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CONTANDO E RECONTANDO “BARBA AZUL”: A CURIOSIDADE FEMININA NAS NARRATIVAS DE PERRAULT E MARINA COLASANTI

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Culturas e Artes – UNIGRANRIO

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CONTANDO E RECONTANDO “BARBA AZUL”: A CURIOSIDADE

FEMININA NAS NARRATIVAS DE PERRAULT E MARINA

COLASANTI

COUNTING AND RECONCILING "BLUE BEARD": FEMALE

CURIOSITY IN THE NARRATIVES OF PERRAULT AND MARINA

COLASANTI

Simone Campos Paulino1

Resumo: O presente artigo foi desenvolvido através da análise de dois contos de fadas.

É realizado neste um estudo comparativo, estabelecendo um diálogo entre os contos “O Barba Azul” de Charles Perrault e o conto “De um certo tom azulado” da autora ítalo-brasileira Marina Colasanti, tendo como tema condutor da análise a questão da curiosidade feminina, dando destaque à forma como esta característica é tratada nos dois contos.

Palavras-chaves: Contos de fadas, literatura comparada, Marina Colasanti.

Abstract: This article was developed by two fairy tales analysis. It is done this a comparative study , establishing a dialogue between the tales " The Bluebeard " by Charles Perrault and the short story " From a certain bluish " the Italo- Brazilian author Marina Colasanti , with the main theme of the analysis the issue of female curiosity, highlighting the way that this feature is dealt with in two short stories .

Keywords: Fairy tales, comparative literature, Marina Colasanti.

Introdução

Os contos de fadas, desde suas origens remotas, são contados e recontados. Todo adulto guarda na memória alguma narrativa antiga que foi contada na infância, alguma em que houvesse um sapatinho de cristal, uma fada madrinha ou um Lobo Mau, sempre começando com o “Era uma vez” e finalizando com a promessa de esperança: “Viveram felizes para sempre”.

Segundo Nely Novaes Coelho, “[O conto de fadas] originou-se entre os celtas, com heróis e heroínas, cujas aventuras estavam ligadas ao sobrenatural, ao mistério do além-vida e visavam à realização interior do ser humano” (COELHO, 2000, p. 173).

As narrativas intituladas contos de fadas são “enquadradas” na literatura infantil,

1Especialista em Literatura infantil e juvenil (UNIGRANRIO); Mestra em teoria da literatura e literatura

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158 ainda que algumas delas tenham cenas de extrema violência. Devemos ressaltar que essa

literatura é oriunda da tradição oral e que se tratava de narrativas de entretenimento adulto, “elas condensavam verdades coletivas - a sabedoria dos tempos – sobre romance, corte, casamento, morte” (TATAR, 2013, p. 161). O francês Charles Perrault, no século XVII, e, mais tarde, Jacob e Wilhen Grimm, na Alemanha do século XVIII, foram responsáveis pela coleta desses contos da oralidade. Mas ao serem trazidos para a cultura escrita, dos contos, foram extirpados os trechos de horror, cenas de sexo e referências ao paganismo e impregnou-se, nesses contos, um caráter principalmente moralizante.

Seguindo o modelo de Fábulas, como o do conterrâneo e contemporâneo La Fontaine, Charles Perrault, ao escrever os contos de fadas, adicionou ao final das narrativas morais em versos. O autor tinha uma dupla intenção ao transcrever os contos populares: “a revalorização do folclore e a sua utilização na educação dos jovens” (MEREGE, 2010, p.50).

A moral da história dada por Perrault “em alguns casos, sequer era condizente com o conto narrado” (PAULINO, 2015, p. 10). O que vemos, porém, no conto “O Barba Azul”, é o autor conduzindo o leitor a interpretar que a narrativa aborda os males da curiosidade feminina.

O conto “O Barba Azul” de Charles Perrault, assim como tantos outros contos, foi trazido da oralidade. Entretanto, nessa narrativa há cenas de horror, suspense através do exótico e cruel personagem de barba azul que dá nome ao conto. “Trata-se de um homem que é justificadamente rejeitado como marido, apesar de sua fortuna e poder.” (TATAR, 2013, p. 160).

