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José do Patrocínio: para além da memória de um abolicionista

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Academic year: 2021

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José do Patrocínio: para além da memória de um abolicionista.

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Marcos Teixeira de Souza2- Unigranrio Jose Geraldo Rocha3- Unigranrio

RESUMO: A contribuição de José de Patrocínio em defesa da Abolição do trabalho escravo não se deu apenas em sua atuação incisiva na imprensa fluminense e na tribuna parlamentar. Ao escrever seu primeiro romance, Motta Coqueiro ou a pena de morte, em 1877, Patrocínio utiliza-se da Literatura como uma arma política, a exemplo da poesia de Castro Alves, para combater o preconceito racial e o regime escravocrata. PALAVRAS-CHAVES: José do Patrocínio – Literatura – Memória – Romance.

Introdução

O reconhecimento de um autor e de sua obra lida e comentada nas mais diversas historiografias literárias demonstra o tratamento e a relevância desta na formação e no desenvolvimento de uma literatura nacional. Tal característica seria uma relação de causa e conseqüência, no entanto, por razões diversas, muitas das quais escapam a uma mera análise literária, pelas respostas estarem no terreno de outras áreas do conhecimento, um autor e suas obras (ou parte delas), ainda que desfrutassem de êxito na Literatura num primeiro momento, permaneceram ou ainda permanecem na obscuridade ou no esquecimento.

Tem-se tanto no caso de reconhecimento quanto no de esquecimento de um autor de uma obra literária uma questão de Memória. A forma como se concebe na memória coletiva a importância ou não de um autor e de uma obra nas historiografias literárias não se traduziria por certo tão-somente na expressividade e competência do autor e da obra, mas em questões que muitas vezes fogem ao texto, como circunstâncias políticas, ideológicas, históricas, sociais, culturais, que dirigiram ou dirigem um autor e uma obra para o esquecimento em muitas historiografias literárias brasileiras.

1 Artigo oriundo, com adaptações, do primeiro capítulo da dissertação Memórias de cor e classe

social em Motta Coqueiro ou a pena de morte.

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Aluno concluinte do Mestrado em Letras e Ciências Humanas, da Unigranrio.

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O romance Motta Coqueiro ou a pena de morte, escrito por José do Patrocínio, em 1877, subsiste ao esquecimento das Letras, sepultado nas cinzas de longo esquecimento. Neste aspecto, vale ressaltar uma frase do autor português Camilo Castelo Branco: ‘Há uma coisa mais aviltadora do que o desprezo: é o esquecimento.’ Texto, contexto e pretexto: José do Patrocínio e o romance Motta Coqueiro ou a pena de morte.

O século XIX no Brasil figurou como um período de muitos acontecimentos-chaves que fizeram do Brasil colônia em uma nação em formação. Na primeira metade do século citado, a vinda da família real, em 1808, e a independência política, em 1822, inauguraram um novo relacionamento entre o Brasil e Portugal, que trouxe para a nação brasileira uma série de transformações políticas, econômicas, sociais, culturais, etc. Na segunda metade, a abolição dos escravos, em 1888, e a proclamação da República, em 1889, constituíram momentos de partida para repensar e reestruturar o Brasil como uma nação envolta à busca de ideais, tais como cidadania, progresso, cientificidade, etc.

Principal centro político e cultural do Brasil no século XIX, como escreve Humberto Fernandes Machado (2007),

o Rio de Janeiro era um espaço repleto de contrastes, caracterizado pela incorporação das novidades européias e das idéias de progresso e civilização que se opunham ao escravismo. Essa peculiaridade da cidade favoreceu o envolvimento da população na campanha abolicionista. (MACHADO, 2007, p. 01),

foi o palco mais ilustre de toda uma luta pró-Abolição dos escravos. Por certo, não só uma cidade restrita a esta luta, mas a questões nacionais.

