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Uma visão do sistema internacional a partir de uma perspectiva do Global South

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REPATS, Brasília, V.6, nº 2, p 74-90, Jul-Dez, 2019

UMA VISÃO DO SISTEMA INTERNACIONAL A PARTIR

DE UMA PERSPECTIVA DO GLOBAL SOUTH

THE INTERNATIONAL SYSTEM FROM A GLOBAL

SOUTH PERSPECTIVE

Gustavo de Souza Abreu

*

RESUMO: O artigo contextualiza a contemporânea abordagem Global South.

Historicamente, as evidências denotam que o sistema internacional é notadamente assimétrico e, por isso, produz permanente tensão entre o quarto dos Estados mais ricos do North e os três quartos do South menos favorecidos. Dentre as muitas razões de tal quadro, estaria a inobservância de importantes critérios de moralidade durante dominações coloniais; o que de certo modo se perpetua e ainda dificulta a promoção de justiça, de fato, equitativa e inclusiva. Assim, faz-se uma breve leitura do comportamento dos sujeitos do Direito Internacional, destacando os Estados e as organizações internacionais na sua relação com o conceito. Ao final, infere sobre um horizonte mais harmônico entre os atores do sistema internacional, em uma perspectiva que pode levar o Brasil a exercer maior protagonismo no trato de temas de interesse do Global South, em um contexto menos sujeito a vulnerabilidades impostas pelo poder político e econômico dos Estados mais favorecidos.

Palavras-chave: Global South – Moralidade – Justiça – Direito Internacional. ABSTRACT: This article contextualizes the contemporaneous approach of

Global South. It proceeds from the assumption that the international system is unfair and gives rise a permanent political tension between a quarter of the richest States and a three-quarter made up of the poorest ones. At the root of the problem is the absence of moral criterions during the colonial domination that continues to hamper the application of justice around the world. It gives a brief reading of the behavior of the subjects of International Law, highlighting the states and international organizations in their relation to the concept. In the end, it infers a more harmonious horizon among the actors of the international system, in which Brazil can play a decisive role in dealing with issues of interest to the Global South, without necessarily depending on the political and economic power of the most favored states.

Key-words: Global South – Justice – Morality – International Law.

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INTRODUÇÃO

Uma década após a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), com o início dos movimentos independentistas contemporâneos de descolonização e de outras manifestações importantes, como a Conferência de Bandung (1955), a academia e alguns observatórios mundiais passaram a monitorar um amplo espectro de países menos favorecidos social e economicamente que iniciavam uma discreta, mas importante, reação política ao mainstream. Com um discurso peculiar descolado da narrativa dos grandes atores do sistema internacional, iniciaram um conceito-movimento protagonizado, principalmente, por países asiáticos e africanos que pregava a rejeição a um alinhamento automático aos ditames político-econômicos para o sistema internacional tal qual definidos pelas grandes potências sob a roupagem de neocolonialismo ou neoimperialismo.

Esse movimento dos menos favorecidos se consolidou nas décadas seguintes; e mesmo após o fim da Guerra Fria manteve em sua essência a tentativa de compreensão e de reação às dinâmicas de dominação interestatais atribuídas aos “Estados do Norte”, sendo, atualmente, identificado como Global South em contraposição à categoria Global North.

Para uma visão bem simplificada da desproporcionalidade de recursos dos Estados do sistema internacional, dos 193 atuais membros das Nações Unidas apenas cerca de um quarto concentra os maiores e mais valiosos bens e riquezas acumulados ao longo da história da humanidade.

