quando percebemos o estrangeiro adentrar nossas fronteiras, sentimos necessidade de nos defender, de proteger (muitas vezes desastrosamente) nossa nacionalidade. O emprésti-mo de palavras de outras línguas ainda é uma questão atual e po-lêmica: para os puristas, trata-se da defesa de um patrimônio na-cional; os lingüistas, em contraponto, teorizam sobre o dinamismo da língua e sobre a contínua necessidade de transbordamento en-tre os diversos sistemas lingüísticos. Como entender o deslizar entre desejo, necessidade e temor diante dos estrangeirismos? Palavras-Chave: Tradução, neologismo, estrangeirismo, desconstrução, Derrida.

ABSTRACT

When we use a word imported from another language, we step into unknown ground. On the one hand, the number of loan-words, calques and translations which we use (in commerce, in-formatics, sports, etc) shows the need and usefulness of creating new terms and the nonchalant attitude we take by appropriating a foreign language; on the other hand, there is some discomfort in this frequent procedure, as though we are making a mistake or causing an offence. We inhabit the Portuguese language; it is our territory – a territory conquered and that must be defended. When we notice anything foreign moving through our frontiers, we sense the need to defend ourselves, to protect (sometimes disastrously) our nationality. The issue of loanwords is still current and polemi-cal: to the purists what is at stake is the question of defending the national legacy; linguists counterpart it by theorizing about the dynamics of languages and about the continuous necessity of overflowing among the different linguistic systems. How should we understand this overlappping among wish, necessity and fear, when foreignisms are considered?

Keywords: Translation, neologism, foreignism, deconstruction, Derrida. Anhanguera Educacional S.A.

Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP. 13.278-181

rc.ipade@unianhanguera.edu.br Coordenação

Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Artigo Original

Recebido em: 30/05/2008 Avaliado em: 20/07/2008

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Por notícia divulgada no jornal Folha Online do dia 12 de janeiro de 2007, intitulada “Juiz determina fiscalização e manda punir estrangeirismo em anúncios”1, ficamos

sa-bendo que o juiz federal substituto da 1ª Vara de Guarulhos, Antonio André Muniz Mascarenhas, baseado em determinações do Código de Defesa do Consumidor, pre-tende proibir e multar pesadamente o uso de estrangeirismos em anúncios publicitá-rios. A ação foi proposta pelo Ministério Público Federal na figura do procurador Ma-theus Baraldi Magnani. A ação, segundo Magnani, conta com o apoio da população, como foi revelado por uma enquête feita pela Internet. Essa fiscalização remete ao pro-jeto de lei de proteção e cultivo da língua portuguesa, apresentado por Aldo Rebelo2,

em 2001, que se empenhava contra o uso excessivo de palavras estrangeiras, princi-palmente o inglês.

Podemos afirmar, portanto, que o empréstimo de palavras de outras línguas ainda é uma questão atual e polêmica, já que, para muitos, trata-se da defesa de um pa-trimônio nacional: esses estrangeirismos seriam sinais de empobrecimento e deturpa-ção da língua, um fator de distanciamento da fala e da escrita padrão que seria preciso preservar em sua suposta pureza. Os lingüistas, em contraponto, teorizam sobre o di-namismo da língua e sobre a contínua necessidade de transbordamento entre os dife-rentes sistemas lingüísticos. A maioria das pessoas defende que essas criações são sau-dáveis para a renovação da língua, mas resiste às inovações, ou as reprova de alguma forma. Reconhece sua necessidade e reclama do uso abusivo.

Em nossos dias, encontramos “puristas”, gramáticos rigorosos que aceitam a criação de novas palavras, mas de forma controlada: uma alfândega que impeça o con-trabando de determinadas palavras estrangeiras ou aceite oficialmente sua importação. Pretendem então um trabalho conjunto - de estudiosos da língua portuguesa e de pro-fissionais de outros campos como o da computação - para a criação um vocabulário mais atual e adequado para atender as demandas da tecnologia, mantendo o respeito à língua nativa. O que estaria por trás disso? Como entender o deslizar entre desejo, ne-cessidade e temor diante dos estrangeirismos?