Neste período, o discurso de nacionalidade assume uma preponderância entre os intelectuais, políticos, literatos, militares, etc. não só diante dos eventos históricos supracitados. Perpassa praticamente pelo século XIX todo, obviamente com especificidades locais, temporais e culturais, mas fortemente vinculado a discutir os problemas brasileiros impeditivos ao progresso intelectual, econômico, social, cultural, evidenciando que o Brasil, para crescer, deveria lidar com os seus dilemas internos. O Positivismo, de acordo com Sílvio Romero, João Camilo de Oliveira Torres, Ivan

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decisivo na intelectualidade neste contexto das últimas décadas do século XIX. Assim, falando sobre a influência das idéias de Comte no Brasil, fundador do Positivismo, Soares (1998) afirma:

O que ele não contava é que viesse a ser o Brasil o país em que encontraria o mais favorável dos ambientes para exercer a sua influência cultural, filosófica, científica, política e religiosa, a ponto de marcar incisivamente sua presença nas instituições sociais e de haver determinado o surgimento, até aqui, do único templo para suas prédicas, construído segundo as indicações gerais do Catecismo. (SOARES, 1998, p. 87)

A Literatura não esteve ausente deste discurso de nacionalidade brasileira no século XIX. Como salienta Heloísa Toller Gomes, em As marcas da escravidão O

negro e o discurso oitocentista no Brasil e nos Estados Unidos (1994):

Com a ampliação do espaço público burguês e o acelerado desenvolvimento tecnológico da imprensa, o discurso literário oitocentista beneficiou-se do acesso a círculos novos de leitores e tornou-se cada vez mais insistente na abordagem de temas sociais. (GOMES, 1994, p.131)

O discurso literário, além do jornal e da tribuna parlamentar, foi potencialmente um canal expressivo e público de questões explícitas e implícitas deste discurso de nacionalidade, na divulgação e na compreensão da sociedade brasileira, em meio a anseios, dilemas, perspectivas e projetos que permearam o desejo de se construir uma nação forte e não mais genuflexa aos interesses de Portugal e de outras nações. Neste contexto em que a Literatura se exibe como um dos veículos do discurso promotores de nacionalidade e brasilidade, o Romantismo e o Realismo brasileiros, excetuadas algumas particularidades, por exemplo, o ultra-romantismo, colaboraram em muito para enunciar e/ou propor um discurso em torno de um ufanismo brasileiro, sem semelhantemente ocultar os dilemas e problemáticas da nação brasileira, e sem abrir mão de se construir uma literatura propriamente brasileira, com conteúdos e formas lingüísticas, inclusive, mais brasileiras e menos lusitanas ou estrangeiras.

Partindo deste prisma, em que a Literatura se insurge como uma fonte importante para visualizar e narrar o discurso da nacionalidade e da brasilidade no século XIX, esta forma de expressão artística ganha uma conotação histórica e potencialmente alternativa para o estudo e compreensão da História do Brasil, além de outras ciências humanas e

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sociais. Muitas obras literárias do século XIX, tanto românticas quanto realistas, relevam algumas particularidades dos modus vivendi dos brasileiros daquele período; pontuam o posicionamento ideológico do literato que escreve e do público que o recepciona, dão mostras de assuntos em discussão na sociedade; constroem uma imagem sobre o Brasil e o seu povo; fomentam o debate público e político em torno de temas preocupantes, etc. Como dizem Ângela Vianna Botelho e Liana Maria Reis (2001), em seu Dicionário Histórico Brasil Colônia e Império, além da Imprensa, como um expressivo meio de divulgação da propaganda abolicionista, também a literatura foi

um importante veículo divulgador de idéias, particularmente através do maior poeta abolicionista, Castro Alves (2001:194).

Dentro deste amplo discurso em torno da nacionalidade e da brasilidade, o dilema da escravidão preenche uma dimensão importante, pois é este dilema, na crença de muitos intelectuais, que ata ou desata o nó para a formação de uma identidade nacional e para o progresso do país, como faz bem notar Everton Vieira Vargas (2007:133), em

O legado do discurso: brasilidade e hispanidade no pensamento social brasileiro e latino-americano. Daí a temática Abolição dos escravos ser um assunto freqüente, alvo

de discussão no século XIX, sobretudo, depois de 1850, quando se dá o fim do tráfico negreiro e se começa a pensar em um novo modelo econômico para adotar no Brasil, caso a escravidão findasse. Entra em jogo, com o fim do tráfico negreiro, não só a questão econômica, mas também a preocupação com um modelo de sociedade, de cultura, de identidade, etc. que se procuraria delinear para o futuro do país.

Obviamente estas questões não surgiram da noite para o dia, elas tomam mais corpo com a promulgação da Lei do ventre livre, em 1871; com o surgimento e crescimento de associações abolicionistas; e, sobretudo, com presença e ações destacadas de arautos, oriundos tanto da classe popular quanto da elite, tanto de pele negra quanto branca, tanto vinda da tribuna do parlamento ou fora dele, que engendraram uma atmosfera de luta pela Abolição dos escravos. O Brasil do século XIX assistiu a uma profusão de personagens e ações promotoras da Abolição. Muitos destes personagens eram literatos e escreveram o dilema da escravidão em suas páginas.