Para além das análises geopolíticas, sociológicas, antropológicas – e não raramente preconceituosas – que procuram explicar as razões que impedem ou dificultam o acesso de certos Estados ao estágio de desenvolvimento semelhante aos níveis europeus ocidentais, norte-americanos e japoneses, há razões para supor que a condição de desequilíbrio remete, também, a aspectos morais que guiaram importantes decisões históricas que mantiveram o sistema em desequilíbrio. Assim, este texto sustenta a hipótese de que estas razões são tão consistentes quanto a alegada incapacidade político-administrativa dos Estados menos favorecidos do sistema para gerar riquezas a partir de recursos

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humanos e naturais disponíveis, refletindo-se no baixo padrão de desenvolvimento alcançado. Assim:

É certo que em um nível bem geral o Global North está associado a Estados que apresentam uma organização estatal estável, uma economia em grande parte sob controle e um adequado setor público formal dominante. Já os receptores de ajuda estrangeira, desnecessário dizer, pertencem ao Global South. (GLOBAL SOUTH, 2015). [Tradução nossa] 1

Nessa perspectiva, tem-se, pois, um sistema internacional que pode ser caracterizado como “injusto” (?), no qual as unidades políticas não são diferenciadas apenas em razão de suas capacidades e riquezas naturais, mas em grande medida devido a processos históricos de dominação moralmente discutíveis que resultaram nas atuais assimetrias.

A questão da justiça entre Estados implica necessariamente reflexões na senda do Direito Internacional (DI), que não tem se abstido de buscar melhores caminhos para compor os conflitos, apesar da forte influência do componente político associado aos interesses soberanos dos Estados mais fortes. O campo normativo tem procurado responder às inquietações dos menos desenvolvidos com a perspectiva de tornar a balança menos díspar juridicamente, a partir da leitura da convergência de fatores que se refletem em sua continuada reconfiguração. Pode-se destacar, por exemplo, o enfraquecimento de instâncias regulatórias vinculadas ao Estado nacional, a incorporação de novas tarefas e competências às instituições internacionais e a aceitação recente do papel de indivíduos e de grupos não estatais como sujeitos do DI.

Com efeito, o conceito Global South vem ganhando consistência na narrativa sociopolítica e econômica, notadamente a partir das análises procedidas por centros de pesquisa europeus e norte-americanos, como se verá mais adiante. Mas, curiosamente, é pouco discutido no Brasil, que tem

1 Texto original: It is true that at a very general level, the global North is associated with stable

state organization, an economy largely under (state) control and – accordingly – a dominant formal sector. The recipients of foreign aid, needless to say, belong to the Global South. [What’s wrong with the Global North and the Global South? Thomas Eriksen, 2015].

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considerável capacidade política e econômica de influenciar e fortalecer o conceito. Daí a importância de se discutir o tema e refletir sobre a pertinência de inserção mais incisiva no movimento, uma vez que o país se encontra no liame entre o dito mundo em desenvolvimento e o desenvolvido.

Em questão da atualidade, por conta das queimadas no país, especialmente na Amazônia2, as contundentes críticas ao Brasil, principalmente,

– que não são de hoje mas cresceram de intensidade – passam pela leitura de uma narrativa que remete ao passado colonial, deixando entrever nas falas discursivas que o North é capaz de dar soluções mais adequadas aos problemas do mundo. No fundo, para além das preocupações ambientais, identificam-se contornos de interesse político-econômico, como outrora.

Na sequência, após breve referência histórica sobre aos fatos que predominantemente conduziram à formação de um ambiente assimétrico, são apresentadas algumas visões sobre o Global South e a relação do tema com os principais sujeitos do Direito Internacional. Para concluir, uma perspectiva posta como auspiciosa em relação ao novo conceito como possível caminho para alcançar a desejável justiça no sistema internacional é apresentada.

2. RAÍZES HISTÓRICAS DE UM SISTEMA INTERNACIONAL ASSIMÉTRICO

A causa profunda mais consistente para explicar esse desequilíbrio da balança do sistema internacional nos dias de hoje reside, fundamentalmente, nos processos de dominação de caráter colonial promovidos por Estados europeus iniciados a partir das grandes navegações no século XV. Processos que se caracterizaram pela exploração sistemática dos povos e dos recursos naturais dos territórios “conquistados” de maior interesse econômico das coroas europeias. É claro que os insucessos dos Estados de hoje não se justificam tão somente por essas fases de dominação. Mas, por certo, as formas como se processaram as rupturas – as descolonizações – foram decisivas em suas formações sócio-políticas e econômicas e repercutem hodiernamente.