Entretanto, assim como outros contos de fadas, “O Barba Azul” foi contado e recontado, ganhando em suas versões interpretações diferentes, sendo, inclusive, parodiado. Sobre essa perspectiva temos, por exemplo, o conto “De um certo tom azulado” da autora ítalo-brasileira Marina Colasanti, publicado em 1986, no qual a escritora joga com o suspense e a curiosidade feminina tão desprezada no conto de Charles Perrault.

O Barba Azul de Charles Perrault

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159 Prata e na Grécia de Senhor do Inferno (Cf. TATAR, 2013, p. 160). Seja o nome pelo qual

for chamado, qualquer um deles revela a natureza exótica desse personagem.

Acredita-se que o personagem do citado conto tenha sido inspirado pela figura sanguinário Gilles de Laval, que viveu na França no século XV. Laval foi condenado e enforcado por seus crimes em 1440, mas sua crueldade sobreviveu na imaginação popular, dando origem ao Barba Azul.

O conto “O Barba Azul” de Perrault nos faz ir além do “felizes para sempre”, apresentando ao leitor um pesadelo pós-marital (Cf. TATAR, 2013, p. 160). Os contos de fadas, por costume, têm como desfecho o casamento, porém no conto de Perrault temos o casamento presente no desenrolar da narrativa, fugindo ao “padrão” dos contos de fadas. A história possui como personagem um viúvo que, tendo se casado várias vezes, procura uma nova esposa entre as filhas de uma nobre vizinha. As moças, entretanto, o rejeitam por sua estranha barba azul e por temerem o mistério que ronda o sumiço das primeiras esposas do Barba Azul. Ele, a fim de conquistar as moças, as leva para um passeio em sua casa de campo. A filha caçula passa a não vê-lo como alguém tão assustador e, ao fim de oito agradáveis dias, decide casar-se com o viúvo. Segundo Corso, em Fadas no divã, “São as posses ou a vontade de ir embora de casa, que fazem as moças em Barba Azul e Nariz de Prata relevarem o que seus olhos vêem no pretendente: tanto o mau aspecto quanto uma pista de sua maldade” (CORSO; CORSO, 2006, p. 191).

Pouco depois do casamento, o marido precisa viajar e deixa a moça responsável pela casa e pelas chaves da mesma. Antes de partir, porém, adverte:

Quanto a esta pequenina aqui, é a chave do gabinete na ponta da longa galeria do térreo. Abra tudo que quiser. Vá onde bem entender. Mas proíbo-lhe terminantemente de entrar nesse quartinho, e se abrir uma fresta que seja dessa porta nada a protegerá da minha ira. (PERRAULT, 2013, p. 163-164).

Na verdade, “O Barba Azul proíbe a jovem de usar a única chave que a traria de volta à consciência” (ESTÉS, 1994, p. 71), isto é, aquela chave era a única que poderia fazê-la conhecer o perigo.

A esposa promete cumprir as ordens do marido e, para se distrair, convida algumas amigas para visitá-la. Porém, mesmo na presença delas, a moça não se diverte pois está “atormentada por sua curiosidade” (PERRAULT, 2013, p. 165). Vemos aqui que o autor

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160 já nos dá a primeira “pista” do quão destrutiva é a curiosidade, colocando-a como a

responsável por tirar o prazer cotidiano da jovem esposa.

A moça estando tão atormentada não pestanejou em deixar as amigas e ir até o gabinete proibido. “Ao chegar à porta do gabinete, parou por um momento, pensando na proibição do marido e considerando que podia lhe acorrer uma desgraça caso desobedecesse. Mas a tentação era grande demais.” (PERRAULT, 2013, p. 165, grifo nosso). Segundo Corso, “Desde a caixa de Pandora, a curiosidade feminina tem o péssimo hábito de abrir lugares de onde saem ou se revelam maldades” (CORSO; CORSO, 2006, 194). Apresenta-se, então, a segunda pista dada pelo autor sobre os males da curiosidade. Ceder a ela era uma tentação, uma vez que a curiosidade feminina é um pecado que leva a iminente tragédia.