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Bernardo Guimarães (1825-1884), com A escrava Isaura (1841); Gonçalves Dias (1823-1864), com A Escrava, em 1846; José de Alencar (1829-1877), com O Demônio

Familiar (1856); Castro Alves (1847-1871), com Os escravos (1883); Fagundes Varela

(1841-1875), com Mauro, o Escravo (1864); Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), com As Vítimas Algozes (1869); Aluísio Azevedo (1857-1913), com O mulato (1881) entre outros; não declinaram da intenção de romancear o drama dos negros escravizados e/ou do preconceito racial. Dentre estes arautos e literatos, um dos proeminentes descenderia do norte fluminense.

Nascido em nove de Outubro de 1853, no norte fluminense, na cidade de Campos dos Goytacazes, José Carlos do Patrocínio, com sua vida e obra, tornou-se uma dos mais importantes figuras do século XIX no ideário de uma formação de uma identidade nacional brasileira livre da escravidão negra.

Filho de um padre branco, João Carlos Monteiro, e de uma escrava negra, Justina do Espírito Santo, os quais respectivamente contavam 54 e 13 anos de idade, José do Patrocínio é fruto de uma relação propriamente inconveniente para a época e principalmente ilícita, devido à condição sacerdotal de seu pai, que não o reconhecera legalmente como filho, no entanto, mantém-no em sua casa e lhe dá semelhante tratamento de filho.

Este nascimento, em razão da distinção de cor, classe social e idade entre os pais de Patrocínio, moveria o filho para uma situação intermediária, em que conviveria com as venturas e desventuras das situações e problemáticas referentes à cor e à classe social. Colocariam-no em uma situação movediça, ameaçado ora sim, ora não pelas dinâmicas de cor e classe social presentes na sociedade brasileira do século XIX.

A infância de Patrocínio, na fazenda de seu pai, convivendo com escravos e os trabalhos e castigos impostos a eles, conhecendo os antagonismos de classes sociais e de cor, aprendendo no cotidiano as dinâmicas de classe social e raça inerentes à sociedade brasileira do século XIX, tomando ciência dos privilégios irrestritos ao senhor branco e do jugo ao negro, etc. envolveria Patrocínio no status quo social e racial, que comumente marcavam o cenário rural brasileiro; e os lugares de cada um dos membros nesta comunidade, na hierarquia social. É por certo neste ambiente

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literalmente familiar que se começa a engendrar uma memória sobre a escravidão, cujo conteúdo – ou parte dele – seria provável e posteriormente explorado e retratado em seu primeiro romance Motta Coqueiro ou a pena de morte, escrito em 1877, bem como seria discutido com veemência nos seus artigos políticos na Gazeta de Notícias e nos demais jornais para os quais Patrocínio tivera trabalhado.

O romance narra a história de Motta Coqueiro, influente fazendeiro do norte-fluminense, que é acusado pelo bárbaro homicídio, com requintes de crueldade, contra uma família de agregados que vivia suas terras. A família de agregados, formada por Francisco Benedito, sua esposa e três filhas moças, o filho moço Juca e mais duas crianças, viera de outras terras, e, num primeiro momento, conquista a simpatia da família de Coqueiro, excetuando somente o vício de Francisco Benedito pela bebida. No enredo, as três filhas do casal de agregados – Antonica, Mariquinhas e Chiquinhas – despertavam, por serem lindas, a atenção masculina da localidade, sobretudo o interesse de três homens – Oliveira Viana, Manuel João e Sebastião, os quais ao longo do romance, procurarão, cada um a seu modo, conquistar uma das filhas do agregado. Dentre os três referidos rapazes, um deles se destaca na narrativa de Patrocínio: Manuel João, que se questiona, a si mesmo, por ser mestiço, a respeito da possibilidade de uma moça branca, como Mariquinhas, desejá-lo. No íntimo, Manuel João desconfia de uma suposta afronta de Motta Coqueiro contra a virgindade da moça. Esta suspeita é também alimentada pelos dois companheiros de Manuel João, que vêem muita liberdade entre as filhas do agregado com o fazendeiro, que em sua propriedade mantinha escravos. Uma das escravas, chamada Balbina é singular no romance.