2 Ver, por exemplo:

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Com as devidas e louváveis exceções, as descolonizações poderiam ter sido conduzidas com razoável senso de justiça. Senso de justiça esperado até mesmo pelos laços culturais que se desenvolveram naturalmente entre dominadores e dominados.

Simplificadamente, quatro grandes processos históricos de descolonização ensejaram a independência da maioria dos Estados menos favorecidos pelo progresso mundial nos dias atuais: (i) a descolonização na América no século XIX; (ii) a descolonização do Império do Japão decorrente da derrota na II Guerra Mundial; (iii) a descolonização na África e na Ásia durante a Guerra Fria; e (iv) a fragmentação territorial consequente do fim da Guerra Fria. Neste último, os territórios não eram exatamente colônias mas guardavam relação de submissão com potências dominantes do sistema internacional.

As estruturas de governo deixadas nas ex-colônias por ocasião das desocupações e retiradas das bandeiras colonizadoras e seus staff dirigentes eram frágeis, imaturas, incipientes enfim, sem grande experiência da burocracia do serviço público, notadamente nos campos da gestão política e administrativa da máquina estatal bem como da economia.

Não são justificáveis os processos promovidas pelos europeus nos séculos XVI a XIX sob o argumento de ausência de fundamentação moral para a prática de atos arbitrários de dominação; e muito menos os que vieram em seguida, quando já vigiam normativas no ordenamento jurídico internacional. Cabe recordar o pensamento de Immanuel Kant (1724-1804) em sua referencial obra À paz perpétua (1795), que se tornou um marco contemporâneo da filosofia política ao destacar a necessidade imperiosa da observância de uma moralidade universal que deveria predominar nas relações recíprocas entre Estados e povos.3

3 Bem antes de Kant, outros pensadores já haviam refletido acerca da moralidade, merecendo

nota as seguintes obras referenciais: Francisco de Vitoria, Os índios e o direito da guerra (1532); Hugo Grotius, O direito da guerra e da paz (1625); Samuel Pufendorf, Do direito de natureza e

das gentes (1672); Saint-Pierre, Projeto para tornar perpétua a paz na Europa (1713); Emer de

Vattel, Direito das gentes (1758); e Jeremy Bentham, Um plano para a paz universal e perpétua (1789).

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A reflexão sobre a moralidade dos atos de então faz aludir ao título da obra de Ha-Joon Chang (2004), que discute os caminhos utilizados pelos países ricos para alçarem o atual estágio, às custas dos territórios dominados e que, ao final, “chutaram as escadas” para impedir ou dificultar o acesso a um plano superior de desenvolvimento. 4

3. SELVAGENS, TERCEIRO MUNDO, SOUTH

O mundo moderno, pelo menos na história mais recente do século XX, é percebido como sendo formado por dois grandes blocos assimétricos de Estados, sendo-lhes atribuídos rótulos genéricos segundo suas riquezas materiais, como que a indicar a existência de uma linha demarcatória entre ricos e pobres. Esses rótulos se interligam temporal e geopoliticamente, mas se alteram em alguma medida quanto à amplitude conceitual.

Muito depois da inominável categorização que dividia o mundo entre “civilizados” e “selvagens”, e já sob a vigência da ONU, adveio o conceito de “terceiro mundo”. O termo ganhou notoriedade na Conferência de Bandung, na Indonésia, em 1955, no momento em que Estados capitalistas menos desenvolvidos – social e economicamente atrasados em decorrência das desigualdades nas suas relações comerciais com nações capitalistas mais ricas, quase todos ex-colônias – iniciaram um importante movimento que chamou a atenção dos observadores internacionais. Diversos líderes asiáticos e africanos participaram do evento que tinha por objetivo geral a promoção da cooperação econômica e cultural de perfil afro-asiático, buscando fazer frente ao que na época se percebia como atitude neocolonialista das duas grandes potências dominantes, Estados Unidos e União Soviética, bem como de outras nações influentes que também exerciam o que consideravam imperialismo, promovendo indiscriminadamente os próprios valores em detrimento dos cultivados pelos povos em desenvolvimento e subdesenvolvidos.