Ao abrir a porta, não conseguiu enxergar o que havia no gabinete, mas suas mãos trêmulas e o medo que a invadia eram um prenúncio da cena de horror que estava prestes a testemunhar.

Após alguns instantes começou a perceber que o assoalho estava todo coberto de sangue coagulado, e que naquele sangue se refletiam os cadáveres de várias mulheres mortas e perduradas ao longo das paredes (eram todas as mulheres que Barba Azul desposara e degolara, uma depois da outra). (PERRAULT, 2013, p. 166).

No terror daquele momento, a moça deixou cair no chão a chave que ficou manchada de sangue. Tentou limpá-la, mas era a mácula testemunha indelével de seu “pecado” que mesmo diante de todos os seus esforços não era apagada.

O esposo retornou para casa naquela mesma noite e na manhã seguinte pediu as chaves e ao perceber o nervosismo da moça ao entregá-las adivinhou tudo o que havia acontecido. A mancha de sangue denunciava a desobediência da esposa, ou melhor, que ela havia caído na armadilha arquitetada pelo cruel Barba Azul. O marido a sentenciou: “Você quis entrar no gabinete! Muito bem, senhora, entrará nele e tomará seu lugar junto das damas que lá viu.” (PERRAULT, 2013, p. 168).

A esposa em desespero se jogou aos pés do marido e implorou pela própria vida, “demonstrando um arrependimento verdadeiro por não ter sido obediente” (PERRAULT, 2013, p. 168, grifo nosso). Ainda que o esposo fosse um assassino e guardasse os corpos de suas vítimas em um quarto secreto, a jovem esposa lamenta sua desobediência como se infringir as regras impostas pelo esposo fosse um erro que justificasse o desejo

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161 assassino do marido.

A esposa pede ao seu algoz um tempo para que possa fazer suas últimas preces e o marido, “misericordioso”, aceita. “O pedido da jovem esposa do Barba-azul por algum tempo para se recompor não é um sinal de submissão ao predador [marido]. É seu modo astucioso de reunir energias para usar da força” (ESTÉS, 1994, p. 83).

Estando sozinha, a moça chama pela irmã Ana e pede que suba no alto da torre e observe se seus irmãos, que prometeram visitá-la naquele dia, estavam chegando.

Enquanto a jovem esposa perguntava à irmã se via se aproximarem os irmãos, o marido irritado a chamava aos gritos com um grande cutelo na mão.

Quando desceu, ao encontro do marido, a esposa se jogou aos pés dele, mais uma vez implorando pela própria vida. Ele irredutível sentenciava que ela tinha que morrer e quando agarrou os cabelos da esposa e ergueu o cutelo, os irmãos da jovem chegaram empunhando espadas e mataram o Barba Azul.

Como o Barba Azul não tinha herdeiros, todas as posses dele passaram para a jovem viúva. Com parte do dinheiro, ela ajudou os irmãos e o restante usou “no próprio casamento com um homem muito direito que a fez esquecer o que sofrera com o Barba Azul” (PERRAULT, 2013, p. 171).

A moral de “O Barba Azul”

Nos contos de fadas de Perrault, é recorrente encontrarmos, ao fim da narrativa, uma moral. Mariza Mendes no livro Em busca dos contos perdidos, afirma sobre isso que

Uma moral em versos acoplada ao fim de um conto em prosa evidencia, em primeiro lugar, a intenção de mostrar que contar uma história e acrescentar-lhe uma lição de moral são coisas distintas. Separadas estruturalmente do conto, a moral não o contamina e pode mesmo ser suprimida, sem que se altere o texto da narrativa. (MENDES, 2000, p 119).

O escritor francês tinha uma relação próxima com as Preciosas, mulheres cultas que ocupavam os salões da França do século XVII e, além de escreverem contos de fadas, questionavam o papel da mulher na sociedade. Apesar de sua pública defesa às mulheres, Perrault tinha um discurso bastante pautado numa lógica patriarcal e isso se apresentava, principalmente, nas morais de seus contos de fadas que, ao exaltar as virtudes femininas,

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162 destacavam a submissão, passividade e condenava, por exemplo, a curiosidade.