Este trabalho pretende comentar o uso de estrangeirismo no Brasil a partir da reflexão desconstrutivista de Jacques Derrida e da metáfora da auto-imunidade

1 http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u130406.shtml

2 Projeto de lei 1676/1999 que deu origem a Estrangeirismos, guerra em torno da língua, organizado por Carlos Alberto

Faraco. Esse livro, juntamente com Neologismo – Criação lexical de Ieda Maria Alves, serviram de ponto de partida para este texto.

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zada pelo filósofo francês-argelino para problematizar questões ainda prementes na nossa época.

Quando utilizamos um termo emprestando-o de outra língua pisamos em um terreno incerto. Por um lado, a quantidade de empréstimos, decalques e traduções que utilizamos (no comércio, na informática, nos esportes, etc.) demonstra a necessidade e a utilidade da criação ou importação de novos termos e a atitude despreocupada com que nos apropriamos da língua estrangeira; por outro lado, há certo mal-estar nesse uso freqüente, como se estivéssemos cometendo algum deslize ou alguma contraven-ção. Habitamos a língua portuguesa, ela é nosso território, território invadido e con-quistado e que precisa ser defendido. Quando percebemos o estrangeiro adentrar nos-sas fronteiras, sentimos necessidade de nos defender, de proteger (às vezes denos-sastro- desastro-samente) nossa nacionalidade. Por estar a língua materna ligada estreitamente à idéia de lar, de família, de país, o estrangeirismo desperta, conseqüentemente, um sentimen-to de ausentimen-tonomia ou submissão, transforma o estrangeirismo em um pequeno crime de lesa-pátria.

Defender a “pureza” de uma língua é um mito ideológico (somos, suposta-mente, uma nação monolíngüe) e um preconceito poderoso e atual movido pelo medo. Medo, em suma, da pluralidade e da diversidade. Entretanto, qual seria a nossa língua materna pura? “No português, língua de tantas invasões em cinco continentes, invadi-da e invasora, o que seria puro?”. É importante perguntar:

defesa de quem contra quem? Defesa da pura língua portuguesa, naturalizada como nacional num território invadido e usurpado de povos falantes de outras línguas? E atacada e defendida por quem? Não são os próprios falantes que fa-zem os empréstimos? Por acaso, alguém toma emprestado o que não deseja? (GARCEZ; ZILLES, 2004, p. 25)

Este texto não tem como objetivo, obviamente, oferecer solução a importantes questões lingüísticas, mas pretende intervir em um debate atual, instigante e necessá-rio, numa tentativa de se colocar à altura da complexidade da questão do estrangeiris-mo. Segundo Carlos Alberto Faraco:

[...] está mais do que na hora de se instaurar, no espaço público, um indispensá-vel embate entre os múltiplos discursos que dizem a língua do Brasil; de colocar a voz da lingüística no campo das batalhas culturais como uma voz pelo menos eqüipolente com as demais (2004, p. 39).

Em Neologismo - Criação lexical, de Ieda Maria Alves, lemos que o português tem ampliado seu acervo por meio de processos autóctones e por herança de outras línguas desde o início de sua formação. O que incomoda e assusta os defensores de uma suposta pureza da língua portuguesa são os estrangeirismos, os neologismos por

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empréstimo de outras línguas, na sua fase inicial, quando a palavra é decalcada dire-tamente da língua estrangeira, sem passar por algum processo de tradução ou adapta-ção para o português. Com o passar do tempo – e essa seria a fase propriamente neoló-gica -, as palavras se integram ao idioma através de adaptação gráfica (abajur, xampu), semântica (o ranking da política) ou morfológica, quando o estrangeirismo começa a formar derivados e compostos (os new-jecas, por exemplo).

O francês já fez, em nosso país, o papel de vilão e mesmo os que aceitavam sua “influência irresistível”3 tentavam impor uma ordem ou controlar a “invasão”

des-sa língua estrangeira dentro dos limites do nosso território lingüístico. Atualmente, é principalmente dos Estados Unidos que o inimigo espreita. A mão pesada do imperia-lismo americano se faz sentir em todos os campos: no político, no econômico, no cultu-ral: os programas enlatados na TV, as músicas no rádio, os blockbuster nos cinemas, a estética da Barbie nas revistas fashions. E nos estrangeirismos, é claro.