4 Referência ao título e ao sentido proposto na obra: CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: a

estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. Tradução: Luiz Antônio Oliveira de Araújo. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

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Ensimesmado até então, esse grupo de Estados ganhou impulso, adotando uma postura diplomática de equidistância das duas superpotências. Esta intenção foi confirmada na Conferência de Belgrado, de 1961, onde foram enfáticos na assertiva de que não entrariam na órbita da União Soviética. Estava bem caracterizada a existência do “movimento dos não-alinhados” no plano internacional (Non-Aligned Movement).

O conceito “terceiro mundo” se expandiu como categoria de análise na política internacional, perdurando nas décadas seguintes e abrangendo, inclusive, os países do continente americano não plenamente desenvolvidos, como o Brasil e outros latino-americanos. Mas, finda a Guerra Fria e afastada a dualidade bipolar, a terminologia deixou de fazer sentido.

Em nova ordem, os Estados em desenvolvimento procuraram se ajustar às demandas mais imediatas, focando nas preocupações internas e de seus entornos, sendo cooptados pelos acenos dos ideais liberais democráticos associados à economia capitalista globalizada. Entretanto, continuaram sem capacidade de enforcement no tabuleiro global onde não conseguiam atuar como global players, mesmo aqueles que atingiram a condição de emergentes. Assim, antigos não alinhados do “terceiro mundo” passaram a ser vistos como um todo cujo status político, econômico, militar, cultural e geopolítico guardava certas similitudes entre si. Quase todos se situavam no hemisfério sul – mais precisamente ao sul do paralelo 30 N – sendo categorizados no conjunto como South. Os que se situavam acima dessa linha, com algumas exceções, passaram a ser rotulados de North.

Destarte, North e South5 se tornaram novas categorias de análise da política internacional, nas quais os Estados integrantes da primeira – industrializados, desenvolvidos, maiores PIB, alto IDH – impõem, em alguma medida, suas vontades e interesses aos da segunda – subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, menores PIB, baixo IDH –, ainda que de forma dissimulada por intermédio de regimes internacionais e por conta da lógica dos mercados em

5 Para não incorrer em erro conceitual na tradução de North, South, Global North e Global South

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ambiente capitalista. A existência de uma tensão entre essas categoriais foi denominada conflito North-South.

Com o desenho alcançado, cabem algumas reflexões. Por que novas colonizações ocorreram no século XX onde o ideal kantiano já estava imbricado na filosofia política e nas doutrinas jurídicas centradas na existência de uma moralidade universal? Por que quando ocorreram as descolonizações mais recentes não foi aplicado o sentido da justiça distributiva internacional – se é que é possível –, principalmente após a criação da ONU? Por que esses processos não foram suavizados com contrapartidas moralmente razoáveis, na via de um legado consistente de organização político-administrativa necessário à realidade dos novos Estados, já que se tornara impossível para eles o retorno à condição original em termos territoriais, materiais, culturais e ambientais? A crise migratória de refugiados rumo a países mais desenvolvidos do North nos dias de hoje não deixa de ser um produto concreto dessa condição.

4 O NÃO TÃO PRECISO, MAS AUSPICIOSO, CONCEITO GLOBAL SOUTH

Atualmente, o debate North-South ainda frequenta os fóruns internacionais. Entretanto, o conceito Global South vem ganhando consistência e importância por traduzir melhor o sentimento dos países menos favorecidos, não necessariamente em postura conflitiva com o Global North. Reúne percepções de Estados que enfrentam problemas socioeconômicos e alguma instabilidade política em variados níveis, abrangendo desde aqueles que se sustentam política e economicamente em boa medida até os failed States. O traço comum permanece o mesmo de categorizações anteriores: a maioria dos Estados vivenciou processos de dominação colonial e, de alguma forma, acham-se injustiçados, discriminados ou ressentidos, além de terem a clara percepção de que permanecem até os dias atuais sob alguma forma de controle.