Perrault apresenta para o conto “O Barba Azul” duas morais. A primeira, criticando a curiosidade feminina, diz:

A curiosidade, apesar de seus encantos, Muitas vezes custa sentidos prantos; É o que vemos todo dia acontecer.

Perdoem-me as mulheres, esse é um frívolo prazer. Assim que o temos, ele deixa de o ser

E é sempre muito caro de obter. (Grifo nosso) (PERRAULT, 2013, p. 171)

Em uma segunda moral, apresentada para o mesmo conto, é dito: Basta ter um pouco de bom senso

E ter vivido da vida um bocado, Pra ver logo que esta história É coisa de um tempo passado. Já não existe esposo tão terrível, Nem que exija o impossível.

Mesmo sendo ciumento ou zangado, Junto da mulher ele sorri calado.

E quer tenha a barba azul, roxa ou amarela

Quem manda na casa mesmo é sempre ela. (PERRAULT, 2013, p. 172) Podemos observar que as duas morais falam sobre o mesmo conto, porém não se completam. Na verdade, elas são quase opostas, pois enquanto uma denuncia um defeito dito propriamente feminino, o outro exalta a capacidade da mulher de ser a gestora do lar, denunciando como antiquadas as ações do Barba Azul. Marina Warner ressalta, sobre as morais que Perrault inclui em “O Barba Azul”, que:

Perrault quer ficar com os dois lados: conta uma vigorosa história de autodefesa e fuga, mas depois acrescenta duas observações marotas à guisa de moral: que não existam mais maridos tão terríveis como Barba Azul e que, além do mais, entre marido e mulher, naqueles dias, ‘Não importava a cor da barba, é difícil saber quem manda’. (WARNER, 1999, p. 277)

A primeira moral, apesar de condenar a mulher pelo frívolo prazer da curiosidade, é a que melhor dialoga com o objetivo deste artigo ao analisar o referido conto de Charles Perrault. A outra moral, entretanto, busca abordar a crueldade do personagem que dá nome ao conto. Através das pistas que destacamos em “O Barba Azul”, é possível perceber o quanto a curiosidade feminina é execrada. “A história do Barba Azul foi vista

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163 tradicionalmente como girando em torno da curiosidade da esposa, que nunca consegue

'‘resistir’' à tentação de espiar o quarto que lhe foi proibido.” (TATAR, 2013, p. 161). Trata-se, portanto, de um erro fatal ceder a esse mal, o que aproxima a esposa do Barba Azul de “figuras femininas que sofreram do excesso de curiosidade: Eva e o fruto proibido; Psique e a curiosidade em desvelar a identidade de seu esposo; e Pandora e a caixa dos males.” (PAULINO, 2015, p. 32).

A narrativa do Barba Azul muitas vezes recebeu o subtítulo de “Os efeitos fatais da curiosidade feminina” evidenciando-a como um conto admonitório sobre a perversidade feminina. Marina Warner ressalta, entretanto, que

[Perrault] dramatiza o abuso do privilégio masculino e salva sua heroína do desastre e da injustiça no final. “Barba Azul” é uma história, como “Cinderela”, em que os poderosos são vencidos . O marido dominador, assim como a madrasta perversa e as irmãs feias em “Cinderela” e o pai incestuoso em “Pele de Asno”, é derrotado para a felicidade e a edificação de todos. (Cf. WANER, 1999, p. 277).

Coloca-se a curiosidade da mulher como um grande causador de males, pois “foi atribuída à curiosidade feminina uma conotação negativa, enquanto que a masculina era chamada de curiosidade investigativa. As mulheres eram abelhudas, enquanto os homens eram indagadores.” (ESTÉS, 1994, p.72). Mas o conto de Perrault, que pode ser compreendido como uma versão do pecado original na qual “Eva” se safa por ter desobedecido (Cf. WARNER, 1999, p. 277).