As mídias (termo que também é um estrangeirismo, desta vez decalcado do latim, o que o torna mais “culto” e, portanto, aceitável) contribuíram para a difusão e fixação desses novos termos por meio das novelas, das propagandas, dos jornais, das vitrines nas lojas. O argumento mais utilizado é o de que os estrangeirismos causam melhor repercussão e atraem de forma mais eficaz a atenção do leitor-espectador-consumidor.

Os termos X-burger e outdoor, facilmente entendidos e utilizados com freqüên-cia, levantam questões instigantes para se pensar neologismos. São termos importados do inglês, mas que o próprio falante do inglês não reconhece como seus - o que coloca uma suspeita sobre os limites bem demarcados entre dois sistemas lingüísticos.

A questão pode ser examinada gramaticalmente inserindo os termos cheese-burger ou X-cheese-burger em um quadro categorial: um neologismo por empréstimo que pro-cura imprimir “cor local” a um sanduíche, propro-cura trazer para o cardápio das lancho-netes brasileiras um pouco do prestígio que o American way of life possui entre nós. O anglicismo cheeseburger foi integrado por uma operação de decalque que consiste na importação do item léxico estrangeiro para o português conservando sua grafia intacta. O termo cheeseburger foi tão bem integrado à língua receptora que não é mais sentido como “estrangeiro” ou “estranho” e não faz sentido procurar traduzi-lo por um termo

3 Em 1926, Simões da Fonseca desabafava: “A influência da lingua franceza pode considerar-se irresistível” (Novo

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em português como, por exemplo, “sanduíche de carne moída com queijo”. No caso de X-burger, podemos falar também da adaptação gráfica de um neologismo já aceito.

O que mais pode ser dito sobre o termo X-burger? Como apreciar a questão do estrangeirismo se quisermos evitar seu enquadramento categorial em uma tabela clas-sificatória e totalizadora? Podemos tentar analisar os estrangeirismos como pontos de instabilidade, o lugar onde as fronteiras entre as línguas se tornam mais problemáticas, demarcações de limites que vêm sempre acompanhadas de questões políticas, socioe-conômicas e históricas.

Colocando o termo X-burger no Google, encontrei alguns sites internacionais sobre cookies (usados para reconhecer visitantes e para monitorar a navegação na In-ternet); outros sites pessoais ou “social networking sites”, onde se pode entrar em con-tato com outros usuários e vários sites em português e espanhol anunciando lanchone-tes e seus sanduíches: X-burger, X-chicken, X-shrimp, X- lamb, X-veggie.

Em um site de viagens, vemos uma foto com a legenda: “Roberto grabs a X-burger off the street” e a explicação: “the letter ‘X’ is pronounced ‘shees’ in Portuguese which sounds a lot like ‘chesse’(sic)”, o que ilustra a necessidade de explicar o termo para um falante do inglês. Outra definição do termo, também em um site em inglês, re-força essa dificuldade de entendimento: X-burger teria o significado de hamburger in the style of X (“hambúrguer com mais alguma coisa, com um extra”) ou X placed between buns (“algum X colocado entre pães”), sendo então esse X entendido como uma incóg-nita a ser preenchida e não como um termo que remete a cheese4. No site “Learning

Portuguese”, a letra X vem acompanhada de sua pronúncia (“sheesh”) e de uma expli-cação: “hence some fast-food places refer to a ‘x-burger’!”, terminando a frase com uma exclamação que bem revela o sentimento de espanto criado pelo o uso do X para significar cheese5.

E quanto ao outro estrangeirismo que compõe, junto com X-burger, o título deste trabalho? O caso de outdoor é ainda mais instigante, já que esse termo é utilizado em inglês somente para significar “ao ar livre”. Um americano escolheria billboard se quisesse se referir a um “quadro para afixar cartazes ou anúncios” (HOUAISS; CARDIN, 1982). No Google, o termo “outdoor”, junto ou separado, lista sites america-nos de venda de equipamentos para camping, móveis de varanda, equipamentos para

4 http://www.listserv.linguistlist.org

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cozinhar ao ar livre6. O termo é usado em um site de uma agência de propaganda que

utiliza o termo de forma bem geral e inclui, entre as ofertas para propaganda, o billbo-ard.

A tradução para o inglês do título acima dá a ver a questão da fronteira entre línguas de forma mais clara: “X-burger em outdoor” poderia ser traduzido por “Chee-seburger in billboard”. O termo outdoor, como é empregado no Brasil, vem tanto do in-terior da nossa estrutura lingüística quanto do exin-terior, tanto de um lado da fronteira quanto do outro. Ocupa uma posição “entre”, tanto out quanto in da porta de entrada para o português.