Mas o conceito também incorpora novas perspectivas que em alguma medida desvinculam a geografia do significado original do termo South, por conta, principalmente, das externalidades decorrentes do capitalismo

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globalizado e não mais ao vínculo ideológico que originou o conceito-movimento. Nesse sentido, temos, pois que:

The Global South as a critical concept […] has traditionally been used within intergovernmental development organizations –– primarily those that originated in The Non-Aligned Movement –– to refer to economically disadvantaged nation-states and as a post-cold war alternative to “Third World.” However, in recent years and within a variety of fields, the Global South is employed in a post-national sense to address spaces and peoples negatively impacted by contemporary capitalist globalization. (MAHLER, 2017) 6

Estudos sobre o Global South começaram a aparecer em publicações na virada do milênio e vêm crescendo em centros de pesquisa espalhados pelo mundo. Mais elucidativos que os conceitos anteriores, procuram ampliar o escopo da lente que faz a leitura de “enquadramento” do panorama global de maneira mais flexível, sem necessariamente vincular os Estados ao posicionamento geográfico. Assim, Estados localizados ao Sul, como a África do Sul e Austrália, podem ser percebidos sob a ótica do primeiro grupo, dependendo dos parâmetros, ao passo que Turquia e Afeganistão, na perspectiva do segundo, apesar de estarem acima do paralelo 30 N.

Sob outra ótica, por conta da desterritorialização do capitalismo global, identificam-se clusters Souths dentro das fronteiras geográficas de Estados Norths – as periferias de alguns Estados ricos, p. ex. Do mesmo modo, Norths convivendo dentro das fronteiras de Estados Souths, como bairros ricos e de alto IDH em cidades na América do Sul e na África. Logo:

The Global South captures a deterritorialized geography of capitalism’s externalities and means to account for subjugated peoples within the borders of wealthier countries, such that there are economic Souths in the geographic North and Norths in the geographic South. (MAHLER,

2017)

No âmbito da ONU o tema é discutido no Office for South-South Cooperation (UNOSSC), onde são tratadas importantes questões de interesse

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do Global South.De iniciativa da academia dos EUA foi criado o Center for the Global South (CGS)7 da American University (Washington-DC), em 1992. De

acordo com o CGS, as nações da África, América Latina e Central e a maior parte da Ásia se deparam com grandes desafios, mas também oferecem oportunidades reais. Transtornos políticos, econômicos e sociais são recorrentes na maioria dessas nações, mas ao mesmo tempo as populações do Global South e seus mercados emergentes oferecem imensas esperanças de crescimento econômico, investimentos e contribuições culturais. Infelizmente, as pessoas dessas nações também se deparam com alguns dos maiores desafios da comunidade internacional no milênio: a pobreza, degradação do meio ambiente, abuso dos direitos humanos e civis, conflitos étnicos e religiosos, deslocamentos em massa de refugiados, fome e doenças.

Na iniciativa europeia, entre outras, foi criado, em 2014, o Global South Studies Center (GSSC) na Universidade de Colônia (Alemanha) para produzir pesquisas que reforçam a importância da temática. Em sua publicação Concepts of the Global South (2015) o GSSC faz uma interessante juntada que reúne pontos de vista de colaboradores de diversas partes do mundo, quase todos favoráveis à mensagem terminológica embutida no conceito Global South em substituição a “Terceiro Mundo”, “Sul” ou “mundo em desenvolvimento” (developing word). (GLOBAL SOUTH STUDIES CENTER, 2015)

Entre as aproximações conceituais reunidas pelo GSSC da Alemanha, seguem alguns extratos de artigos de pesquisadores de centros de estudo nos Estados Unidos e na Europa que ajudam a compreensão do sentido contemporâneo do Global South.