Apesar de, ao lermos o conto, percebermos a maldade do personagem Barba Azul, em que ele é descrito como um homem de coração mais duro que todas as rochas (Cf. PERRAULT, 2013), muitas vezes a narrativa leva o leitor a considerar a curiosidade feminina como o pivô de toda a tragédia. Mas se não fosse curiosa, não seria a protagonista de “O Barba Azul” mais um corpo no gabinete de um uxoricida?

Mendes, ao abordar o desfecho do conto de Perrault e da versão oral de “O Barba Azul”, afirma que “Em todas as versões o marido é punido com a morte e o castigo da curiosidade não passa de um susto, para a heroína, embora outras mulheres tivessem morrido antes dela por causa da curiosidade” (MENDES, 2000, p. 97).

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164 Os contos de fadas costumam ser reescritos, reelaborados ou simplesmente

recontados. A autora ítalo-brasileira Marina Colasanti utiliza o modelo dos contos de fadas para escrever suas próprias narrativas, sendo recorrente em suas obras o pastiche. Entendemos aqui por pastiche uma imitação criativa de um determinado modelo, no caso específico de Colasanti, o modelo utilizado são os contos de fadas. Entendemos que

No processo intertextual, o pastiche assume os traços de um estilo de tal ênfase que o sentido se torna deslocado. Ele não retoma

necessariamente textos específicos, mas reporta-se a todo um gênero. (PAULINO, WALTY, CURY, 2005, p. 40)

Entretanto a autora utiliza-se também da paródia. Define-se esse processo intertextual como “uma forma de apropriação que, em lugar de endossar o modelo retomado, rompe com ele, sutil ou abertamente.” (PAULINO, WALTY e CURY, 2005, p.36, grifo nosso).

Em “De um certo tom azulado”, Colasanti lança mão da paródia para a construção da narrativa. Nesse conto publicado em 1986, a autora recorre ao conto “O Barba Azul” de Charles Perrault. Trata-se, na verdade, de um micro-conto no qual a autora apenas tangencia a face sombria do marido e destaca a curiosidade feminina.

Sendo uma paródia, na qual se contradiz o original, tendo um objetivo cômico e satírico, a autora mantém o tema, mas “brinca” com o suspense presente em “O Barba Azul”. Ainda há uma jovem esposa, ainda há um viúvo, ainda há a chave e o quarto secreto.

Bem como no conto de Perrault, no conto de Colasanti o esposo também precisa viajar e entrega as chaves à esposa.

A chave, mostrou, estava junto com as outras no grande molhe. E a ela seria entregue, tão certo estava de que sua virtude não lhe permitiria transgredir a ordem. E não permitiu, na semana toda em que o marido ficou no castelo. Mas chegando a oportunidade da primeira viagem, despediu-se ela acenando com a mão, enquanto com a outra apalpava no bolso a chave proibida. (Grifo nosso) (COLASANTI, 1986, p.115) A palavra virtude, que destacamos, refere-se à obediência que o esposo acredita

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165 que a jovem tinha e que tal virtude não permitiria que ela cometesse o pecado da

curiosidade. Nos contos de fadas, algumas qualidades eram exigidas das personagens femininas como a obediência e a total submissão ao homem (Cf. COELHO, 2000, p. 180). Foge, portanto, de uma atitude virtuosa aquela que não está adequada a esse padrão.

Seguindo o modelo do conto de Perrault, a protagonista também é atormentada pela curiosidade. Ela precisa ver o que se esconde naquele quarto. “As mãos da personagem colasantiana tremem com o possível cenário que se encontra atrás da porta. O leitor, conhecedor do “Barba Azul”, antecipa o terror da esposa ao descobrir que o marido é um serial killer.” (PAULINO, 2015, p. 19), entretanto a expectativa é quebrada,

pois “no grande quarto, sentadas ao redor da mesa, as três esposas esperavam. Só faltava ela para completar o jogo de buraco.” (COLASANTI, 1986, p.116).