Após ser expulsa da Casa grande, onde cuidava do filho do patrão, e ser lançada à senzala e ao trabalho no eito, esta se torna uma pessoa consciente, na própria pela, da aflição e condição imposta à etnia negra, sendo uma voz dissonante diante do status quo colonial. O trágico assassinato da família de agregados e suspeita da autoria de Motta Coqueiro e de outras personagens, entre elas, a esposa de Coqueiro, que desconfia da fidelidade do marido, criam uma atenção propícia ao romance, além de outras tensões secundárias.

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O fim trágico do fazendeiro Motta Coqueiro era um assunto a que desde a infância Patrocínio acostumara ouvir. Era um fato popular. Segundo matéria da Revista do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, edições 428 e 429 (2005:299), sobre a

tragédia em Macabu: O caso tendeu para quase uma lenda.

Valendo de suas memórias como fonte de inspiração para obrar poesias e, mais tarde, seu primeiro romance, Patrocínio tinha ante a seus olhos uma série de temas sociais, como a escravidão, a desigualdade social, a problemática da concentração de rendas nas mãos de poucos membros da sociedade, etc. com os quais poderia esboçar um enredo, no entanto, pouco ou nenhum, naquele momento para Patrocínio parecia ter o fascínio que o caso da tragédia em Macabu. Após receber um telegrama na redação da Gazeta de Notícias, em que, segundo Magalhães Júnior (1969), continha a notícia de que um homem na cidade de Itabapoana, declarando-se o autor do assassinato da família de Francisco Benedito, em derradeiros suspiros ante a um padre que lhe prestava últimos cuidados, foi o pretexto inicial para pôr em prática a produção de seu primeiro romance.

A desenvoltura como jornalista em Os Ferrões e na Gazeta de Notícias, bem como o reconhecimento profissional neste último lhe garantiram a possibilidade e prestígio para escrever e publicar o romance Motta Coqueiro ou a pena de morte, que veio ao público em folhetim em 1877, e em livro no ano seguinte.

Decerto era presente na memória individual de Patrocínio, que viu na revelação de uma nova versão para o acontecido um material farto para empreender um romance. Até então, a Gazeta de Notícias não publicava romances de autores brasileiros, somente a tradução de folhetinistas estrangeiros. Com a idéia em mente, Patrocínio via consigo a oportunidade de alcançar, pelo menos, dois feitos: ser o primeiro brasileiro a publicar na

Gazeta de Notícias, e ser o primeiro a propagar com mais dimensão uma nova versão a

um fato que era presente na memória coletiva brasileira, sobretudo na corte, na província de Campos dos Goytacazes e nas circunvizinhas.

Consciente ou não, a memória individual de um autor não se encontra dissociada do trabalho ficcional e inventivo. Por vezes, é ela o meio – e o romance é um desses importantes meios – pelo qual o autor expressa suas memórias individuais, em um misto

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de realidade na ficção, ou vice-versa, ora se utilizando de lembranças para, em sua obra, aclarar ou denunciar uma questão pessoal, obtendo uma catar-se; outrora, para retomar na memória individual um acervo auxiliar ou fundamental para o trabalho criativo de fazer um romance. Certamente não se pode levar todo um conteúdo de romance ao pé da letra como reprodução de uma realidade, como se fosse uma mera tradução da vida, das memórias do autor, transcritas integral ou parcialmente no texto ficcional. No entanto, pode-se, em menor ou maior grau, intuir uma proximidade, em muitos prosadores, a tríade autor – memória pessoal – produção literária, e encontrar elos significativos entre os três componentes, por meio de um olhar mais holístico, e não restrito a um dos componentes.

Não estão certamente transcritas todas as memórias individuais de Patrocínio nos seus textos. Contudo, o que se verifica é que há nos romances de Patrocínio, sobretudo em Motta Coqueiro ou a pena de morte (1977), percepções, sentimentos, pensamentos, lembranças, ações que remetem à figura de Patrocínio, à sua vida e a seus ideais, enxertadas explicita ou implicitamente na prosa. Tal característica não o faz superior, nem inferior a outros literatos de seu tempo, antes ou depois dele. Apenas o faz participante de um grupo de escritores que escreveram ou escrevem a partir de suas experiências pessoais, de suas impressões, que postas no papel ganham um tom de memória, de autobiografia, de testemunho.