Os estrangeirismos e neologismos de empréstimos, por terem essa caracterís-tica paradoxal e pela sua conotação polícaracterís-tica, passam por um processo de “legitimação”. O uso constante de um termo decalcado de outra língua autoriza a entrada do estran-geirismo em dicionários e o termo passa a ser considerado parte integrante do sistema lingüístico. Se o estrangeirismo estiver no Aurélio pode ser usado sem medo, será con-siderado neologismo e “integrado à língua portuguesa falada no Brasil”7. Os

dicioná-rios constituem o parâmetro oficial, o meio pelo qual decidimos se um item léxico per-tence ou não ao acervo lexical de uma língua. E é a utilização freqüente de um termo pela população - e sua veiculação nos meios de comunicação ou obras literárias - que autoriza o dicionário a oficializar o neologismo, ou, para privilegiar a visão adotada neste trabalho, “importamos oficialmente” um artigo que já estava “dentro” de nossas fronteiras: os dicionários trazem para a língua portuguesa o que nela já se encontrava. Como artigos contrabandeados, as palavras estrangeiras entram pelas nossas fronteiras sem pedir licença ou esperar por autorização. E são ou não legalizados a posteriori.

Outro aspecto de legalização de neologismo, importante para esse trabalho, é situada pelo professor Luiz Augusto Fischer, em entrevista publicada pela Internet8, na

qual comenta “o jeito como a questão da língua culta é tratada aqui”. Estrangeirismo não é, portanto, somente uma questão de fronteira, mas também uma questão de “au-toridade” - nos dois sentidos da palavra -, como lembram os projetos citados e o co-mentário do professor Fischer:

Ao longo do tempo, mas especialmente da República para cá, forjou-se e perpe-tuou-se a idéia de que só uns poucos sabem usar a língua, e o povo é inepto, ou burro, ou algo pelo estilo. [...]. É como se a gente tacitamente aceitasse a idéia de

6 http://www.outdoordecor.com/

7 “Outdoor” tem entrada no Dicionário Aurélio, mas “cheeseburger”, não. “Hambúrguer” foi adaptado à grafia do

português.

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que alguns podem usar palavras como queiram, porque têm autoridade (o Rui Barbosa e o professor de Português [...]), e os outro têm que se cuidar. Especial-mente se os tais outros quiserem inventar palavras. Minha posição de princípio, sujeita a debate em casos excepcionais: o povo tem todo o direito do mundo de inventar o que quiser, incluindo as palavras. Se elas funcionarem, elas vão entrar na corrente sanguínea da cultura, e se não, não.

Esse aspecto da autoridade lingüística é retomado por Sírio Possenti:

Todos sabem que as línguas mudam. Claro que é mais fácil aceitar uma mudança antiga do que uma que ocorra diante de nossos olhos. Ninguém reclama de a pa-lavra ‘muliere’ ter se tornado a papa-lavra ‘mulher’, de a papa-lavra ‘ecclesia’ ter mu-dado para ‘igreja’, mas achamos o fim da picada a hipótese de a palavra ‘mulher’ mudar para ‘muié’, ou de a palavra ‘classe’ mudar para ‘crasse’. Fomos educados para considerar que, nesses casos, se trata de decadência, de piora da língua, de puro relaxo do povo. (2002, p. 27)

Continua Possenti:

Ora, não há como demonstrar a pureza de nenhuma língua. Nem do latim. Além disso, poder-se-ia aceitar, alternativamente, que uma língua se fortalece com os enxertos, o que é obviamente um fato. Mas a idéia da degenerescência das lín-guas continua viva, vivíssima.

Podemos utilizar a frase X-burger em outdoor, ainda tentando levantar novas questões sobre neologismos, para falar de limites, sobretudo dos limites bem estabele-cidos entre língua materna e língua estrangeira, tópico ainda pertinente em nossos di-as, se levarmos em conta as tentativas de proibição ou legislação do uso de estrangei-rismos, como foi observado no início desse texto. O objetivo é o de encontrar formas inovadoras para pensar a questão do estrangeirismo, oferecendo uma alternativa ao sistema de oposições binárias (língua materna/língua estrangeira) e procurando en-tender o que acontece com o paradoxo entre necessidade e temor da “invasão” lingüís-tica.