As esposas, diferente do conto de Perrault, estão vivas e não há nenhuma cena de horror no quarto, apenas algo tão corriqueiro que não merecia sequer estar escondido.

É importante ressaltar que as outras três esposas esperavam pela quarta. Isso revela que todos naquele universo ficcional tinham certeza de que a jovem sucumbiria à curiosidade e entraria no quarto. No conto de Perrault, a questão da ação que o marido espera da esposa não é muito diferente. Afinal, o esposo sempre esperava que, mesmo diante desuas proibições, as mulheres se tornassem suas vítimas ao entrar no macabro quarto. A trama que envolve a curiosidade feminina, o marido viúvo, o quarto e a chave, em geral, irá se configurar numa armadilha para essas protagonistas.

No conto de Colasanti, entretanto, a curiosidade feminina acaba, por fim, sendo algo banal e a quebra de expectativa torna o conto risível por conta do inesperado desfecho.

Entretanto, observando mais a fundo o conto de Colasanti, destacamos aqui que o “Barba Azul” dessa narrativa tinha quatro esposas. Dessa forma, podemos perceber uma crítica sutil da autora à banalização da traição no mundo ocidental. O marido, nessa narrativa, também é cruel, porém não por matar as esposas, mas por obrigá-las a conviver com a evidente infidelidade.

Considerações finais

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166 apresenta um enredo que releva horror e crueldade. Devemos estar cientes de que,

portanto, “contos de fadas e lendas populares tiveram origem numa cultura adulta” (TATAR, 2013, p. 161) e, mesmo que adaptados para o deleite das crianças e jovens, alguns contos, como o citado, permanecem com traços de suas origens.

Charles Perrault buscou, através dos contos de fadas, transmitir aos jovens ensinamentos e virtudes. No conto “O Barba Azul”, dá-se muito destaque aos males trazidos pela curiosidade feminina. A narrativa tem um caráter moralizante e busca, complementando com uma ou mais morais, exprimir conselhos para os jovens. Segundo Mariza Mendes, no livro Em busca dos contos perdidos, em “O Barba Azul” “O motivo central é a curiosidade feminina castigada, motivo comum nos contos populares, como se a curiosidade fosse uma prerrogativa das mulheres” (MENDES, 2000, p.96).

O conselho de “O Barba Azul” destina-se principalmente às mulheres, uma vez que a curiosidade masculina em nenhum momento é questionada. Poderíamos resumir a moral do conto em uma advertência: Mulheres, não sejam curiosas. Apesar de esse ser o “claro” conselho do conto, numa vertente psicanalítica, Clarissa Pinkola Estés afirma que:

Na história do Barba-azul, vemos uma mulher que cede ao encanto do predador [marido uxoricida], que acorda para a realidade e foge dele, mais sábia para a próxima vez. O conto de fadas trata da transformação de quatro introjeções sombrias que, para as mulheres, são objeto de controvérsia: não seja, não tenha insigth, não fale, não haja. Para expulsar o predador, precisamos fazer o contrário. Devemos abrir as coisas com chaves ou à força para ver o que está dentro delas. (ESTÉS, 1994, p. 96).

Ainda segundo Clarissa Pinkola Estés, “pensadores no campo da psicologia, como Freud e Bettelheim, interpretaram episódios semelhantes aos encontrados no conto do Barba-azul como uma punição psicológica pela curiosidade sexual das mulheres” (ESTÉS, 1994, p. 72). Em Fadas no Divã, o casal Corso discorre sobre algumas narrativas populares em que há a presença de um quarto proibido. Eles descrevem o quarto do Barba

Azul e do Nariz de Prata, lugares nos quais uma cena de horror aguarda as mulheres

curiosas; em outra narrativa descrita, João, o fiel (dos irmão Grimm), entretanto, o personagem curioso é um homem e no quarto não há qualquer cena amedrontadora, há o retrato de uma bela princesa por quem o príncipe se apaixona perdidamente. Corso supõe que “quando há questão de conhecimento interditado, se trata dos mistérios do sexo” (CORSO; CORSO, 2006, 196). Logo, as questões dirigidas ao saber sexual se

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167 apresentariam como uma porta proibida para as mulheres, cujo prazer relaciona-se com

dor e pavor, “depois de ter usado a chave da porta do sexo, para mulher não há caminho de volta” (CORSO; CORSO, 2006, p. 197); enquanto que para o masculino a descoberta se revela como uma maravilhosa surpresa.