No capítulo intitulado Perfil do escritor, em O tigre da Abolição, Osvaldo Orico (1953), após se perguntar sobre se Patrocínio seria um escritor no sentido de artista da

palavra, Orico (1953) confidencia para o seu leitor sobre a necessária cautela no sentido

da qualidade artística de Patrocínio como escritor. Orico (1953) confere mais mérito a José do Patrocínio na qualidade orador e jornalista: Patrocínio foi um orador. Orador

popular. Nisso estava sua força. E um jornalista. Jornalista de combate. Nisso estava o seu mérito. (ORICO, 1953, p. 209)

Como poeta, percebe-se sua ligação estreita entre memórias pessoais e a criação ficcional. Assim é que já trabalhando, em 1977, no jornal Gazeta de Notícias, proseia o sofrimento dos escravos provavelmente guardados nas lembranças de infância na

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Fazenda do Imbé, poetiza a lembrança de seus primeiros olhares sobre a pequena Bibi, etc.

É pálida e franzina Sobra da mão mimosa Na concha pequenina

A coma de uma rosa. (MAGALHÃES JÚNIOR, 1969, p.39) Os biógrafos de Patrocínio, Osvaldo Orico (1953), Magalhães Júnior (1969), Uelinton Farias Alves (2009) reiteram em suas respectivas obras O tigre da Abolição, A

vida turbulenta de José do Patrocínio e José do Patrocínio a imorredoura cor de bronze que as condições de trabalho em que era submetido o jovem campista nos

primeiros empregos nas casas de saúdes citadas eram aviltantes, semelhantes a um trabalho escravo. Além disso, outra questão não mencionada pelos biógrafos e que fatalmente deve ter gerado em Patrocínio uma paixão, uma das motivações pela causa da Abolição, seria o tratamento desigual dado a negros e brancos no ambiente de trabalho nas casas de saúde. Tal vivência profissional nas casas de saúde deve ter conduzido Patrocínio a uma identificação pessoal com o dilema do trabalho escravo, e conseqüentemente a um repúdio a estrutura social vigente, a percepção do lugar do negro na sociedade, gestando assim um sentimento de compaixão pela condição de escravo.

Unidas às memórias dos tempos em que vira a escravidão do negro na Fazenda do Imbé, as passagens de Patrocínio pelas instituições de saúde certamente contribuíram para que Patrocínio absorvesse consigo o entrechoque entre a naturalidade de muitos da sociedade com a escravidão e a inconformidade pessoal com a estrutura social, e mais tarde, com vigor, lutasse contra o sofrimento imposto aos negros escravizados.

Como se sabe por meio de muitos artigos escritos pelo jovem campista, a obra de Patrocínio composta em poesia até então expostas nos jornais, anteriores ao romance, em razoável parcela, estava calcada em memórias individuais, o que se subentende utilizar-se das memórias individuais era um procedimento literário que se sentia à vontade e/ou mais propenso a fazer.

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Por ter sido um acontecimento marcante para a comunidade na qual viveu durante sua infância em Campos, ele conhecia bem as histórias e versões acerca da execução de Motta Coqueiro. Este conhecimento, arragaido na memória individual, aliado às suas pesquisas no Arquivo Nacional, foi o material necessário e primário para empreender o romance.

Embora o título da obra pressuponha a sina de Motta Coqueiro, dizer que o primeiro romance de Patrocínio concentra restritamente uma crítica à pena capital e, sobretudo, uma crítica ao sistema judiciário frágil e sujeito a interesses políticos e escusos da verdade seriam um equívoco. Se assim fosse, teria dissecado mais a fundo estas críticas ao longo do seu texto, e não as restringindo a dois ou três capítulos da obra. O romance desenvolveu críticas à sociedade da época, à forma de se fazer política especialmente no âmbito provinciano, à estrutura social vigente, ao tratamento dado ao negro na sociedade rural, ao amor como mercadoria ou como sentimento atrelado às exigências de paridade de cor e/ou classe social entre os indivíduos, entre outras críticas menores que dão ao romance algumas tensões capazes de prender o leitor e levá-lo a refletir o status quo da sociedade fluminense e brasileira no século XIX.

Patrocínio traz para seu texto ficcional não só o lúdico, o entretenimento, mas, sobretudo, questões pessoais e sociais, com as quais deseja despertar no leitor, como os dilemas de cor e de classe social; a concentração de poder político e econômico por meio do latifundiário; a escravidão; os preconceitos sociais; o amor nas dinâmicas sociais e raciais. Tais intenções de retratar múltiplos aspectos vergonhosos da sociedade brasileira, que são evidentes à medida que é feita a leitura da obra, configuram o romance numa proposta realista, sem perder de vista uma parcela do que consta no prefácio de Silvano Santiago (na edição do ano 1977) de Motta Coqueiro ou a pena de

morte, como um romance de tese.