Este trabalho passa a considerar a dicotomia língua materna / língua estran-geira a partir de uma metáfora político-biológica criada por Jacques Derrida (2000, 2003) que contempla, justamente, a questão dos limites, dos territórios, de “dentro” e do “fora de fronteiras”. Como sabemos, a reflexão desconstrutivista não oferece teorias ou explicações totalizantes, mas é um instrumento pertinente e vigoroso para examinar a difusão tão intensa de estrangeirismos na língua brasileira e para constituir, a partir desse uso, novos ângulos de tematização.

As dicotomias (como fora/dentro, original/tradução, sujeito/objeto, etc.) sempre fizeram parte do pensamento da civilização ocidental e conservam sua impor-tância e pertinência, já que fazem parte de uma tradicional visão ou teoria do mundo e estão de acordo com a coerência interna de uma determinada época. Não se trata, por-tanto, de apagar as diferenças entre os diversos sistemas lingüísticos (o que seria

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im-possível e improdutivo), mas de problematizar sua diferenciação, ou, para ficar “den-tro” da metáfora político-biológica de Derrida (2003), de examinar suas fronteiras.

Como vimos no início deste trabalho, a incorporação de neologismos por em-préstimos, principalmente quando se trata de palavras inglesas, causa estranheza, pre-ocupação com a soberania da nação, movimenta o poder público. Causa também uma situação paradoxal. Por um lado, toda resistência é compreensível e mesmo desejável: o que está “dentro” de um paradigma (dentro de um estilo artístico, de uma teoria polí-tica ou científica, “dentro” da variante culta de uma língua) deve ser intolerante com o que está “fora” de seus limites, para se conservar válido “dentro” de seus próprios cri-térios. Adotamos instintivamente uma atitude de repulsa, de temor por essa quantida-de incrível quantida-de palavras estrangeiras que nos invaquantida-dem, em razão do que poquantida-de haver quantida-de violência oculta nesse zumbido incessante e desordenado de termos estrangeiros. Por outro lado, é também compreensível e desejável abrir-se para a alteridade, para o que está “fora” de nossos limites.

Há, certamente, um lucro em nos colocarmos continuamente em questão, em privilegiar cruzamentos com outras línguas e criar instabilidades fecundas “dentro” de nossa cultura. Trata-se, em última análise, de nossa própria sobrevivência, como afir-ma Jacques Derrida. É esse o paradoxo: os critérios de um paradigafir-ma (seja ele científi-co, artísticientífi-co, político ou lingüístico) devem ser intolerantes e ao mesmo tempo deixar agir “forças de tolerância”9 que possam abrir seus limites para o “outro”, para o que está além desses critérios.

Em seus últimos textos (como Voyous (2003), a entrevista “Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos” (BORRADORI, 2004) e em Foi et savoir (2000), o filósofo francês focaliza questões políticas, teológicas e filosóficas com ênfase nos conceitos de soberania, identidade, democracia, em como os herdamos e como os transformamos. Derrida argumenta em torno das aporias inerentes a esses conceitos tradicionais, res-saltando uma “auto-imunidade” que os ameaça, mas que, ao mesmo tempo, permite a sobrevida desses mesmos conceitos.

O sistema imunológico, segundo a metáfora do filósofo, ao mesmo tempo em que protege o organismo contra agressões externas, abre suas fronteiras, por um pro-cesso de auto-imunização, para o estrangeiro, para a aceitação do outro, aceitação de algo que não é propriamente seu, por exemplo, um órgão transplantado, um enxerto. A auto-imunidade é vista, portanto, não somente como ameaça, mas também como a

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possibilidade de sobrevida do corpo e, metaforicamente, da democracia e do texto. E da língua materna, como esse trabalho pretende comentar.