Perrault cria um personagem assustador e aborda um casamento infeliz em “O Barba Azul”, mas o que se destaca na obra de forma intrigante é o questionamento que recaí sobre a curiosidade feminina. Ainda que a segunda moral apresentada no conto exalte as qualidades que se espera da mulher, o conto como um todo, e completado pela primeira moral, revela ter por objetivo denunciar o mal que a curiosidade pode trazer. “A esposa do Barba Azul é reconhecida pela sua insubordinação, o que coloca o marido cruel e assassino no papel de homem traído, vitima da curiosidade feminina.” (PAULINO, 2015, p. 33).

Perrault nos dá um conto que solapa deliberadamente a traição em que a heroína é agente engenhosa de sua própria salvação. Em vez de celebrar a coragem e sabedoria da mulher de Barba Azul ao descobrir a horrível verdade sobre as ações assassinas do marido, Perrault e muitos outros autores que contam a história subestimam seu ato de insubordinação. (TATAR, 2013, p. 161).

Entretanto, devemos observar que a insubordinação, resultada da curiosidade, foi quem salvou a protagonista de “O Barba Azul”. Foi esse sentimento que a atormentava que a fez descobrir o perigo que corria. A curiosidade não a condenou, pelo contrário, a salvou.

Em uma versão de “O Barba Azul”, intitulada “La lhave”, a escritora argentina Luisa Valenzuela defende a curiosidade da esposa do conto, através do narrador autodiegético: “São eles que nos marcaram com o pecado. É coisa de mulheres, dizem (...) Sempre repito que se me tem acusado de um defeito que a princípio parecia me levar a morte, acabou por me salvar, finalmente” (Tradução nossa) (VALENZUELA, 2009, p.127).

Marina Colasanti, ao escrever sua versão desse conto, fez uma paródia na qual torna ainda mais evidente a armadilha construída pelo marido. Ao lermos o conto, tendo um conhecimento prévio da narrativa de Perrault, sabemos que a esposa iria ao quarto, ela usaria a chave para abrir a porta. Não somente os leitores preveem a atitude da jovem,

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168 mas todos os outros personagens são capazes de prever suas ações, eles esperavam essa

atitude dela. Em “De um certo tom azulado”, a autora utiliza o verbo “esperavam” e, mesmo Perrault não evidenciando isso, em seu conto, nos deixa abertos à interpretação de que o marido assassino também esperava que sua jovem esposa abrisse a porta, movida por sua curiosidade, e viesse a se tornar sua próxima vítima.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Prática 1ª Edição São Paulo: Ed. Formato, 2005.

COLASANTI, Marina. Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

MENDES, Mariza B.T. Em busca dos contos perdidos: o significado das funções

femininas nos contos de Perrault. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

MEREGE, Ana Lúcia. Os contos de fadas; origens, história e permanência no mundo moderno. São Paulo: Claridade, 2010.

PAULINO, Simone Campos. Nos fios das narradoras: tramas e urdiduras do feminino

nos contos de fadas nos contos de fadas de Angela Carter e Marina Colasanti.

Saarbrüken, Novas edições acadêmicas, 2015.

PERRAULT, Charles. Barba Azul. In: TATAR, Maria. Contos de fadas; edição comentada e ilustrada. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013. TATAR, Maria. Contos de fadas: edição comentada e ilustrada. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013.

VALENZUELA, Luisa. La lhave. In: DIAZ, Gwendolyn. Mujer y poder en la literatura

argentina; relatos, entrevistas y ensayos críticos. Buenos Aires, Editorial Emecé, 2009.

WARNER, Marina. Da fera à Loira: sobre contos de fadas e seus narradores. Tradução de Thelma Médici Nóbrega. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

Referências

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