(i) Leigh Anne Duck, pesquisadora associada da University of Mississipi, coeditora do Jornal The Global South, considera o impacto positivo do novo termo porque empresta mais peso no sentido de resistência às forças hegemônicas.

7 Center for the Global South da American University. Disponível em:

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(ii) Alvaro Mendez, cofundador da unidade Global South da London School of Economics and Political Science e especialista em América Latina e China, igualmente, reforça o empoderamento do termo e sua trajetória de ascensão sem precedentes, além de destacar que apresenta uma adjetivação menos hierárquica que os anteriores.

(iii) Barbara Potthast, professora de História da América Latina e Ibérica da Universidade de Colônia, pesquisadora do GSSC, destaca que o novo conceito pode conduzir a reconsiderações das relações da região com outras partes do mundo.

(iv) Boike Rehbein, professor de Sociedade e Transformação na Ásia e na África da Universidade Humboldt de Berlim, faz uma crítica afirmando que aqueles que optam por esta terminologia são essencialmente integrantes das classes superiores no Global South que lucram com a realidade política e econômica, por intermédio da expansão das relações Sul-Sul, por exemplo; ademais, o novo termo não comporta explicações para os problemas que atingem a maior parte dos habitantes do grupo.

(v) Thomas Eriksen, professor de Antropologia Social da Universidade de Oslo, alerta que Global North e Global South são termos ambivalentes, e questiona: por que não simplesmente se referir a Norte e Sul, ou países materialmente ricos e materialmente pobres? Ou não usar os termos centro, semiperiferia e periferia tão bem empregados por Immanuel Wallerstein? É claro que em grande medida, destaca, os termos podem se adequar facilmente para enquadrar a maioria dos países a partir de parâmetros como estabilidade política, economia e setor público. Mas nem sempre.

5. OS SUJEITOS DO DIREITO INTERNACIONAL E O GLOBAL SOUTH Na seara do DI, a jurista francesa Mireille Delmas-Marty, titular da cátedra de Estudos Jurídicos Comparativos e Internacionalização do Direito do Collège de France, não emprega os termos Global North e Global South na referencial obra Três Desafios para um Direito Mundial. Entretanto, reporta a existência dessa dicotomia entre ricos e pobres geopoliticamente dispersos no mundo. Ela

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aposta na “mundialização do Direito” como solução para a complexidade da cena internacional, mas destaca que é necessário decodificar as técnicas jurídicas para operar um mundo “fragmentado segundo linhas que incessantemente dissociam os direitos civis e políticos dos direitos econômicos e sociais, opondo o individualismo dos países ricos ao espírito de solidariedade que caracteriza os países pobres” (DELMAS-MARTY, 2003, p. 21).

Sob o argumento humanitário, as intervenções ocorridas após o fim da Guerra Fria e sob a liderança quase hegemônica dos EUA mostram uma face quase invisível que não é muito diferente em termos teleológicos dos processos produzidos pelos Estados colonizadores. É o que aponta Carmen Gonzales, professora de Direito na Seattle University School of Law, quando faz dura crítica às intervenções de Estados do Global North – particularmente as capitaneadas pelos EUA – em Estados do Global South, sob o argumento missionário humanitário ou de combate ao terrorismo. Em suas palavras:

As intervenções dos EUA conduzidas na Somália, Kosovo, Iraque e Afeganistão foram justificadas como esforços para a promoção da governança democrática, proteção dos Direitos Humanos e ou combate ao terrorismo. Do mesmo modo como na missão de cristianizar os “selvagens” na era colonial, essas intervenções tiveram como premissa a legitimidade do uso força militar para disciplinar estados “falidos” ou “vilões”. O North, assim, reproduziu a narrativa dos Direitos Humanos do branco salvador “domesticando” ou “civilizando” selvagens ou despóticos Estados do Sul de modo a resgatar povos atrasados que não podem ajudar-se a si próprios. Esta narrativa mascara os interesses da política externa do North na linguagem do humanitarismo e demonstra novamente a tênue condição de soberania das nações mais frágeis. A legitimidade dessas intervenções “humanitárias” foi possibilitada pela cumplicidade do North na perpetuação da violência e pobreza no Global South. (GONZALES, 2015, p. 170). [Tradução nossa].8