Podemos utilizar essa metáfora biológica para ajudar a entender o que aconte-ce na passagem de um termo estrangeiro para o português. Podemos tentar conaconte-ceituar essa passagem pela fronteira como um mecanismo que, ao mesmo tempo em que agri-de e ameaça nossa língua (e nossa soberania), acrescenta-lhe uma sobrevida, garante sua permanência como o organismo vivo e mutante que toda língua é. Esse mecanismo pode ser apreciado mais claramente em certos neologismos, em certos pontos limites, onde a fronteira dilui suas linhas de demarcação. Podemos entender a aceitação e a in-corporação de X-burger e outdoor na língua portuguesa como ação de um sistema auto-imunológico recorrente nos sistemas lingüísticos. Enfraquecendo seus limites oficiais (o vernáculo estabelecido), esse sistema abre-se para o outro, para o estranho, permi-tindo então que o “de fora” adentre suas fronteiras, legalmente (incluindo-o no dicio-nário) ou por “contrabando”, e passe a fazer parte integrante do nosso território lin-güístico.

Os mecanismos de produção lexical contemporâneos são os mesmos que ser-viram para o desenvolvimento da língua portuguesa ao longo dos anos: recursos au-tóctones (sobretudo derivação e composição) e léxicos importados de outros sistemas lingüísticos (os empréstimos). A dicotomia língua materna/língua estrangeira não é inútil e, assim como rótulos e classificações, contribui para organizar nosso saber e continua sendo pertinente para explicitar e comunicar um conhecimento, sobretudo depois que problematizamos seus limites e os pressupostos que lhes servem de base. O grande número de estrangeirismos utilizados atualmente já aponta para uma diverdade impossível de ser contida dentro, justamente, de polaridiverdades. Babel não é uma si-tuação de pura oposição, mas de transbordamento entre identidades bem estabelecidas institucionalmente. Assim como não há uma língua pura, não há também puro amál-gama com o outro, somente uma afirmação do jogo, da auto-regulamentação lingüísti-ca. O termo X-burger coloca, lado a lado, em uma só palavra, dois códigos: o da língua portuguesa (que identifica “cheese” à letra X) e o da língua inglesa (a palavra “burger” que, neste caso, nem sofreu a adaptação gráfica registrada no Aurélio, como aconteceu com outro sanduíche, o hambúrguer). E a possível tradução de “outdoor” por “billbo-ard” revela os Estudos de tradução como um instrumento poderoso para problemati-zar questões lingüísticas e filosóficas e abalar pressupostos que parecem, ainda hoje, esconder preconceitos e mitos enraizados em nossa cultura.

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É necessário repetir, como conclusão, que sempre lucramos ao analisar limites e exclusões, quando examinamos, contestamos ou problematizamos os pressupostos que lhes dão pertinência e autoridade. Não se trata de resolver um problema lingüísti-co, mas podse formulá-lo com maior clareza, colocá-lo sob novas perspectivas ou e-liminar falsos problemas. Como já foi afirmado neste texto, a metáfora da auto-imunidade foi utilizada por Derrida para desconstruir questões políticas e religiosas. Podemos acrescentar, portanto, que a questão da inclusão do que está “fora” no “den-tro” impõe-se nesse momento em que as relações entre países estão sendo abaladas por migrações, em que as guerras não se fazem mais nos limites demarcados politicamen-te, nem com aviões inimigos que ultrapassam esses limites, mas dentro do espaço do próprio país, com seus próprios recursos, ou em espaços virtuais que não estão coloca-dos nem fora nem dentro de nada.

REFERÊNCIAS

ALVES, I. M. Neologismo - Criação lexical. São Paulo: Ática, 2004.

BORRADORI, G. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos. In: Filosofia em tempo de terror - diálogos com Jürgen Habermas e Jacques Derrida. Trad. de Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

DERRIDA, J. Foi et savoir. Paris: Seuil, 2000. DERRIDA, J. Voyous. Paris: Galilée, 2003.

FARACO, C. A. Estrangeirismos: guerra em torno da língua. S.Paulo: Parábola Editorial, 2004. FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. Coord. e ed. de Marina Baird Ferreira e Margarida dos Anjos. Curitiba: Positivo, 3. ed. 2004.

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FONSECA, S. Novo Diccionairo encyclopedico illustrado da língua portugueza. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1926.

GARCEZ, P.; ZILLES, A. M. Estrangeirismos, desejos e ameaças. In: FARACO, C. A. Estrangeirismos: guerra em torno da língua. S.Paulo: Parábola Editorial, 2004, p. 17-36. GOMBRICH, E. Norma e Forma - estudos sobre a arte na Renascença. Trad. de Jefferson Luiz Vieira [ou Camargo]). São Paulo: Martins Fontes, 1990.

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