Antes de pôr em cena um enigma, como se acredita que seja o propósito do texto de ficção, o romance de tese apresenta uma convicção no palco, ou melhor, oferece ao leitor uma idéia já amadurecida pela certeza.(...) Não é portanto difícil para o leitor virar as últimas páginas de Motta Coqueiro ou a pena de morte e concordar plenamente com o texto e seu autor. Realmente, seguindo de perto a ação tal qual nos foi apresentada e descrita, trata-se de evidente

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trata-se de evidente erro judiciário que precisava, quanto antes, ser denunciado. (...) Percebe-se ainda, no caso de Motta Coqueiro, que a intenção de José do Patrocínio não foi a de criar um universo ficcional verossimilhante e multifacetado, mas pretendeu antes dar ao universo dramatizado o estatuo de verdadeiro e único. (PATROCÍNIO, 1977, p. 12)

Se fosse coerente aceitar unicamente a proposição de romance de tese feita por Santiago (1977), teria que se dizer então romance de teses. Ao contrário de Santiago, que enxerga apenas a defesa imoderada de Patrocínio contra uma pena de morte aplicada injustamente, que claramente se manifesta na voz do autor-narrador, é possível observar outras teses levantadas pelo autor – ainda que não visíveis por estarem, grande parcela, presentes nas vozes dos personagens: sobre a escravidão, sobre a questão da cor, da classe social entre as questões já citadas, que atuam como teses importantes pró-abolição dos escravos, pró-mudança do modelo social vigente.

Mas, comungando parcialmente do posicionamento de Santiago concernente ao autor, é visível que este romance de Patrocínio se comporta de modo unilateral na construção da tese ou das teses. As concepções ideológicas do autor são postas e realçadas no texto sem praticamente a presença e/ou intervenção de idéias contrárias ou diversas do autor sobre as teses por ele levantadas. O autor não propõe ao leitor alternativas, a não ser o entendimento defendido. O verdadeiro e único a que alude Santiago (1977:12) tem sua razão, porque Patrocínio parece distribuir suas concepções no papel de forma centralizadora, não abrindo mão de avocar nelas um tom de verdade e desconstruir as tentativas de outras teses, especialmente neste último caso, da memória de Motta Coqueiro.

É dispensável também lembrar que Motta Coqueiro ou a pena de morte particulariza-se por ser uma prosa escrita por um abolicionista que, embora ainda não fosse considerado um grande líder do Abolicionismo brasileiro à época do romance, nesta etapa da vida já tinha uma consistente consciência política sobre os preconceitos e estereótipos sociais e raciais presentes na sociedade fluminense e brasileira. Assim, com este romance, Patrocínio começa a enveredar mais ainda nos passos do Abolicionismo, e a introduzir o seu nome não só neste movimento político, mas também na Literatura brasileira, contribuindo assim para que arte literária seja mais um entre vários veículos

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capazes de discursar uma idéia, isto é, o drama do negro no Brasil de seu tempo, drama este marcado na memória e na pele.

Referências bibliográficas

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BOTELHO, Ângela Vianna & REIS, Liana Maria. Dicionário Histórico Brasil Colônia

e Império. Belo Horizonte: o autor, 2001.

GOMES, Heloísa Toller. As marcas da escravidão O negro e o discurso oitocentista no

Brasil e nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994.

MACHADO, Humberto Fernandes. Intelectuais, imprensa e abolicionismo no Rio de

Janeiro. XXIV Simpósio Nacional de História. Associação Nacional de História, 2007.

MAGALHÃES JUNIOR, Raimundo. A vida turbulenta de José do Patrocínio. Rio de Janeiro: Editora Sabiá, 1969.

ORICO, Osvaldo. O tigre da Abolição. Rio de Janeiro: Gráfica Olímpia Editora, 1953. PATROCÍNIO, José do. Motta Coqueiro ou a pena de morte. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves/SEEC, 1977.

SOARES, Mozart Pereira Soares. O Positivismo no Brasil: 200 anos de Auguste Comte. Porto Alegre: AGE: Editora da Universidade, 1998.

VARGAS, Everton Vieira. O legado do discurso: brasilidade e hispanidade no

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Referências

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