8 Texto original: United States-led interventions in Somalia, Kosovo, Iraq, and Afghanistan were

justified as efforts to promote democratic governance, protect human rights, and/or combat terrorism. Like the colonial era civilizing mission to Christianize the "savages," these interventions were premised on the legitimacy of using military force to discipline "failed" or "rogue" states. North thereby reproduced the human rights narrative of the white saviors “taming” or “civilizing” savage or despotic Southern states in order to rescue “backward” peoples who cannot help themselves. This narrative cloaks Northern foreign policy interests in the language of humanitarianism and demonstrates yet again the tenuous sovereignty of Southern nations. The legitimacy of these "humanitarian" interventions was called into question by the complicity of the North in the perpetuation of violence and poverty in the Global South. [Environmental Justice, Human Rights, and the Global South, Carmen Gonzales].

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Por essa perspectiva não se vislumbra que as atitudes dos Estados – sujeitos do DI por excelência e a partir dos quais derivam todos os demais – possam favorecer de algum modo a perspectiva Global South. Na visão realista, predominante nas ações políticas dos Estados que conformam a sociedade internacional, a autoajuda e a perseguição dos interesses nacionais é fator determinante.

O outro sujeito clássico do DI são as organizações internacionais (doravante OI), cujas caraterísticas principais são a voluntariedade de associação (a Estados e a outras OI), a instituição por ato internacional, o ordenamento jurídico próprio, a personalidade jurídica internacional, os poderes conferidos nos termos dos tratados de criação e a sede própria (PELLET, 2004, p. 5). Comparadas ao sujeito Estado, as OI são mais flexíveis e abrem perspectivas mais auspiciosas na direção do gerenciamento dos desafios do Global South no sentido da cooperação e da mitigação dos problemas. Entretanto, não obstante os fins dessas organizações, concebidas que são sobre base filosófica de perspectiva humanista, há fortes críticas do Global South quanto às intervenções capitaneadas pela ONU.

As OI que tratam dos Direitos Humanos, particularmente da proteção dos direitos da mulher e da criança, trazem uma importante contribuição para a mitigação dos efeitos que atentam contra a dignidade humana, principalmente em países africanos. A atual crise dos refugiados, por exemplo, com milhares de pessoas abandonando seus locais de nascimento em Estados do South, só não é pior devido justamente à atuação dessas OI. O trabalho dos seus membros que lidam diretamente com as populações carentes, não raramente de caráter voluntário, ajuda a diminuir o sofrimento e as privações de toda ordem nesses países fragilizados. Uma ação global digna de admiração e sem a qual os maiores desafios do milênio – pobreza, degradação do meio ambiente, abuso

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dos direitos humanos e civis, conflitos étnicos e religiosos, deslocamentos em massa de refugiados, fome e doenças – dificilmente serão superados.9

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inquestionável é o fato de que os três quartos dos Estados-membros das Nações Unidas menos desenvolvidos passaram por processos de colonização ou dominação conduzidos justamente por aqueles que integram o quarto mais desenvolvido. Pode-se argumentar na defesa dos antigos colonizadores que essas dominações foram determinadas por impositivos históricos, raison d'État, contingências mercantilistas, fragilidade do DI nascente em seu sentido regulatório; e até mesmo pela ausência de uma moralidade política internacional que só a partir do pensamento kantiano passou a ser considerada mais fortemente como um imperativo ético das relações internacionais.

Em exercício de imaginação, é razoável supor que se os territórios e povos originais não tivessem sido espoliados, o mundo de hoje estaria representado por um painel, talvez, com menos Estados-potências; todavia, certamente, sem tantos Estados-párias.

Enquanto não se vislumbram indicativos de flexibilização do principal sujeito do DI – o Estado, plenos de seus poderes soberanos –, as ações de outros sujeitos na cena internacional podem indicar caminhos mais acessíveis à formação de um Direito amplo em sua aplicabilidade e extensão a ensejar o sentido de justiça rumo a uma desejável equidade internacional, harmonizando interesses dos mais diversos atores assimétricos. Nesse sentido, as OI, sob a perspectiva institucional-liberal, apesar das críticas que recebem por supostamente reproduzirem em seus regimes o pensamento estatal ainda muito associado às soberanias, possibilitam margens de negociação que favorecem o discurso Global South.

9 O autor integrou a Missão de Paz da ONU em Moçambique (ONUMOZ), durante o ano de 1994,

trabalhando como observador militar e eleitoral, em estreita ligação com agentes da ACNUR, PNUD, MSF e Human Rights Watch.

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É a partir dessas reflexões que o conceito Global South talvez consiga ganhar mais adeptos engajados e promover um melhor equilíbrio do sistema. Não para retirar vantagens obtidas pelos mais ricos em uma abordagem robinhoodiana de transferência direta de riqueza, mas para tornar as relações internacionais mais justas, desconstruindo a lógica da dependência política, socioeconômica e cultural, subliminarmente inseridas nos acordos que produzem os regimes internacionais que tendem a preservar o status quo alcançado pelo North.

O Brasil pode contribuir com o debate. Mesmo tendo experimentado a condição de colônia e as externalidades decorrentes, o país alcançou uma maturidade político-institucional e econômica que lhe confere a condição de ator de peso capaz de contribuir para uma efetiva mudança no sistema. E então, diminuir sobre si e sobre outros Estados do Global South as pressões dos Estados do North que, de tempos em tempos, discursam sobre a necessidade de relativização de soberanias como recurso para a gestão adequada de questões de interesse mundial, como o meio ambiente, por exemplo. A Amazônia – e as demais florestas tropicais – é uma dessas temáticas recorrentes10.

Sob qualquer perspectiva os estudos relativos ao Global North e ao Global South inovam na medida em que não consideram um grupo “melhor” que o outro, mas simplesmente reconhecem que se acham sob diferentes condições decorrentes dos processos da História. Há aspectos econômicos, sociais e culturais bons e ruins em ambos, que devem ser levados em conta no sentido de se procurar alcançar um mundo menos apartado. Claro está que não há como dissociar completamente as leituras atuais daquelas que de alguma maneira ainda fazem a divisão sob a ótica de colonizadores e colonizados nos quais vieses preconceituosos na linha de doadores e receptores de benefícios ainda persistem. De toda maneira, são boas as perspectivas que já se manifestam em

10 Sobre o tema ver: ABREU, Gustavo de Souza. Amazônia, O Enigma da Segurança. Brasília:

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ações positivas e concretas e que tendem a mitigar os efeitos injustos do sistema.

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REFERÊNCIAS

ABREU, Gustavo de Souza. Amazônia, O Enigma da Segurança. Brasília: Appris, 2019

DELMAS-MARTY, Mireille. Três Desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

GLOBAL SOUTH STUDIES CENTER. Concepts of the Global South – Voices

from around the world. University of Cologne, Germany (2015). Disponível em:

http://kups.ub.uni-koeln.de/6399/ . Acesso em 15 de outubro de 2019.

GONZALEZ, Carmen. “Environmental Justice, Human Rights, and the

Global South”. In 13 Santa Clara Journal of International Law, (2015): 151-195.

Disponível:

https://digitalcommons.law.seattleu.edu/faculty/631/ . Acesso em 28 de novembro de 2019.

MAHLER, Anne Garland. 2017. "Global South." Oxford Bibliographies in Literary and Critical Theory, ed. Eugene O'Brien. Disponível em: https://globalsouthstudies.as.virginia.edu/what-is-global-south

Acesso em: 19 de setembro de 2019.

PELLET, Alain. “As Novas Tendências do Direito Internacional: Aspectos

Macrojurídicos”. In Brasil e os novos desafios do direito internacional, editado

Referências

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